quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR GUSTAVE FLAUBERT

Como referi em publicação anterior sobre Maxime Du Camp, o escritor Gustave Flaubert (1821-1880) visitou com ele o Egipto em 1849/1850. Desse percurso nos deu conta em Voyage en Égypte, notas tomadas no decurso da viagem. Essas notas destinavam-se à redacção de um livro sobre a visita, mas Flaubert nunca lhes deu forma definitiva e a edição do livro não se verificou.

Depois da sua morte, a sua sobrinha e única herdeira, Caroline Franklin-Grout, decidiu publicar esses cadernos (1910), fazendo desaparecer as passagens julgadas inconvenientes, como escreve Richard Lebeau na introdução à edição que agora comentamos, que tem desenhos de Loustal e fotografias de Michel Le Louarn e que inclui os principais trechos.

Tendo-se perdido o manuscrito original após a morte de Caroline em 1930, aconteceu que o mesmo (cento e oitenta e sete páginas) foi providencialmente encontrado algumas décadas mais tarde. Assim, em 1991, a editora Grasset publicou pela primeira vez o texto integral, ao qual nos referiremos oportunamente. A sua leitura é, segundo os editores, recomendada aos maiores de 18 anos. Maxime Du Camp nunca mencionou na sua obra pormenores de carácter íntimo mas Flaubert anotou as suas aventuras eróticas, porventura com a intenção de mantê-las secretas caso se tivesse decidido a editar a obra. Uma sorte o manuscrito não ter sido destruído, pois este é para os flaubertianos um texto essencial para o conhecimento do homem e da obra.

A edição que agora se comenta (2001) contém, todavia, a parte essencial da viagem (excluindo os detalhes particulares). Flaubert conta-nos as suas impressões, em estilo de apontamentos, já que se tratava de notas e não de uma versão destinada ao público. Não é o caso de Du Camp cuja descrição da mesma viagem é já o resultado de um trabalho com vista a ser publicado e por isso muito mais elaborado que o texto de Flaubert.  E embora em alguns aspectos as preocupações do que importa registar sejam comuns, nota-se, em outros aspectos, singular diferença entre o que ambos consignaram.  Há, todavia, muitos episódios que são referidos pelos dois, ainda que nem sempre interpretados da mesma forma. Nem um nem o outro escrevem habitualmente de forma correcta os nomes dos locais e das personagens (nomeadamente as transliterações do árabe, em que usam as designações francesas que eram comuns naquela época), havendo, contudo, mais erros históricos em Flaubert do que em Du Camp, que se munira, antes da viagem, de um número considerável dos livros sobre o Egipto existentes à época.

Algumas notas:

- Em Licópolis (Assyut) Flaubert escreve, em 1 de Março, que viu o primeiro crocodilo na areia à beira do rio. Ora nesta região não é suposto existirem crocodilos, que apenas se encontram ao sul de Assuão. (p. 44)

- Uma confissão de felicidade de Flaubert: «Quand nous sommes arrivés devant Thèbes, nos matelots jouaient du tarabouch, le bierg soufflait dans sa flûte, Khalil dansaient avec des crotales; ils ont cessé pour aborder. C'est alors que, jouissant de ces choses, au moment où je regardais trois plis de vagues qui se courbaient derrière nous sous le vent, j'ai senti monter du fond de moi un sentiment de bonheur solennel qui allait à la rencontre de ce spectacle, et j'ai remercié Dieu dans mon coeur de m'avoir fait apte à jouir de cette manière; je me sentais fortuné par la pensée, quoiqu'il me semblât pourtant ne penser à rien, c'était une volupté intime de tout mon être.» (p. 46)

- Em 24 de Março, Domingo de Ramos: «Parti à six heures du matin en canot, pour la cataracte, avec raïs Haçan et trois autres Nubiens de la première cataracte. J'ai avec moi un petit raïs de quatorze ans environ, Mohamed; il est de couleur jaune, une boucle d'oreille d'argent à l'oreille gauche. Il ramait avec une viguer pleine de grâce, criait, chantai en passant les courants, menait tout le monde; ses bras était d'un joli style, avec ses biceps naissants. Il a ôté sa manche gauche; de cette façon il était drapé sur tout le côté droit, avait le côté gauche et une partie du ventre à découvert. Taille mince. Plis du ventre qui remuaient et descendaient, quand il se baissait sur son aviron. Sa voix était vibrante en chantant "El naby, el naby". C'est là un produit de l'eau, du soleil des tropiques, et de la vie libre; il était plein de politesses enfantines: il m'a donné des dattes et relevait le bout de ma couverture qui trempait dans l'eau.» (p. 70)

- No dia 8 de Abril, Flaubert está em Calabschi (Kalabsha) onde visita o grande templo construído no reinado de Augusto e dedicado a Mandulis, deusa núbia com cabeça de falcão, a Isis e a Osíris. Com a construção da barragem de Assuão seria inevitavelmente submerso pelas águas. Para evitar a perda, foi cortado em 13 000 blocos, entre 1962 e 1963, que foram desmontados, transportados e recolocados em 1970 em sítio não muito distante da localização original. (p. 78)

- Em 22 de Abril, Flaubert visita o grande templo de Edfu e regista: «Le temple d'Edfou sert de latrines publiques à tout le village.» (p. 92) Acontecia que até ao fim do século XIX muitos templos egípcios eram habitados. 

Ao contrário de Du Camp, que nunca cita Flaubert no texto, este menciona muitas vezes Maxime Du Camp, ainda que possamos pensar que, no percurso por terra, não estivessem sempre juntos. Mas na viagem no Nilo certamente que não se separaram.

 * * *

Num pequeno livro, Le Nil, são incluídas algumas cartas que Flaubert enviou do Egipto a sua mãe e aos seus amigos Emmanuel Vasse e Louis Bouilhet. Este último, escritor e seu companheiro de escola desde a infância, é também seu confidente. Na sua vasta correspondência, Flaubert dá conta das suas aventuras sexuais, que só poderia narrar aos seus amigos íntimos. A viagem ao Egipto, e ao Oriente em geral, tinha por objectivo não só o contacto com culturas diferentes mas também a possibilidade de usufruir de experiências eróticas menos fáceis na Europa e sem o atractivo étnico que fez dos orientais parceiros sexuais ambicionados pelos escritores do século XIX e, também, pelos turistas do século XX. E não foi um mero acaso a parceria Flaubert/Du Camp, já que ambos tinham gostos semelhantes.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

O EGIPTO VISTO POR MAXIME DU CAMP


Consegui adquirir, finalmente, um exemplar usado de Un Voyage en Égypte vers 1850 - Le Nil, de Maxime du Camp (1822-1894), que há muito tempo procurava. Trata-se de uma edição de 1987, publicada sob os auspícios do Institut de France. O livro original é de 1854, teve cinco edições no século passado, ou melhor, no século XIX, já que nos encontramos agora no século XXI (para mim o século passado é ainda o século XIX, coisas da idade), foi previamente publicado parcialmente em 1853 na "Revue de Paris" e encontrava-se esgotado até à edição que hoje comento.

Depois da expedição de Bonaparte ao Egipto (1798) instalou-se na Europa o gosto pelo "Orientalismo" e muitos escritores europeus, nomeadamente franceses, rumaram a Leste no século XIX, em especial para o Egipto mas também para a Palestina, a Síria, a Turquia e mesmo a Pérsia, e também para Marrocos e Tunísia, viagens que prosseguiram no século XX.

Acompanhado pelo seu amigo Gustave Flaubert (1821-1880), Maxime Du Camp embarcou para o Egipto, em Marselha, em 4 de Novembro de 1849, no navio "Nil", chegando a Alexandria em 15 de Novembro, tendo ambos ficado instalados no Hôtel d'Orient. Flaubert tinha então 28 anos e Du Camp 27 anos. 

A viagem no Egipto e na Núbia durou até 17 de Julho de 1850, altura em que, regressados a Alexandria, ambos viajaram para Beirute. Passearam depois pelo Líbano, a Palestina, a Síria, Rhodes, a Anatólia, a Grécia e Marrocos, mas o livro termina com a sua saída do Egipto. Sobre a Palestina e a Síria (e também o Egipto e a Núbia) Du Camp publicara um resumo em 1852: Égypte, Nubie, Palestine, Syrie (reeditado pela Bibliothèque National de France). Um dos motivos de especial interesse destas publicações é o facto inovador do escritor se ter feito acompanhar por uma máquina fotográfica com a qual registou imagens dos locais percorrido, sendo que os livros incluem também reproduções de aguarelas alusivas ao texto.

Esta obra de Maxime Du Camp é dedicada a Théophile Gautier, também ele um apaixonado pelo Egipto, autor de Le roman de la momie (1858) e de outras obras sobre o Oriente. O livro tem um carácter enciclopédico: dedica-se à fauna e à flora, à arquitectura, ao clima, ao habitat, à alimentação, à economia, aos ritos de convivialidade, aos costumes, à música, à dança, aos grupos sociais, à história, às lendas, à acção dos homens.O seu objectivo é descrever, tanto quanto possível, tudo aquilo que vê. Mas nota-se uma evidente ausência, a do povo. Romance verdaeiramente sem personagens, faz do leitor, representado por Gautier,  o herói central de uma aventura da ubiquidade. Como escreve Daniel Oster na Introdução (Um curioso beduíno): «Il remplace la connivence par l'information, le moi par le tableau, le mouvement par l'obstacle et l'itinéraire par la question. Livre de synthèse plus que de syncrétisme, il parvient, pour la première et peut-être la dernière fois, à concilier sans drame toutes les figures du narrateur: archéologue érudit, poète spleenétique, Européen fouilleur de rêves, voyageur attentif et flâneur, photographe-artiste, citoyen avisé mais sceptique, journaliste soucieux d'objectivité, touriste en état d'anamnèse, pèlerin du mystère, ethnologue sur la réserve mais familier, mâle surveillant ses fantasmes, aventurier sans aventures, mais encore assez naïf pour croire - et nous faire croire - au regard qu'il porte sur un spectacle dont il peut être encore l'ordonnateur, mais dont le auteurs, désormais, lui échappent.» (p. 59)

Entre os visitantes do Egipto no século XIX que registaram as suas viagens e investigações devemos assinalar Vivant Denon (1747-1825), François-René de Chateaubriand (1768-1848), Giovanni Battista Belzoni (1778-1823), Émile Prisse d'Avennes (1807-1879), Gérard de Nerval (1808-1855), James Henry Breasted, (1865-1935). O próprio Flaubert consignou as suas impressões da viajem ao Egipto em Voyage en Égypte e em cartas à sua mãe e ao seu amigo de infância, o escritor Louis Bouilhet, editadas num livro Le Nil. Rimbaud gravou o seu nome numa parede do Templo de Luqsor, em 1887. Sem falar na Description de l'Égypte, promovida por Bonaparte.

Do itinerário de Maxime du Camp constam especialmente os seguintes locais: Alexandria, Abuqir, Rosetta, Cairo, Gizeh, Mit-Rahineh, Saqqarah, Heliópolis, Beni Suef, Fayum, Syut, Luqsor, Assuão, Ilha Elefantina, Abu Simbel, Philae, Edfu, Karnak, Medinet Habu, Gurnah, Vale dos Reis, Kosseir, Kéneh. 

Os nomes árabes de localidades, de monumentos, de pessoas são escritos por Maxime Du Camp segundo a sua percepção, sem atender à ortografia árabe. Aliás, e ao contrário dos ingleses, os franceses ainda hoje não atendem (voluntariamente?) as regras da transliteração. É habitual nas suas obras ignorarem a diferença entre o ق  e o ك, que é quase sempre grafado como "k", quando o primeiro é "q" e o segundo é "k", com pronúncias diferentes. Escreve-se Qasr e não Kasr. Por vezes torna-se mesmo difícil saber qual o nome exacto a que Du Camp se refere, atendendo às designações correctas que hoje são utilizadas. O escritor escreve "kebla" para significar "qibla", a direcção no sentido de Meca onde é instalado o "mihrab" das mesquitas.

Também é muito curioso perscrutar o olhar de Du Camp sobre o que vê no Egipto. As suas observações estão nitidamente distantes do que nós, viajantes dos fins do século XX e dos princípios do século XXI, realmente vemos, sem prejuízo da diferença no tempo e na mentalidade e de um nível de conhecimento muito superior respeitante àquela terra. 

A propósito de ter assistido (escondido) às orações na Mesquita de Hassan, no Cairo [curiosamente, eu também lá assisti uma vez, embora não escondido: entrei com os fiéis, fora das horas dos turistas, comportei-me devidamente e passei por muçulmano], Du Camp refere as quatro escolas jurídicas do islão sunita: hanafismo, malekismo, chafeísmo e hanbaleísmo. E descreve as abluções. 

Falando de hospitais e escolas de medicina, Du Camp refere que os alunos eram outrora homens feitos, de vinte a vinte e cinco anos, mas agora são crianças de doze a quinze a quem é muito difícil ensinar. E acrescenta: «Pourquoi les choisit-on si jeunes, me diras-tu? A cela je ne puis te répondre; il y a là-dessous des mystères d'iniquités que je ne saurais te dévoiler. Demande-le aux mères qui n'osent plus laisser sortir seuls leurs fils lorsqu'ils ont un visage agréable; demandez-le surtout à Abbas-Pacha qui, pendant mon séjour au Kaire, fit faire à Boulaq une razzia d'enfants.» (p. 90)

O escritor faz numerosas referências aos jardins de Ezbekyyeh como local de cafés e diversões. Os jardins tinham sido um sítio pantanoso, depois devidamente arranjado, e onde ficava a antiga Ópera do Cairo, mais tarde destruída por um incêndio. E também um hotel. [Do meu tempo, os jardins estavam vedados por um gradeamento, nunca lá consegui entrar, e em redor havia um grande número de vendedores de livros usados que eram objecto de grande procura. No local da antiga Ópera está hoje um edifício de vários andares que serve de garagem.]

Longe de mim pretender relatar o muito extenso livro de Maxime Du Camp, mas anotarei algumas observações. Por exemplo, ele refere que penetrou nas três pirâmides de Gizeh, então generosamente abertas. Nos nossos dias, as pirâmides só estão acessíveis a quem paga o seu bilhetes para entrar. Também não é hoje possível escalar as pirâmides. Mas Du Camp conseguiu subir ao cimo da pirâmide de Quéops (aliás Khufu) com a ajuda de alguns beduínos que o içaram até ao topo. [Os blocos de pedra, aos quais estive encostado na base, devem ter o volume de um metro cúbico. Não me arriscaria a tal proeza.]

Maxime du Camp não era um arabista, e a egiptologia dava os primeiros passos. Todavia, deve reconhecer-se-lhe o interesse não só de registar as suas impressões mas de tentar embrenhar-se na história e nas religiões (a "faraónica", a muçulmana, a judaica e a cristã, que era a sua) que deixaram a sua marca no Egipto. Embora relate muita coisa que hoje nos faz sorrir. 

A terminar o Capítulo I (Alexandria, Cairo e arredores), Du Camp não deixa de aludir à execução dos mamelucos na Cidadela pelos albaneses de Mehemet Ali, a fim de exterminar o seu poder. Encerrados nas muralhas cujas portas tinham sido fechadas, isto depois de um banquete, foram todos massacrados à excepção de um que, tendo ficado para trás, conseguiu saltar com o seu cavalo por cima das muralhas. Parece que foi preso mais tarde, segundo o escritor, mas disso já não me recordo da versão oficial.

No início do Capítulo II escreve: «Je pourrais encore te parler longuement du Kaire, mon cher Théophile, je pourrais te promener dans le Khan-Khalil, à travers les ruines de la mosquée de Hakem, sur les sables du Mokatam, sous les arbres de Rodah, parmi les tombeaux où dorment les kalifes, dans les écoles et les manufactures, dans les maisons et les jardins, mais tu connais tous ces détails dont Gérard de Nerval t'a fait le récit. Et puis j'ai hâte de te conduire sur le Nil, de te faire parcourir ses rives splendides et de t'arrêter devant les temples de l'Égypte et de la Nubie.» (p. 113)

A embarcação que Du Camp alugara para subir o Nilo tinha uma tripulação de doze homens, incluindo o patrão "un beau jeune homme de vint-cinq ans que l'on appelait Ibrahim;" e que "avait je ne sais quel air grand seigneur que rendait plus remarquable encore son visage très-brun animé de deux yeux doux et contemplatifs," Ibrahim esteve cinco meses ao serviço de Du Camp.

Prosseguindo viagem, Du Camp refere a aldeia de Cheikh-Abadeh, relativamente próxima da actual cidade de Minya. O sítio teve outros nomes, nomeadamente Antinópolis, pois foi aqui que se afogou, em circunstâncias nunca verdadeiramente esclarecidas, o jovem Antínoos, amante do imperador Adriano, que mandou erguer no local uma cidade, com um templo dedicado ao seu favorito, elevado à categoria de deus. Maxime Du Camp visitou as ruínas, notando que ainda uns vinte anos atrás se encontravam de pé três templos romanos, um arco de triunfo e vários edifícios da época clássica. Sabemos todos que, durante o governo de Mehemet Ali, o khediva (na altura ainda não se usava este título), desejando pedra para as construções que estava a erguer por todo o Egipto na ânsia de modernizar o país, ordenou a destruição de grande parte dos monumentos da época faraónica ou cedeu-os a países ocidentais, como os os obeliscos de Londres e Paris, provenientes de Luqsor e Alexandria. O panorama que se deparou a Du Camp foi, pois, de profunda desolação. Também seu filho, Ibrahim Pasha foi responsável por grandes depredações de construções antigas. Relata Du Camp que, segundo as tradições árabes, os crocodilos nunca descem abaixo desta aldeia. O Cheikh Abadeh vivia sozinho, consagrado à oração, tendo como único acompanhante um burro que ia buscar água ao Nilo com dois odres pendurados na boca. Um dia, tendo muito calor, o burro resolveu banhar-se nas águas e foi morto por um crocodilo. Estranhando a sua demora, o anacoreta arrastou-se até à margem e concluiu da sorte do animal. Regressado a casa, o Cheikh ergueu as mãos ao céu, invocou o Profeta e amaldiçoou os crocodilos, que desde então não mais se atreveram a descer abaixo da altura da aldeia. Conta também o escritor que o jovem Ibrahim, que conduzia o barco, lhe contou que as gaivotas que voam em torno do túmulo, próximo, de Cheikh-Saïd são consideradas sagradas, já que apanham os restos de pão dos viajantes e os colocam num banco junto à sepultura, para alimentação dos peregrinos.

Chegam Du Camp e Flaubert (que nunca é expressamente mencionado) finalmente a Syout (actualmente Assyut), a que Du Camp chama capital do Alto Egipto. Ibrahim vai a terra adquirir provisões para reabastecer o navio, os ilustres viajantes e a tripulação, isto em 26 de Fevereiro. No período greco-romano chamava-se Licópolis.

Em 1 de Março, passando em frente de Djebel-Farchout, Du Camp escreve que avistou crocodilos no Nilo pela primeira vez. E conta como eles se juntavam nas margens ou nas pequenas ilhotas do rio, prestes a lançarem-se sobre algum incauto. Acrescenta que, contudo, os acidentes são raros. Os jovens marinheiros da tripulação estavam constantemente dentro de água, quase despidos, durante a viagem, e não houve, durante os cinco meses que navegaram no Nilo, qualquer acidente. O próprio Du Camp confessa que tomava banho todos os dias, embora considerasse que o seu corpo magro não seria presa apetecível para os crocodilos acostumados a refeições de frugalidade menos manifesta.

Passam em Luqsor e param em Esneh, a antiga Latópolis, onde desembarcam para Ibrahim e o drogman Joseph Brichetti procederem ao aprovisionamento de pão para o percurso em direcção à Núbia. Enquanto descansa no barco, Du Camp é interpelado por uma mulher envolta em véus azuis que o convida, em nome da sua patroa, para assistir em casa dela a uma sessão de danças e canções executadas por almées (dançarinas e músicas de grande qualidade que se produziam em tempos nos haréns). A patroa, Kutchuk-Hanem, era uma árabe síria que fora em tempos amante de Abbas-Pasha e estava exilada naquela cidade. O escritor percorreu a cidade, encontrou o templo dedicado ao deus Chnoupis (Khnoum), mandado erigir por Tuthmés III e então servindo de armazém de algodão, visitou outras ruínas e dirigiu-se, sol-posto, acompanhado de Joseph e de dois marinheiros, a casa de Kutchuk, onde foi calorosamente recebido. Houve, danças, cânticos, músicas e muita bebida. Mas Du Camp queria mais. «Comme tu peux aisément te le figurer, cher Théophile, j'étais content, mais non pas satisfait. Venir sur la terre classique des almées sans voir danser l'abeille me semblait presque une impiété. Je la demandait à Koutchouk-Hanem qui finit par céder à mes prières et surtout au cadeau d'une tabatière à musique que j'avais eu soin d'apporter comme en-cas.» (p. 132) Postos os dois marinheiros fora da porta, colocado um lenço em volta da cabeça do jovem músico, e fazendo prometer a Joseph de não olhar em demasia, as mulheres dispuseram-se em círculo e começaram uma dança rápida. Não houve nem abelha, nem rapariga picada. Tudo simples e francamente idiota. Kutchuk retirou sucessivamente as vestes, fez duas ou três cabriolas, e envergou as suas calças largas onde ficou escondida até ao pescoço, como num saco, durante alguns minutos. As dançarinas estavam cansadas e Du Camp regressou à embarcação. 

Três dias depois os viajantes chegaram à Primeira Catarata, que passam com a ajuda de cinquenta núbios, vigorosos e nus, que amarram a embarcação à margem (com os bens mais valiosos colocados em terra) para a fazer deslizar para lá das quedas de água. Segundo Du Camp, a raça já não é a mesma, os núbios são quase negros, vigorosos e ousados, as núbias não cobrem o rosto e, para lá da catarata caminham despidas enquanto não estão casadas. Du Camp conta a Gautier que a travessia é espectáculo incomparável a todos os que ambos já presenciaram. Do rio, avistam Assuão e a ilha Elefantina, e depois a ilha de Philae. Longe vinham os tempos em que o templo de Isis, na ilha, seria deslocado para outra zona, por causa da barragem que Nasser mandou construir no Nilo. Na aldeia de El-Mahatta, Du Camp reencontra o seu pessoal que torna a colocar a bagagem a bordo. A partir do dia 12 têm um piloto a bordo que os deve conduzir a Wadi-Halfa e trazer novamente a Assuão: «il se nomme Reïs-Haçan; c'est un grand Nubien assez beau, silencieux. et toujours assis à l'avant, regardant vers le Nil.» (p. 135) O escritor não se exime a salientar a beleza dos homens núbios, negros e sólidos, aludindo a um que, não fora a cor, pelos seus cabelos cortados à Caracala poderia ser um procônsul romano.

Continuando a viagem para sul, cruzam-se com barcas carregadas de escravos e de artefactos para venda, supostamente provenientes da região do Darfur. Trazem homens, mulheres e crianças, algumas muito belas. «Toutes ces femmes et ces jeunes filles sont des enfants volés; dans leur pays, un homme de vingt ans, solide, bien fait, vigoreux se paye de six à dix francs; rendu au Kaire il vaut environ trois mille piastres (sept cent cinquante francs).» (p. 139)

No dia 22, às oito da noite, chegam a Wadi-Halfa, 46 dias depois da partida do Cairo. Com um forte khamsin. A luz da lua sobre a areia cinzenta faz um efeito de neve. Um grupo de homens reúne-se na margem para assistir à acostagem. O jovem Ibrahim precipita-se para Du Camp, agarra-lhe as mãos e grita: «Que Dieu te ramène dans ton pays aussi heureusement qu'il t'a conduit avec moi à la seconde cataracte.» (p. 140)

Maxime Du Camp medita: «Pourquoi est-ce que je suis si triste d'être déjà parvenu au terme de mon voyage d'Égypte et de Nubie? Dans quelques jours, on tournera ma barque vers le Kaire; j'ai bien des pays à traverser avant de rentrer en France, je le sais, bien des mois à marcher, bien des nuits à passer sous le ciel; mais c'est égal, je sens que c'est déjà le commencement du retour!» (p. 140)

O escritor inicia o Capítulo III com a chegada a Wadi-Halfa, aldeia imediatamente antes da segunda catarata. A barca com os marinheiros regressa ao Cairo e Du Camp começa a viagem de regresso. Em primeiro lugar Ibsambul (Abu Simbel) onde visita o pequeno e o grande templo mandados erigir por Ramsès II, o primeiro dedicado à deusa Hathor (Venus) e o segundo ao deus Phrè (o Sol), um templo colossal que Du Camp visita e descreve. E visita também o pequeno templo. Como o interior de ambos se encontra mergulhado na obscuridade, Du Camp toma as suas notas à luz das velas transportadas por dois marinheiros que o acompanham. As considerações que tece, numa altura em que a egiptologia dava os primeiros passos, merecem o nosso apreço. Nos últimos 150 anos muita coisa se ficou a saber sobre o Egipto. Nem imaginaria alguma vez Maxime Du Camp que o Grande Templo de Ramsés seria um dia desmontado e recolocado noutro lugar, próximo mas mais elevado, para não ficar submerso pela construção da barragem de Assuão, uma operação também ela faraónica e que só pôde ser realizada com tecnologia e financiamento internacionais.

Afinal, ao contrário do escrito, Du Camp inicia o regresso na barca, supostamente a mesma, já que é dirigida pelo citado Ibrahim. Visita templos na margem oriental e aporta à ilha de Philae. Mas faz algumas etapas por terra. Os templos da ilha são magnificamente descritos, tendo em conta o nível de conhecimentos da época. O escritor recheia a narrativa com as suas experiências pessoais e considerações históricas e religiosas. E fala dos djinns!

O Capítulo IV inicia-se com a chegada de Du Camp a Assuão. Uma elegante núbia propõe-se ir dançar à noite na embarcação, e o escritor acede. A sua dança faz lembrar Herodíade e os marinheiros das barcas paradas em Assuão, bem como os ociosos e os escravos (sic) contemplam o espectáculo. Segue-se Kom Ombo, cujo templo ptolemaico é dedicado especialmente ao deus crocodilo Sobek. A forma como Du Camp escreve os nomes causa, por vezes, algumas dificuldades. O escritor reproduz naturalmente em francês nomes faraónicos, gregos, árabes, em muitos casos misturados. Muitos templos ainda existentes por ocasião da expedição de Bonaparte já não se enxergam nesta viagem de Maxime Du Camp. Foram destruídos para aproveitamento da pedra por Mehmet Ali ou Abbas-Pasha. A viagem prossegue por Esneh até Tebas, onde visitam Karnak, Luqsor, Medinet-Abu, Gurnah, os colossos, etc. Há guias especiais para a margem direita do Nilo e guias particulares para a margem esquerda. Com esta sábia divisão terminou a guerra aberta que existia entre as duas margens. Para a margem direita Du Camp escolheu um antigo escavador de Champollion chamado temsah (crocodilo) e para a esquerda um rapaz da zona, chamdo Abdul-Hamid, muito doce e realmente inteligente. 

Em Luqsor, visita o templo e verifica o sítio de um dos obeliscos, oferecido à França por Mehemet Ali e já então erigido na Praça da Concórdia. Descreve o local mas não menciona a incrição RIMBAUD, pois o poeta só passaria por ali, e deixaria o seu nome inscrito na pedra, algus anos mais tarde. E menciona que uma parte da colunata está rodeada por uma parede que serve de armazém de trigo. Segue-se a visita ao Templo de Karnak, com ampla descrição impossível de reproduzir e de interesse historicamente relativo, já que muitas anotações de Du Camp não se harmonizam com as actuais investigações egiptológicas. Registo que encontrando-se ainda uma noite na sala hipóstila do templo, o guia o adverte: «Kaouadja, il est temps de partir, voici l'heure où les fantômes blancs vont sortir de terre pour aller s'accroupir sur leurs trésors.» (p. 190)

[Devo dizer que visitei uma vez, de dia, o Templo de Karnak e várias vezes, de dia e de noite, o Templo de Luqsor. A visão nocturna do Templo de Luqsor é fascinante.}

Durante o tempo que permaneceu em Karnak, Du Camp pernoitou numa das salas laterais do templo, partilhando o espaço com grandes formigas negras e observado por pardais.

Terminada a visita a Karnak, Du Camp atravessou o Nilo com o guia Abdul-Hamid e dirigiu-se a Medinet-Habu (Templo de Ramsés III). E viu depois os Colossos de Memnon (duas enormes estátuas de Amenófis III). Uma das estátuas canta ao nascer do sol ou em certas ocasiões, confiou o guia a Du Camp, que não a ouviu cantar. [Quando eu visitei os Colossos também o motorista do automóvel que me conduzia me contou a história. Mas a estátua, que teria saudado várias personagens, inclusive o imperador Adriano, não me ligou a menor atenção.]

Depois, os viajantes dirigem-se ao Ramesseum (o templo funerário de Ramsés II), donde contemplam do alto dos terraços [onde eu não pude subir] a paisagem em volta. Em muitos dos hipogeus circundantes dos grandes sacerdotes das dinastias gloriosas dormem árabes meio-nus com as suas ovelhas e as suas vacas. Du Camp visita a casa de um velho grego, vivendo na montanha há mais de vinte anos, sem mulher nem filhos, que compra objectos aos camponeses (por eles encontrados em túmulos isolados) e depois revende aos estrangeiros. No pátio da casa encontram-se trinta ou quarenta múmias já sem faixas. O grego queixa-se da proibição do governo egípcio de traficar antiguidades, pelo que limitou o seu negócio a anéis, colares, escaravelhos, papiros. E lamenta-se do futuro das múmias, não das do pátio de entrada, mas das do andar superior, ainda enfaixadas e repousando nos sarcófagos. 

Próximo, encontra-se a aldeia de Gurnah, onde viviam os construtores de templos e que ainda hoje é habitada. Para terminar a viagem, Du Camp segue para o vale de Biban-el-Moulouk (as portas dos reis), que hoje designamos por Vale dos Reis, O escritor conta-nos que, à época, estão descobertos dezasseis túmulos, tendo sido Belzoni a descobrir o primeiro. Para não fatigar Gautier com as suas explorações, Du Camp descreve-lhe apenas a visita ao túmulo de Seti I.

Iniciando o caminho do regresso, Du Camp despede-se de Tebas. De novo a bordo da sua embarcação, o escritor chega a Kénéh (Qena) onde passa pelo bairro das cortesãs e visita o agente consular francês com a finalidade de obter dromedários e guias para se deslocar a Kôçéir (Al-Qusair ou El-Qoseir), na margem do Mar Vermelho. Partem às quatro e meia da manhã de 18 de Maio. A caravana compõe-se de dois cameleiros, dois dromedários (um para Joseph e outro para Du Camp) e dois camelos com carga. [Depreendo que Flaubert ficou em Qena]. A viagem pelo deserto é difícil e lenta. Em Kôçéir encontram uma multidão de peregrinos em caminho de Meca, pois é o ponto habitual de passagem do Mar Vermelho do Egipto para a Península Arábica. Há turcos vindos do Cairo e de Alexandria, turcomanos, árabes do Egipto e magrebinos de Tunis e da Argélia, estes orgulhosos de serem protegidos franceses, segundo o autor. 

E uma previsão: «Je vis aussi à Kôçéir beaucoup de Wahabis qui se rendaient au Kaire pour affaires commerciales. Tu sais, cher Théophile, que les Wahabis sont à l'islamisme ce que les protestants sont au catholicisme; c'est à eux certainement que reviendra l'empire religieux de l'Orient. C'est aujourd'hui une secte nombreuse, bataillarde et vaillante que, malgré ses fanfaronnades, Méhmét-Ali n'a jamais pu vaincre. Bientôt elle dominera sur l'Arabie tout entière et peut-être se dégorgera sur la Perse par le golfe Persique et sur l'Égypte par la mer Rouge et les déserts du Sinaï. [...] La rigidité première de leurs moeurs s'adoucira, car ils rejettent encore l'usage du café et du tabac; leur doctrine s'appuie uniquement sur le Koran et repousse les traditions et les interprétations dont les docteurs l'ont entouré. Leur foi, comme toutes les fois débutantes, est dure, intolérante, implacable; mais à mesure que les peuples se rangeront vers elle, elle se modifiera et deviendra peut-être le germe fécondant qui doit régénérer ces vieilles races épuisées.» (p. 223)

Regressado a Kénéh, e saudado pelos marinheiros que tinham ficado na embarcação, Du Camp parte para Denderah, onde visita o templo. E continua a sua tarefa fotográfica, com alguns expedientes: «Toutes les fois que j'allais visiter des monuments, je faisais apporter avec moi mes appareils de photographie et j'emmenais un de mes matelots nommé Hadji-Ismaël. C'était un fort beau Nubien; je l'envoyais grimper sur les ruines que je voulais reproduire, et j'obtenais ainsi une échelle de proportion toujours exacte. La grande dificulté avait été de le faire tenir parfaitement imobile pendant que j'opérais et j'y étais arrivé à l'aide d'une supercherie assez baroque qui te fera comprendre, cher Théophile, la naïveté crédule de ces pauvres Arabes. Je lui avais dit que le tuyau en cuivre de mon objectif saillant hors de la chambre noire était un canon qui éclaterait en mitrailles s'il avait le malheur de remuer pendant que je le dirigeais de mon côté; Hadji-Ismaël, persuadé ne bougeait pas plus qu'un terme; tu as pu t'en convaincre en feuilttant mes épreuves.» (pp. 227-8)

A viagem continuou por Abydos, Girgeh, Saouhadji (a actual Sohag) com a mesquita de El-Arif e o túmulo de Murad-Bey, que ali morreu de peste, Syout (Asyut), Beni-Haçan (Beni-Hassan), Minieh (Minya), a ilha de Rodah (Rawdah) até ao Cairo, onde o livro termina.

Escreve Maxime Du Camp a concluir: «C'est ici, cher Théophile, que j'arrêterai mes lettres, car huit jours après mon retour au Kaire j'étais à Alexandrie, et bientôt à Beyrouth, où j'allais commencer mon voyage de terre ferme. Crois-moi, lorsque l'ennui de nos froids pays alonguira ton coeur, lorsque tu voudras entrer en communication directe avec la nature et boire amplement à la source des choses, traverse la Mediterranée, débarque sur la vieille terre d'Égypte, remonte et descends le Nil pacifique, admire ses ruines, enivre-toi de ses paysages, écoute les chants merveilleux qu'il murmure aux oreilles de ceux qui savent le comprendre, marche hardiment dans la solitude des déserts, et tu te sentiras plus jeune, plus fort, plus fécond, plus ardent, et plus près de Dieu!» (p. 238)

Importa referir que o livro apresenta em páginas finais uma fotografia da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém (19 de Agosto de 1850) e outra do templo de Júpiter, em Baalbek (15 de Setembro de 1850), locais que constaram do itinerário de regresso de Du Camp mas não foram abrangidos por este livro, exclusivamente dedicado ao Egipto.

Curiosamente, Maxime Du Camp nunca se refere no livro ao seu companheiro de viagem Gustave Flaubert. Pelo contrário, Gustave Flaubert, no livro que escreveu sobre esta viagem ao Egipto, e que comentarei mais tarde, fala várias vezes de Du Camp.

Também Du Camp omite as suas aventuras sexuais, ao contrário de Flaubert, que terá registado alguns sucessos, que foram expurgados do livro pela sobrinha deste, quando publicou o manuscrito. Mas sabemos, por outras fontes, que os dois amigos frequentaram hammams, onde puderam usufruir da companhia de jovens egípcios, assim como casas de prostituição (mais abertas ou mais disfarçadas) de rapazes e de raparigas. Além de contactos ocasionais, como, por exemplo, os marinheiros da viagem pelo Nilo. Em carta ao seu amigo o escritor Louis Bouilhet, de 20 de Agosto de 1850, Flaubert escreve: «Maxime a sodomisé un bardache dans la grotte de Jérémie.» Esta gruta encontra-se em Jerusalém e o facto terá ocorrido no regresso do Egipto, quando visitavam a Palestina.

Indico a seguir algumas obras dos viajantes franceses no Egipto no século XIX:

sábado, 31 de agosto de 2024

AS CORTES DE COIMBRA DE 1385



A propósito do recente aniversário da batalha de Aljubarrota, reli Aljubarrota: 600 Anos, um livro que reúne as 22 conferências proferidas na Sociedade Histórica da Independência de Portugal aquando do 600º aniversário da famosa batalha.

Trata-se de intervenções notáveis sobre a Batalha e sobre as Cortes de Coimbra, que estiveram a cargo de notáveis historiadores civis e militares como, entre outros, Joaquim Veríssimo Serrão, José Hermano Saraiva, Jorge Borges de Macedo, Carlos Gomes Bessa, Henrique Barrilaro Ruas, António Almeida Brandão, Alberto Vieira de Ascensão, Pedro Soares Martinez, Altino de Magalhães, Alberto Franco Nogueira, Torquato de Sousa Soares, José Carlos Amado, Salvador Dias Arnaut, Francisco da Gama Caeiro ou Nuno Espinosa Gomes da Silva.

As Cortes de Coimbra de 1385, cuja principal, e quase única, fonte de informação é a Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, têm feito correr abundante tinta, tanto mais que o cronista, escrevendo mais de 50 anos depois do acontecimento, não foi testemunha presencial e terá "reconstituído" o ocorrido a partir de um documento realmente existente, de afirmações alheias que não dos protagonistas, da sua imaginação e até de alguma conveniência política circunstancial. E, por isso, a descrição da Crónica é por vezes contraditória, como é salientado por vários dos participantes no Ciclo de Conferências.

Aproveitei para reler também As Cortes de 1385 (1951), de Marcello Caetano, estudo incluído em A Crise Nacional de 1383-1385 (1985). Nessa obra, o Prof. Marcello Caetano dá-nos uma visão de conjunto, sucinta mas suficientemente abrangente desse acontecimento, todavia indispensável para a compreensão da forma como se resolveu a primeira crise dinástica nacional. Assim, ele é largamente citado pelos conferencistas, mesmo quando se trata de corrigir um pequeno lapso, já que Marcello Caetano escreve ter estado presente nas Cortes o bispo de Cidade Rodrigo (p. 11), quando se tratava do bispo de Coimbra (de nome Rodrigo), como notou na sua intervenção o Dr. Alberto Vieira de Ascensão.

Importa notar alguns factos:

1) As Cortes reuniram-se em Coimbra em Março e Abril de 1385;

2) Foi Nuno Álvares Pereira quem aconselhou o Mestre de Aviz a convocar os fidalgos e os homens-bons da cidade de Lisboa para que lhe prestassem homenagem. O primeiro episódio teve lugar em 2 de Outubro de 1384, no Mosteiro de São Domingos, onde o Mestre foi proclamado Regedor e Defensor do Reino. Mas como havia necessidade de obter recursos financeiros para a prossecução da guerra e definir o problema da chefia, assuntos da competência das Cortes, foram estas convocadas para Coimbra. Não é claro se a questão da chefia fazia inicialmente parte do objecto das Cortes, ou tão só o financiamento da guerra. Mas as coisas foram conduzidas pelos partidários do Mestre para que ela fosse incluída na "ordem de trabalhos";

3) Estiveram presentes, como se sabe pelo "Auto da Eleição", e segundo a tradição, representantes dos três estados. O arcebispo de Braga e a maioria dos bispos portugueses, pelo clero, 72 fidalgos, pela nobreza, e procuradores de 31 cidades e vilas, pelo povo;

4) As Cortes tiveram lugar nos Paços d'El-Rei e iniciaram-se a seguir à chegada a Coimbra do Mestre d'Aviz, que ocorreu em 3 de Março de 1385, logo, alguns dias depois;

5) Houve uma Inquirição sobre a legitimidade dos filhos de D. Inês de Castro, que decorreu de 30 de Março até 3 de Abril. O Auto de Eleição do Mestre de Aviz como rei tem a data de 6 de Abril. A Carta de Confirmação dos privilégios da cidade de Lisboa bem como os diplomas que despacham os capítulos das Cortes são datados de 10 de Abril;

6) Deve ter havido reuniões plenárias e reuniões separadas, sendo plenárias, pelo menos, a de abertura em que o Dr. João da Regras fez o discurso da proporção bem como a que deliberou a eleição de D. João I. Em reuniões separadas tratou-se do financiamento da guerra e dos agravamentos dos povos, assuntos que não estiveram condicionados pela solução dinástica.

Aquando da reunião das Cortes o país estava dividido em três partidos relativamente à sucessão de D. Fernando I. O "partido legitimista" considerava D. Beatriz, filha de D. Fernando I e de D. Leonor Teles, e mulher de D. João I, rei de Castela, como a única herdeira legítima, nos termos da Escritura de Salvaterra de Magos (2 de Abril de 1383), que assim estabelecia. O "partido legitimista-nacionalista" receava que a sucessão com D. Beatriz pusesse em causa a independência nacional, submetendo-a a Castela. Por isso, defendia que a herança cabia aos filhos de D. Pedro I e de D. Inês de Castro, D. João de Castro ou, no impedimento deste, na altura preso em Castela, seu irmão D. Diogo de Castro. O "partido nacionalista" sustentava que o único herdeiro capaz de assegurar os interesses de Portugal era D. João, Mestre de Aviz, filho de D. Pedro I e de Teresa Lourenço, apesar de bastardo e clérigo, situação que a Santa Sé resolveria.

É claro que o "partido legitimista", solidário com Castela, não esteve representado nas Cortes de Coimbra. O "partido legitimista-nacionalista" era chefiado por Vasco Martins da Cunha e por seus filhos. Aceitava a regência do Mestre de Aviz, enquanto D. João de Castro estivesse prisioneiro em Castela. A Chronica do Condestabre, obra anónima, fornece pormenores interessantes a esse respeito. O "partido nacionalista" era constituído pela "arraia-miúda" e alguns homens-bons, à frente dos quais estava D. Nuno Álvares Pereira.

A notável e hábil argumentação do Dr. João das Regras, sujeita a algumas variações na Crónica de Fernão Lopes, pode resumir-se no seguinte:

a) D. Beatriz, para além do seu casamento com o rei de Castela, era filha ilegítima de D. Fernando. Quando este casou com D. Leonor Teles ela estava casada com João Lourenço da Cunha. Por outro lado, D. Beatriz era cismática, pois Castela reconhecia não o Papa de Roma mas o de Avinhão;

b) Os filhos de D. Inês de Castro eram ilegítimos, pois D. Pedro estava casado com D. Branca de Castela à data do casamento que dizia ter celebrado com aquela [o que é falso, foi um expediente do Dr. João das Regras, pois o casamento com D. Branca nunca ocorreu. E também não há provas que D. Pedro tenha casado com D. Inês, já que tal não foi reconhecido pelo Papa (Bula Nuper per certos ambaxiatores);

c) O próprio rei D. Fernando, filho do casamento de D. Pedro com D. Constança tinha também sido um rei ilegítimo, pois D. Pedro se encontrava casado com D. Branca [o que é falso, como se escreveu acima];

d) O Mestre de Aviz era igualmente um filho ilegítimo, como se sabia.

Tudo isto para lá de problemas de parentesco que teriam exigido dispensas papais, mas que não cabe aqui detalhar.

A conclusão pretendida por João das Regras era a de que o trono se encontrava vago e seria necessário eleger um rei, visto que todos os pretendentes eram ilegítimos. A sua argumentação, e também a persuasão militar do Condestável, levou os presentes, atendendo ao estado de necessidade do Reino e atendendo a estarem preenchidos os requisitos de elegibilidade do Mestre, a promoverem D. João à "alta dignidade e estado de rei". 

O Auto da Eleição é o documento fundamental desta fase do funcionamento das Cortes de 1385 e foi nele que Fernão Lopes se baseou para redigir, na sua Crónica, o que nelas se passou. Foi escrito em português e vertido em latim para ser enviado à Santa Sé, também com o fim de impetrar a ratificação da eleição, feita sem embargo de não ter havido prévia dispensa do defeito do nascimento e da condição clerical. Após duas embaixadas enviadas a Urbano VI, uma terceira embaixada enviada a Bonifácio IX obtém a satisfação do pretendido. O Soberano Pontífice emite a Bula Quia rationi congruit et convenit, de 29 de Janeiro de 1391, em que certifica que Urbano VI absolvera D. João I da excomunhão em que pudesse ter incorrido, dispensando-o do impedimento do nascimento para o exercício da função real e dos votos de castidade que como professo da Ordem de Cister o impediam de casar e ratificando desde logo o casamento com D. Filipa de Lencastre; e a Bula Divina disponente clementia, de 27 de Janeiro de 1391, concedendo a D. João I o desligamento dos votos de pobreza, obediência e castidade absolvendo-o do perjúrio que cometeu, legitima o seu nascimento e ratifica o seu casamento sem embargo de quaisquer impedimentos existentes.

A primeira bula destina-se a certificar urbi et orbi a regularização da situação do Mestre concedida por Urbano VI; a segunda bula, acto pessoal de Bonifácio IX, destina-se a tranquilizar a consciência de D. João I. Estas formalidades eram indispensáveis já que se vivia na Europa numa respublica christiana que subordinava os príncipes ao juízo supremo do Papa e a bênção deste vencia todos os escrúpulos. 

Na sua Monarquia Lusitana, Fr. Manuel dos Santos descreve com pormenor a cerimónia da coroação e aclamação pelas ruas da cidade, então Coimbra, mas realmente não houve coroação (nunca houve em toda a I Dinastia) e a cerimónia litúrgica terá sido apenas a missa de pontifical pelo bispo de Lamego com a assistência do novo rei no sólio. 

Como se disse acima, D. João I de Castela havia prendido D. João de Castro para que ele não fosse um estorvo às pretensões de sua mulher D. Beatriz. Mas dada a situação posterior, o rei de Castela libertou-o e nomeou-o regente de Portugal em nome dos reis castelhanos, por diploma datado de Burgos, de 24 de Março de 1386, conforme documento descoberto em Madrid pelo embaixador de Portugal (1945-1953) Dr. Carneiro Pacheco, mas o acto não deve ter chegado a ter efeito.

Deve ainda dizer-se que uma das principais razões que motivou a crise de 1383 foi a completa animosidade do povo de Lisboa em relação a D. Leonor Teles (que ficara como Regente, nos termos da Escritura de Salvaterra), já manifestada aquando do seu casamento com D. Fernando mas principalmente pelas suas ligações a Castela e pela sua relação adúltera com João Fernandes Andeiro, conde de Ourém. Entre os mais ardentes defensores da eliminação de Andeiro estava Álvaro Pais, figura notável de Lisboa, que na sua intervenção o Dr. José Carlos Amado classifica como membro da classe média, recusando a designação de burguês, já que não aceita a identificação da classe média com a burguesia «porque me parece indiscutível que, num esquema minimamente objectivo de composição social, os grandes ou médios mercadores e os mesteirais mais poderosos, não esgotam em Portugal a zona sociológica, nem as correspondentes formas de mentalidade e de comportamento, de uma camada intermédia da classe popular e da classe senhorial. Há a considerar ainda , pelo menos, os homens-bons dos concelhos, os letrados, os oficiais - usando esta palavra no sentido que lhe dá D. Duarte.» Foi Álvaro Pais que instigou o Mestre a matar o conde Andeiro, garantindo-lhe o apoio do povo. E foi ele que  correu pelas ruas de Lisboa aos gritos de "Matam o Mestre" para que o povo acorresse ao Paço da Rainha, onde D. João acabava de assassinar Andeiro e que teve de se mostrar de uma janela para provar que estava vivo e evitar maiores desacatos.

Pode dizer-se que Álvaro Pais foi a alma da revolução de 1383.

Este texto não passa de um singelo resumo dos acontecimentos de 1383-1385 e não tem outra pretensão de que recordar a primeira crise dinástica da Monarquia Portuguesa.

Concluo, citando Marcello Caetano: «Estamos, pois, perante um documento do mais vivo interesse histórico-jurídico [Auto da Eleição], porventura o de maior valor para a história do nosso direito público medieval, já que é apócrifa a acta das Cortes de Lamego. Assim resulta dos princípios nele exarados relativamente à sucessão hereditária da coroa, à vacância desta e devolução ao Reino do direito de eleição do rei, à aceitação do eleito e aos poderes da Sé Apostólica no reino de Portugal.» (p. 36)

VALETE, FRATRES


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

AS CONFISSÕES DE FELIX KRULL

 

Acabei de ler As Confissões de Felix Krull, Cavalheiro de Indústria, de Thomas Mann, que há cerca de quarenta anos repousava numa estante, devido a outras prioridades.

Trata-se de uma longa reflexão sobre a condição humana, diria mesmo de uma introspecção, efectuada através de Felix Krull, o protagonista, ressalvadas todas as diferenças, e são muitas, entre este e o autor do livro.

O escritor começou o romance nos anos 1910, continuou pouco a pouco a saga da personagem mas nunca concluiu a obra que foi parcialmente publicada em revistas e finalmente editada, incompleta, em 1954, uns meses antes de Thomas Mann morrer. Admite-se que os últimos capítulos tenham sido escritos no seu exílio em Zurique nos últimos tempos da sua vida.

Thomas Mann ocupa-se da decadência de uma família (tal como fizera a propósito dos Buddenbrooks) e da vida aventurosa de Felix, o filho da família, que se socorre da sua beleza para "triunfar" na vida. Na verdade, Felix é um indivíduo sem escrúpulos que não olha a meios para atingir os fins. Ao longo da volumosa obra, Thomas Mann ocupa largas páginas a descrever a beleza de Felix (de corpo que não de alma) desde a infância até aos seus dezoito anos, idade em que se situa a maior parte da acção. Uma descrição pormenorizada que faz lembrar a forma como caracterizou o Tadzio de A Morte em Veneza. Mas neste aspecto o escritor estava perfeitamente à vontade e com conhecimento de causa. 

Depois do suicídio do pai Krull (há sempre suicídios directos ou indirecto nas obras de Mann, talvez por causa das suas duas irmãs que se suicidaram), a família muda-se de Munique (a cidade de adopção do escritor e recorrente nos seus livros - recorde-se, por exemplo, o começo de A Morte em Veneza, quando é mencionada a residência em Munique de Gustav von Aschenbach, na Prinzregentenstrasse, perto da Prinzregentenplatz, local da célebre morada de Adolf Hitler na capital bávara), a família muda-se de Munique, dizia, para Frankfurt e daqui Felix viaja para Paris, para trabalhar num hotel de luxo, onde é sucessivamente ascensorista, criado de mesa e criado de quarto e onde a sua beleza seduz sucessivamente mulheres e homens que o desejam. O livro narra as aventuras de Felix com as mulheres mas omite as eventuais aventuras com homens, quedando-se nas propostas de sexo, já que Thomas Mann se resguarda de enveredar por caminhos menos ortodoxos para um escritor galardoado com o Prémio Nobel.

Todavia, no capítulo VI escreve: «A grosseria rebaixa até ao comum e é a cortesia que cria as distâncias. Recorria a ela, portanto, quando na minha juventude me sentia alvo de certos convites masculinos indesejáveis, o que não será muito para surpreender o leitor, sem dúvida informado sobre o mundo multiforme dos sentimentos. Essas propostas eram-me feitas com mais ou menos perífrases e diplomaticamente. E não há nelas nada de espantar, dada a fisionomia atraente que eu devia à natureza, ao encanto espalhado por toda a minha pessoa, impossível de dissimular, a despeito das minhas roupas miseráveis, do lenço em volta do pescoço, do fato remendado e das minhas meias cheias de buracos. Para esses solicitantes que, como bem pode supor-se, pertenciam às classes superiores, as minhas roupas ordinárias apimentavam ainda mais o seu desejo.» (p. 123)

É em Paris que Felix consuma mais uma vigarice, transmutando-se em marquês Luís de Venosta, a pedido do próprio titular, usurpando assim consentidamente aquela identidade. Uma espécie de Ripley avant la lettre. O marquês, cliente do hotel e obrigado pela família a fazer uma viagem pelo mundo, não quer deixar Paris por causa de uma amante e propõe a Felix que o substitua. É nessa qualidade que este viaja de Paris para Lisboa, com destino a Buenos Aires, mas o romance termina em Lisboa. 

A última parte do livro decorre, pois, em Lisboa, que Thomas Mann conhecia razoavelmente e da qual descreve no livro alguns dos sítios mais importantes, ainda que, naturalmente, estabeleça alguma confusão de nomes e locais. É na viagem de Felix para Lisboa que este conhece, no comboio, o professor Kuckuck, director do Museu de História Natural de Lisboa a quem visitará depois na capital portuguesa. Nos capítulos relativos a Lisboa é referido o rei D. Carlos I, a Torre de Belém, o Jardim Botânico, Sintra, a Praça do Comércio, o Rossio, a Avenida da Liberdade, etc. 

Thomas Mann é um apaixonado pelos pormenores. Eles são indispensáveis para caracterizar pessoas e descrever locais mas a profusão de detalhes e observações laterais é tão abundante nos seus livros que por vezes nos distrai do essencial, tornando as obras imensamente extensas. E sem necessidade. Basta atentar na dimensão dos Buddenbrooks, de A Montanha Mágica, da tetralogia José e os seus Irmãos ou do Doutor Fausto. Thomas Mann viveu para a escrita (e da escrita) é certo, foi plenamente um escritor full-time. Mas não é por ser um livro breve que A Morte em Veneza, novela com escassas cem páginas, deixou de ser uma obra notável, com o conteúdo bastante para permitir a Luchino Visconti a realização do célebre filme homónimo.

Nestas Confissões..., a inclusão sucessiva de histórias marginais ao enredo da obra afecta por vezes a estrutura do romance. A descrição dos espécimes do Museu de História Natural é um exemplo disso. Os leitores não estarão circunstancialmente interessados num curso de zoologia. Ocorre também pensar que Thomas Mann tenha querido "encher" voluntariamente os seus livros para os tornar mais extensos, sacrificando, se necessário, a unidade de acção em proveito da dimensão. Mas isso, eu ignoro.

Nada disto invalida, porém, a qualidade da prosa do escritor, considerado um dos mais famosos autores alemães contemporâneos.

A exemplo de outros, também este romance de Thomas Mann foi passado ao cinema, num folhetim televisivo em cinco episódios e com a duração aproximada de cinco horas (1982), dirigido por Bernhard Sinkel. O protagonista é interpretado pelo actor John Moulder-Brown, que fora o arquiduque Otto no filme Ludwig (1973), de Luchino Visconti. O papel do professor Kuckuck é desempenhado pelo famoso Fernando Rey. Nas cenas filmadas em Portugal encontram-se os nossos actores Varela Silva (director de hotel) e Armando Cortez (porteiro). O hotel de Paris onde, segundo o romance, Felix presta serviço é transferido no filme para um hotel em Monte-Carlo.


sábado, 3 de agosto de 2024

THOMAS MANN, O MÁGICO

Li por estes dias Le Magicien, de Colm Tóibín (2022), tradução francesa do original The Magician, publicado em 2021, romance biográfico sobre o escritor alemão Thomas Mann, Prémio Nobel da Literatura em 1929. Estava por mim agendado mas só agora o comprei.

Lera o ano passado, do mesmo autor e na tradução portuguesa, O Mestre, sobre a vida de Henry James, e comentei aqui .

É curioso que o escritor irlandês Colm Tóibín (n. 1955) tenha dedicado duas vastas obras a dois nomes cimeiros da literatura contemporânea, o anglo-americano Henry James e o alemão Thomas Mann, mas opção muito compreensível. Na verdade, Tóibín é um escritor homossexual assumido (como se diz agora), vivendo com o escritor e editor marroquino naturalizado americano Hedi El-Kholti. O facto de os dois gigantes da literatura Henry James e Thomas Mann serem ambos homossexuais (embora não assumidos) certamente lhe suscitou o interesse de se debruçar sobre as suas vidas.

Se o livro sobre Henry James é uma obra elogiável, o livro sobre Thomas Mann é notável. Apesar das suas 600 páginas apetece nunca interromper a leitura.

Parece oportuno recordar alguns elementos biográficos da família Mann, isto é, as dramatis personae.

O pai de Thomas Mann era o armador e senador de Lübeck Johann Henrich Mann e a mãe a brasileira Júlia da Silva Bruhns, uma família da classe média alta muito respeitada na região. Thomas Mann teve cinco irmãos: Heinrich (1871-1950), Julia (1877-1927), Carla (1881-1910) e Viktor (1890-1949).

Thomas Mann (1875-1955), embora homossexual, manteve sempre uma postura muita discreta, apresentando-se como um respeitável chefe de família. Casou-se em 1905 com Katia (Katharina) Pringsheim (1883-1980), filha do matemático judeu Alfred Pringsheim e de sua mulher Hedwig Pringsheim, família muito rica e culta, da melhor sociedade de Munique, que se havia convertido à religião luterana.

O casal Mann teve seis filhos: Erika (1905-1969), Klaus (1906-1949), Golo (1909-1994), Monika (1910-1992), Elisabeth (1918-2002) e Michael (1919-1977). Erika era abertamente bissexual, Klaus e Golo ambos homossexuais, embora o primeiro excêntrico e o segundo introvertido.

Katia Pringheim Mann tinha vários irmãos, entre os quais um gémeo, Klaus Pringsheim (1883-1972), um rapaz lindo, que viria a ser maestro e compositor e fora aluno de Gustav Mahler, um amigo da família. Thomas Mann conheceu Katia e Klaus ao mesmo tempo, e ficou obviamente impressionado com o rapaz (que não era homossexual), tendo decidido casar com a irmã, muito parecida com ele, naturalmente como gémeos que eram. Katia e Klaus nutriam uma paixão mútua, e embora não haja registo de que tenham cometido incesto, Klaus foi a única verdadeira paixão de Katia.

Erika Mann manteve inúmeras relações com ambos os sexos, tendo decidido propor casamento ao célebre escritor homossexual inglês Christopher Isherwood (1904-1986) para obter a nacionalidade britânica, devido às perseguições nazis. Isherwood, que vivia então com o também célebre poeta homossexual inglês W. H. Auden (1907-1973), declinou a pretensão mas remeteu Erika para o seu amante, que aceitou casar com ela, por altruísmo, em 1935. Apesar da sua nítida preferência lésbica, Erika chegou a manter relações sexuais com o célebre maestro judeu alemão Bruno Walter, na altura ainda casado, quando ambos viviam nos Estados Unidos. Antes do seu casamento com Auden, Erika esteve casada, de 1926 a 1929, com o famoso actor alemão Gustav Gründgens, também ele homossexual e que se tornaria no mais importante comediante do III Reich. A ele me refiro neste post. Gründgens é considerado o mais notável intérprete de sempre do papel de Mefisto do Fausto, de Goethe. Klaus, que escreveu um romance sobre ele, nunca lhe perdoou a sua contemporização com o regime nazi, beneficiando da protecção simultânea de Göring e de Goebbels, em troca do apoio à sua carreira.

Dos cinco irmãos de Thomas Mann apenas Heinrich se distinguiu. Começando a escrever antes do irmão, acabou pobre e ofuscado pela imagem deste. Ficou conhecido nomeadamente pelo seu livro Professor Unrat, que serviu de argumento ao mundialmente conhecido filme O Anjo Azul, de Josef von Sternberg, com interpretação de Marlen Dietrich.

Das irmãs, Julia Mann, pelo casamento com o director bancário Josef Löhr tornada Julia Löhr, teve uma vida atribulada tendo-se tornada morfinómana. Por isso, e também devido às suas relações extraconjugais, enforcou-se; Carla Mann foi actriz de teatro e a fim de não sobrecarregar a família decidiu casar-se. Devido a um suposto caso envolvendo o seu noivo Arthur Gibo, suicidou-se com cianeto.

O último irmão, Viktor Mann, permaneceu na Alemanha durante o período nazi, servindo na Wehrmacht. Um ano antes de morrer escreveu um livro intitulado Retrato da Família Mann.

Dos filhos de Thomas Mann, Erika (que já referimos acima) foi actriz, artista de cabaret, e também escritora, editora, conferencista, jornalista e activista política. Finalmente, tornou-se secretária de seu pai; Klaus Mann tentou ser um grande escritor, que não foi, como o seu pai, mas deixou algumas obras interessantes, nomeadamente Mephisto, sobre o actor Gründgens, referido também acima. Interessou-se pelo teatro, tendo representado e encenado, foi activista político, mas dedicou-se especialmente aos homens, como desenvolto homossexual criado na República de Weimar, época de grandes transformações. Um dos seus amantes, Richard Hallgaten (Ricki), pintor judeu alemão convertido ao protestantismo, suicidou-se com um tiro na cabeça, na véspera de iniciar, com Erika, Klaus, Annemarie Schwazenbach e outros amigos uma longa viagem à Ásia Menor, Pérsia e Rússia. Dependente desde muito jovem de drogas, Klaus também se suicidou em Cannes com uma overdose de soníferos; Golo Mann foi escritor, historiador e filósofo e, depois do seu regresso à Alemanha após o seu exílio nos Estados Unidos durante a guerra, professor da Universidade de Stuttgart, da qual foi demitido em 1963, devido a ser homossexual. A homossexualidade era então punida na República Federal da Alemanha com pena de prisão! Os seus livros mais importantes são Guilherme II, De Weimar a Bonn e Wallenstein; Monika Mann tentou uma carreira musical e foi depois escritora. Casou com o historiador húngaro Jenö Lányi em Itália e quando ambos viajavam de Londres para o Canadá fugindo à guerra, o navio foi atingido por um submarino alemão. Jenö morreu e Monika sobreviveu mas ficou traumatizada durante muitos anos. Viveu depois em Capri com Antonio Spadaro e passou o resto da vida com a família adoptiva de seu irmão Golo; Elisabeth Mann dedicou-se à escrita e casou-se com o professor italiano Giuseppe Antonio Borgese, quase da idade do seu pai. Teve geração, tendo vivido, após enviuvar, com o psiquiatra italiano Corrado Tumiati; Michael Mann foi músico, compositor e professor. Casou com Gretchen (Gret) Moser e teve descendência. Segundo Thomas Mann, era o seu único filho normal.

Acima se declinou, em absoluto resumo, a biografia dos irmãos e filhos de Thomas Mann.

O escritor nasceu em Lübeck, como se disse. Após a morte do pai, a mãe mudou-se com os filhos para Munique, onde Thomas casou e residiu até à sua partida para a Suíça, com o advento do nazismo. Viveu depois exilado nos Estados Unidos, regressando à Suíça após o fim da guerra. Na Suíça morreu. 

O livro, para lá de nos contar, de forma excepcional, a vida de Thomas Mann é também um fresco da Alemanha. Mann nasceu  e ainda viveu muitos anos durante o Segundo Império Alemão (o II Reich); suportou as dificuldades da Primeira Guerra Mundial, permaneceu durante a República de Weimar e a efémera República Soviética da Baviera (1919), de Ernst Toller e Gustav Landauer; assistiu à emergência do nazismo, tendo-se retirado para a Suíça em 1933, ano da chegada de Adolf Hitler ao poder. Permaneceu na Suíça até 1938, data em que se exilou nos Estados Unidos. Regressou à Europa em 1952, tendo-se instalado em Kilchberg, próximo de Zurique, onde morreria em 1955. Visitara a Alemanha em 1949, discursando em Frankfurt, terra natal de Goethe (zona então pertencente à República Federal da Alemanha) e em Weimar, terra de adopção de Goethe (então na zona da República Democrática Alemã). As autoridades americanas tentaram a todo o custo evitar que Mann se deslocasse à RDA, mas o escritor, em homenagem a Goethe, não cedeu, vindo até a ser classificado de comunista, numa altura de forte perturbação anticomunista nos EUA, obsessão que ainda hoje permanece, embora mais atenuada. É claro que Thomas Mann, que apesar das vicissitudes foi toda a vida um burguês e nunca conheceu dificuldades económicas, vivendo sempre rodeado de luxo e de conforto, jamais seria um adepto do comunismo.

Ao longo das suas 600 páginas, o autor mostra-nos as transformações ocorridas na Alemanha durante quase um século, as privações da Primeira Guerra Mundial, a crise económica, social e política da República de Weimar, que esteve na base da emergência do regime nazi, a destruição do país na Segunda Guerra Mundial e o ressurgimento de uma Alemanha partida no pós-guerra. O escritor já não assistiria à reunificação.

O primeiro grande romance de Mann foi Os Buddenbrooks (1901), que descreve a desagregação e falência de um empório familiar, no caso a história da grandeza e decadência da sua própria família. Com tão evidentes semelhanças, Mann foi muito censurado pelos parentes mas o livro obteve um sucesso.

A novela A Morte em Veneza (1912) tornaria Mann famoso. Mais ainda depois do filme de Luchino Visconti. Importa que nos detenhamos um pouco sobre este livro. Tendo passado com a mulher umas férias no Hotel Lido de Veneza, o escritor apercebeu-se que numa mesa próxima se encontrava uma família polaca de que um dos membros, Tadzio, era um maravilhoso adolescente pelo qual Mann se apaixonou, ainda que nunca tivessem trocado palavra. A própria mulher de Mann se apercebeu da perturbação do marido mas como conhecia as suas verdadeiras preferência por vezes até favorecia certos encontros. Este episódio estival forneceu a Mann o argumento da novela. Mais tarde, em 1971, Visconti realizou o filme homónimo com música de Gustav Mahler. Se o livro foi célebre, o filme ressuscitou Mann e tornou Visconti celebérrimo. E, de certa forma, levou Mahler, já considerado um compositor notável, ao conhecimento de todo o mundo. Hoje, ninguém minimamente cultivado ignora o adagietto  da Quinta Sinfonia de Mahler, utilizado como leitmotiv no filme. Note-se que Mahler era amigo da família da mulher de Thomas Mann e há mesmo quem suspeite que o próprio compositor possuía inclinações homossexuais. Sobre A Morte em Veneza publiquei em 2014 um desenvolvido post .

A estada de Katia Mann num sanatório em Davos (local onde nos nossos dias se reúne o Forum Económico Mundial), onde Thomas chegou a passar uns tempos a fazer-lhe companhia, forneceu-lhe o ensejo de escrever um volumoso romance, A Montanha Mágica (1924), que aumentou ainda mais a sua reputação.

Em 1929 ser-lhe-ia atribuído o Prémio Nobel da Literatura.

De 1933 a 1943, Mann publicaria a obra em quatro volumes José e os seus Irmãos.

Em 1947, Thomas Mann, inspirando-se na figura do compositor judeu alemão Arnold Schönberg, também exilado nos Estados Unidos, publicaria o seu último livro notável, o Doutor Fausto. Sobre esta obra, escrevi em 2020 este post. A obra motivaria os protestos de Schönberg, o criador do dodecafonismo.

Em 1954, deixou inacabado o livro iniciado em 1922 As Confissões de Felix Krull Cavalheiro de Indústria, posteriormente publicado e onde Mann faz, de alguma forma, um retrato de si mesmo.

É claro que a obra de ficção de Thomas Mann é muitíssimo mais vasta, além da obra ensaística e de intervenção política, e do seu Diário, que ele próprio destruiu parcialmente por óbvias razões.

Thomas Mann foi uma pessoa de trato difícil. Não manteve regularmente relações muito próximas com os filhos, a quem não permitia que perturbassem o seu trabalho, embora por vezes lhes apresentasse alguns truques de magia que eles muito apreciavam e  em consequência do qual lhe começaram a chamar "o mágico". Pode dizer-se que viveu praticamente só para ele, para os seus escritos, para o seu prestígio, para a sua conta bancária e o seu conforto. Não terá sido o único e não deixa, por esse facto, de ser um imenso escritor. Também Richard Wagner, um gigante da música, foi especialmente interesseiro e pouco escrupuloso o que não obsta a ser considerado um dos maiores compositores de todos os tempos.

A propósito de Wagner, manifestamente anti-semita, importa recordar que Alfred Pringsheim, o sogro de Thomas Mann, era, apesar de judeu, um grande admirador de Wagner, tendo mesmo contribuído para as célebres produções de Bayreuth. E foi Winifred Wagner, a nora de Richard Wagner, confessada admiradora de Hitler, por quem professava uma verdadeira paixão [Hitler era um entusiasta de Wagner e um frequentador habitual dos festivais de ópera de Bayreuth e prestava todas as homenagens a Cosima Wagner, a viúva do compositor], embora dissesse não ser nazi (!) quem ainda obteve do Führer a permissão para o casal Pringsheim (que se recusara a abandonar a Alemanha mesmo depois da instauração do regime nazi) sair finalmente do país (quando tudo estava perdido) para a Suíça, onde viria a morrer.

Ao contrário de muitos outros escritores, Thomas Mann recusou sempre admitir publicamente a sua homossexualidade, embora a deixasse (apenas) entrever em alguns dos seus escritos. Optou por ser o chefe de uma família realmente bastante disfuncional, pai de seis filhos, esposo exemplar e mesmo politicamente acomodatício. Apesar das invectivas do irmão Heinrich e dos filhos Erika e Klaus, levou tempo a tomar uma posição pública sobre o nazismo e mais ainda a condená-lo, só o fazendo quando não corria quaisquer riscos visto já estar exilado na América. 

A sua obra Considerações de um apolítico (1918) exprime as suas considerações políticas (em sentido geral) que professava à época, embora enveredasse posteriormente por um pensamento mais liberal que o conduziria a condenar finalmente o regime hitleriano.

O livro de Colm Tóibín é uma obra magnífica. Sendo uma biografia romanceada lê-se com mais prazer do que uma biografia "oficial", como existem muitas de Thomas Mann, com especial destaque para a de Peter de Mendelssohn. Deve ler-se Le Magicien, pois só assim se poderá avaliar da vida do escritor e apreciar os inúmeros pormenores que não têm cabimento neste post, que aliás já vai longo.


domingo, 14 de julho de 2024

GORE VIDAL E A AMÉRICA

A presente conjuntura norte-americana suscitou-me o desejo de reler Washington, D.C., de Gore Vidal (1967, tradução portuguesa 1988).

É vasta a obra de Gore Vidal (1925-2012), um dos mais notáveis escritores estadunidenses da segunda metade do século passado e dos princípios deste século. Romancista, ensaísta, dramaturgo, cresceu próximo do poder político americano de que viria a ser um impiedoso crítico. Ao longo dos seus livros, salvo os que são especificamente dedicados a ela, é uma constante a referência, ainda que ténue, à homossexualidade, orientação que o autor perfilhou durante a sua vida.

Neste seu livro, Vidal descreve o ambiente político dos Estados Unidos, no período imediatamente anterior e posterior à eclosão da Segunda Guerra Mundial, através das vidas de um influente senador e de um impiedoso magnata da imprensa e dos respectivos correlativos. É denunciada a ambição, a hipocrisia, a intriga, o culto do dinheiro e a venalidade das poderosas figuras do establishment. E também o american way of life.

O autor aborda o isolacionismo norte-americano e a hesitação da sociedade entre a oposição a Hitler e a oposição a Stalin, que para os yankees simbolizava o Diabo e que era suposto aquele combater. De resto, reinou sempre (e ainda reina) um pavor nos States relativamente a tudo o que cheirasse a socialismo (e a comunismo nem se fala). Tudo com o cinismo irónico que é apanágio do escritor, ao descrever uma sociedade ferozmente individualista..

Nas entrelinhas, Gore Vidal deixa transparecer a ideia de que o presidente Franklin Roosevelt fora prevenido do iminente ataque japonês a Pearl Harbor e permitira a destruição da esquadra americana para ter o ensejo de entrar na guerra e de instalar até hoje o poderio dos Estados Unidos na Europa. Aliás, o historiador e académico francês Alain Decaux (1925-2016) afirma claramente no seu livro Nouveaux dossiers secrets de l'Histoire (1967) que Roosevelt foi avisado do ataque nipónico e ignorou a informação para que ocorresse uma grande catástrofe (a esquadra americana foi destruída e morreram mais de 2.000 marinheiros), única justificação que seria aceite para que o Congresso dos Estados Unidos declarasse guerra aos países do Eixo, conforme a premente solicitação de Churchill. 

Há determinadas decisões que pela sua magnitude carecem de causas suficientemente graves que as possam determinar. Mais recentemente, o ataque às Torres Gémeas em New York permitiu aos Estados Unidos fundamentar a invasão do Afeganistão e do Iraque. É claro que pode haver coincidências, mas, como costumava dizer um diplomata meu amigo já falecido, "não há coincidências".

Ao longo do romance são feitas numerosas críticas a Roosevelt, entre as quais a criação de campos de concentração para os soldados japoneses, e é verberada a sua insistência em candidatar-se a um quarto mandato em 1944, atendendo a que o seu frágil estado de saúde se tinha agravado perigosamente, situação prudentemente ocultada à generalidade da população. Morreria pouco tempo depois. Também o seu sucessor Harry Truman não é poupado, considerando Gore Vidal absolutamente inaceitável e inútil o bombardeamento atómico de Hisoshima e Nagasaki.

Suspeito que várias personagens são directamente inspiradas de figuras reais, do nosso tempo, até pela grafia (distorcida) de certos nomes, mas não tive oportunidade de pesquisar.

Ao contrário de outras obras de Gore Vidal, Washington, D.C. parece-me demasiado extenso para a "mensagem" que o autor pretende transmitir. O enredo adensa-se, por vezes inutilmente, sem vantagem para a caracterização das personagens. São mais de trezentas páginas em letra miúda. A concisão também é uma virtude.

sábado, 8 de junho de 2024

HELIOGÁBALO

Foi agora publicada uma peça inédita de Jean Genet (1910-1986), Héliogabale, que se supunha definitivamente perdida.

Quando esteve detido na prisão de Fresnes, desde 15 de Abril de 1942, Jean Genet compôs o poema Le Condamné à mort, prosseguiu a redacção do romance Notre-Dame-des-Fleurs e iniciou a criação de um conjunto de peças de teatro, das quais a primeira versão de Haute Surveillance [que eu apresentei em estreia pública absoluta em Portugal, no Teatro Primeiro Acto, em 1983], então intitulada Pour "La Belle", e três outras que permaneceram inéditas: Persée, Héliogabale e Journée castillane. A segunda, que se julgava perdida, foi encontrada recentemente nas colecções patrimoniais da Houghton Library (Universidade Harvard) e foi agora publicada.

Desde 1943, a peça foi objecto de contrato (nunca concretizado) com vários editores, conforme testemunho de François Sentein, Jean Cocteau e Marc Barbezat e mesmo de Jean Marais, a quem foi proposto o papel principal e que então não se mostrou entusiasmado. Em 1955, segundo Edmund White, houve ainda diligências para promover a publicação, mas posteriormente perdeu-se-lhe o rasto.

O tema da peça são as últimas horas de um condenado à morte, ou seja de um imperador romano cujo destino estava selado. Jean Genet escolheu contar livremente a conspiração de que foi objecto Varius Heliogábalo (c. 203-222), e que levou à sua destituição do poder em 11 de Março de 222.

Nascido como Sextus Varius Avitus Bassianus, foi proclamado imperador em 218, com apenas 15 anos. Tendo o imperador Caracala sido assassinado em 217 e substituído pelo prefeito do pretório Macrino, a tia materna de Caracala, Julia Moesa instigou uma revolta para que seu neto Varius se tornasse imperador, o que aconteceu devido à derrota de Macrino, em 218, na batalha de Antioquia.

Uma explicação: Julia Moesa era irmã de Julia Domna, que fora casada com o imperador Septimo Severo e mãe de Caracala. Julia Moesa casara com Julius Avitus e era mãe de Julia Soemia (mulher de Sextus Varius e mãe de Heliogábalo) e de Julia Mamaea (mulher de Gessius Marcianus e mãe de Alexandre Severo). Por  morte de seu sobrinho Caracala, Julia Moesa conseguiu impor como imperador seu sobrinho neto Varius (Heliogábalo), mas descontente com este (e receando mesmo  que ele a mandasse assassinar, já que era uma mulher poderosa) resolveu ser ela a tomar a iniciativa de se desembaraçar do neto, colocando no trono o outro neto, Alexandre Severo.

O reinado de Sextus Varius Avitus Bassianus, que ficou conhecido como Heliogábalo, já que fora sacerdote do deus solar Heliogabalus ou Aelagabalus na Síria (província donde era natural) foi uma sucessão de escândalos (mesmo para a Roma do tempo), perversidades, excentricidades e subversão religiosa, conforme é descrito pelos historiadores coevos e modernos. Basta consultar Dion Cassius ou a Historia Augusta, ou mais recentemente Edward Gibbon, embora alguns autores modernos considerem que as fontes romanas não são absolutamente fiáveis, estando inquinadas de preconceitos.

Um dos textos contemporâneos mais notáveis deve-se a Antonin Artaud, Héliogabale ou l'Anarchiste couronné (1934), um ensaio surrealista que combina a biografia e a ficção e que foi, certamente, fonte de inspiração de Jean Genet. 

O reinado deste imperador teria necessariamente de seduzir Genet como exemplo de transgressão, de luta fratricida pelo poder e de abjecção moral. A finalidade de Heliogábalo é a própria destruição do Império, que Genet evidencia claramente na peça. A cena vai diminuindo de volume ao longo dos quatro actos, sendo um espaço reduzido no último, onde o imperador é assassinado.

Heliogábalo (Musei Capitolini, Roma)

A vida sexual de Heliogábalo foi uma sucessão desordenada de casamentos com mulheres e com homens, tendo-se o próprio imperador prostituído muitas vezes sob roupagens femininas. Tinha especial predilecção pelos cocheiros das bigas, tendo um deles, Aeginius, um escravo louro, sido utilizado por Genet para figurar na peça. Segundo o dramaturgo, Heliogábalo esconde-se nas latrinas do palácio junto aos esgotos (Acto IV) juntamente com Aeginius que o assassinará, embora por trás da cortina. As legiões proclamarão então (222) seu primo de 14 anos, Alexandre Severo, como imperador. Alexandre Severo será igualmente assassinado em 235, pondo fim à dinastia dos Severo, mas isso é já outra história.

Esta peça de Jean Genet, povoada pelos seus fantasmas, insere-se no melhor teatro do autor, evidenciando as preocupações constantes dos seus escritos. O livro é acompanhado de um excelente ensaio de François Rouget, assinalando os aspectos dramáticos mais importantes, incluindo a questão da "santidade" e a pretensão de Heliogábalo de se identificar de alguma forma aos cristãos.

terça-feira, 4 de junho de 2024

O PALÁCIO DE DOLMABAHÇE

Numa das minhas idas a Istanbul, visitei o Palácio de Dolmabahçe, mandado construir pelo Sultão Abdulmejid I (1823, 1839-1861) na zona de Beşiktaş e cuja edificação teve lugar de 1842 a 1853.

A primeira capital do Império Otomano foi Bursa, seguindo-se-lhe Edirne e finalmente Istanbul.

Depois da conquista da cidade bizantina em 1453, a sede do poder imperial foi o Palácio Velho (Saray-i Atik-i Âmire), de 1453 a 1478. Entre 1478 e 1856 a residência imperial e sede do poder foi o Palácio de Topkapi (Saray i Cedid-i Âmire). Seguidamente foram usados os palácios de Çırağan (hoje Hotel Kempinski), de Beşiktaş (Beşiktaş Saray-i Hümâyünu) e de Beylerbeyi. Em 1856, o sultão instalou-se em Dolmabahçe. Em 1877, Abdulhamid II ocupou o Palácio de Yıldız, onde a Corte permaneceu até 1909, data em que regressaria, com Mehmed V Reşad a Dolmabahçe até ao fim do Império, em 1922, com a deposição de Mehmed VI.

Com a proclamação da República, em 1923, a capital da Turquia passou a ser Ankara, ainda que o seu primeiro presidente, Mustafa Kemal Atatürk passasse largo tempo em Dolmabahçe, onde haveria de falecer, em 1938. Ainda hoje se pode ver o quarto onde ele faleceu e cujo leito está coberto pela bandeira turca. Todos os relógios do Palácio foram parados à hora da sua morte (9:05 h, de 10 de Novembro de 1938), e assim permanecem até hoje, ou pelo menos até ao dia em que visitei Dolmabahçe há mais de 20 anos.

O Palácio fica situado na margem europeia do Bósforo, com um cais acostável, e é uma construção imponente, sendo o primeiro palácio construído em estilo europeu, ou melhor, num estilo eclético, misturando elementos gregos e romanos, góticos e renascentistas, aliando o barroco e o rococó com o arabesco e o turco. Possui um dos maiores lustres do mundo, confeccionado em cristal da Boémia, com 750 lâmpadas e pesando 4.500 quilogramas. O edifício ocupa a área de 14.595 m2, e tem 285 salas, 43 halls, 6 terraços, 6 hammams, 1.427 janelas e 25 portas exteriores.

Hall Cerimonial

Existe no exterior do complexo a famosa Torre do Relógio, construída em 1890-1891, no reinado de Abdulhamid II.

A decoração interior é imponente, até talvez um pouco ostentatória, e diz-se que o próprio sultão Abdulmejid I, que o mandou edificar, perguntou após a conclusão se teria sido necessária tal sumptuosidade, numa altura em que as finanças otomanas se encontravam delapidadas.

Quarto onde morreu Mustafa Kemal Atatürk

Na impossibilidade de reproduzir as riquíssimas salas do palácio, reproduzo deste livro a imagem do quarto onde morreu Atatürk, embora o leito não esteja coberto, como eu o vi, com a bandeira turca. Na ocasião não pude fotografar, pois à época não eram permitidas máquinas fotográficas e ainda não existiam telemóveis.