segunda-feira, 27 de julho de 2020

DE OLHOS ABERTOS




Relido, quarenta anos depois da publicação, Les yeux ouverts (1980), de Marguerite Yourcenar (1903-1987), o livro permanece um espanto. Mais propriamente, trata-se da edição em volume das diversas entrevistas concedidas por Yourcenar, entre 1971 e 1979, ao crítico literário francês Matthieu Galey (1934-1986), na sua residência "Petite Plaisance", na ilha Mount Desert, no Maine (EUA), que escolhera para fixar domicílio, depois de uma vida de viagens na Europa, na Ásia e na África.

Este livro bem poderia ser considerado como as memórias de Marguerite Yourcenar, já que a intervenção do entrevistador é muito limitada. Ele deixou a escritora dissertar sobre os temas que lhe eram caros, embora esta dissesse mais tarde que ele se debruçou em especial sobre os assuntos que mais lhe interessavam e não sobre as suas verdadeiras preocupações. Mas Galey possui o inegável mérito de ter organizado o produto dessas conversas de forma a estabelecer uma linha de continuidade da vida de Yourcenar desde o seu nascimento até àquele momento, pouco tempo antes dela ter sido solenemente recebida, em 22 de Janeiro de 1981, na Academia Francesa, a primeira mulher a quem foi concedida essa honra, desde a fundação da Casa, pelo cardeal-duque de Richelieu.

Neste livro "autobiográfico", Marguerite Yourcenar fala da sua vida, da família, das influências recebidas, dos amigos e das amizades, da natureza e dos animais, dos livros que leu, da solidão e da escrita, das paixões e do mundo, do amor e da morte. Especialmente dos livros que escreveu, sobre a criação dos quais fornece inestimáveis pormenores. Detém-se demoradamente sobre a génese das Memórias de Adriano, dos esboços que traçara sobre a vida do imperador, do esquecimento desse interesse, que cultivara durante anos, e de como esses papéis lhe apareceram, muito mais tarde, numa mala de haveres pessoais que tinham ficado retidos na Europa e só chegaram aos Estados Unidos já depois da Segunda Guerra Mundial. Foi essa epifania que a motivou definitivamente a escrever a obra.

No decorrer das entrevistas, Yourcenar revela a sua imensa erudição e também algum pretensiosismo, disfarçado de humildade. Sob a aparência de uma modesta camponesa "exilada voluntária" entre os Estados Unidos e o Canadá, pretendendo conviver quase sempre com gente simples, conservou, contudo, a sua natureza aristocrática. Nascida no seio de uma rica família belga, órfã de mãe desde o nascimento, manteve uma relação privilegiada com o pai, que lhe incutiu o prazer da leitura, ainda que não a acompanhasse muito de perto, envolvido que estava nas suas aventuras amorosas.

Nesta "autobiografia" incompleta, Yourcenar revela o seu pensamento sobre múltiplos assuntos, do passado e do presente, que naturalmente não vou consignar, mas acho curioso fazer catorze citações das últimas páginas:

- «À notre époque où les progrès technologiques se sont jusqu'ici accompagnés de catastrophiques revers, ce serait la foi du charbonnier. Mais en quoi l'homme de gauche, optimiste à tout prix, diffère-t-il du capitaliste de droite qui rêve aussi de progrès, ou du moins en rêvait avant-hier? Chaque fois que je vais dans un super-market, ce qui du reste m'arrive rarement, je me crois en Russie. C'est la même nourriture imposée d'en haut, pareille où qu'on aille, imposée, par des trusts au lieu de l'être par des organismes d'État. Les États-Unis, en un sens, sont aussi totalitaires que l'URSS, et dans l'un comme dans l'autre pays, et comme partout ailleurs, le progrès (c'est-à-dire l'accroissement de l'immédiat bien-être humain) ou même le maintien du présent état de choses dépend de structures de plus en plus complexes et de plus en plus fragiles.» (p. 259)

- «Je condamne l'ignorance qui règne en ce moment dans les démocraties aussi bien que dans les régimes totalitaires. Cette ignorance est si forte, souvent si totale, qu'on le dirait voulue par le système, sinon par le régime.» (p. 271)

- «Mais qu'il s'agisse de répondre à une lettre ou d'ouvrir toute grande ma porte, je ne fais bien entendu aucune différence entre un Noir et un Blanc. Ou plutôt, il y aurait peut-être un petit sentiment de sympathie supplémentaire, dont il faut se méfier, car c'est du racisme à rebours.» (p. 278)

  - «Hadrien, lui aussi, avait beaucoup d'amis juifs, libéraux et hellénisés. Il se heurte au fanatisme du vieil Akiba, et j'avoue qu'à moi-même Akiba ("c'était peut-être un héros, ce n'était pas un sage") n'inspire guère plus de sympathie que Khomeini. Le fanatisme juif n'est pas plus respectable qu'aucun fanatisme.» (p. 279)

- «D'autre part, j'ai de fortes objections au féminisme tel qu'il se présente aujourd'hui. La plupart du temps, il est agressif, et ce n'est pas par l'agression qu'on parvient durablement à quelque chose. Ensuite, et ceci sans doute vous paraîtra paradoxal, il est conformiste, du point de vue de l'établissement social, en ce sens que la femme semple aspirer á la liberté et au bonheur du bureaucrate qui part chaque matin, une serviette sous le bras, ou de l'ouvrier qui pointe dans une usine.» (p. 284)

- «Le viol est le crime d'une société  qui n'a pas su résoudre, non pas tellement le problème des sexes que celui de la sexualité.» (p. 288)

- «Mais il y a parfois, chez de très grands hommes, une tendance à l'impersonnalité totale, dont Hadrien nous parle: "Un homme qui écrit ou qui calcule n'appartient plus à son sexe. Il échappe même à l'humain." C'est beaucoup plus rare, du moins jusqu'à nos jours, même chez les plus éminentes des femmes.» (p. 291)

- «C'est par ignorance ou par préjugé sexuel que trop de gens procréent au hasard des enfants qui fourniront des soldats aux guerres futures, et en attendant des clients aux promoteurs.» (p. 302)

- «{Car vous condamnez également la télévision?} - Certes, de la manière dont on nous offre. C'est pourquoi je n'en n'ai pas. Je n'ai pas besoin de gens qui arrivent à heure fixe chez moi comme des colporteurs qui viendrait proposer leurs marchandises ou essayer d'insinuer en moi les opinions qu'on leur a dit d'exprimer. Avez-vous lu 1984, d'Orwell, avec son monde de télévision obligatoire? Nous en sommes quasiment là.» (p. 305)

- «{Et les journaux, en lisez-vous tous les jours?} - Pas tous les jours. Je lis des piles de rapports économiques, techniques, écologiques; (...) Il faut tous les lire et les vérifier les uns par les autres. Mais l'édition dominicale du New York Times ou la sélection hebdomadaire du Monde me suffisent, et encore! D'abord parce que la presse est trop souvent un miroir faussé, où les événements et les hommes nous apparaissent déformés, grandis, rapetissés, suivant les cas. Et ensuite parce que le dessous des cartes, presque toujours, nous échappe...» (p. 305)

- «Comme André Gide, qu'on accusait guère d'être mystique, je pense que le problème social est plus important que le problème politique, et le problème moral plus important que le problème social. On en revient toujours à la lutte entre le bien et le mal.» (p. 310)

- «Les Démocrates et les Républicains se passent ici leurs opinions de pères en fils, si bien qu'on a parfois l'impression qu'il s'agit de deux clans plutôt que de deux partis, et les indépendants les meilleurs et les plus intelligents n'ont jamais pu se faufiler entre ces blocs.» (pp. 310-311)

- «J'ai été stupéfaite que Mémoires d'Hadrien atteigne un tirage qui doit avoisiner à présent  le million d'exemplaires: je croyais l'avoir écrit pour trois personnes.» (p. 328)

- «Pour ne pas rater la dernière expérience, le passage, Hadrien parle de mourir les yeux ouverts. Et c'est dans cet esprit que j'ai fait vivre Zénon à sa mort.» (p. 330)

E é de olhos abertos que Marguerite Yourcenar deseja, no fim do livro, que ocorra a sua morte.

"Les yeux ouverts" é, também, o título deste livro autobiográfico, publicado há quarenta anos. As convicções da escritora podem ser, na generalidade, subscritas hoje, passado que é quase meio século.

Existem duas grandes biografias de Marguerite Yourcenar a que faremos referência em futuros posts: Marguerite Yourcenar, de Josyane Savigneau (1990) e Vous, Marguerite Yourcenar - La passion et ses masques (1995), de Michèle Sarde.

Marguerite Yourcenar visitou algumas vezes Portugal. Recordo-me da sua vinda à Fundação Gulbenkian, onde fez uma conferência, "apresentada" por Agustina Bessa-Luís e David Mourão-Ferreira. Foi a única vez que a vi pessoalmente e com quem tive o privilégio de trocar algumas breves palavras.

terça-feira, 21 de julho de 2020

RECORDANDO MADAME CHRISTINA E CAVAFY


Madame Christina e Eu - Café-Restaurante Elite (Janeiro de 2001)

Recordo, hoje, Madame Christina Konstantinou, que ainda entrevistei no seu Café-Restaurante Elite, na Rua Safiyya Zaghlul, em Alexandria, há quase vinte anos.

 
Café-Restaurante Elite - Alexandria (Janeiro de 2001)

Pertencendo à vasta comunidade grega de Alexandria, Madame Christina permaneceu no Egipto mesmo após a retirada das comunidades "estrangeiras", na sequência da tomada do poder pelo coronel Nasser em 1954. O seu estabelecimento foi sempre um lugar de referência para encontros da intelectualidade da cidade. Tive o privilégio de ter falado por três vezes com Madame Christina, (era assim tratada) nas minhas visitas a Alexandria, tendo-a entrevistado em 2001. Não voltei a vê-la. Nas minhas viagens posteriores, já raramente ia ao Café, devido à sua avançada idade. Em 2005, morreu. Depois da sua morte, ainda conversei lá com um filho, que vivia habitualmente em Paris e que me disse possuir em sua casa alguns dos manuscritos de Cavafy, um dos quais figurava em fotocópia à entrada do estabelecimento.

Madame Christina, nessa altura uma velha senhora, foi a única pessoa que conheci que ainda conhecera pessoalmente Constantin Cavafy, o imenso poeta grego-egípcio de Alexandria, amigo de E.M. Forster, evocado por Lawrence Durrell no Quarteto de Alexandria e que é uma das figuras cimeiras da poesia universal do século XX. (Foi traduzido pela primeira vez em português por Jorge de Sena e em francês por Marguerite Yourcenar).

Consta que Cavafy frequentara o Café Elite, mas não é verdade. O estabelecimento foi inaugurado em 1953, conforme averiguei, e Cavafy morrera em 1933. Christina Konstantinou falara com ele quando era muito jovem. É certo que Cavafy fora um frequentador de tertúlias de café, mas tinha os seus hábitos no Café Billiard Palace, alguns metros acima do Elite (quem sobe, vindo da praça de Raml) e que já não existia na altura em comecei a ir a Alexandria. Ainda fiz algumas tentativas para encontrar o local, mas debalde.

Era no Billiard Palace, especialmente nos bilhares da cave, que Cavafy engatava os jovens egípcios que levava a casa, situada nas proximidades, na Rua Lepsius, hoje Rua Sharm el-Sheikh, que é actualmente a Casa- Museu Constantin Cavafy, a cargo do Consulado-Geral da Grécia.

Contou-me com muita graça Madame Christina que, vendo entrarem rapazes no prédio, a vizinhança se interrogava sempre quanto ao andar a que se dirigiam, já que no apartamento por baixo de Cavafy existia uma casa de prostituição feminina (actividade então perfeitamente legal em Alexandria). As coscuvilhices das vizinhanças são eternas e Cavafy não escapava a elas, embora a prática homossexual fosse nessa altura perfeitamente admitida no Egipto. Hoje a homossexualidade é condenada, embora continue a praticar-se abundantemente, ainda que mantendo a conveniente discrição.

Com muita dificuldade, localizei anos depois, no Cemitério Grego-Ortodoxo de Alexandria, a sepultura de Madame Christina. Lamento não ter gravado essa interessantíssima conversa, mas o encontro fora imprevisto, ela nem todas as noites ia ao Café, e eu não estava precavido do indispensável gravador.


Jazigo da família de Madame Christina, com a data da sua morte: 12 de Maio de 2005 (Cemitério Grego-Ortodoxo de Alexandria)

  Conservo recordações de um passado inesquecível!

sexta-feira, 17 de julho de 2020

ALI DUAJI




Tive conhecimento, através do meu amigo Abdeljelil Larbi, da publicação, há poucos dias, da tradução portuguesa de um livro do escritor tunisino Ali Duaji,  Périplo pelos bares do Mediterrâneo e outras histórias.

Trata-se da primeira obra deste autor editada em português e creio que da primeira tradução em português de um autor tunisino, mas posso estar enganado. Tenho várias obras de ficção de escritores tunisinos, mas todas em francês, ou porque foram escritas directamente en francês, ou porque foram traduzidas do árabe para o francês.

A presente edição inclui não só a novela Périplo pelos bares do Mediterrâneo (Jawlah bayna hânât al-Bahr al-Mutawassit), publicada pela primeira vez na revista "Al-'âlam al-'arabi", entre Setembro de 1935 e Fevereiro de 1936, como também cinco pequenos contos publicados em jornais e revistas entre 1936 e 1953: O Tio Giacomino (Al-''amm Jâkômînô), A Minha Vizinha (Jâratî), Ramadão (Ramadhan), Ele Faz-me Passar as Noites em Branco (Sahirtu minhu al-layâlî) e O Segredo do Sétimo Quarto (Sirr al-ghurfah as-sâbi'ah).

Ali Duaji (1909-1949), realizou apenas estudos primários, mas logo se interessando pela literatura. Começou a trabalhar no comércio aos doze anos, e desde muito cedo a enviar textos para jornais e revistas. Pertenceu a um grupo de intelectuais que se reunia nos cafés do bairro de Bab Suika e que ficou conhecido como grupo "Taht as-Sur", nome de um dos cafés que a tertúlia frequentava. Em 1936, fundou o jornal "As-Surur", célebre pelas suas caricaturas satíricas. Duagi foi um crítico da sociedade da sua época e a sua obra dispersa, especialmente os seus contos, foi reunida num volume publicado em 1969, vinte anos após a sua morte, vítima de tuberculose, numa antologia intitulada Sahirtu minhu al-layali (Noites acordadas). É a partir de então que o seu nome, entretanto caído no esquecimento,  começa a ser recuperado e os seus textos (Duagi foi ficcionista, poeta, dramaturgo) a adquirirem nova visibilidade pública. Em 2014, as suas Obras Completas são editadas com o patrocínio do Ministério da Cultura da Tunísia. O grande escritor egípcio Taha Hussein (1889-1973) prefaciou um dos seus contos e considerou Duaji uma voz especial entre os modernos escritores árabes.

A novela Périplo pelos bares do Mediterrâneo descreve a viagem de barco efectuada pelo autor a partir de Tunes, com paragem na Córsega, em Nice, em Nápoles, no Pireu, em Atenas, em Istanbul  e Esmirna. Era suposto o périplo terminar em Alexandria, mas o relato acaba nesta última cidade turca.

Como o próprio escritor indica, não lhe interessa referir (ou mesmo visitar, salvo excepções) museus ou monumentos, mas sim contactar as populações, observar os seus usos e costumes, fixar as suas características particulares, salientar episódios curiosos. Tudo isto numa linguagem muito simples, revelando mesmo por vezes uma certa ingenuidade, o que terá tornado os seus escritos muito populares e apreciados.

As observações registadas por Duaji, que numa leitura de relance poderão parecer superficiais, revelam a acuidade de um espírito atento a simples pormenores do quotidiano, numa tradição dos velhos contos árabes.

domingo, 12 de julho de 2020

GUILHERME II




Comprei há muito anos (talvez trinta), num alfarrabista, Guilherme II, de Emil Ludwig, conhecido autor de biografias de figuras célebres. Este livro (Wilhelm der Zweite, 1925, no original), traduzido num português estranho, não por ter sido editado em Porto Alegre (não está escrito em brasileiro) mas pelo vocabulário utilizado e pela retorcida sintaxe, foi publicado em 1934, numa edição especial para Portugal. Por motivo meramente acidental, restaurar-lhe a capa aquando da limpeza periódica de uma das estantes, li-o agora.

Começa o autor por dizer que não se trata «nem da exposição do período guilherminesco nem tão pouco da história integral do seu patrono: apenas um retrato de Guilherme II.» De facto, não estamos sequer em presença de uma biografia clássica mas de instantâneos da vida de Guilherme e da relação com as criaturas que lhe foram mais próximas. Não obstante, a descrição de Emil Ludwig ocupa 400 páginas num formato que se mais reduzido atingiria à vontade 700 ou 800 páginas, tal a preocupação de penetrar nos estados de alma das personagens, muitas vezes com pormenores supérfluos ou repetições desnecessárias.

Como não conheço qualquer outra biografia de Guilherme II, não posso avaliar da objectividade com que Ludwig aborda a figura do kaiser, mas é evidente uma especial antipatia por aquele que foi o último imperador da Alemanha. Sem pretender fazer uma crítica do livro, confino aqui alguns apontamentos.

Em primeiro lugar importa situar o imperador no tempo e no espaço familiar. Guilherme II (1859-1941), que foi imperador da Alemanha e rei da Prússia (1888-1918), era filho de Frederico Guilherme (efémero imperador-rei sob o nome de Frederico III) e de Vitória, princesa real do Reino Unido, filha da rainha Vitória. Seu avô fora o imperador Guilherme I, no reinado do qual se constituiu o Império Alemão (o Segundo Reich, sucessor do Santo Império Romano-Germânico) sob a égide do rei da Prússia (1871).

O nascimento de Guilherme foi complicado, devido a um parto difícil, de que resultou uma lesão no braço esquerdo, que ficou mais curto e semi-paralisado, defeito que procurava ocultar mas que marcou indelevelmente o seu comportamento para toda a vida. A mãe tinha-lhe pouca estima, que lhe era retribuída pelo filho, que nutria por ela especial aversão, extensiva à rainha Vitória, sua avó, aos futuros Eduardo VII e Jorge V, seu tio e seu primo, e à Inglaterra em geral. Talvez culpasse a mãe pelo seu problema congénito, mas esta considerava-o pouco capaz para reinar, inferior aos outros filhos havidos posteriormente. Todavia, Guilherme era inteligente e culto, de rápido raciocínio, mas com uma profunda instabilidade emocional, que lhe foi altamente prejudicial ao longo do seu reinado e lhe acabou por ser fatal.

A mãe achava-o dotado de uma natureza feminil, mais preocupado com decorações e condecorações, fardas e ornamentos do que com a política e é conhecido que preferia o convívio dos seus companheiros militares ou amigos pessoais à frequência das mulheres, que, no quotidiano, não partilhavam a sua vida. Não consta, porém, que tenha mantido qualquer relação homossexual, apesar do seu mais íntimo amigo e conselheiro, o príncipe Philipp zu Eulenburg, ter sido acusado (e julgado) de manter um círculo homossexual no seu palácio, como se verá mais adiante. De resto, Guilherme II era casado com Augusta Vitória de Schleswig-Hosltein e teve sete filhos.

Um dos defeitos deste livro de Emil Ludwig (existem muitas outras biografias do imperador) é, apesar da sua extensão, a de se preocupar excessivamente com fait-divers, descurando aspectos mais relevantes para a compreensão do desenrolar dos acontecimentos. Ludwig é parco na indicação de datas, a ordem cronológica é muitas vezes confusa e a indicação das personagens intervenientes, indicadas normalmente só pelos apelidos (quando muitos actores eram da mesma família), torna por vezes difícil a sua identificação, especialmente quando também se omitem os cargos, ou estes não são claramente explicitados.

A volubilidade de Guilherme II levou-o a cometer demasiados erros políticos, desde logo a demissão do chanceler  Otto von Bismarck, o artífice da criação do Império Alemão, logo após a sua subida ao trono. E quis rodear-se sempre de pessoas que o adulavam, afastando as que o aconselhavam prudentemente. Uma das vozes que refreava a sua pulsão militarista, incentivada por muitos outros, era exactamente o príncipe Eulenburg, o mais íntimo dos seus amigos, dos quais existe uma correspondência quase apaixonada, e que despediu sem uma palavra, quando estalou o escândalo em 1907. Com a saída do príncipe, ficou Guilherme mais sujeito aos conselhos da ala do regime defensora da guerra.

Durante o seu reinado, o imperador saltitou de alianças e projectos de alianças entre os vários países europeus, do Reino Unido à Rússia, da França à Áustria, à Itália, ao Império Otomano. Foram atribuladas as suas relações com Eduardo VII e Jorge V e também com o czar Nicolau II. A sua aversão à Inglaterra enquadrava-se num misto de amor/ódio de que nunca se libertou. Andou 30 anos a desdizer-se e a proclamar-se pacifista e acabou por se deixar envolver estupidamente na Primeira Guerra Mundial, por causa do atentado de Sarajevo. Principalmente por uma questão de fidelidade ao velho imperador Francisco José, da Áustria-Hungria, e também porque considerava sagradas as pessoas reais, achando inconcebível o seu assassinato.

O despedimento, em 1890, pouco depois da sua ascensão ao trono, do príncipe Bismarck do lugar de chanceler, figura que Guilherme considerava incómoda, foi um erro, até porque o Chanceler de Ferro, embora demasiado militarista, era um hábil negociador de alianças e tinha uma ampla visão política. Caprivi, que lhe sucedeu, e Hohenlohe estiveram cerca de cinco anos no lugar, o príncipe Bernhard von Bülow, oito anos, Hollweg, sete anos, Michaelis e von Hertling, menos de um ano cada, e o princípe Max von Baden, o último dos chanceleres, pouco mais de um mês (1918), para lhe conseguir arrancar a abdicação, não devidamente formulada, já que o imperador pretendia manter-se como rei da Prússia, só oficializada já na Holanda, para onde precipitadamente fugiu. Entretanto, a República (de Weimar) havia sido proclamada. Estas mudanças de chanceleres e o seu tempo de permanência no cargo não as obtive no livro, em que é matéria tratada muito confusamente, mas colhi-a noutras fontes.

O escândalo Eulenburg, imprecisamente descrito no livro, consistiu na persistente difusão na imprensa (1906/1907), primeiro veladamente, depois com acusações concretas, de uma ligação homossexual entre o príncipe Philipp zu Eulenburg, embaixador e íntimo do imperador como se disse acima, e o general conde Kuno von Moltke, comandante militar de Berlim. Segundo o jornalista Maximilian Harden, haveria mesmo um círculo homossexual que se reuniria no Palácio de Liebenberg, residência do príncipe, de que fariam parte altas personalidades da aristocracia alemã, e que envolveria também a presença de jovens soldados e de rapazes dos meios operários. Nessa época, a conduta homossexual era proibida na Alemanha (§ 175º do Código Penal, disposição revogada, espantosamente, só em 1994) e considerada infamante [É estranha a introdução deste § 175º em 1871, já que o rei Frederico II da Prússia, o Grande (1712/1740-1786), personalidade de referência em toda a Alemanha (e idolatrado por Hitler), era um homossexual célebre, praticando assiduamente com os seus soldados]. Durante o processo que se seguiu vários oficiais, cujos nomes a polícia conhecia, suicidaram-se. O processo contra Eulenburg nunca foi concluído por entretanto ter sido proclamada a república. A intenção de Harden era mais precisamente atingir a reputação do kaiser, e afastar Eulenburg, cujas opiniões pacifistas e anti-imperialistas o imperador acatava, substituindo-o por figuras ligadas à ala dura e militarista do Império. Harden escrevia a soldo dessas forças e foi-lhe muito útil o conhecimento de informações que lhe foram fornecidas pelo diplomata barão Friedrich von Holstein, uma personagem sinistra que durante trinta anos manobrou na sombra a política externa da Alemanha, após a saída de Bismarck. Aliás, por causa da homossexualidade, já Friedrich Alfred Krupp, o famoso industrial dono das fábricas de aço Krupp, que passava uma parte do ano em Capri, onde convivia intimamente com os acessíveis rapazes da ilha, se suicidara em 1902, depois de ter sido denunciado pela imprensa. Krupp fazia também parte do círculo de amigos do imperador, que acusou o jornal do partido social-democrata de ter mentido sobre as inclinações do industrial.

Os anos que precederam a eclosão da Primeira Guerra Mundial são largamente descritos por Emil Ludwig, embora a prosa seja um tanto confusa. Ressalta a constante mudança de espírito do imperador e as peripécias que haviam de conduzir ao fim da dinastia Hohenzollern. O livro termina, um pouco abruptamente, com a chegada de Guilherme à fronteira da Holanda. Nem uma palavra sobre o tempo de exílio; é verdade, que quando foi escrito, Guilherme II ainda estava vivo.


quarta-feira, 1 de julho de 2020

O "CHEGA"




Acabou de ser publicado o livro A Nova Direita Anti-Sistema: O Caso Chega, de Riccardo Marchi, professor do ISCTE e investigador dos movimentos de Direita em Portugal.

Esta sua mais recente obra está dividida em três partes: I - O Líder; II - O Partido; III - As Ideias.

Na I Parte, o autor debruça-se sobre o percurso pessoal de André Ventura desde os primeiros anos até à sua entrada na vida política, a passagem pelo PSD e a vontade de criar um novo partido.

A II Parte é dedicada à forma como se constituiu o "Chega". Quais às pessoas intervenientes e o papel de cada uma, as fases de formação do partido, as vicissitudes, o choque de ideias, algumas defecções, a participação nas eleições europeias e legislativas e a entrada de André Ventura para o Parlamento, como deputado único do novel partido. É um registo minucioso de todas as etapas, sem dúvida com interesse histórico mas talvez demasiado longo para o leitor comum.

A Parte III é a mais interessante. Segundo o autor, a ideologia do partido é muito mais flexível que o seu carácter populista e André Ventura está menos interessado na codificação de uma doutrina e mais nas formas eficazes de interpretação dos anseios das "direitas populares". Os principais ideólogo do "Chega" são dois: Jorge Castela, desde Outubro de 2018 até à saída do partido em Março de 2019, e Diogo Pacheco de Amorim, desde a sua entrada no início de 2019 e com particular incidência na Primavera/Verão de 2019. Estas duas linhas ideológicas poderiam ser classificadas como de "nacionalismo liberal anti-europeísta" e "liberal-conservadorismo europeísta", embora a sua tradução na proposta programática do "Chega" não revele especiais divergências.

A seguir, Marchi refere os principais documentos produzidos pelo partido (e quais os seus autores) e menciona que muitos dos documentos nunca serão assumidos oficialmente devido à oposição da ala social-democrata (Nuno Afonso). Com a saída de todos os autores principais, os documentos ficam letra morta, embora algumas das suas partes tenham sido aproveitadas posteriormente nos textos políticos do "Chega".

«A produção ideológica do Chega, portanto, aparece bastante dispersa, fragmentada, com uma pluralidade de documentos elaborados em apenas um ano e meio de existência do partido, a partir de grupos de trabalho diversos, com diferentes sensibilidades ideológicas, embora todas balizadas pelo liberalismo económico e pelo conservadorismo dos valores. Este conjunto de documentos incide frequentemente nos mesmos pontos, com variações por vezes sensíveis, nunca antitéticas, mas causadoras de indefinição, mais que de esclarecimento da posição do partido em assuntos relevantes. É possível, contudo, encontrar cinco temas recorrentes em toda a produção ideológica do Chega: a identidade do partido, a economia, a família e a educação, a imigração, a Europa. Resulta, assim, mais conveniente descrever as posições do Chega em relação a cada um destes temas, evidenciando as semelhanças ou as diferenças que os vários documentos e autores aportaram na sua abordagem.» (p. 139)

Não é assim fácil comentar aqui os temas acima indicados, até porque Riccardo Marchi procede à descrição da evolução do pensamento do partido ao longo do tempo.

No que respeita à Identidade, segundo a Declaração de Princípios, «O Chega assume a sua natureza nacionalista, liberal e democrática, conservadora e personalista», inspiração de Fernando Pessoa e Francisco Lucas Pires, e com referências a Montesquieu, John Locke, Edmund Burke, Roger Scruton, Adam Smith, Ludwig von Mises e Friedrich Hayek. No Programa Político Chega 2019, de Diogo Pacheco de Amorim, as referências filosóficas permanecem, mas é omitido o termo "nacionalismo liberal" por "conservadorismo de feição liberal". O liberalismo é uma constante na identidade do "Chega". No Manifesto Político Fundador, o "Chega" apresenta-se como partido "de base e natureza essencialmente popular" e aponta para a necessidade de "uma ruptura com o sistema político vigente", o que passa pela diminuição do estado na vida dos portugueses. Assim, o Estado deverá limitar-se a quatro conjuntos de funções: as funções soberanas (Justiça, Segurança, Defesa, Política Externa, Arbitragem/Regulação); as funções autoreguladoras e de gestão para a selecção de meios financeiros e humanos estritamente necessários à sua actividade; as funções de preservação do património material da nação; as funções subsidiárias e/ou supletivas, só nas áreas onde a sociedade civil não manifeste interesse em actuar. O "Chega" propõe ainda a diminuição do número de leis, que devem ser poucas, simples e claras, e a redução do número de deputados à Assembleia da República, o agravamento das penas para crimes de terrorismo, corrupção, homicídio (prisão perpétua), pedofilia (castração química) e opõe-se ao chamado marxismo cultural, combatendo as teorias de Max Horkheimer, Jürgen Habermas, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse e Erich Fromm, que conduziram à introdução na agenda política das "causas fracturantes): ideologia do género, aborto, casamento gay, adopção de crianças por casais homossexuais, activismo trans, eutanásia, multiculturalismo pró-imigração.

O partido pretende constituir uma IV República (presidencialista), com a reforma do sistema eleitoral e a redução drástica dos ministérios. O "Chega" tem afinidades com o "Vox" espanhol, com com a "Lega" e o "Movimento 5 Estrelas" italianos, com o "Rassemblement National" francês e com o "Alternative für Deutschland" alemão, mas considera que a sua linha é especificamente portuguesa, não se identificando verdadeiramente com quaisquer destes partidos estrangeiros.

Relativamente à Economia, segundo Diogo Pacheco de Amorim, existem quatro concepções diferentes: o Estado como dono da economia, segundo os comunistas; o Estado como motor da economia, segundo os socialistas; o Estado como dinamizador da economia, segundo os sociais-democratas e os democratas-cristão; o Estado como regulador, árbitro e, no limite, suplente na economia, segundo os liberais-conservadores. O "Chega" inscreve-se nesta última família política.

São depois apontadas diversas medidas sobre impostos e respectivas taxas, sobre os contratos de trabalho, sobre o desmantelamento do aparelho burocrático do Estado, sobre a dependência financeira de Bruxelas, sobre os trabalhadores migrantes.  É defendida a flexibilização da legislação laboral, a introdução do contrato de trabalho semanal, a privatização da saúde e do ensino (embora o Estado garanta o acesso gratuito), o combate à corrupção, a abertura da Segurança Social ao sector privado, etc.

No capítulo Família e Educação, passa-se do liberalismo ao conservadorismo. O casamento deve ser, segundo a matriz judaico-cristã portuguesa, entre homens e mulheres, embora o "Chega" considere formas legais de união entre pessoa do mesmo sexo, uma vez que rejeita a homofobia. É feita a defesa da família heterossexual, incentivada a procriação, devido ao declínio demográfico, mas condenada a adopção gay, a eutanásia, o aborto. A família, e não o Estado, é considerada como fonte primária de formação dos jovens e é condenada a ideologização do ensino público. Pacheco de Amorim propõe mesmo a extinção do Ministério da Educação «que não passa de uma tecnoestrutura blindada pelo PCP e pelo BE, impossível de ser penetrada e reformada por qualquer ministro» (p. 169). O partido rejeita o multiculturalismo e é a favor da manutenção da onomástica e toponímia de ruas, monumentos, etc., recusa pedidos de desculpa pela nossa História e defende a manutenção da nossa identidade.

Quanto à Imigração, o "Chega" rejeita todas as formas de racismo, xenofobia e qualquer forma de discriminação contrária aos valores fundamentais constantes da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Combaterá as manifestações de racismo, de anti-semitismo, de suprematismo, e «os novos genocídios perpetrados pelas "teocracias no médio e extremo-oriente" contra os povos judeus, cristãos e yazidi» (p. 171) Faz uma discriminação entre «as comunidades migrantes que não representam qualquer problema (as oriundas dos países europeus, dos PALOP, da China) e as que, pelo contrário, são uma ameaça: os alegados "refugiados sírios", na verdade islâmicos vindos do Magreb, Bangladesh, Paquistão, com documentos forjados, através das redes criminais e das ONG.» (p. 171). Todavia, a principal preocupação do "Chega" é a imigração ilegal. E também o controlo de fronteiras que deve ser eficiente. A fronteira «é uma dimensão essencial para salvaguardar a Nação das redes criminais transnacionais, que controlam a circulação ilegal de seres humanos, drogas e capitais.» (p. 173). Outra questão que preocupa o partido é a atribuição da nacionalidade portuguesa. E também a identificação dos refugiados. O partido, quanto à nacionalidade, defende o ius sanguinis contra o ius soli. Além disso, pede  saída de Portugal do Pacto Global das Migrações, da ONU, assinado em Marraquexe em 10-11 de Dezembro de 2018. «O plano integra a estratégia da ONU de promoção da migração de substituição para a Europa, como explicitado, já em 2000, no relatório Replacement Migration, do Departamento de Economia e Assuntos Sociais da ONU. Fazendo eco de certas teorias da conspiração de algumas direitas radicais, o documento do Chega declara que esta estratégia concretiza as aspirações das elites globalistas, há muitas décadas empenhadas na constituição de um governo mundial, na senda do programa do austríaco Richard Nikolaus von Coudenhove Kalergi, elaborado na primeira metade do século XX.» (p. 180)

Na página 180, Riccardo Marchi escreve: «O alvo da crítica é a migração islâmica em massa: a chamada Hijrah, teorizada por Maomé, para implantação do Califado Mundial.» [Impõe-se-me fazer aqui uma correcção: A Hijra (em português Hégira), nada tem a ver com o Califado Mundial. Significa em árabe "abandono", "exílio" e é a palavra que designa a "fuga", segundo os nossos manuais escolares, de Maomé de Meca (onde estava a ser hostilizado) para Yatrib (que depois passou a chamar-se Medina) em 15/16 de Julho de 622. Esta data marca o início do Calendário Islâmico.]

«Também para Patrícia Sousa Uva a questão é de proporções, porque Lisboa sempre teve historicamente uma comunidade islâmica integrada, vinda do norte de África e de Moçambique, ao passo que os fluxos de massa previstos pelas organizações internacionais determinam um desequilíbrio e replicam os problemas vividos por outras capitais europeias. Para Nelson Dias da Silva, as consequências não são apenas sociais, mas também políticas, como demonstram os partidos mainstream europeus que ficaram reféns do voto étnico e já não conseguem reverter políticas migratórias que nas últimas quatro décadas começaram a mostrar a outra face da moeda.» (p. 181)

Sobre a Europa, André Ventura considera-se não nacionalista e europeísta convicto. Mas também há quem no partido entenda que Portugal se deve preparar para o desmoronamento da União Europeia. Um documento, aprovado em Convenção Nacional «enaltece o modelo da Europa das Nações soberanas e democráticas, governado, preferencialmente, pelo princípio de unanimidade entre os Estados membros - existente até ao Tratado de Maastricht - e não pelo princípio da maioria actualmente em vigor, funcional à hegemonia franco-alemã.» (p. 187) Também o "Chega" deve «recusar, de forma clara, inequívoca e absoluta a participação de Portugal numa Federação Europeia.» (p. 187). Pacheco de Amorim enaltece a «complementaridade entre nações diferentes na Europa, na senda da confluência entre as duas matrizes identitárias europeias: a greco-romana e a judaico-cristã.» (p. 187). «A desconfiança do Chega com as políticas de potência da UE integra, contudo, uma visão geopolítica claramente ocidentalista e avessa às organizações mundialistas. Neste sentido, já a Moção Castela pedia a suspensão da participação de Portugal na ONU, mas reivindicava a sua permanência na NATO, principalmente para fins de contraste ao terrorismo islâmico e de resistência à geopolítica hegemónica da Rússia, China e Irão. Por isso, alinhando com as direitas europeias, o Chega compromete-se claramente com a defesa da existência do estado de Israel - ameaçado pelo "nazijiadismo", culpado pelo recrudescimento do antissemitismo -, até com medidas radicais, como a transferência da embaixada portuguesa para Jerusalém, na senda do presidente Donald Trump.» (p.188)

Nas Conclusões, Riccardo Marchi define o "Chega" como um partido populista da nova direita radical. E explica. Direita radical e não extrema-direita. A extrema-direita tem um carácter anti-sistema e objectivos de abate do regime vigente, através de meios violentos (e, por isso, é alvo de repressão); a direita radical tem um carácter anti-sistema e objectivos de mudanças substanciais no regime, mas através das regras do jogo estabelecidas pela Constituição, inclusive com a sua reforma (e, por isso, é permitido). A velha direita (os partidos anti-sistema colocados mais à direita do espectro político), reconhecem-se herdeiros dos autoritarismo de entre-guerras: nacional-socialismo, fascismo, franquismo, salazarismo, etc. A nova direita, na sua cultura política, nada tem a ver, do ponto de vista doutrinário, com os autoritarismos da direita dos anos 20 e 30 do século passado. Quanto ao populismo, ele é uma ideologia de baixa densidade, caracterizada por uma visão dicotómica da realidade política, que contrapõe o povo como entidade homogénea e virtuosa à elite corrupta e corruptora. Esta visão dicotómica pode integrar ideologias densas, tanto de esquerda como de direita. «O Chega incorpora o "nacionalismo banal", transversal à sociedade portuguesa, presente também no discurso institucional, sem ligações e até crítico da forma como o Estado Novo o encarnou. Esta encarnação, com particular atenção ao seu artífice, António de Oliveira Salazar, pelo contrário, é central na mundividência da direita radical tradicional.» (p. 196)


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Nesta obra, o prof. Riccardo Marchi pretende estabelecer um retrato do "Chega". Tarefa difícil, que o mesmo reconhece ao longo das páginas, já que a natureza do partido tem-se alterado com o decorrer do tempo, ainda escasso, da sua existência. Cita o autor diversos documentos, quer oficiais, quer da autoria de dirigentes ou de destacados militantes, sob a posição partidária face aos vários temas que preocupam os portugueses. E transcreve afirmações contidas nesses documentos, algumas das quais eu mesmo retranscrevi neste post. Daí se constata que há posições divergentes sobre certas matérias e que existe, segundo Marchi, um diálogo constante dentro do "Chega". É pena que o autor não tenha incluído, em anexo, os textos desses documentos, para melhor se apreender as intenções neles consagradas e a previsível orientação do partido que se afigura, por ora, um work in progress. De facto, não consegui encontrar, talvez por falha minha, um documento definitivo (se alguma coisa é definitiva?) do que é, neste momento, o programa oficial do "Chega".

Assim, pretendendo fazer um comentário ao projecto do partido, vou utilizar as conclusões constantes do livro de Riccardo Marchi, com a ressalva de poder errar a minha interpretação dado o facto de existir, em alguns aspectos, uma razoável margem de ambiguidade.

Parece pacífico afirmar que o "Chega" é liberal em economia e conservador nos costumes.  Pretende reduzir o Estado ao mínimo, determinando que a sua intervenção na economia seja apenas supletiva, nas áreas em que a iniciativa privada não seja possível ou satisfatória. Não creio que esta proposta seja do agrado da maioria dos portugueses, que por tradição e atendendo às circunstâncias, desejam um Estado mais interventivo. Isto é, os portugueses querem mais Estado, embora melhor Estado. Mais Estado não significa necessariamente mais gente a viver à custa do Estado mas uma gestão racional dos serviços prestados à comunidade. Na presente crise de pandemia, como estariam os portugueses se não existisse Serviço Nacional de Saúde??? Mesmo com o SNS desde há muito descapitalizado, foi possível ocorrer a esta emergência nacional (e mundial). O que importa, até aguardando novas emergências de saúde, é robustecer o SNS. E que dizer da Escola Pública? É ela indispensável e deverá ser tendencialmente gratuita, onde ainda não é. Concordo num ponto. O Ministério da Educação tornou-se num monstro e desde há décadas, ensaiando sistemas votados ao fracasso, vem degradando a instrução dos portugueses. Mas não deve ser eliminado, antes reformado, custe o que custar. Com a missão de combater as actuais narrativas, que pretendem eliminar a história das nações, em nome de um suposto "politicamente correcto". Também a Segurança Social deverá ser fundamentalmente da responsabilidade do Estado. Tem-se visto, em países estrangeiros, como se desmoronaram serviços privados de segurança social. Vou mesmo mais longe. Considero que, além das funções de soberania, deviam pertencer ao Estado os serviços estratégicos da Nação: energia, água, transportes, comunicações, obras públicas, etc.,etc. Ainda sobre economia, apraz-me considerar que a "mão invisível do mercado", cara a Adam Smith, só existe teoricamente, como a prática ao longo do tempo, se encarregou de demonstrar.

O "Chega" assume-se como partido anti-racista e anti-homofóbico, ressalvando embora a indesejabilidade de certo tipo de imigração e determinadas reivindicações da ideologia do género. Nesta área, estou certo de que se verificam entre nós comportamentos e actos anti-racistas e que possa mesmo haver, em alguns segmentos da população, uma mentalidade subliminar racizante, mas não penso que se possa considerar Portugal como um país intrinsecamente racista, ao contrário de outros países europeus, como a França e a Inglaterra. Também o partido se reclama de anti-homofóbico, ainda que com especiais reservas à agenda LGBTQ+. Na verdade, a sucessão de reivindicações dos movimentos de identidade do género acaba por parecer à população, pelo seu exagero, absolutamente deslocada. A descriminalização da homossexualidade foi um passo importante, bem como o reconhecimento oficial de ligações de pessoas do mesmo sexo. É mais importante, após o reconhecimento legal, incutir no espírito das massas esta nova normalidade, e isso é um trabalho paciente e demorado. Não decorre das disposições jurídicas mas da evolução dos comportamentos sociais.

A proposta da castração química dos pedófilos merece-me a maior repugnância. A pessoa humana deve ser fisicamente inatingível, além do que esta medida, caso viesse a ser aprovada, não teria resultados significativos, como se poderia provar, mas o caso não vem agora à colação. A manutenção da integridade física dos humanos leva-me a condenar igualmente a excisão genital e, até, a circuncisão (salvo por razões meramente sanitárias), que não deixa de ser um acto castrador do ser humano. Eu sei que a ablação do prepúcio é comum a culturas milenares como o judaísmo e o islão, e a sua interdição provocaria certamente reacções inusitadas. Recordo que a proibição da circuncisão foi o pretexto para os judeus iniciarem a sua grande revolta contra Roma, que ensombrou os últimos anos do reinado do imperador Adriano, como Marguerite Yourcenar brilhantemente demonstra nas suas Mémoires d'Hadrien. Mas tal prática não deixa de constituir uma desfiguração do pénis original, abundantemente retratado nas estátuas gregas e romanas.

O "Chega" manifesta-se a favor da União Europeia, embora rejeitando uma federação, e infere-se que é partidário da manutenção no euro. Como Emmanuel Todd explica na sua mais recente obra, o euro tem sido uma tragédia para a Europa, pelo menos para alguns países, que não a Alemanha. Mas, nas circunstâncias actuais, creio que uma saída de Portugal da UE e do euro seria catastrófica. Basta olhar para o Brexit, ainda não concluído na prática (e o Reino Unido não utiliza o euro) para verificar os incontáveis problemas inerentes ao abandono desta União. Possivelmente, ela mesma acabará por se desmoronar. O que importa, sim, é tentar combater a progressiva interferência de Bruxelas nos assuntos que devem respeitar apenas às soberanias nacionais.

A luta contra a corrupção, que é uma bandeira do "Chega", merece todos os aplausos. Precisa, todavia, de ser efectivamente travada. De resto, todos os partidos a proclamam, mas não a praticam. Vício endémico dos povos. Importa fazer alguns esforços. 

A reforma da Justiça deveria merecer uma atenção muito especial do partido, mas não vi propostas concretas. Dessa reforma depende largamente o futuro de Portugal. Ao contrário, quanto à reforma fiscal, existem no texto de Marchi inúmeros exemplos, inclusive com taxas mencionadas, mas a aplicação directa dessas propostas é manifestamente inexequível.

A redução do número de deputados parece-me interessante, bem como a forma da sua eleição e a redefinição dos círculos eleitorais. Também seria desejável a redução do número de assessores, consultores e congéneres que enxameiam o aparelho do Estado, a maior parte sem qualquer utilidade prática, apenas uma forma de empregar amigos e correligionários.É neste capítulo, e na existência de milhares de comissões, grupos de trabalho, unidades de missão, e milhentas coisas congéneres, que reside o verdadeiro peso do Estado. O aumento da intervenção positiva do Estado na vida pública não implica mais funcionários, até conduzirá à sua diminuição, se efectuada com racionalidade e sem cedência a interesses exógenos,

Não pretendendo alargar-me em considerações sobre as ideias do "Chega", há, todavia, um aspecto que me suscita algumas interrogações. Os textos referidos pelo autor, alguns dos quais transcrevi, manifestam uma constante preocupação relativamente ao anti-semitismo. Nada a objectar. Mas existem numerosas referências à defesa da civilização judaico-cristã. Ora a civilização Ocidental é cristã, a sua componente judaica (o Velho Testamento) foi há muito integrada na Civilização Cristã. De resto, ao longo dos séculos a Europa registou sempre uma luta (geralmente não bélica) entre cristãos e judeus. A herança propriamente judaica não integra a civilização cristã. Faz-se também referência à ameaça de perseguição de judeus no Médio Oriente, quando é suposto que são os próprios judeus que perseguem os palestinianos (veja-se o propósito de anexar a Cisjordânia). Por outro lado, no capítulo relativo à imigração, aceita-se a proveniente da Europa e da Ásia, mas não a proveniente dos países árabes e muçulmanos, o que, além de outras razões (também invocadas), denota um preconceito anti-islão. Finalmente, o "Chega" compromete-se com a defesa da existência do Estado de Israel (!!!), que não se afigura estar ameaçado (basta-lhe a protecção dos Estados Unidos, e não só). Todas estas alusões configuram uma posição filo-sionista do partido, que deverá ser esclarecida.