domingo, 27 de junho de 2010

UM HOMEM INDIGNO?


Antoine Compagnon, professor do Collège de France e da Columbia University (New York) e um dos maiores especialistas vivos de Marcel Proust, publicou recentemente um interessante livro: Le cas Bernard Faÿ - Du Collège de France à l'indignité nationale. O autor esclarece no Prefácio que desde há muito tempo o intrigava essa figura, da qual ele apenas sabia que fora director da Bibliothèque Nationale durante a Ocupação (alemã da França) e que, curiosamente, o precedera como professor exactamente naqueles dois estabelecimentos de ensino. Foi a edição de dois livros, Two Lives, Gertrude and Alice, de Janet Malcolm (sobre Gertrude Stein e Alice Toklas) e L'Amour des bibliothèques, de Jean-Marie Goulemot, que lhe suscitou o interesse de pesquisar as razões que levaram Bernard Faÿ a aderir ao regime de Vichy e á colaboração com os alemães.     

Interroga-se Compagnon sobre o que poderia ter conduzido Faÿ, homem de alta cultura, deficiente e esteta, homossexual e religioso, visita de Proust, familiar de Gide, Cocteau, Crevel e Picasso, íntimo de Gertrude Stein, principal conhecedor francês da história americana e uma espécie de embaixador cultural dos Estados Unidos em França, a passar da vanguarda intelectual  ao colaboracionismo, apesar de uma admiração já antiga pelo Marechal Pétain, aliás extensiva à que a maior parte dos franceses testemunhava ao vencedor de Verdun.

A trajectória deste homem constitui um mistério, e o próprio Compagnon refere que o seu livro mais não pretende ser do que uma primeira abordagem sobre uma figura cujo retrato permanece perturbador. Condenado a trabalhos forçados após a Libertação, nunca Bernard Faÿ se arrependeu dos seus actos, que o levaram, a ele que fora um estudioso da Maçonaria, a ser um dos mais empenhados agentes da repressão daquela organização, embora não haja provas quanto ao seu eventual anti-semitismo ou à perseguição dos judeus. Credita-se-lhe essa atitude, já que, para o regime nazi e para os partidários de Vichy, os maçons e os judeus, maxime os maçons-judeus, eram os inimigos principais, aqueles que nos governos da III República, em França, ou na República de Weimar, na Alemanha, tinham sido os obreiros da desgraça dos seus países.

Foi a partir da Bibliothèque Nationale, de que Faÿ fora nomeado director pelo Marechal Pétain, cargo que exerceu de 1940 a 1944, que este desencadeou a sua actividade repressiva, que o levaria à delação e à colaboração com a SS e a Gestapo. Mas, ao contrário de muitos franceses que ocuparam os mais altos lugares durante a Ocupação, e que fugiram ou se demarcaram a tempo da política de Vichy, Faÿ manteve-se no seu posto, tendo sido preso no seu gabinete da rua de Richelieu, a 19 de Agosto de 1944. Inconsciência ou perseverança? Nunca o saberemos. Internado administrativamente em Drancy até Julho de 1945, prisioneiro em Fresnes até Janeiro de 1947, julgado de 30 de Novembro a 6 de Dezembro de 1946 pela Cour de Justice de la Seine, foi condenado a trabalhos forçados perpétuos e à confiscação dos seus bens (limitada aos valores mobiliários por decreto presidencial de 30 de Dezembro de 1949) e ainda à degradação nacional. O seu advogado não recorreu, receando uma condenação mais severa, isto é, a pena de morte. A pena perpétua foi comutada em vinte anos de reclusão, em 1948, que cumpriu em Saint-Martin-de-Ré até Agosto de 1950, depois em Fontevrault até Março de 1951, antes de se evadir do hospital municipal de Angers, aonde fora internado por perturbações cardíacas, e se encontrava guardado por dois polícias. A sua fuga teve a cumplicidade das religiosas do hospital e conseguiu, disfarçado de padre, alcançar a fronteira suíça, sendo acolhido pelos seus amigos de Vichy, entre os quais Paul Morand. Viajou depois para Espanha, onde pretendia instalar-se, mas perante a recusa das autoridades, voltou para a Suíça. Em Abril de 1957, beneficiou a título individual de uma amnistia conforme a lei de 6 de Agosto de 1953. Exigindo o seu pedido que se constituísse prisioneiro, voltou a Fresnes (durante nove semanas, segundo Alice Toklas -  a amiga de Gertrude Stein, entretanto falecida, e que sempre o apoiou - ou durante apenas três dias, segundo a família). Poucos colaboracionistas estavam ainda detidos nessa data, e Faÿ foi efectivamente libertado e recuperou os seus direitos cívicos, sendo François Mitterrand ministro da Justiça e Guy Mollet, chefe do Governo. A graça foi uma das últimas a ser assinada  por René Coty, em Janeiro de 1959, dias antes do general de Gaulle o substituir na presidência da República.

Sob o nome de Philippe Conaint, Faÿ refez entretanto a sua vida em Lausanne num colégio religioso, depois na universidade de Friburg, até 1960, onde os estudantes protestavam episodicamente contra a sua presença. Até à sua morte, em 31 de Dezembro de 1978 (nascera em 3 de Abril de 1893), Bernard Faÿ publicou várias obras, entre as quais Les Précieux (memórias) e La Guerre des trois fous.

Tendo a maior parte dos franceses activos durante a Ocupação voltado a ocupar os seus lugares após a Libertação (apenas os nomes mais sonantes, Pétain, Laval, Drieu la Rochelle, Céline, Déat, Doriot, Brasillach, foram condenados à morte ou à reclusão perpétua, ou se suicidaram), alguns tendo até sido eleitos para a Academia Francesa (Paul Morand), Bernard Faÿ seria mais ou menos indigno do que muitos dos "recuperados"? Uma resposta difícil.

Não cabe nesta breve nota o percurso académico de Faÿ, e nomeadamente a descrição da sua trajectória durante a Ocupação. Por isso, e pelos constrangimentos e opções advenientes de situações como a ocorrida em França durante a ocupação alemã, em que a maioria da população - nos primeiros tempos - apoiava calorosamente o Marechal Pétain, deve ler-se a obra, ainda que não conclusiva, de Antoine Compagnon, que constitui um notável serviço prestado à história política e à história literária.

4 comentários:

Anónimo disse...

Razões imperiosas de falta de tempo,uma delas curiosamente relacionada precisamente com o estudo de certos aspectos do regime de Vichy,impedem-me para já de comentar este interessante post,mas prometo que logo que possa não deixarei de dizer algo.

Anónimo disse...

Os limites das caixas de comentários e a obsolescência excessiva dos temas na blogosfera fazem com que não vá alargar-me,dado a escassa atenção previsivel. Mas não deixarei de confirmar que o efémero regime de Vichy(40-44) é um momento bem interessante na História próxima,pelo destino teatral,ambíguo e controverso das personalidades que envolveu,e ainda pelo interesse com que foi seguido pelo governo português da altura,não só pela proximidade doutrinária Vichy-Estado Novo,akiás assumida por ambos,como pela conveniência estratégica para o nosso governo em manter uma "barreira amiga" entre o imediato poder militar alemão e o nosso território. Poderíamos ainda mencionar os planos de Salazar para uma "União Latina"(que incluiria Portugal,a Espanha,a Itália e a França de Vichy até à ocupação da Zona Livre (Novembro de 42). Vichy agregou de início pràticamente todos os descontentes com o ultra-parlamentarismo da III República,tecnocratas competentes como Bichelonne,reaccionários vários,etc. A evolução do regime para uma cada vez maior colaboração com a Alemanha simbolizada em 42 com a entrevista Pétain-Hitler em Montoire e o célebre discurso de Laval de que entre a população se repetia com rancor a frase truncada "Je souhaite la victoire de l'Allemagne", veio afastar muitos e aprofundar o comportamento ambíguo de outros.São precisamente essas ambiguidades e evoluções num regime de poder ficticio,mas que manteve até tarde o reconhecimento diplomático de países como os Estados Unidos,o Canadá e todos os neutros,que torna esse estudo muito relevente. E notemos que Portugal envia para a Legação em Vichy um "peso pesado" da vida política e jurídica nacional,o Prof. Caeiro da Matta,próximo de Salazar e futuro ministro dos Negócios Estrangeiros. Como temo que o espaço da caixa se esteja a esgotar,deixaria para mais tarde as referências à importância da historiografia americana na renovação do interesse por esta época (Stanley Hoffman,Robert Paxton,etc) dado que sob a inspiração do General De Gaulle,o período de Vichy foi longamente "apagado" da memória francesa,com raras excepções. Observaria ao autor do blog,para terminar,que a "recuperação" das figuras de Vichy para a vida "normal" da França post-guerra não foi tão simples como dá a entender. As perseguções foram numerosas,execuções sumárias na época da "épuration sauvage",prisões,julgamentos,etc. Recomendo-lhe a obra já antiga mas bem investigada do Robert Aron,"Histoire de lÉpuration".

Mário Machaqueiro disse...

Uma pequena observação: Céline não foi condenado à morte, nem à prisão perpétua e não se suicidou.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

PARA MÁRIO MACHAQUEIRO:

Eu sei que Céline não foi condenado à morte, nem a prisão perpétua, nem se suicidou. A expressão que utilizei tinha um carácter genérico, para não ter de especificar as punições de cada um dos principais actores do regime.

Céline, aliás um notável escritor, foi julgado à revelia e condenado a pena de prisão, após ter acompanhado Pétain para Sigmaringen e mais tarde viajado para a Dinamarca. Posteriormente seria amnistiado, tendo morrido em 1961.

Agradeço o seu comentário que me permite especificar uma generalização.