quarta-feira, 30 de novembro de 2016

ANTÓNIO FERRO, UMA VEZ MAIS




Acabou de ser publicado um novo livro sobre António Ferro: António Ferro - Um Homem por Amar, da autoria de Rita Ferro, sua neta, e classificado como romance.

Não é ainda (e também não era essa a intenção da autora) a grande obra sobre António Ferro, que se aguarda, mas é um livro que reúne impressões pessoais de alguém que, não o tendo conhecido (nasceu já depois da sua morte), pode todavia testemunhar preferencialmente, devido aos laços familiares, acerca da figura incontornável daquele que foi avant la lettre o primeiro ministro da Cultura em Portugal. E fá-lo com objectividade, apesar da proximidade genealógica, num registo íntimo, real e ficcionado, colocando parte da narrativa na boca do protagonista. A recriação por Rita Ferro de aspectos da vida de António Ferro, a partir das palavras do próprio, é um exercício arriscado mas resulta plenamente.

Ao longo de 300 páginas (o livro contém mais de 500, mas inclui, em apêndice, dezenas de cartas, muitas inéditas, de e para António Ferro [algumas para Salazar], uma cronologia do "biografado", uma bibliografia e uma antologia de citações), Rita Ferro traça a carreira do avô, desde a infância, o tempo do "Orpheu", a convivência com figuras da época, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, até à actividade como secretário da Propaganda Nacional e o "exílio" diplomático como ministro plenipotenciário em Berna e em Roma.

Não se trata, todavia, de uma biografia oficial, longe disso. Mas da reinvenção de um percurso singular anacronicamente evocado (como refere a autora), traduzindo a ideia que Rita Ferro concebeu do avô, baseada não só nos testemunhos documentais mas nos testemunhos orais de quem com ele privou, e especialmente nas informações recolhidas "no seio da família". O que permite, também , certos "ajustes de contas".

Sabíamos já muitas coisas a respeito de António Ferro, mas este livro, qual "janela indiscreta", lança um olhar sobre aspectos até aqui ignorados, ou silenciados, da sua vida. E ninguém melhor para o fazer do que Rita Ferro, além de neta, escritora, e senhora de grande perspicácia. Muito interessante a forma como é referida a relação entre Ferro e sua mulher Fernanda de Castro: grande cumplicidade mas vivências diferentes, a ponto de habitarem aposentos distintos na mesma casa da Calçada dos Caetanos. Também de assinalar a referência às visitas da casa, pessoas que não obedeciam, quer no plano político, quer no dos costumes, à norma vigente na época e que causavam certa estranheza a Salazar.

As relações de Ferro com as gentes do "Orpheu" são tratadas com algum desenvolvimento, nomeadamente quando Rita Ferro alude a que a actividade literária do avô pode ter sido ensombrada pelas figuras tutelares que se agigantavam à sua volta (p. 119), em especial Fernando Pessoa, com quem esfriaria provisoriamente relações, depois do que este escrevera sobre o pretenso atentado contra Afonso Costa. Também o Manifesto que Almada Negreiros publicara contra Júlio Dantas provoca descontentamento em Ferro. Júlio Dantas, mestre da língua portuguesa, fora objecto de um ataque violento, ainda por cima com erros de ortografia, por parte de Almada, embora este pretextasse que apenas pretendia atingir o establishment literário. Tratou-se de uma atitude irreverente, própria de um Almada que toda a vida cultivou o exibicionismo e a oscilação de convicções ideológicas, e cujo objectivo era não só atingir a Academia, que Dantas exemplarmente representava, mas obter para si mesmo uma centelha de notoriedade. É curioso que os intelectuais que mais se encarniçam contra as academias são aqueles que estão sempre à espera de uma primeira oportunidade para nelas ingressarem. Estas atitudes de Pessoa e Almada levaram Ferro (segundo a neta), a afastar-se da revista, que entretanto acabaria a sua existência (foram publicados apenas dois números) por falta de financiamento do pai de Mário de Sá-Carneiro.

Também os pintores Carlos Botelho e Eduardo Malta, que tanto deveram a Ferro, não hesitaram em manifestar a sua ingratidão, o segundo em duas cartas a Oliveira Salazar em que se apouca a figura de Ferro (pp. 309 e 457)

Personagem central no livro é obviamente o próprio Salazar, a quem Ferro protestaria sempre a sua indefectível adesão, mesmo quando não se identificava completamente com a orientação do presidente do Conselho de Ministros. António Ferro, homem de pensamento e de acção, propõe-se entrevistar Salazar para dar a conhecer ao país as ideias do que era, no seu entender, o Homem Providencial, depois do período agitado da Primeira República. As entrevistas foram um sucesso e Ferro sugere a criação de um órgão para divulgar a obra do Estado Novo, então nos primórdios, e para desenvolver uma Política do Espírito (segundo a expressão de Paul Valéry). E ninguém melhor do que ele para essa missão. É assim criado o Secretariado da Propaganda  Nacional (1933), chefiado por Ferro, que passou a designar-se em 1945 Secretariado Nacional de Informação. Tudo isto é do conhecimento público e não me deterei em pormenores. Em 1947, António Ferro, (supostamente) cansado de mais de dez anos de actividade e de incompreensões e calúnias, pede a Salazar um posto no estrangeiro, de preferência Paris. Salazar envia-o para Berna (1950), lugar que intimamente detesta. Em 1954, é nomeado ministro plenipotenciário em Roma, vindo a falecer em Lisboa, em 1956, na sequência de uma intervenção cirúrgica.

Como a autora evidencia, a relação de Salazar com António Ferro aproveitou a ambos. O presidente do Conselho aproveitou-se de Ferro para a propaganda do Regime, através de um campo que lhe era alheio, as manifestações culturais, ainda que a palavra "propaganda" não tivesse então a precisa conotação política que mais tarde lhe foi atribuída. António Ferro aproveitou-se de Salazar para realizar uma obra de divulgação cultural, acção que lhe era particularmente cara, ultrapassando largamente a missão política de que estava incumbido, incentivando o modernismo, apoiando os criadores, desenvolvendo uma actividade que cobria os mais variados géneros, do teatro e do cinema, às artes plásticas e à literatura, sem esquecer o turismo. Foi a obra de António Ferro que emprestou algum brilho à aridez da política salazarista, prioritariamente ocupada com os aspectos financeiros.

Há quem, por miopia política ou má-fé, acuse António Ferro de "comprar" com os seus subsídios os artistas mais notáveis da época para que as suas obras contribuíssem para o engrandecimento do Regime. Esquecem-se de que sem o apoio do Secretariado muitos desses artistas jamais teriam alcançado a projecção que posteriormente vieram a adquirir.

Já escrevi várias vezes sobre António Ferro neste blogue, nomeadamente aqui, aquiaqui. Não repetirei, por isso, o que disse nos posts anteriores. As linhas que aqui deixo pretendem tão só dar notícia do livro agora publicado e chamar a atenção do leitor para uma obra diferente na bibliografia passiva de António Ferro.

O livro refere também curiosos aspectos da vida de Fernanda de Castro, sua mulher, e especiais referências de António Quadros, seu filho, figura grada do pensamento filosófico português do nosso tempo, autor de uma obra ainda não suficientemente divulgada e de quem tive o privilégio de ser amigo.

Mas mais importante do que digo acima será provavelmente tudo o que não escrevi.

sábado, 26 de novembro de 2016

FIDEL CASTRO




Fidel Castro, líder da Revolução Cubana e chefe carismático do país durante meio século, morreu esta madrugada em Havana, com 90 anos de idade.

Figura controversa, El Comandante marcou indelevelmente a história política ocidental da segunda metade do século XX.  Com a sua morte, desaparece o último grande vulto do movimento comunista e o último estadista de renome que, embora retirado há dez anos, se destacava no panorama amorfo e medíocre da cena internacional.

Amado e odiado, Fidel Castro é uma personalidade incontornável para o estudo das transformações económicas e sociais verificadas após o fim da Segunda Guerra Mundial. O seu activo e o seu passivo são enormes. Autor de modificações profundíssimas em Cuba, que configuraram um país diferente, ousou enfrentar os Estados Unidos da América, que impuseram à ilha um bloqueio desumano e inconsequente, que prejudicou largamente a população e nada contribuiu para a queda do regime.

Para alcançar os objectivos que as suas convicções impunham, não hesitou em utilizar métodos que condenamos mas que ele julgava indispensáveis à criação de um Estado socialista em Cuba.

As suas reformas, que retiraram da pobreza milhões de pessoas, efectuaram-se através de grande repressão, tanto maior quanto foram sistematicamente sabotadas pelas interferências americanas. A redução drástica da taxa de mortalidade infantil, a erradicação do analfabetismo, a educação e saúde gratuitas, permitiram um desenvolvimento social que teve como contraponto a supressão da liberdade de imprensa, a eliminação do direito de expressão que colidisse com a orientação oficial, o controle insuportável da vida privada e a penalização dos "atentados" aos costumes.

No plano económico, a rigidez da planificação e estatização, que obteve inicialmente bons resultados em alguns sectores, viria a revelar-se nociva, pela absoluta exclusão da iniciativa privada mesmo ao nível individual, situação que seria reconsiderada num passado mais recente.

Cabe aos especialistas o balanço dos esplendores e misérias do regime cubano. Mas é inegável o fascínio que Fidel Castro exerceu sobre os seus contemporâneos, desde os tempos de Serra Maestra até à sua morte. Durante décadas, os principais dirigentes mundiais encontraram-se com Fidel Castro e até os três últimos papas, João Paulo II, Bento XVI e Francisco, não recearam visitar Havana e encontrar-se com o líder ateu.

Até mesmo Marcelo Rebelo de Sousa, com a premonição de um breve desenlace, se apressou a rumar a Cuba para uma derradeira entrevista com El Comandante.

Tendo preparado a sua sucessão, não se esperam surpresas de relevo com a morte de Fidel Castro. O regime começou a adaptar-se aos novos tempos ainda sob a sua orientação. O turismo, que é hoje, por razões que nos dispensamos de mencionar, florescente em Cuba, concorreu também para o intercâmbio que o bloqueio pretendia evitar.

Dito isto, os funerais de Fidel Castro constituirão certamente o último acto público de um grande actor político, que ocupou a cena mundial durante meio século.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

HOMENS BONS E HOMENS MAUS



Acabei de ler, a conselho de um amigo, o romance Homens Bons, tradução portuguesa de Hombres Buenos (2015), penúltimo livro publicado do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte (n. 1951). Conheço razoavelmente a literatura de língua castelhana (de Espanha e das Américas), clássica e contemporânea, onde figuram obras notáveis, mas foi a primeira vez que li um livro de Pérez-Reverte, autor de cerca de quarenta romances e novelas, traduzido em trinta idiomas e, desde 2003, membro da Real Academia Española.


Começando a sua actividade como repórter de guerra, a partir dos anos 90 Pérez-Reverte passou a dedicar-se exclusivamente à escrita, num registo entre o policial e o romance histórico (erudito). Muitos dos seus livros resultaram autênticos best-sellers e o seu nome tornou-se mundialmente conhecido.


O enredo do romance de 500 páginas pode resumir-se numa dúzia de linhas. Em finais do século XVIII, Hermógenes Molina e Pedro de Zárate, membros da Academia Espanhola, são enviados por esta instituição a Paris, com a missão de adquirirem a primeira edição da Encyclopédie francesa (28 volumes), obra proibida em Espanha, e mesmo em França, mas cuja compra fora autorizada pelo rei Carlos III, soberano discretamente iluminado. Destina-se a mesma à ilustração dos académicos e a fornecer contributos para a nova edição do Dicionário da Academia.


Uma das características mais interessantes do livro é que Pérez-Reverte intercala na narrativa o making-of do romance. É, aliás, a partir da contemplação da Encyclopédie na biblioteca da Academia que lhe surge a ideia de descrever, a partir das actas existentes, o que foi a aventura de trazer de França tão volumosa e preciosa encomenda. Tarefa facilitada pelo facto de ser ele mesmo membro da Academia, fundada em 1713 por Juan Manuel Fernández Pacheco, marquês de Villena, sob o patrocínio do rei Felipe V.


Estamos, pois, face a um romance, não propriamente um romance histórico mas um romance baseado numa história real a que a efabulação do autor confere perfeita verossimilhança. Nos intermezzi ao longo do livro, Reverte vai-nos contando como foi construindo a narrativa, as fontes que consultou, os livros e mapas que procurou, as deslocações que teve de realizar, inclusive a visualização aérea de regiões através dos mapas do Google! Todo este trabalho de pesquisa constitui uma história dentro da história e revela as qualidades extraordinárias do autor, a sua vastíssima cultura e a invejável capacidade para prender o leitor da primeira à última página.


A nobre missão dos dois a académicos, dois "homens bons", conforme a acta da sessão plenária da Academia onde se encontra registada a sua designação, vai sofrer vários contratempos, pois dois dos seus colegas, um, católico ultramontano, o outro, ateu progressista, decidem contratar um sicário para lhes dificultar a tarefa. Por quaisquer meios. Importa, para os seus colegas, por razões diametralmente opostas, que a obra não chegue a Espanha. Para um porque o seu conteúdo é demoníaco, um ataque ao Trono e ao Altar, para o outro, porque a sua divulgação iria retirar-lhe o exclusivo de ser ele o paladino das ideias progressistas no reino. Enfim, dois tratantes, conjunturalmente aliados pela força das conveniências.


As peripécias da viagem e a estada em Paris ocupam meio milhar de páginas. Por isso, apenas breves apontamentos. Encontrado um exemplar da Encyclopédie à venda, por morte do seu proprietário, os académicos decidem adquiri-lo e um deles (o outro estará ausente por motivos de que a seguir falarei) acompanhado de uma personagem bizarra que conheceram na Embaixada de Espanha em Paris, o abade Bringas, vai levantar o dinheiro ao banco, sendo roubado e agredido em plena rua pelo bandido a soldo e seus sequazes.


Refira-se agora que o outro académico, o almirante Pedro de Zárate recebera um convite galante para passar a manhã da ida ao banco em casa de uma senhora da sociedade, Margot Dancenis, e aceitara-o. [Devo dizer que me espanta esta opção do autor, já que o perfil do almirante é descrito ao longo do livro como um homem austero e rigoroso cumpridor dos seus deveres. Não deveria ter consentido que o outro académico, pessoa muito menos capaz de defender-se em caso de ataque, se tornasse portador de tão avultada quantia (mil e quinhentas libras da época - não diz Reverte, nem eu sei, a quanto equivaleriam nos nossos dias). O estrito sentido do dever impunha-lhe a declinação do convite para aquele dia].


Continua a história com os académicos, privados do dinheiro para a aquisição da já apalavrada e ambicionada obra, numa visita à Embaixada de Espanha, fazendo um relato ao embaixador do assalto sofrido e pedindo um empréstimo para a satisfação do compromisso assumido. O diplomata, o conde de Aranda, que é sovina, recusa polidamente, mas o almirante invoca, por palavras, toques e sinais (não os autênticos mas os suficientes para a narrativa), a sua condição de maçon, a que o embaixador, também ele franco-maçon, corresponde, autorizando o empréstimo da almejada quantia. Aqui, Pérez-Reverte (não sei se ele é maçon) evoca a solidariedade maçónica e, en passant, presta homenagem à  Venerável Ordem.


Obtida a obra, novos incidentes no regresso a Espanha, graças ao famigerado meliante, com mortos e feridos mas com os nossos académicos sãos e a Encyclopédie salva. Finalmente, a justa recepção na Academia, a exposição da obra e a frustração dos seus antagonistas.


Ao longo do livro, Reverte, através da História, ajusta contas com a Espanha actual, critica indirectamente políticos e instituições, mesmo Rajoy (sem o citar) a quem acusa de nunca ter lido um livro. Denuncia a Espanha retrógrada do século XVIII e a sua tentativa de abafar o Iluminismo, e projecta no presente o eterno confronto entre as Duas Espanhas, de que tão bem nos falou Fidelino de Figueiredo.


Apesar de traduzido segundo o sinistro Acordo Ortográfico de 1990, Homens Bons é um livro interessante, culto e estimulante que bem merece o tempo gasto com a sua leitura.


sábado, 12 de novembro de 2016

MALEK CHEBEL




Morreu esta noite, com 63 anos, o grande antropólogo argelino Malek Chebel, cujas obras sobre a sexualidade no Islão são fundamentais e indispensáveis a qualquer estudioso do tema.

Possuo quase todos os livros deste especialista do mundo árabo-muçulmano, das religiões e da sexualidade.

Partilho uma entrevista concedida em 28 de Março de 2002, ao "Nouvel Observateur":

  • Malek Chebel, qui était né en 1953 à Skikda, en Algérie, est mort dans la nuit du 11 au 12 novembre 2016. 
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  • Psychanalyste, philosophe, il était surtout connu pour ses travaux comme anthropologue des religions, spécialiste du monde arabo-musulman et adepte d'un "islam des Lumières".
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  • Auteur de nombreux essais, depuis "le Corps en islam" (PUF, 1984), il avait notamment publié un "Dictionnaire amoureux de l'islam" (Plon, 2004), un "Dictionnaire encyclopédique du Coran" (Fayard, 2009) ou encore une vaste anthologie consacrée à "l'Erotisme arabe" (Bouquins, 2014). 
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  • En 2002, à 48 ans, il publiait "le Sujet en islam" (Seuil). L'occasion de faire le point sur ses travaux, dans cet entretien au "Nouvel Observateur". 

 Malek Chebel : "La vocation de mon travail a consisté à réhabiliter le désir féminin"

« Passeur de sens entre l'Orient et l'Occident», le psychanalyste et anthropologue Malek Chebel est surtout connu pour ses écrits fondateurs sur la sexualité en Islam (1). Originaire de Skikda, ville côtière de l'Est algérien, il s'est installé en France en 1977 pour suivre les cours de Jean Laplanche et questionner l'univers arabo-musulman. A 48 ans, il publie son quatorzième ouvrage, «le Sujet en islam», aux Editions du Seuil.

Le Nouvel Observateur. Depuis vingt ans, vous travaillez à une «Histoire des mentalités dans le monde arabe» dont vous nous livrez aujourd'hui le sixième et avant-dernier tome: «le Sujet en islam». N'était-il pas audacieux d'y pointer l'intime relation que noue le gouvernement de la cité musulmane avec la sexualité de ses leaders politiques les plus charismatiques? 

Malek Chebel. Certainement, mais mon regard n'est pas celui du théologien. Hors de toute polémique, je me situe en observateur, en historien. Ce livre peut paraître offensant pour les musulmans, car j'évoque des versets du Coran qui viennent avaliser le désir du prophète Mohammed. Son mariage «de volonté divine» avec la belle Zaïnab, la femme de son fils adoptif, en est un exemple éloquent. Depuis le mariage avec les femmes des fils adoptifs a été autorisé. Mon souci dans ce livre a été de montrer le visage humain du Coran. Or c'est «le» grand scandale.

Vous n'en êtes pas à votre premier scandale, depuis vingt ans que vous parlez orgasme, excision, hymen, homosexualité?

Effectivement, au départ mes conférences en Sorbonne se terminaient en véritables pugilats. A présent, on me présente comme un «libérateur» de la femme. Car le combat que je mène contre les formes archaïques de l'expression de l'islam passe forcément par la femme, cet épicentre de la transgression, lieu de tous les complexes, refoulements et blocages. Pour le machiste, pour le misogyne musulman, la femme n'était qu'un «entre-cuisses», une momie privée de jouissance. La vocation de mon travail a consisté à réhabiliter le désir féminin. 

Or le droit à la jouissance donne accès au statut de sujet? 

A la liberté et au sujet. Dès l'instant où une personne commence à jouir, à être maîtresse de sa jouissance, elle exprime son autonomie. Et dès qu'elle est sujet, elle n'est plus un bon soldat pour la morale collective et archaïque. C'est donc à partir de cet individu acteur que l'islam se réformera et qu'il gagnera la bataille face à tous les démagogues, théologiens et imams corsetés jusqu'au cou. Pour l'instant, le sujet n'existe dans l'univers arabe que sous la forme d'un potentiel qui n'a pas encore révélé son étendue. Son affranchissement est contrecarré par la prééminence du divin sur l'humain et par l'obéissance qui conditionne, puis verrouille, la foi des fidèles. 

Quel espoir nourrissez-vous pour l'islam de demain? 

Je propose que l'islam soit une chance et non une contrainte ou un enfermement. Cherchons les espaces de liberté et d'intelligence qu'il nous propose, plutôt que le rigorisme d'un dogme dont on connaît les effets réducteurs. Un musulman nouveau est sans doute en train de naître sous nos yeux. Et son double défi consiste à gagner sa modernité sans perdre sa foi.
En France, par exemple, c'est par la part inaliénable de la citoyenneté que le musulman aspire à s'intégrer. Et il se méfiera même de ceux qui veulent le cantonner à la mosquée, parce que c'est nier chez lui la possibilité qu'il puisse être laïque, aimer la laïcité et la défendre en tant que telle. Finalement, le gage que la modernité a pris sur l'islam, c'est que le sujet musulman sera fabriqué ici en Occident avant qu'il n'advienne là-bas. 
Propos recueillis par Marie Lemonnier
(1) «La Psychanalyse des Mille et Une Nuits», Payot.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O CEMITÉRIO DA SÉ




Pelo seu interesse, transcrevemos o artigo publicado pelo jornal PÚBLICO :

Que histórias têm para contar os 70 cadáveres encontrados junto à Sé de Lisboa?


Os trabalhos destinados à instalação de um elevador de ligação ao Campo das Cebolas revelaram a existência de um cemitério que poderá remontar à segunda metade do século XII.

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O espaço é exíguo, não ultrapassando os 15 m2, mas no seu interior foram já descobertos perto de 70 cadáveres, que se pensa terem sido sepultados antes do terramoto que abalou Lisboa em 1755. Qual terá sido a causa de morte destas pessoas? Padeceriam de alguma doença? Qual seria a sua idade? E a sua actividade profissional?

Descoberta feita, estas são algumas das muitas perguntas às quais se procurará agora dar resposta. “Vai ser feita uma análise osso a osso”, explica o director científico dos trabalhos arqueológicos que estão a decorrer nas Cruzes da Sé, do outro lado da rua do monumento nacional.

Esse trabalho, explicita José Sendas, será coordenado por uma antropóloga, que através das ossadas encontradas tentará perceber que idade tinham as pessoas, o que esteve na origem da sua morte, se tinham “doenças, patologias, fracturas”. E até, diz o arqueólogo, “qual era o tipo de trabalho que tinham”, algo que será possível perceber, nalguns casos, “pelo desgaste ossário e por marcas” que venham a ser detectadas.

Igual esforço será colocado na datação das dezenas de cadáveres descobertos no local. Para tal, sublinha José Sendas, as moedas que foram encontradas junto a alguns deles (e que foram já enviadas para laboratório) constituirão um contributo valioso.

Numa análise que sublinha ser “preliminar”, o arqueólogo admite que o cemitério agora revelado “possa ter sido abandonado com o terramoto” de 1755. “Em potência podemos ter um cemitério a partir da segunda metade do século XII”, admite, acrescentando que dada a localização em causa “não seria de estranhar” que abaixo da área que agora está a ser explorada haja “vários níveis” de deposição de cadáveres.

O director científico dos trabalhos arqueológicos destaca que mesmo ali ao lado fica a Sé de Lisboa, uma igreja que teve “uma importância fulcral” ao longo de toda a história da cidade. “Ainda que fosse previsível a localização de um cemitério associado à Sé, não existe qualquer estudo ou documento que comprove que existia aqui”, refere.

José Sendas observa ainda que apesar de a área escavada ter menos de 15m2 foram nela encontrados cerca de 70 cadáveres. “É um espaço mesmo exíguo. Temos uma intensa utilização enquanto cemitério”, conclui, enquanto explica que num dos limites da área está agora à vista um muro que “surge na planta da cidade de 1540”.

Além das já referidas moedas, nas Cruzes da Sé foram também encontrados objectos como alfinetes de cabelo e outros alfinetes que se supõe serem de mortalhas que envolviam os corpos sepultados. No local há ainda várias lápides. José sendas admite que algumas delas possam ali estar “desde o século XII, XIII” e tenham sido “reaproveitadas ao longo dos séculos”.

Já fora do poço que foi escavado, e no qual na manhã de sexta-feira estavam à vista vários cadáveres (incluindo o de uma criança), há vários elementos pousados no chão, enquanto decorre o processo de estudo pelos arqueólogos da empresa Arqueologia e Património.

Entre eles está “uma tampa de sepultura”, na qual é visível, como destaca o director dos trabalhos, “uma sigla do pedreiro” que a terá talhado. Ao lado está uma estela funerária “com uma cruz de Malta”, também designada por “cruz românica ou patada”.

José Sendas não tem dúvidas de que “o conhecimento científico sobre a cidade que esta obra traz é imenso”. Destacando que o trabalho em curso “exige muito método, muita paciência” e um cuidado especial por se estar “a tratar com pessoas”, o arqueólogo reconhece que ele não estará concluído tão cedo.

“Ainda nos faltam muitos séculos de história”, remata, lembrando que foi junto da Sé de Lisboa (e também do Castelo de São Jorge) que foram recuperados os mais antigos vestígios da cidade, provenientes dos séculos VI e V antes de Cristo.

A visita do PÚBLICO às escavações arqueológicas foi acompanhada pelo presidente do conselho de administração da Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (Emel), Luís Natal Marques, e por um dos seus vogais, Jorge Oliveira. Nas Cruzes da Sé, a empresa pretende instalar um elevador que fará a ligação às Escadinhas das Portas do Mar, junto ao Campo das Cebolas, e que se integra no Plano Geral de Acessibilidades Suaves e Assistidas à Colina do Castelo que a Câmara de Lisboa está a desenvolver.