quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

AQUANDO DAS COMEMORAÇÕES DO 75º ANIVERSÁRIO DA DESCOBERTA DE UGARIT

Em Outubro de 2004 teve lugar no Museu das Belas-Artes de Lyon uma notável exposição comemorativa do 75º aniversário do início das escavações (1929) em Ras Shamra (Síria), sítio que foi a capital do célebre reino de Ugarit. Em 1928, um lavrador, trabalhando a terra com o seu arado, descobrira a pedra de um túmulo, o que imediatamente alertou as autoridades para a presumível importância desse achado arqueológico. As pesquisas iniciaram-se no ano seguinte, a cargo de uma missão francesa, que se tornou franco-síria em 1999, e estava-se longe de conhecer o valor dessa descoberta. Passados 75 anos foi possível, em 2004, realizar uma exposição para apresentar os resultados desse extraordinário trabalho, mostrando as principais peças entretanto depositadas no Museu do Louvre, no Museu Nacional de Damasco, no Museu Nacional de Alepo e nos museus das cidades sírias de Latáquia e de Tartus e ainda no Departamento do Médio-Oriente dos Museus Estatais de Berlim.

O catálogo, cuja capa se reproduz acima, é uma preciosa edição artística, magnificamente ilustrada, apresentando as diversas peças constantes da exposição, que foi organizada por Yves Calvet, co-director da Missão Arqueológica de Ras Shamra-Ugarit e Geneviève Galliano, conservadora do Museu das Belas-Artes de Lyon.

Como escrevi em post anterior, os habitantes do reino de Ugarit eram inicialmente pastores e agricultores mas depois também construtores e artífices, pescadores e negociantes e a partir do porto de Mahadu, hoje Minet el-Beida, praticava-se um importante comércio marítimo com o Egipto, Chipre e as ilhas do mar Egeu. Comércio igualmente desenvolvido por via terrestre com os vizinhos reinos de Mukish, Siyannu e Amurru e mesmo com os mais distantes Império Hitita e Mesopotâmia ou com os países do Levante: Biblos, Beirute, Tiro.

O palácio real da capital com os seus anexos ocupava mais de 10 000 metros quadrados, os principais templos, de Baal e de Dagan, eram notáveis, os vestígios das muralhas da cidade testemunham a qualidade das fortificações.

O fim de Ugarit foi súbito e brutal. Os principais edifícios mostram vestígios de incêndios mas nenhum texto nos revela o que então aconteceu. A utilização da escrita desapareceu na região durante alguns séculos após estes acontecimentos. A destruição terá ocorrido no começo do século XII AC, devida porventura às errâncias dos chamados "Povos do mar". Ras Shamra conheceu algumas reocupações curtas e pouco extensas nos séculos V e IV AC., revelando elementos arquitecturais persas e cerâmicas gregas.

A primeira pessoa a investigar o sítio de Ugarit (a Síria estava em 1929 sob mandato francês) foi Claude Fréderic-Armand Schaeffer (1898-1982), professor no Collège de France e especialista da pré-história. As escavações começaram em Minet el-Beida e prosseguiram depois em outras zonas. Uma parte das descobertas encontra-se nos museus da Síria e outra parte foi levada para França, achando-se no Museu do Louvre, partilha efectuada de acordo com a lei das antiguidades então em vigor. Esta lei foi suprimida em 1948 e desde esta data todos os achados foram conservados na Síria: no Museu Nacional de Damasco (1948-1965), no Museu Nacional de Alepo (1966-1987), no Museu de Latáquia (desde 1988).

«Les grandes tablettes en argile et les outils en bronze découverts sur l'acropole présentaient un système graphique cunéiforme nouveau. Les efforts de H. Bauer, E. Dhorme et Ch. Virolleaud en donnèrent très vite la clé: en 1930, ils reconnaissaient un système graphique alphabétique servant à noter une langue ouest-sémitique apparentée à l'hébreu, au phénicien, à l'arabe, etc. Les courtes inscriptions des outils votifs étaient des dédicaces du "chef des prêtres", et les longs textes des tablettes, des poèmes mythologiques dont le héros principal était le dieu Baal, le dieu protecteur du royaume. Cette découverte eut un retentissement extraordinaire dans la communauté scientifique internationale. Outre l'apparition d'une langue nouvelle, le site de Ras Shamra faisait connaître le système alphabétique d'où dérivent, à travers l'intermédiaire du phénicien, les alphabets grec puis latin, dont l'utilisation s'est répandue jusqu'à nous sur la terre entière. Et, d'autre part, on voyait sortir de l'obscurité la civilisation dite "cananéenne" dans laquelle l'univers biblique prenait une grande partie de ses racines, avec ses mythes, sa littérature poétique... Ces deux éléments mis au jour dans ce qui s'est révéllé une cité riche et raffinée, en relation avec le reste du monde oriental du II millénaire, ont rapidement fait de Ras Shamra-Ougarit un site majeur de Syrie.» (pp. 73-4)

A exploração do local prosseguiu até 1939, altura em que as pesquisas foram interrompidas devido à Segunda Guerra Mundial. Depois da independência da Síria, em 1946, a missão regressou ao sítio em 1948, mas só em 1950 foi concedida autorização para continuar as escavações sistemáticas. H. de Contenson sucedeu a Schaeffer em 1971 e manteve-se à frente da missão até 1974. Em 1975-1976 dirigiu os trabalhos J.-C. Margueron. A partir de 1977 houve uma equipa dirigida por Jacques Lagarce e Adrian Bounni. De 1978 a 1998 Marguerite Yon foi responsável pela Missão, que se tornou franco-síria, em 1998, assumindo a direcção Yves Calvet e Bassam Jamous. Quando eu visitei Ugarit em 2006 conheci pessoalmente o doutor Yves Calvet, com quem troquei impressões sobre as escavações. A partir dessa data, e tendo eclodido a guerra na Síria, nada mais soube acerca deste notável sítio arqueológico.

Vejamos agora as línguas e as escritas de Ugarit.

«Les documents épigraphiques attestent la présence de huit langues (ougaritique, akkadien, hourrite, hittite, louvite, sumérien, égyptien, "chypro-minoen"). Mais, outre la langue vernaculaire, l'ougaritique, seules deux étaient sans doute parlées de manière courante.

En effet, langues orales et langues écrites ne se recouvraient pas. Le sumérien, qui n'était plus parlé depuis longtemps, apparaît seulement à titre de réference culturelle, les grands textes littéraires de la tradition mésopotamienne faisant partie du bagage de tout scribe bien formé. Les hyéroglyphes égyptiens constituent la dédicace de plusieurs objets envoyés en cadeaux: ces importations ne traduisent  nullement l'emploi de la langue égyptienne sur place. Parler de "chypro-minoen" masque en fait l'ignorance dans laquelle nous sommes de la langue notée par cette écriture hourrite: hourrite, un dialecte égéo-chypriote ou arcado-chypriote?

La situation du hittite ou du louvite est différente: ces idiomes sont très peu représentés dans les documents (moins de dix textes en hittite ont été mis a jour). Pourtant, ils étaient ceux des suzerains du royaume d'Ougarit et d'importants négociants: il est difficile d'imaginer qu'ils aient renoncé à leur emploi dans leurs discussions. Mais même pour eux, écrire impliquait à Ougarit que ce fût en akkadien. 

La présence d'une colonne propre au hourrite dans certaines listes lexicales multilingues utilisées dans les scriptoriums ougaritains témoigne de la pratique locale de cette langue. Dans les textes, elle est cantonnée à des domaines très spécifiques: des partitions musicales et les parties lyriques des liturgies ougaritaines. Elle entre dans la composition d'écrits bilingues, comme un recueil de sentences akkado-hourrite ou des rituels d'offrandes ougarito-hourrites. De nombreux personnages importants de la Cour portent des noms hourrites. Sans doute cette langue était-elle employée par une partie de la population d'Ougarit.

Prés de la moitié des textes d'Ougarit sont rédigés en akkadien, langue mésopotamienne. Cela n'indique cependant pas quelle était sa place dans la vie quotidienne. Et, malgré la parenté de leurs langues, il n'est pas sûr qu'akkadophones et ougaritophones se soient compris. L'akkadien était la langue par excellence des relations internationales; il ne servait pas pour autant d'idiome "passe-partout" pour les voyageurs et les étrangers au royaume.

L'énumération de ces huit langues masque en revanche un phénomène linguistique important: l'existences de sabirs propres à différents métiers, que seul de maigre indices laissent deviner.

À la complexité de la situation linguistique s'ajoute la diversité des écritures: cinq systèmes sont attestés, mais de manière très inégale: moins d'une dizaine de tablettes sont inscrites en caractères linéaires chypro-minoens; les hiéroglyphes louvites apparaissent à côté des cunéiformes dans des sceaux digraphes, tandis qu'une centaine d'objets (scarabées, épée, vases, stèles...) portent des hiéroglyphes égyptiens.

Alphabet ougaritique (notant essentiellement la langue ougaritique, mais aussi quelques textes hurrites) et cunéiformes mésopotamiens (pour l'akkadien et quelques textes hourrites) se partagent la plupart des documents épigraphiques. Il existe aussi quelques textes digraphes (à ume trame ougaritique viennent s'ajouter des indications ou un résumé en cunéiformes syllabiques) témoins de la très grande aisance des scribes à passer d'une langue à l'autre, d'une écriture à l'autre.» (p. 81)

Os textos encontrados podem classificar-se nos seguintes grupos: textos administrativos, actos jurídicos, correspondência local (quase toda em ugarítico), correspondência internacional (a maior parte em acádio), literatura lexical, textos religiosos e arquivos.

Pela leitura dos textos descobertos podemos conhecer a vida política e diplomática do pequeno reino de Ugarit e as suas relações com os reinos limítrofes: Siyanu e Amurru. Igualmente com o Império Egípcio e o Império Hitita, e ainda com regiões mais distantes do Levante ou com as cidades costeiras fenícias ou cananeias de Biblos, Beirute, Sidon, Tiro, Acre, Ashdod ou Ascalon.

O comércio foi uma das principais actividades de Ugarit, que foi mesmo uma placa giratória do comércio internacional. As trocas que se encontram mais bem documentadas são as que se referem a objectos de cerâmica, localmente produzidas ou importadas, especialmente de Chipre mas também das ilhas do mar Egeu. 

O catálogo documenta pormenorizadamente o que teria sido o palácio real de Ugarit e o seu precioso mobiliário e descreve o modo de vida quotidiano da população local. 

As primeiras sepulturas descobertas na região, no caso em Minet el-Beida, foram interpretadas como pertencendo a uma necrópole, mas com a continuação das escavações verificou-se que, como era corrente no Próximo Oriente, estavam situadas debaixo das casas. Embora os restos humanos raramente estivessem conservados, foi possível constatar que os túmulos eram colectivos e podiam abrigar diversas gerações. O uso de sarcófagos revelou-se excepcional. 

Baal

No campo da religião, Baal, deus das Tempestades era o deus principal do reino, mas também El, o pai dos deuses era objecto de grande veneração, tal como Maat, sua irmã, Mot, deus da Morte, Yam, deus do Mar, Kothar-Khasis, engenheiro-arquitecto, Athirt, esposa de El, Shapash, deusa solar, Athtart e Akhtar, manifestações feminina e masculina da estrela da manhã e da noite, etc. O panteão de Ugarit era contudo mais vasto. Além do Baal de Saphon incluía mas seis Baal sem epíteto e Dagan, um deus muito importante. Não cabe aqui a enumeração de todos os deuses da região. 

El
El

Encontraram-se em Ras-Shamra pelo menos cinco edifícios que teriam servido como templos. Os mais importantes eram dedicados a Baal e a Dagan. Estima-se que estes templos datem do sécuo XV AC. 

Registámos aqui, resumidamente, alguns dos aspectos mais importantes da civilização de Ugarit, como descritos no notável catálogo publicado por ocasião da grande exposição em Lyon.


sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

NO REINO DE UGARIT

Comprei este livro, Ougarit - La terre et le ciel (2004), logo após a minha vista a Ugarit, em 2006. Trata-se de uma recolha de textos (prosa e poesia) de vários autores, entre os quais Marguerite Yon, que dirigiu a missão de pesquisa em Ugarit entre 1978 e 1998, Salah Stétié, escritor e embaixador do Líbano em diversos países ou Myriam Antaki, escritora síria francófona e mulher de George Antaki, cônsul honorário de Portugal em Alepo. A edição é prefaciada por Yves Calvet, director das pesquisas em Ugarit desde 1999 e que tive o prazer de conhecer pessoalmente quando visitei as ruínas. Ignoro o que aconteceu às investigações arqueológicas depois do eclodir da guerra na Síria.

Folheando agora o livro, apraz-me registar meia dúzia de aspectos. 

A região foi habitada por pastores e agricultores desde o VIII milénio AC. mas os vestígios até hoje encontrados datam, no essencial, do século XIV ao século XII AC., o período de grande apogeu do Reino de Ugarit. As pesquisas em Ugarit (Ras el-Shamra na designação árabe do local) começaram em 1929, depois de um lavrador, em 1928, ter posto a descoberto, ocasionalmente, com o seu arado uma pedra antiga.

O alfabeto ugarítico, o primeiro conhecido na História, é composto de 30 caracteres. A língua ugarítica tinha utilização interna no reino, mas nas relações internacionais era praticado o acádio, língua utilizada na Assíria e em Babilónia. Era nesta língua que se processava a correspondência de Ugarit com o faraó do Egipto e com o "rei-Sol" dos hititas.

As inscrições eram gravadas em tabuinhas de argila, e nessa forma chegaram ao nosso conhecimento. Através delas sabemos muitas coisas sobre a vida quotidiana no reino e as relações internacionais, especialmente no período decorrente entre o século XIV e o século XII AC. O mais célebre rei de Ugarit terá sido Niqmad (1210-1200 AC) cujo nome é mencionado muitas vezes nas inscrições recolhidas. O reino de Ugarit começou a extinguir-se nos princípios do século XII AC, minado por crises internas e por causa das incursões dos "povos do mar", que também determinaram o fim do império hitita.

Existe no Museu Nacional de Damasco uma pequena tabuinha contendo o alfabeto de Ugarit, de que possuo uma reprodução.

Na cidade de Ugarit, a capital, existiam vários palácios, templos, monumentos, residências senhoriais e todo o tipo de construções próprias de uma grande cidade da época. A população dividia-se em dois grupos: os "homens do rei", aqueles que se encontravam ligados ao palácio e os "filhos de Ugarit", restantes habitantes da cidade, estrangeiros e escravos. Temos notícia de uma importante aristocracia e de gente ligada ao mundo dos negócios. 

Os templos principais eram dedicados ao deus Baal (Bel), o deus das tempestades e da chuva, e ao deus Dagan (Dagon), deus da agricultura. À volta de Baal, objecto de grande veneração, existia todo um panteão, à frente do qual se encontrava El, o pai dos deuses, acompanhado da sua "parceira" e irmã Anat, de Yam, deus do mar e de Kothar-Khasis, o deus engenheiro e arquiteto.

Por curiosidade reproduz-se uma imagem do deus El que, como referimos em post anterior, esteve na base do nome Israel (Isra+el), já que era o principal deus dos povos do Levante, e que mais tarde foi metamorfoseado em Yahvé.

Voltaremos oportunamente a escrever sobre Ugarit.


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A BÍBLIA TINHA OU NÃO RAZÃO?

Devo ao Miguel Castelo Branco a notícia da recente publicação do livro A Bíblia tinha mesmo razão?, do padre Francisco Martins, S.J., professor da Pontificia Università Gregoriana, de Roma. Sobre este tema, Werner Keller publicara em 1955 Und die Bibel hat doch recht, que foi editado em português com o título A Bíblia tinha razão, sem menção de data, mas possivelmente nos anos sessenta, e que comprei e li na ocasião.

A obra de Werner Keller procura conciliar a narrativa bíblica com as fontes históricas, numa altura em que começara uma investigação arqueológica sistematizada nas regiões abrangidas pelo relato do Livro. Mas, decorrido mais de meio século, a perspectiva é hoje bem diferente. As descobertas ocorridas neste período são de molde a suscitar mais dúvidas do que certezas. Por isso, a recém-publicada obra de Francisco Martins apresenta no título um ponto de interrogação.

Procede o autor a uma detalhada indicação das últimas descobertas arqueológicas e também de manuscritos, intercalada com várias citações e observações pessoais quanto ao valor a atribuir aos textos bíblicos. A abundância de pormenores e a forma como as matérias se encontram arrumadas dificultam por vezes a inteligibilidade da narrativa que ganharia em permitir uma leitura mais linear. O livro segue, lamentavelmente, o sinistro Acordo Ortográfico 90 mas, ainda pior, é o aportuguesamento de muitos nomes já consagrados em português e noutras línguas europeias. Não havia necessidade de grafar Ramessés em lugar de Ramsés, mas escrever Cadés para designar o local da célebre batalha de Kadesh começa a ser apenas acessível a quem já possua conhecimentos na matéria. E podia citar muitos outros exemplos. Também é obviamente notória a falta de um índice onomástico. 

Não é possível proceder neste espaço a um comentário circunstanciado das observações do autor, pelo que ficaremos por umas simples notas. A obra começa por analisar as figuras de Abraão, Isaac, Jacob e José, cuja existência histórica considera duvidosa, e mesmo a de Moisés «sobre o qual não nos chegou qualquer testemunho extra-bíblico» (p. 101), embora o nome seja de origem egípcia.

A mais antiga referência ao nome de Israel encontra-se na estela do faraó Merneptá, datada de cerca de 1207 AC.  Segundo o autor o deus El era venerado no Próximo Oriente e a transformação em Israel poderá significar a sua individualização para os hebreus. Ao princípio, terá coexistido com outros deuses até à consagração do monoteísmo. Também não é verdade que os israelitas sejam os hicsos, como por vezes se propõe. E o livro Êxodo é uma invenção literária. Terá havido durante muitos anos um vai-vem de israelitas de e para o Egipto e não há provas de uma imensa migração daquele país para Canaan. As hipotéticas datas "históricas" da Bíblia são inconciliáveis com os documentos históricos, papiros ou pedras. «Por volta de 1150 AC. ou, o mais tardar, 1130 AC. , o Egipto foi forçado a abdicar definitivamente do que foram mais de quatro séculos de domínio absoluto ou quase absoluto sobre a região do Levante e os reinos, cidades e povos que ali habitavam. (...) Ora, para o "Israel" da estela de Merneptá, como para os outros grupos étnicos e não só que ocupavam o sul do Levante, este acontecimento maior da História das relações entre o Levante e o Egipto no segundo milénio AC. deve ter sido vivido como uma "libertação", isto é, como o extrair-se de uma situação de sujeição político-económica ("escravatura"), que havia durado vários séculos.» (pp. 108-9)

Há depois a revelação do nome bíblico de Deus, Yahvé (ou Yhwh, Yhw, Yh, Yahu, Yah), segundo o Êxodo. A palavra hebraica é conhecida como tetragrama (Yhwh) e é substituída em algumas edições da Bíblia por "Senhor", norma que remonta à Antiguidade e que reflecte uma espécie de tabu religioso, uma regra de respeito pela sua sacralidade (p. 115). O facto do hebraico não possuir vogais deu origem a várias incorrecções na vocalização, como Yehowah (Jeová), que é historicamente uma grafia incorrecta (p. 116).

«(...) a divindade chamada "Yahvé" começou por se apresentar com um outro nome: "El Chadai". Foi como tal que se apresentou aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob e ainda aos seus muitos descendentes. Moisés é o primeiro a conhecer o seu "verdadeiro nome", que deve agora anunciar aos restantes Israelitas, que este mesmo deus o encarregou de resgatar da opressão no Egipto. Em suma, El Chadai e Yahvé ou Yahu são uma e a mesma divindade, tratou-se apenas de uma aparente e, em larga medida, inexplicada "mudança de nome". Mas terá sido mesmo assim? Sem entrar em considerações de cariz teológico, os investigadores desconfiam há muito que por detrás desta "mudança de nome" está, na verdade, uma "mudança de divindade". Muito provavelmente, Yahvé não foi a primeira divindade tutelar dos Israelitas. Há vários indícios que apontam nesse sentido. Em primeiro lugar, de forma decisiva, o próprio nome do povo: "Israel". A palavra "Israel" contém o elemento teofórico "el". "El" tornou-se, em hebraico, um nome genérico para "deus" mas, na origem, El era uma divindade específica considerada pelos povos do Levante o chefe do panteão e o criador do universo. No fundo, El era o equivalente, no Levante, de Zeus, na Grécia, e Júpiter, em Roma. Ora, é altamente significativo que o povo se chame "Isra-el" e não, por exemplo, "Isra-yahu" ou "Isra-yahweh". Ainda que seja difícil reconstruir etimologicamente o significado da palavra "Israel" ("El luta?" "El reina?" "El é justo?"), não há dúvida de que o nome do povo, atestado já na famosa estela de Merneptá (c. 1207 AC), a que nos referimos no capítulo anterior, reflete a proeminência de El enquanto divindade tutelar original.» (pp. 118-9)

«(...) o deus Yahvé, que aparece a Moisés e depois se transforma na divindade tutelar do povo de Israel, não é um deus autóctone da terra de Canaã.» (p. 121) 

«Que Yahvé não foi a divindade tutelar original de um povo cujo nome próprio aponta para El ("Isra-el") parece ser um dado sólido. Também há razões suficientes para assumir que Yahvé não é um deus autóctone de Canaã (um deus cananeu como Baal) e que é ao sul/sudeste deste território que a memória bíblica localiza as suas origens.» (p. 133)

«Para nós, leitores contemporâneos, a Bíblia é um livro fundamentalmente monoteísta. Mesmo quando se fala de outros deuses (como, por exemplo, o "cananeu" Baal ou o filisteu "Dagon"), o tom geral tende a desmentir a qualidade divina destas "falsas alternativas": pressente-se que estes "ídolos" nunca deveriam ter sido levados a sério, oxalá o povo de Israel e os demais povos se tivessem revelado um pouco mais sensatos. Uma tal impressão, inteiramente justa, mostra o quão bem-sucedida foi a revisão e edição da Bíblia, neste caso, o Antigo Testamento, na época exílica e, sobretudo, pós-exílica (a partir do século V AC), quando o monoteísmo bíblico atingiu plena expressão. Ora, para penetrar além deste "verniz final" e reconstruir a História da religião do Israel Antigo, impõe-se não só uma análise mais apurada dos textos bíblicos, mas também a consideração do que a arqueologia e a epigrafia nos desvelam acerca dessas práticas cultuais e das conceções religiosas então predominantes.» (p. 136)

«Esta conceção tradicional do papel de Moisés na História da religião não só do povo de Israel, mas até da humanidade em geral, resistiu durante muito tempo aos avanços da crítica histórica. Mesmo quando já se tinha percebido que a noção de que Moisés era o autor do Pentateuco não tinha fundamento histórico, continuava-se a supor que esta figura maior da tradição bíblica era o responsável ou, pelo menos, o líder indiscutível da mais decisiva das "revoluções religiosas", a "revolução monoteísta". Freud, por exemplo, dá plena expressão a esta convicção na sua obra Moisés e o Monoteísmo, publicada em 1939. Inspirado pelas então ainda recentes escavações arqueológicas no sítio de Amarna, no Egito, e a descoberta do "extravagante" monoteísmo (ou "quase-monoteísmo") do faraó Aquenáton (c. 1353-1336 AC), Freud desenvolve a sua própria teoria a respeito do surgimento e da sobrevivência do monoteísmo. Dá a Aquenáton a "glória" de ter sido o verdadeiro "visionário" da unicidade de Deus, mas atribui a Moisés a "perpetuação" deste escandaloso conceito. Moisés, sugere Freud, era egípcio e um dos sacerdotes do faraó do monoteísmo. Obrigado a fugir do Egito à morte do faraó Aquenáton, Moisés transmitiu àqueles que o seguiram a "ideia monoteísta" que fora entretanto reprimida e depois esquecida no Egito. Num autêntico "volte-face edipiano", Moisés acaba por ser morto pelos seus seguidores, mas, tal não só não impede como até estimula, por via da culpa e do remorso, o desenvolvimento do monoteísmo de perfil judaico.» (pp. 136-7)

Segundo o autor, Yahvé era um "deus-masculino", que tinha uma "esposa-divina". «Entre as possíveis "candidatas", a deusa Achera parece ter conquistado a "almejada posição". Esta divindade feminina é originária da zona do Levante, sendo mencionada pela primeira vez no século XVIII AC. A nossa fonte principal de informação sobre Achera são, no entanto, os textos inscritos em tabuletas de argila encontrados na cidade-estado de Ugarite, na costa mediterrânica, datados dos séculos XIII-XII AC.» (p. 140)

[Quando eu estive em Ugarite pude verificar a a importância do deus El, como principal divindade da época no Levante.]

A obra passa a analisar depois o período pré-monárquico (Livro de Os Juizes) e a designação de Saul para rei de Israel pelo último juiz, o profeta Samuel. David começa por ser rei de Judá e posteriormente também de Israel. Conquista Jerusalém aos Jebuseus e transforma-a em capital do reino. Por morte de Salomão o reino é dividido em dois: Israel ao norte, com a capital em Samaria, e Judá ao sul, com a capital em Jerusalém. 

Acontece que vários investigadores põem em causa a existência dos reis. Neste como em outros casos há sempre interpretações maximalistas, dos que tendem a aceitar como históricas quase todas as passagens da Bíblia, e minimalistas, dos que negam a historicidade da maior parte das narrativas bíblicas, considerando o Livro como exclusivamente religioso.

A dimensão e importância dos reinos de Judá e de Israel e a de algumas cidades, como Jerusalém, é igualmente contestada por alguns especialistas, que entendem tratar-se de sítios muito mais modestos do que deixam entender os textos bíblicos. 

O primeiro Templo de Jerusalém foi edificado no tempo de Salomão. O ataque de Nabucodonosor II ao reino de Judá teve lugar em 597 AC. O rei de Babilónia deportou Joaquim (Jeconias), o rei de Judá, e colocou no trono o tio deste, Matanias, que adoptou o nome de Sedecias. Uma nova revolta (houve várias) levou os babilónios a tomar medidas extremas. Nabucodonosor arrasou a cidade, destruiu o Templo e deportou a maior parte dos judeus para Babilónia (586 AC). Quando esta cidade foi tomada pelo rei persa Ciro II os judeus no Cativeiro puderam regressar à sua terra (537 AC).

«(...) a queda de Jerusalém e a perda da independência territorial parecem ter contribuído decisivamente para a emergência da Bíblia como uma espécie de nova pátria de um povo agora sem terra e sem rei. Este fenómeno acabaria por se revelar o princípio do processo pelo qual o povo de Israel se transformaria em povo judeu e o Yahvismo em Judaísmo, numa "reviravolta" histórica que fez (e continua a fazer) da memória do trauma uma fonte de renovação da identidade política e religiosa.»  (p. 288)

A reconstrução do Templo de Yahvé foi iniciada por Zorobabel e, segundo o Livro de Esdras, terá sido concluída em 515 AC, ao fim de muitas interrupções. Estas foram ditadas por aqueles que então habitavam Canaan, segundo o relato bíblico. «Evocar a oposição dos "habitantes da terra" e de Samaria é, por isso, muito provavelmente, tanto uma forma de desculpar os repatriados pelo atraso como uma estratégia para afirmar a sua identidade colectiva como único e "verdadeiro" Israel em face de um "outro" percebido como hostil.» (p. 311)

O segundo Templo foi aumentado com a passagem do tempo e especialmente enriquecido pelo rei Herodes, o Grande (37-4 AC). Devido às sucessivas revoltas dos judeus contra a tutela de Roma, este segundo Templo foi destruído em 70 DC por Tito, durante o reinado de seu pai Vespasiano. A cidade de Jerusalém foi quase arrasada e deportada a maior parte da população. Depois do cativeiro de Babilónia e da extinção do reino de Judá (século VI AC) e da anterior expulsão do reino de Israel (Samaria), por Teglate-Falasar III, rei da Assíria (século VIII AC), esta deportação constituiu verdadeiramente a primeira Diáspora judaica.

A continuação das revoltas contra os romanos levou estes à adopção de medidas progressivamente mais duras. Finalmente, em 135 DC, Bar Kochba, chefe da grande rebelião judaica foi preso e executado e a sua cabeça envida ao imperador Adriano. A cidade de Jerusalém foi completamente arrasada  e deportados quase todos os seus habitantes. O imperador ordenou a construção de uma nova cidade, que se chamou Aelia Capitolina; a Judeia passou a designar-se Palestina.

«Os nomes "judeu" ou "judio" têm, como se percebe pelos dicionários, dois significados fundamentais. Podem designar tanto um indivíduo natural ou com uma ligação histórica ao reino de Judá ou à província correspondente em períodos posteriores (Yehud, Judeia), como uma pessoa que professa a religião judaica. A dupla valência destes dois nomes e dos adjectivos homónimos tem, contudo, uma História e resulta da transformação da identidade do grupo designado.» (p. 321)

«A transição para uma significação mais nitidamente religiosa (ou "étnico-religiosa") parece ter ocorrido num segundo momento, no chamado "período helenístico" (c. 330-63 AC); altura em que aparece igualmente o nome abstrato "Ioudaismos" (na origem do vocábulo "Judaísmo" em português), concretamente no 2º Livro dos Macabeus (2 Mac 2,21).» (p. 322)

«Sobre os primeiros cem anos de domínio macedónio sobre Jerusalém e Judá dispomos de pouca informação. O historiador (judeu) Flávio Josefo, que viveu no século I DC, relata a tomada de Jerusalém por Ptolemeu I no seu livro Antiguidades Judaicas, mas a maioria dos investigadores não dá demasiado crédito àquela breve narrativa sobre a forma traiçoeira como o rei ptolemaico teria conquistado a cidade. Além deste episódio, Josefo conta-nos apenas a saga de uma família de judeus da Transjordânia - os Tobíadas - cujos membros ascenderam aos mais altos escalões da administração ptolemaica, e a história da tradução do Pentateuco (Torá) em grego. Este último acontecimento é, sem dúvida, o que de mais significativo ocorreu neste período. O relato de Josefo é baseado num outro documento, a chamada "carta de Aristeias", que terá sido composto no século II AC. Atribuída a Aristeias de Marmona, um oficial do rei Ptolemeu II (c. 284-246 AC), e dirigida a um certo Filócrates, irmão do primeiro, esta "missiva" é, na verdade, um pseudepígrafo no qual se relata a suposta inclusão da Torá na famosa biblioteca de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo. De acordo com este texto, Demétrio de Faleros, o bibliotecário, teria alertado o rei Ptolemeu II para a existência de um "código de leis" judeu que haveria todo o interesse em incluir no acervo da biblioteca, mas que, "estando escrito na língua e caracteres dos judeus, iria reclamar um exigente trabalho de tradução em grego". O rei não se deixou desanimar e deu ordens para que se avançasse com o projecto. O interlocutor privilegiado dos Ptolemeus em Judá foi, nesta ocasião, o sumo sacerdote do templo de Jerusalém, que selecionou setenta e dois judeus, fluentes tanto em hebraico como em grego, para viajar para Alexandria. Ao cabo de setenta e dois dias (!), os tradutores apresentaram o fruto do seu trabalho e o texto final acabou por ser aceite tanto pelo povo e pelas autoridades judaicas como por quem havia comissionado a tradução. Nascia assim a chamada "Septuaginta" ou "Bíblia dos Setenta", em honra do número de tradutores (e de dias!) que o trabalho exigiu. Como se percebe pelo resumo apresentado, a narrativa tem uma tonalidade claramente lendária e serve, antes de mais, para exaltar a Torá, isto é, o Pentateuco, como um texto capaz de suscitar o interesse e a admiração do mais "bibliófilo" de todos os monarcas da Antiguidade, o fundador da biblioteca de Alexandria, Ptolemeu II Filadelfo.» (pp. 323-4)

«Como sugerido anos atrás pelo investigador americano Shaye Cohen, talvez nenhum momento se preste melhor à noção de um "nascimento" do Judaísmo (ou da "Judaicidade", como prefere designar este fenómeno que extravasa o âmbito meramente religioso) que o século II AC. Para Cohen e para muitos outros estudiosos na esteira dos seus influentes trabalhos de investigação, é no contacto com a cultura grega e, em larga medida graças a um processo de sinergia cultural que a ideia de pertença ao povo de Israel, isto é, de ser "judeu" vai superar o horizonte meramente geográfico ou genealógico. À imagem do que sucedera no seio da cultura grega, na qual "tornar-se grego" passou a ser uma possibilidade oferecida a estrangeiros por meio de um processo de educação (paideia), também ser "judeu" ("Ioudaios") deixou de ser apenas uma prerrogativa hereditária para passar a ser, até certo ponto, uma escolha ou "traço adquirido".» (p. 333)

«Em todo o caso, parece-nos que a hipótese formulada por Shaye Cohen capta o essencial do processo que deu novo "rosto" ao povo cuja História constituiu o objeto em estudo neste livro. Com a transformação da pertença étnico-religiosa, o "Israel bíblico" enquanto família de tribos e o Yahvismo enquanto culto herdado dão lugar a uma nova entidade - o Judaísmo - que combina aspetos de estirpe e de nação com características de estilo e de religião. Criou-se então uma tensão que ainda hoje subsiste e que, de certa forma, naquela altura, gerou as condições que permitiram a emergência do Cristianismo enquanto "religião da conversão" pela qual se formou um Israel não já (ou exclusivamente) da "carne", mas (também) do espírito (Gl 3,1-4,7). Estas, porém, são histórias... de outra História.» (pp. 334-5)

«"Afinal a Bíblia tinha mesmo razão?". No final deste percurso pela História do Israel Antigo, é justo concluir que a resposta a esta pergunta é tudo menos evidente. Tanto quanto se interroga a Bíblia sobre os acontecimentos ou circunstâncias históricas concretas como quando se coloca a questão mais genérica da relação entre Bíblia e História é inevitável reconhecer-se que responder simplesmente "sim" ou "não" empobrece a nossa compreensão não só do perfil e do horizonte da literatura bíblica, mas também da tarefa da reconstrução histórica. Nesta brevíssima conclusão, gostaria de explorar este tema, oferecendo uma síntese dos resultados obtidos e propondo uma reflexão sobre o valor da Bíblia como fonte sobre e do passado remoto.» (p. 337)

«A questão das origens de Yahvé, o Deus bíblico (capítulo IV), e de Israel (capítulo V) colocou-nos um outro desafio, a saber, como utilizar fontes bíblicas que desenham um "ideal teológico" sem, contudo, apagar completamente a memória das indeclináveis "sinuosidades" da História. No caso de Yahvé e do monoteísmo bíblico, são indícios em textos como Juízes 5, Deuterenómio  32 ou o Salmo 82 que nos permitem reconhecer, com a ajuda dos achados arqueológicos, que mais que um contestado "legado mosaico", o culto exclusivo de Yahvé e a proclamação da unicidade divina resultaram de um longo processo histórico que não culminou senão depois do exílio. No caso do surgimento de Israel na terra de Canaã, é o contraste entre os livros de Josué e dos Juízes que levou exegetas e historiadores a imaginar uma "chegada" menos violenta e, posteriormente, auxiliados pelos resultados da investigação arqueológica, reconceber a identidade do Israel primitivo em termos que compaginam exogeneidade e endogeneidade.» (p. 338)

«Neste sentido, e regressando ao que se sugeriu na Introdução, a Bíblia nunca poderia ter a "razão" que Werner Keller e outros autores na sua esteira queriam que ela tivesse. Se nos aproximamos do texto bíblico com "lentes positivistas" e movidos pela vontade de transformar a História no personagem principal do relato, o inevitável resultado é ou uma reconstrução pseudo-científica que ignora a natureza literária e o contexto concreto no qual a Bíblia foi escrita, ou um ceticismo desesperado que faz dos autores sagrados "inimigos" da (pretensa) objetividade histórica).» (p. 339)

Não sendo razoável alongar este texto com mais pormenores, as considerações que tecemos e as passagens do livro que transcrevemos parecem suficientes para despertar, nos mais interessados, a leitura da obra.


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

O VISCONDE DE VILLA-MOURA

Bento de Oliveira Cardoso e Castro Guedes de Carvalho Lobo (1877-1935), foi o primeiro e único Visconde de Villa-Moura, título concedido por D. Carlos I. Deputado, novelista, ensaísta, cronista, devem-se-lhe numerosas obras, entre as quais A Vida Mental Portuguesa - Psychologia e Arte (1909), Nova Sapho - tragedia extranha: romance de pathologia sensual (1912), Fialho d'Almeida (1916) ou As Cinzas de Camillo (1917). Correspondeu-se com Fernando Pessoa, pertenceu ao movimento Renascença Portuguesa, foi cronista da revista "A Águia" e um grande admirador de Camilo Castelo Branco, sobre o qual publicou vários livros.

O Visconde de Villa-Moura por António Carneiro

Numa das suas primeiras obras, A Vida Mental Portuguesa - Psychologia e Arte, expõe o seu pensamento artístico e literário. Em Nova Sapho, aborda claramente o lesbianismo, a homossexualidade masculina e a necrofilia, o que provocou um escândalo na época. Fialho d'Almeida é um ensaio sobre o autor de Os gatos. Em As Cinzas de Camillo, dedicado a Nuno Plácido Castelo Branco, evoca a sempre recorrente questão da trasladação para o Panteão dos restos mortais do escritor.

O Visconde de Villa-Moura é hoje uma figura praticamente esquecida, ainda que seja mencionado duas vezes na História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes. 

Escritor decadentista e saudosista, teve alguma notoriedade no seu tempo. As obras que conheço são aquelas cuja imagem reproduzo. Procurei durante muitos anos um exemplar de Nova Sapho, que nunca encontrei e que, por isso, não tendo lido não posso comentar.

Na sua introdução a Sodoma Divinizada, de Raul Leal, o organizador da edição, Aníbal Fernandes, refere-se a Nova Sapho, cuja publicação foi simultaneamente um êxito e um escândalo.

O Visconde de Villa-Moura, rico proprietário, não se casou e não teve descendência, sendo o título considerado extinto.


sábado, 3 de fevereiro de 2024

O MISTÉRO DA ESTRADA DE SINTRA

O Mistério da Estrada de Sintra, que é considerado o primeiro romance policial português, foi publicado sob a forma de cartas anónimas, e à maneira de folhetim, no "Diário de Notícias", em 1870. Na última carta, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão assumem-se como autores e esclarecem tratar-se de uma brincadeira, para sossego dos leitores que haviam pensado relatarem as cartas a existência de um verdadeiro crime. A obra foi posteriormente editada em livro em 1884, tendo tido sucessivas reedições.

A Estrada de Sintra só aparece no início da obra, onde se cruzam diversas histórias, entre as quais o longo intermezzo de uma vista à ilha de Malta, que ocupa quase metade do livro, e que me suscita a curiosidade de saber porque foi escolhida aquela ilha, já então ocupada pelos britânicos, para introduzir um ponto de ruptura na história. Porque não, por exemplo, a Sicília? Eu sei que Eça fora cônsul de Portugal em Bristol e Newcastle, daí talvez o interesse em introduzir um oficial inglês no urdidura, tanto mais que o dito estivera nas Índias, já então também britânicas.

Lera o livro há quarenta anos, reli-o agora. E surgiu-me a vontade de saber qual a participação no mesmo que é devida a Eça e a Ramalho. Mas a preguiça, e a saúde, não me incentivam a fazer pesquisas. Suponho que tenha havido grande colaboração a nível do estabelecimento do enredo. E a escrita? Algumas páginas são incontestavelmente do punho de Eça.

Porque possuo uma vasta bibliografia passiva de Eça de Queiroz, logo que a disposição me seja favorável procurarei indagar.

Mas desiludam-se os amantes de Sintra, já que o local só acidentalmente figura nas primeiras páginas.


quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

TAKING SIDES

A propósito do "colaboracionismo" do actor Gustaf Gründgens, abordado em post anterior, revi hoje o filme Taking Sides (2001), de István Szabó, o mesmo realizador de Mephisto, a partir da peça homónima de Ronald Harwood.

O tema é o interrogatório do Doutor Wilhelm Furtwängler, famoso maestro, director da Orquestra Filarmónica de Berlim, por um imbecil major norte-americano, com os pés em cima da secretária e a mastigar pastilha elástica, episódio ocorrido no fim da Segunda Guerra Mundial, durante os chamados processos de desnazificação, como se fosse possível desnazificar alguém, uma ideia pueril e idiota. Os alemães que eram nazis, nazis permaneceram depois da Guerra, os que não eram, também não passaram a ser.

O Doutor Furtwängler foi acusado de colaborar com o regime nazi por não se ter exilado quando Hitler subiu ao Poder, por ter continuado a dirigir a Orquestra (um dos símbolos da Alemanha) durante os anos da guerra, por ter apertado a mão de Goebbels, por ter dirigido um concerto na véspera de um aniversário do Führer, por não ter recusado a sua nomeação para cargos honoríficos do Reich. Ele foi considerado pelos Aliados uma mais-valia do regime nazi mas seria finalmente absolvido, até porque dispunha de um capital simbólico extraordinário, já que era um dos mais notáveis maestros do mundo. E teria de algum modo o apoio dos britânicos e dos soviéticos, melhores conhecedores da música do que os inquiridores americanos.

Realmente, Furtwängler nunca pertenceu ao Partido Nazi, nem teria simpatias pelo nacional-socialismo, mas tentou acomodar-se ao regime para continuar a fazer o que melhor do que ninguém sabia: a grande música. Nunca foi anti-semita e até protegeu muitos judeus da Orquestra e não só, como foi oportunamente atestado. O filme (e a peça) trata da incapacidade do major estado-unidense para compreender a situação delicada do maestro, os equilíbrios indispensáveis, a vontade de permanecer na Alemanha e produzir música, e talvez, também, uma sedução pela posição máxima que tinha atingido no país e cuja aura irradiava para o mundo.

Não cabe aqui descrever o processo de Furtwängler, que pode consultar-se na sua biografia, mas tão só referir o desastroso inquérito de que o maestro foi objecto.


terça-feira, 16 de janeiro de 2024

DE MEFISTO A FAUSTO

Não deixa de ser curioso que o escritor alemão Klaus Mann (1906-1949) tenha escrito Mephisto (1936) e que seu pai, o escritor alemão Thomas Mann (1875-1955), Prémio Nobel da Literatura em 1929, tenha escrito Doktor Faustus (1947). Duas variações sobre o eterno tema do homem (Fausto) que vendeu a alma ao Diabo (Mefistófeles), um dos mitos fundadores da Civilização Ocidental.

Nestes dois romances trata-se da adaptação moderna da lenda germânica medieval que não da sua reconstituição histórica. Foi o dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593) quem abordou pela primeira vez numa peça de teatro, Doctor Faustus (c. 1588), a história famosa, que teve depois inúmeras versões até aos nossos dias, não só na literatura mas também na música e no cinema, com especial destaque para Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), autor do poema dramático em duas partes Faust (1808,1832).

O Doktor Faustus de Thomas Mann conta-nos a história de um grande compositor alemão (personagem ficcionada), Adrian Leverkühn, cuja ambição o teria levado a um pacto diabólico, e cuja carreira foi  parcialmente moldada sobre a vida de Friedrich Nietzsche. Oportunamente lhe faremos referência detalhada.

É o Mephisto de Klaus Mann que agora nos ocupa. Este romance é também um ajuste de contas. O livro aborda a vida do notável actor Hendrik Höfgen, que frequentou os comunistas no início da carreira e que para obter os favores do regime hitleriano passou a conviver com o nacional-socialismo. Ora Höfgen é uma figura fictícia que dissimula o verdadeiro retratado, Gustaf Gründgens (1899-1963), que foi um dos maiores actores alemães do século XX e um excepcional intérprete da personagem de Mefistófeles.

Klaus Mann, revolucionário e anti-nazi (culpou muitas vezes o pai por não se ter distanciado inicialmente e frontalmente do Terceiro Reich) detestava Gründgens pelo seu oportunismo e cobardia e também por este ter estado casado, embora por pouco tempo, com sua irmã Erika Mann, a quem Klaus dedicava uma verdadeira paixão. Erika e Klaus eram conhecidos pelos Gémeos Mann, ainda que dois anos de idade os separassem. Nas digressões que efectuaram pelo mundo ficaram assim conhecidos. Klaus sentiu que Gustaf lhe roubava a irmã, da qual não conseguia separar-se, o que aumentou a sua aversão pelo actor, com quem, todavia, chegou a ter uma relação sexual. Acresce dizer que este trio, Klaus, Erika e Gustaf era, talvez significativamente, um trio homossexual, uma orientação que não era estranha à família Mann. O grande Thomas Mann, respeitável chefe de família, pai de seis filhos, lutou toda a vida com o fantasma da homossexualidade, a que cedeu por várias vezes, e que exprimiu literariamente em A Morte em Veneza. E um outro filho, Golo Mann (1909-1994), foi também homossexual, ainda que não publicamente como o seu irmão Klaus. Igualmente muito curioso o facto de os dois grandes nomes associados à lenda de Fausto serem também homossexuais: Marlowe, sem dúvida, e Goethe, disfarçadamente, mas cuja orientação é confirmada pelo seu biógrafo Karl Hugo Pruy. 

A semelhança entre a personagem Hendrik Höfgen e o actor Gustaf Gründgens é tão evidente que, após a morte deste, o seu filho adoptivo Peter Gorski processou a editora na Alemanha e obteve a proibição de publicação do livro em 1968, decisão posteriormente anulada em 1971. O livro foi adaptado livremente ao cinema em 1981 pelo realizador húngaro István Szabó, com Klaus Maria Brandauer no protagonista

Regressemos a Mephisto. É naturalmente um roman à clef, mas não completamente. Compõe-se o livro de um prólogo e dez capítulos. O Prólogo descreve uma sumptuosa recepção na Ópera de Berlim (1936) em honra do 43º aniversário do obeso presidente do Conselho do Reich cujo nome nunca é mencionado mas que é claramente o marechal Göring, que não foi, contudo, presidente do Conselho de Ministros, que na Alemanha tem a designação de Chanceler, lugar que era ocupado por Adolf Hitler, que era também chefe do Estado, com o título de Führer. Göring foi ministro da Aviação e ministro-presidente da Prússia. Na recepção está também presente o claudicante chefe da Propaganda cujo nome é igualmente omitido mas que imediatamente identificamos com o ministro da Propaganda Joseph Goebbels. O Prólogo mostra também a conversão da alta sociedade alemã ao regime nazi. Os dignitários são recebidos pelo administrador dos teatros nacionais, Höfgen, no esplendor das suas funções .

O capítulo I é dedicado à actividade de Höfgen no Künstlertheater de Hamburgo e às características pessoais do actor; o capítulo II aborda a estranha relação sexual de Höfgen, de carácter masoquista, com uma bailarina mulata, Juliette Martens, a Vénus Negra, que lhe dá lições de dança; o capítulo III aborda a estreia no Teatro de Hamburgo da peça Knorke, de Théofile Marder, com a actriz Nicoletta von Niebuhr, que se faz acompanhar da sua inseparável amiga Barbara, filha do conselheiro privado Bruckner; o capítulo IV é dedicado ao casamento de Höfgen com Barbara Bruckner e à sua estranha "lua-de-mel"; o capítulo V trata da instalação do casal em Hamburgo, numa parte da casa de Mme. Mönkeberg, tendo Nicoletta, a amiga de Barbara, preferido residir num hotel. Entretanto, Nicoletta resolve aceder ao pedido de Marder para se casar com ele e despede-se do teatro sem aviso prévio. Höfgen retoma a sua estranha ligação com Juliette (que o autor classifica de masoquismo negróide) e Barbara, frequentando o bar do Teatro, conhece e tem conversas com o colega do marido, o jovem actor Hans Miklas, um rapaz que se sente discriminado e é um entusiasta do partido nazi. Höfgen, que detesta o rapaz tem com ele uma altercação e consegue que ele seja despedido do Teatro; no capítulo VI Höfgen recebe um convite do Professor (o grande encenador e director da maior parte dos teatros da Alemanha) para representar em Viena, sendo-lhe atribuído um pequeno papel, mas o resultado é desastroso. Apesar disso, e dado tratar-se do genro do conselheiro privado Bruckner, o Professor convida-o para representar em Berlim, onde começa a obter os primeiros triunfos. A sua prestação em La faute, de Richard Loser, é um êxito. Höfgen é agora convidado das melhores  famílias de Berlim e inicia a sua carreira no cinema. Sentindo a falta de Juliette, Höfgen convida-a a instalar-se em Berlim. De acordo com as suas convicções iniciais, e recebendo agora consideráveis honorários, Höfgen, por intermédio do seu antigo colega do teatro de Hamburgo, Otto Ulrichs, envia donativos às organizações comunistas. Na temporada 1932-1933, Höfgen interpretará, no Staatstheater de Berlim, o grande papel da sua vida, Mefisto, na grande produção de Fausto, comemorativa do centenário da morte de Goethe. [Possuo a gravação em seis LP's da peça, numa encenação de Gustaf Gründgens, no Düsseldorfer Schauspielhauses, com Paul Hartmann em Fausto (1ª Parte), Will Quadflieg em Fausto (2ª Parte) e Gustaf Gründgens em Mefistófeles]; no capítulo VII, Höfgen, encontrando-se em filmagens em Madrid, toma conhecimento de que Hitler foi nomeado Chanceler do Reich. Tendo proclamado sempre a necessidade de um teatro revolucionário, sendo amigo dos comunistas e opositor do partido nazi, Höfgen fica profundamente preocupado e decide viajar até Paris, onde sabe do incêndio no Reichstag. Hesita em regressar à Alemanha, mas uma jovem actriz do Teatro de Hamburgo informa-o de que Lotte Lindenthal (na vida real Emmy Sonnemann, amante e mais tarde mulher de Göring) o deseja como parceiro numa peça que vai estrear-se em Berlim. É a oportunidade de Höfgen resgatar o seu passado. O espectáculo é um êxito. O Staatstheater decide entretanto apresentar Fausto, com um actor nacional-socialista previsto para o papel de Mefistófeles, a grande interpretação de Höfgen. Este não se conforma que alguém o substitua e intercede junto de Lotte para que ela interceda junto de Göring no sentido de que o papel lhe seja confiado. O marechal faz essa recomendação ao director do Teatro, apesar dos teatros estarem sob a alçada de Goebbels. Höfgen é finalmente escolhido e o espectáculo, a cuja estreia assistem Göring e Lotte, é um triunfo para o intérprete de Mefistófeles que é recebido por Göring no seu camarote durante o intervalo. Este felicita Höfgen pelo seu desempenho e aperta-lhe a mão, o que o autor considera a selagem de um pacto com o diabo, embora registe que o actor não deixou de ficar angustiado; o capítulo VIII refere-se à impressão causada na população pelo caloroso acolhimento que Göring fizera a Höfgen, que era suposto ter caído em desgraça pelas suas anteriores opiniões políticas. Nos dias seguintes, é apresentado ao ministro da Propaganda, que o detesta mas que o acolhe calorosamente, para não o deixar nas mãos do seu rival Göring. Por outro lado, Höfgen continua, em digressão pelo país, com a peça em que contracena com Lotte, obtendo um extraordinário sucesso. Para fazer uma boa acção, Höfgen consegue obter de Göring o perdão do seu antigo camarada Otto Ulrichs, e mesmo convencê-lo a aceitar um pequeno emprego no Staatstheater, já que o mesmo, grande militante comunista, permanece sem emprego. Por outro lado, Höfgen consegue a detenção e o envio para Paris de Juliette, a Vénus Negra, que o descobrira em Berlim e que passara a persegui-lo. Tratava-se de uma amizade comprometedora, além do mais era negra, e a sua partida tranquilizou o actor. Quanto ao jovem Hans Miklas, agora contratado no Staatstheater, que fora nazi desde a primeira hora mas que agora se mostrava desiludido com o Partido, do qual se demitira, foi eliminado com um tiro; no capítulo IX, Barbara parte para Paris e pede o divórcio. Também o conselheiro privado Bruckner se instala em França. Perto dele, vive com Nicoletta o dramaturgo Théophile Marder. Também o Professor abandonou a Alemanha e encena por toda a Europa. Cada vez os expatriados são em maior número, e Dora Martin regista triunfos em Londres e New York. Nicoletta acaba por deixar Marder e regressa a Berlim, para ingressar finalmente no Teatro Nacional, cuja administração acaba por ser confiada a Höfgen; o capítulo X descreve a vida sumptuosa de Höfgen, agora casado com Nicoletta, na sua elegante villa de Grunewald. É pormenorizadamente descrita a frequência da residência, incluindo o Obeso Marechal. Ulrichs acaba por ser preso, Höfgen intercede por ele junto do Marechal, cuja resposta negativa é furiosa. Para consternação de Höfgen, Ulrichs, torturado, morre. A estreia de Höfgen em Hamlet, com Nicoletta em Ofélia, é um triunfo. Göring asiste e aplaude, o que significa uma reconciliação com om actor depois da tempestuosa cena da intercessão a respeito de Ulrichs. Höfgen continua a procurar fazer algumas boas acções junto de inimigos dos nazis que lhe possam valer de protecção no caso do regime soçobrar. E continua a interrogar-se, de vez em quando, sobre o seu próprio carácter, a inconstância das suas convicções, o seu oportunismo ao aliar-se de facto a um sistema opressivo e sanguinário.

Logo no início do livro Klaus Mann não prescinde de referir um pormenor curioso. O actor Hendrik Höfgen chamava-se na realidade Henrik mas resolvera mudar o nome quando entrara no teatro, ficando furioso quando o tratavam por Henrik. Também, Gustaf Gründgens não se chamava Gustaf mas Gustav, ocorrendo a mudança do  nome quando da sua entrada na vida teatral. Klaus Mann sempre atento apos pormenores de uma carreira.


Não se pode dizer que o livro de Klaus Mann seja um extraordinário romance, muito longe do nível das obras de seu pai, cuja sombra, aliás, sempre lhe pesou. Mas não deixa de ser uma obra perturbante, denunciadora da ausência de escrúpulos de um regime que entre algumas coisas boas estabeleceu um sistema totalitário, sanguinário e desordenado que avançou sobre pilhas de cadáveres. O que provocou o apoio da maioria dos alemães a este regime, até bem perto do seu fim? A pergunta permanece sem a devida resposta, depois da publicação dos milhares de obras que se seguiram à queda do III Reich! Mephisto situa-se a meio caminho entre o retrato fiel de Gründgens e uma obra original sobre um artista que sacrifica os seus (pretensos) ideais pela comodidade de uma situação vantajosa, mesmo que esta implique uma comprometedora aliança. É por isso que alguns aspectos da vida de Höfgen são decalcados em Gründgens mas outros não. Assim, Klaus Mann nunca alude à homossexualidade da personagem, sendo sabido, publicamente, a orientação sexual do famoso intérprete de Mefistófeles. Talvez porque Klaus Mann fosse também homossexual, talvez por respeito a uma condição que, ao contrário de Klaus, Gründgens nunca alardeou. O que parece preocupar especialmente o autor é a caracterização psicológica da personagem. E também a descrição da sociedade alemã do tempo, em plena ascensão do regime nazi (o livro é de 1936), mas antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Já são feitas algumas alusões ao perigo judeu, mas ainda se estava longe das perseguições sistemáticas, civis e depois físicas, que só começaram a ocorrer, progressivamente, depois de 1935, com a publicação das Leis de Nurenberg.

Tratando-se de um roman à clef, muitas das personagens figuram no livro com nomes que não os reais, ainda que outras sejam mesmo totalmente ficcionadas. No caso das primeiras, não sendo eu contemporâneo da época, só consegui decifrar algumas delas. Podemos admitir que Barbara, Nicoletta e Bruckner sejam, na verdade, Erika Mann, Pamela Wedekind e Thomas Mann, por exemplo. E o Professor, talvez Max Reinhardt. E Dora Martin, Marlene Dietrich. O livro deveria ter no fim, como acontece em casos idênticos, uma identificação das personagens na vida real.

Klaus Mann sobreviveu 13 anos à publicação do seu livro e foi contemporâneo da II Guerra Mundial. Mas o livro de 1936 previu em larga medida os anos posteriores e dá-nos um retrato do que seriam os 9 anos que ainda duraria o Reich.

Klaus Mann suicidou-se em Cannes, em 21 de Maio de 1949.


segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

O QUE CORREU MAL?

 


Li agora a tradução portuguesa de What Went Wrong? - The Clash Between Islam and Modernity in the Middle East (2002), que comprara aquando da publicação, do académico britânico de origem judaica Bernard Lewis (1916-2018), professor da Universidade de Princetown.

A edição portuguesa intitula-se O Médio Oriente e o Ocidente - O que correu mal?, foi publicada em 2003, e, ao contrário daquilo a que já nos vamos habituando, apresenta uma tradução quase sempre precisa (conferi várias vezes com o original), incluindo os nomes em árabe, em que o tradutor (Bruno Cardoso Reis) mantém a transliteração inglesa (que é a correcta), em vez de adoptar a transliteração francesa (que não respeita o alfabeto árabe, embora seja usual entre nós) o que mostra que este tem conhecimentos da língua árabe, chegando mesmo a incluir em notas de rodapé algumas explicações sobre as palavras.

A produção de Bernard Lewis, que se dedicou a estudar o Mundo Árabe, o Islão e as suas relações com o Ocidente, é vasta, e tendencialmente objectiva, mais nuns livros do que noutros, evidenciando que o autor, apesar de inglês, judeu e professor americano, não compartilha dos preconceitos anti-muçulmanos de muitos dos seus colegas. É certo que manteve uma polémica com o famoso académico palestiniano-americano Edward Saïd (1935-2003), professor na Universidade de Columbia, especialmente por causa das teses enunciadas por este no seu livro Orientalism (1978), mas a abordagem a que procedeu em What Went Wrong? é geralmente adequada. 

O livro aborda a civilização islâmica nos mundos árabe, turco e persa, o seu apogeu e o seu declínio. Durante séculos, a civilização islâmica foi proeminente em relação ao Ocidente, caído que fora o Império Romano, mas a partir dos finais da Idade Média europeia e o advento do Renascimento verificou-se uma decadência progressiva do Mundo Islâmico, não só no aspecto militar mas especialmente no universo cultural, devido em grande parte a preconceitos de ordem religiosa que impediam o acesso a conhecimentos dos "infiéis". O Islão, que chegara a ser um farol do conhecimento em muitos matérias e que divulgara a cultura grega [lembro-me eu da Bayt al-Hikma, de Baghdad]  e que produzira obras notáveis de filosofia e de história [Ibn Khaldun] e se distinguiu na astronomia, geometria, medicina, etc., entrou num lento processo de declínio onde só tentou equiparar-se ao Ocidente em termos militares, e mesmo assim com reduzido êxito.

O autor analisa em particular o Império Otomano, até porque foi este que exerceu maior preponderância, durante séculos, no Mundo Islâmico, já que absorvera a quase totalidade do Mundo Árabe, sendo o Mundo Persa era uma realidade relativamente à parte. Os turcos estiveram por duas vezes às portas de Viena, e se tivessem ganho as batalhas de então poderíamos ser hoje todos muçulmanos, ou não, porque no Islão as conversões não eram absolutamente obrigatórias, podendo os povos, com o estatuto de dhimmi, manter a sua religião. Recorde-se que, de forma geral, os muçulmanos foram mais tolerantes com as outras religiões (não digo com os ateus, isso era uma linha vermelha) do que os cristãos, que muitos judeus expulsos da Europa, maxime de Espanha e de Portugal, encontraram abrigo no Império Otomano, e que os muçulmanos nunca entenderam as Guerras de Religião na Europa. Mesmo muitos cristãos cismáticos acharam refúgio no mundo muçulmano e o Egipto, conquistado pelos árabes no século VII, possui ainda hoje uma população cristã (copta) que deve ser cerca de 15% da população total do país.

A Revolução dos Jovens Turcos, que pôs fim ao Império Otomano e acabou por conduzir à proclamação da República Turca sob a liderança de Kemal Atatürk, levou à introdução de profundas reformas no país, desde a adopção do alfabeto latino à instauração da laicidade. Os muçulmanos do Médio Oriente têm culpado sucessivamente o Ocidente pela situação de relativa inferioridade nos campos político, social, cultural, militar, etc., em que se encontram hoje em face desse mesmo Ocidente. E interrogam-se sobre o que lhes terá corrido mal. Essa é a perspectiva de Bernard Lewis. É claro que se trata de uma apreciação discutível, já que BL considera, naturalmente, o Ocidente no topo da modernidade. Mas somos obrigados a admitir, para sermos honestos, que os médio-orientais (se não todos, muitos deles) podem preferir a situação em que actualmente vivem do que uma outra copiando os modelos ocidentais. Uma hipótese que nunca seria compreendida por Lewis, para quem a vanguarda da civilização reside no Mundo Ocidental.