domingo, 26 de junho de 2016

AS ELEIÇÕES EM ESPANHA



As eleições legislativas de hoje em Espanha registaram um resultado que contrariou as primeiras sondagens. O PSOE manteve-se como segunda força política, não sendo ultrapassado pelo Podemos, como inicialmente se previu, mas ficando muito próxima. E o Ciudadanos, partido de centro-direita, baixou substancialmente a sua votação, com óbvia transferência de votos para o PP. A abstenção foi de 30%, o que manifesta um paradoxal e preocupante desinteresse da população (mas os cidadãos terão as suas razões).

Dos votos entretanto contados decorre que a Espanha se encontra dividida ao meio: a soma dos votos do PP e do Ciudadanos é sensivelmente igual à dos votos do PSOE e do Podemos. Isto é, temos duas Espanhas, uma de direita, conservadora, monárquica, católica e outra de esquerda, progressista, parcialmente republicana, laica. É por isso que recomendo a revisitação do livro de Fidelino de Figueiredo, As Duas Espanhas (1932), que referi aqui em 2011.


Aliás, esta partição ao meio dos países europeus é cada vez mais notória. O resultado do recente referendo no Reino Unido saldou-se praticamente por 50%/50%, com uma ligeira vantagem para o Brexit. As sondagens em França dão os resultados que se conhecem; na Itália, o Movimento Cinco Estrelas, de Beppe Grillo, não pára de subir e obteve há dias a Câmara de Roma. E por aí fora.

Para além da questão direita/esquerda existe a questão das secessões. A Escócia vai certamente abandonar o Reino Unido, como já foi afirmado publicamente pela sua primeira-ministra. E aguardemos pela Irlanda do Norte. A Catalunha continua a reivindicar a independência (como o País Basco) e acabará por obtê-la, com a consequente desagregação da Espanha. A Flandres quer separar-se da Valónia. Isto para citar apenas os casos mais evidentes. Talvez estas aspirações não se manifestassem  não fora a Guerra da Jugoslávia, que a Alemanha incentivou e o Vaticano apadrinhou, mas agora é tarde.

Aguarda-se com curiosidade como será formado o próximo governo espanhol, já que se exclui, pelo menos em teoria, um terceiro escrutínio. Uma aliança do PP com o Ciudadanos não chega, uma aliança do PP com o PSOE será uma certidão de óbito para o segundo, uma aliança do PSOE com o Podemos implica a aceitação de um referendo na Catalunha, que o PSOE dificilmente aceitará.

À medida que têm lugar eleições na Europa mais periclitante é o destino da União Europeia. Depois do Brexit, da vitória do Syriza na Grécia (com um governo provisoria e tacticamente calado), do governo (apoiado à esquerda) do PS em Portugal, um governo de esquerda em Espanha seria um pesadelo para a União (leia-se, para a Alemanha), isto além do persistente espectro da Frente Nacional, em França, e dos movimentos italianos.

É por isso que os próximos tempos, os próximos meses até ao próximo ano, nos reservarão certamente algumas surpresas.


sábado, 25 de junho de 2016

AS MULHERES DOS HOMOSSEXUAIS



Acabou de ser publicado um livro curioso sobre as mulheres de alguns homossexuais célebres: Femmes d'homosexuels célèbres, escrito por um especialista na matéria, o escritor, jornalista e realizador cinematográfico Michel Larivière.

Nesta obra concisa, que não chega às 150 páginas, o autor passa em revista 16 casais célebres, escolhidos segundo um critério que não é revelado, mas em circunstâncias idênticas a escolha é sempre arbitrária.

Os eleitos remontam até à Idade Média, mas a maioria situa-se no século XIX.

Indicamos a seguir as esposas e os respectivos maridos. Eles foram célebres, elas ficaram conhecidas por terem sido suas mulheres.

* * *

Bérengère de Navarra e Ricardo Coração de Leão, rei de Inglaterra

Isabel de França e Eduardo II, rei de Inglaterra

Élisabeth Charlotte, princesa palatina e Filipe d'Orléans (irmão de Luís XIV)

Christiane Vulpius e Johann Wolfgang Goethe

Anne Isabella Milbanke e Lord George Gordon Byron

Mathilde Mauté de Fleurville e Paul Verlaine

Honorine Morel e Júlio Verne

Constance Lloyd e Oscar Wilde

Jeanne Amélie Blanche Franc de Ferrière e Pierre Loti

Winnaretta Singer e o príncipe Edmond de Polignac

Madeleine Rondeaux e André Gide

Maria Bonaparte e o príncipe Jorge da Grécia

Élisabeth Toulemont (dita Caryathis) e Marcel Jouhandeau

Wallis Simpson e o duque de Windsor (ex-Eduardo VIII, rei de Inglaterra)

Elsa Triolet e Louis Aragon

Edwina Ashley, Baronesa Mount Temple e Lord Louis Mountbatten, vice-rei das Índias (tio da rainha Isabel II de Inglaterra)

* * *

Não cabe aqui a biografia nem delas nem deles. A deles será fácil encontrar nos livros de História e na história das literaturas. A delas só se encontrará (quase) nos livros que falam deles.

Mas não queremos deixar de satisfazer a curiosidade dos leitores e por isso registamos uns breves apontamentos.

Ricardo Coração de Leão alimentou durante anos uma paixão, correspondida, pelo jovem Filipe Augusto, rei de França. Partiram ambos para a Terra Santa, na Terceira Cruzada, mas haveriam de desentender-se por razões políticas. O escritor americano James Goldman escreveu uma peça, The Lion in Winter (1966), sobre o tema, que foi passada ao cinema por Anthony Harvey.

Eduardo II viveu dominado pelo seu favorito Gaveston, e depois da morte deste pelos seus sucessores, e acabou derrotado pelos apoiantes da mulher, tendo sofrido horrível suplício. Christopher Marlowe escreveu uma peça sobre a tragédia do rei (1592), a primeira peça de teatro com tema homossexual; Derek Jarman, no nosso tempo, realizou um belo filme sobre a peça.

 Goethe, que haveria de casar sobre o tarde com Christiane Vulpuis, porque esta, com a sua graça equívoca e hermafrodita,  lhe lembrava um rapaz, escreveu em Poesia e Verdade: «C'est vrai que j'ai fait aussi l'amour avec des garçons, mais je leur préférais les filles, car quand elles me lassaient en tant que fille, je pouvais encore m'en servir en tant que garçon». Conhecem-se-lhe diversas aventuras amorosas masculinas.

Lord Byron, que morreria combatendo os turcos ao lado do seu companheiro, o soldado grego Lukas,  na batalha de Missolonghi, fez um casamento de interesse com uma herdeira rica e ignorante das inclinações do autor de Childe Harold's Pilgrimage. Proibido de entrar na Câmara dos Lords e separado finalmente da mulher, viajou durante sete anos com os seus amantes pela Itália, antes de chegar a Cefalónia e se tornar o herói da independência grega. (Não o refere o autor do livro mas acrescentamos que Byron viveu algum tempo em Sintra, que considerou uma das mais belas vilas do mundo).

Sobre Verlaine e a sua tempestuosa relação com Rimbaud tudo já foi dito. Os interessados poderão ver o filme Total Eclipse, de Agnieszka Holland, onde o muito jovem Leonardo DiCaprio interpreta, todo descascado, a personagem de Rimbaud. Um desempenho bastante realista que o actor possivelmente gostaria de eliminar da sua biografia.

Júlio Verne é uma figura pouco conhecida pela sua homossexualidade. Respeitável chefe de família, cultivaria uma relação com seu sobrinho Gaston, de dezasseis anos e depois com Aristide Briand, também da mesma idade, e que seria mais tarde chefe do Governo francês.

A vida de Oscar Wilde tem sido dissecada ao longo do século passado. Além dos numerosos livros, pode ver-se o filme Wilde, de Brian Gilbert, e vários outros sobre o seu julgamento e a sua obra, nomeadamente sobre Dorian Gray.

Pierre Loti, oficial de Marinha e académico, grande amante do mundo árabe, em especial da Turquia, de seu verdadeiro nome Julien Viaud, escreveu numerosas obras onde, por vezes, surgem aventuras com raparigas que mais não são do que rapazes travestidos com um nome feminino. Na vida real cultivou a bissexualidade, com a complacência da esposa. Ainda hoje existe em Istanbul um hotel com o nome de Pierre Loti. E também nos arredores, em Ëyup, um café evoca a memória do escritor.

O grande escritor francês André Gide, Prémio Nobel da Literatura, manteve toda a vida o gosto pelos rapazes, ainda que acabasse por ser pai de uma filha, ilegítima. O seu casamento com a prima Madeleine não foi, por mútuo acordo, consumado, mas esta só mais tarde se apercebeu dos amores pederásticos de Gide, entre os quais Marc Allégret, de dezasseis anos, filho do seu antigo preceptor. Quando se apercebeu da realidade, Madeleine, num gesto intempestivo, queimou vinte anos da correspondência do marido, o que este considerou como "uma grande perda para a literatura", do que não se duvida. Gide, que nutriu grande afeição pelos árabes, iniciou as suas relações homossexuais com um jovem tunisino.

Maria Bonaparte, sobrinha bisneta de Napoleão Bonaparte, que haveria de ser uma interlocutora e grande estudiosa e divulgadora da obra de Sigmund Freud, casou com o príncipe Jorge da Grécia, filho do rei Jorge I. Pioneira da psicanálise, Maria Bonaparte respeitou a relação do marido com o tio deste, o príncipe Valdemar da Dinamarca, e quando aquele morreu colocou uma foto deste nas mãos do defunto.

Foi para tentar "curar-se" da homossexualidade que Marcel Jouhandeau, homem austero, desposou a célebre bailarina Élisabeth Toulemont, que frequentava círculos artísticos e literários. A sua paixão por um jovem oficial alemão durante a Ocupação, que determinou uma sua viagem a Weimar, trouxe-lhe problemas após a Libertação, mas foi ilibado de acusações de antisemitismo. O casal manteve-se unido e Jouhandeau nunca assumiu pubicamente a sua homossexualidade.

A história de Eduardo VIII, duque de Windsor depois da abdicação, é uma das mais bem forjadas mentiras públicas do nosso tempo. Atribuiu-se a renúncia ao trono devido à sua paixão por uma mulher divorciada, Wallis Simpson, com quem veio a casar. Ora Eduardo, além de ser exclusivamente homossexual, era um caloroso partidário de Hitler e de Mussolini e a abdicação foi-lhe imposta pelo governo britânico. A sua relação com seu primo Louis Mountbatten, de quem falaremos a seguir, era bem conhecida do tempo em que eram ambos alunos em Cambridge. Wallis Simpson, que tinha um passado pouco recomendável para desposar um rei, e que era extraordinariamente ambiciosa, aceitou sempre a orientação sexual do marido. O casal levou uma vida de luxo e dissipação. O duque de Windsor chegou a estar em Lisboa durante a Guerra, em casa de Ricardo Espirito Santo, antes de ser forçado a aceitar o cargo de governador das Bahamas. Para redimir a sua vida tumultuosa, os Windsor dedicaram-se a partir do anos sessenta a obras de caridade. Após a morte de Eduardo, Wallis legará as suas fabulosas jóias ao Instituto Pasteur, para as suas pesquisas na luta contra a sida.

Elsa Triolet, russa de nascimento e cunhada de Maïakowski, foi a eterna musa de Aragon. O escritor, que foi uma das figuras literárias cimeiras do Partido Comunista Francês, que fingiu ignorar as suas inclinações (na altura o Comunismo condenava a homossexualidade), manteve aventuras masculinas (entre outros os escritores René Crevel, Drieu La Rochelle, Jean Ristat) e femininas, mas após o casamento Aragon dissimulou a sua vida dupla. Só apos a morte de Elsa, em 1970, Louis Aragon passou a frequentar abertamente os locais de "engate", o que lhe valeu alguns dissabores com a polícia. O jovem Ristat, que acompanhou o escritor até à morte e foi seu herdeiro, tentou que o PCF, de que Aragon era membro do Comité Central, reconhecesse os seus gostos, o que nunca se verificou. Mas, apesar de tudo,  o casal constituiu um símbolo de união para os franceses.

Louis Mountbatten, bisneto da rainha Vitória, que, como se disse, manteve uma ligação com Eduardo VIII, desposou a riquíssima Edwina Ashley, baronesa de Mount Temple, um casamento encorajado pela família real. Foi um casamento de mútuo interesse. Ambos se entregaram ao longo da vida, por mútuo acordo, aos respectivos amantes. Nomeado vice-rei das Índias em 1947, Mountbatten aceitou perfeitamente a ligação de Edwina com o Pandit Nehru, discípulo preferido de Gandhi e que seria primeiro-ministro da Índia. Depois da independência do país e do regresso do casal a Inglaterra, Edwina ainda viajou várias vezes a Delhi para encontrar o seu amante. Lord Mountbaten morreu vítima de uma atentado do IRA em 1979.

* * *

O estudo de Larivière apresenta, obviamente, numerosas lacunas, por exemplo o escritor François Mauriac, Prémio Nobel da Literatura, mas o autor sustenta que apenas mencionou os casos em que as esposas deixaram algum testemunho dos factos. Refere igualmente que todas as esposas referidas, à excepção de Winnaretta Singer (a herdeira das máquinas de costura), ignoravam a homossexualidade dos maridos antes do casamento.Também omitiu o nome das pessoas ainda vivas.

Como escreve David Caviglioli na crítica que faz ao livro, em "L'Obs", «Dans l'Antiquité, l'amour, le sexe et le mariage étaient trois idées distinctes. Les mariages chrétiens, puis bourgeois, puis d'amour, les auront amalgamées. Le désir homosexuel ramène cette désunion antique dans l'union moderne. Larivière rappelle qu'entre les sentiments le désir et l'institution familiale, toutes les combinaisons existent, et qu'un couple est toujours plus complèxe que le contrat matrimonial qui l'encadre.»

Falámos mais dos maridos do que das mulheres, o que era inevitável. São eles que têm biografia e elas existem na História por mérito deles, à excepção, quase, de Maria Bonaparte e de Elsa Triolet.

terça-feira, 14 de junho de 2016

A IGREJA DO GESÙ NUOVO, EM NÁPOLES



A igreja do Gesù Nuovo é a mais importante igreja edificada pelos jesuítas em Nápoles, tendo a sua construção sido iniciada em 1584 e terminada em 1601. Chama-se assim para a distinguir da igreja do Gesù (o Gesù Vecchio) construída em 1568 e que foi o primeiro colégio jesuíta da cidade.


O templo resulta de uma adaptação do Palazzo Sanseverino, dos príncipes de Salerno, e foi dedicado à Imaculada Conceição, cuja imagem se encontra sobre um pináculo ou obelisco (la guglia) na Piazza del Gesù Nuouvo. O palácio foi construído em 1470 e os jesuítas adquiriram-no por 45.000 ducados e transformaram-no numa igreja em estilo renascentista e barroco, decorada com mármore de várias cores.


A planta da igreja tem a forma de uma cruz grega, com três naves. Sobre a parede da porta principal existe um grande fresco representando a "Expulsão de Heliodoro do Templo de Jerusalém", de Francesco Solimena. Sobre os quatro pilares que suportam a cúpula figuram os frescos dos Quatro Evangelistas.


Na ábside, majestosa, encontra-se a estátua da Imaculada Conceição sobre um globo de mármore, ladeada pelas estátuas de São Pedro e de São Paulo. O altar-mor foi erigido em 1857 e é feito de mármores raros. Podem ver-se, a todo o comprimento, três baixo-relevos de bronze: a "Ceia de Emaús", à esquerda, a "Promessa da Eucaristia", à direita e a "Última Ceia" (reprodução de Da Vinci), ao centro.


A nave direita tem cinco capelas: em primeiro lugar a de São Carlos Borromeo; depois, a da Visitação, sob cujo altar está a urna com os restos mortais de São Giuseppe Moscati (1880-1927), que foi professor da Universidade de Nápoles; a seguir, a de São Francesco Saverio, pregador na Índia; a quarta capela é dedicada a São Francesco di Borgia, terceiro Geral da Companhia de Jesus; a quinta e última é a capela do Sagrado Coração.


A nave esquerda tem também cinco capelas: a primeira dedicada aos Santos Mártires; a segunda, dita da Natividade; a terceira é a capela do Cruzeiro, dedicada a Santo Inácio, fundador da Ordem dos jesuítas, com as estátuas de David e Jeremias; depois, a capela do Crucificação, com as estátuas dos santos Ciro e João, eremitas, existinto uma urna com o corpo do primeiro e uma urna cinerária com as relíquias do segundo; finalmente, a capela de São Francesco De Geronimo, apóstolo de Nápoles na segunda metade do século XVI. Sob o altar, num relicário, está o braço do santo.


A sacristia, monumental, possui frescos de Aniello Falcone e um lavabo de mármore policromado de Dionisio Lazzari.

A cúpula actual não é a original, da autoria de P. Valeriano, que se desmoronou no terramoto de 1688.


sábado, 11 de junho de 2016

MULHERES E MÃES




Por razões que não vêm para o caso, reli agora Une jeunesse française * François Mitterrand 1934-1947, do jornalista Pierre Péan, que adquirira e lera (obliquamente) aquando da sua publicação em 1994.

Este livro teve grande impacto em França, porque revelou a sinuosa trajectória política de François Mitterrand, procedendo a incómodas revelações (revelações só para o grande público já que o milieu político nada ignorava) sobre o passado do presidente, que estava então prestes a terminar o segundo mandato (1981-1988;1988-1995) e que morreria em 1996.

Antes de começar as suas investigações sobre o período em questão, Péan foi recebido por Mitterrand (1993) a quem deu conta do projecto. Naquele estilo de linguagem esfíngica que o caracterizava, o presidente começou por perguntar: «Est-ce utile?», e insistindo Péan que alguns aspectos da sua biografia não tinham sido objecto de um trabalho aprofundado, concluiu: «Si vous le pensez... Je n'ai rien à cacher. Je vous aiderai.»

É claro que durante a sua vida François Mitterrand sempre procurou esconder o que não lhe era conveniente, e que era bastante, considerando a sua frequente e rápida mudança de convicções (se é que teve algumas), mas nesta fase final da presidência (sua suprema ambição) e da vida, já pouco lhe importava a opinião dos outros. Mesmo o "segredo" da sua filha ilegítima Mazarine era do domínio público.

Ao longo de 79 anos, Mitterrand foi tudo, ou pareceu ser tudo. Começando na infância pela Acção Católica (como membro da JEC), foi depois adepto da extrema-direita durante os tempos universitários. Admirador de Charles Maurras, o ideólogo da Action Française, essa atitude colocar-lhe-ia alguns problemas pessoais, já que a Igreja mantinha certas reservas em relação ao teorizador de "politique d'abord".

Monárquico e contra-revolucionário, Mitterrand pretende exercer desde muito cedo uma influência política, o que o leva, após a invasão da França pelos alemães, a aderir ao regime de Vichy, já que professava grande devoção pelo marechal Pétain. Não tenho por esclarecido se Mitterrand foi marechalista, pétainista ou vichyssista, já que os especialistas se comprazem hoje em subtis distinções sobre o grau de adesão a uma figura em que a generalidade dos franceses (sim, a generalidade dos franceses) depositou as suas esperanças após a vitória da Alemanha de Hitler. Explicam os ditos que marechalista foi aquele que se manteve fiel à pessoa do marechal (a maioria dos franceses quase até ao fim da guerra); pétainista, aquele que se identificava com as ideias de uma "ordem nova" defendida pelo marechal a fim de redimir a França da fraqueza dos tempos conturbados, senão desde a Revolução de 1789, pelo menos desde o Front National; vichyssista, aquele que sacrificava no altar do regime (certamente em número muito menor do que os marechalistas, e sempre em contagem decrescente, já que o regime desiludia progressivamente a população e que grande número de franceses era contrário ao governo e, em especial, à figura do presidente do Conselho, Pierre Laval, que concitava os ódios nacionais).

Não sei se Mitterrand se poderá incluir em alguma destas categorias, a não ser pelo seu oportunismo político, já que a evolução da situação o levou a afastar-se progressivamente de Vichy, para, em semi-clandestinidade, aderir à Resistência, apoiar primeiro o general Giroud (adversário de De Gaulle) e depois o próprio De Gaulle, que nunca lhe manifestou especial simpatia. De resto, mais tarde, Mitterrand haveria de opor-se ao general na eleição presidencial de 1965.

De qualquer forma, terá sido "oficialmente" marechalista, pois recebera a "Francisque", condecoração do Regime que obrigava a um juramento de fidelidade ao velho marechal.

Ideologicamente, ou pragmaticamente, Mitterrand irá deslizando da direita para a esquerda, ao ponto de conseguir ser eleito, em 1981, presidente da República Francesa (enquanto 1º secretário do Partido Socialista), com o apoio do Partido Comunista Francês, ele que sempre fora anti-comunista mas elaborara para o efeito um Programa Comum da Esquerda, que levaria, aliás por pouco tempo, ministros comunistas ao governo).

Não tem este post a pretensão de se debruçar sobre os anos de juventude de Mitterrand (o livro em questão é bastante e há outras fontes, apenas recordei alguns factos) mas tão só de evidenciar um texto que resolvi citar por curiosidade, já que ao lê-lo me ocorreu uma passagem recente de um discurso alucinado do presidente da Turquia.

Ocorre que, há dias, no passado dia 5, Recep Tayyip Erdogan incentivou as mulheres a terem pelo menos três filhos, acusando as que  não são mães de serem deficientes e incompletas (cito de cor).

Pois bem, François Mitterrand trabalhou em 1945/46 na revista feminina "Votre beauté", pertencente ao grupo L'Oréal. Foi um período, curto, em que Mitterrand estava sem actividade e, sendo já casado com Danielle, precisava de dinheiro. Pediu assim ao seu grande amigo e companheiro de Vichy e depois da Resistência, André Bettencourt, que lhe encontrasse um emprego. Ora André Bettencourt tinha as melhores relações com Eugène Schueller, o riquíssimo patrão da L'Oréal, cuja filha, Liliane (hoje ainda viva) haveria de desposar. Esta ligação compreende-se facilmente pois tendo Schueller sido um apoiante da Cagoule (organização fascista, anti-semita e anti-comunista) e do MRS (Movimento Social Revolucionário) que apoiava a colaboração com a Alemanha Nazi, aquando da Libertação teve problemas com as novas autoridades e foi precisamente Bettencourt quem, entretanto tornado resistente, procedeu ao branqueamento das actividades comprometedoras do patrão da famosa empresa de cosméticos.

Ora, e chegamos ao âmago da questão, no primeiro número da dita revista de 1946, Frédérique Marnais, um pseudónimo de Mitterrand (que usou vários, na Resistência e na vida civil), escreve:

«Si la natalité chez nous ne prenait pas un rythme accéléré, si elle demeurait ce qu'elle était jusqu'en 1940, dans cent ans, il n'y aurait plus de la France. On nous traite déjà de  nation de vieillards et cela devient vrai, hélas!
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Et, puis, n'oubliez pas que la maternité donne à la femme le plein épanouissement de sa beauté. Une femme qui n'a pas eu d'enfants n'atteint pas au maximum de sa forme...» (p. 521)

*****

Eis, pois, uma concepção original da mulher sem filhos, que aproxima, com quase cem anos de intervalo, um católico francês (embora Mitterrand tenha morrido agnóstico) de um muçulmano fundamentalista.

Não obstante todas as críticas que se possam (e devam) fazer a François Mitterrand, importa todavia realçar que foi não só um político habilíssimo (ao serviço das suas ambições, certamente) mas que possuía um profundo sentido de Estado (que justificava, supõe-se, acções menos convenientes) e uma certa ideia da grandeza da França (semelhante à professada pelo general De Gaulle e daí certamente a animosidade entre os dois homens), a par de uma notável cultura histórica e literária.

Tenho para mim que os dois presidentes de maior envergadura da V República foram De Gaulle e Mitterrand. Pompidou, Giscard e mesmo Chirac cumpriram os mínimos mas não envergonharam a França. Outrotanto não se poderá dizer de Sarkozy e de Hollande, dois dos mais medíocres vultos da história francesa.

Uma última nota:  há um aspecto da personalidade de François Mitterrand que deve ser especialmente evocado. Para o antigo presidente, a amizade ocupava o primeiro lugar na sua escala de valores e a ela sempre foi fiel, mesmo quando isso comportava situações embaraçosas e até perigosas. Ao longo da sua vida, Mitterrand privilegiou, por vezes de forma inconsiderada, os amigos que se lhe mantiveram inabalavelmente fiéis. Esta atitude nem sempre se compaginou com a defesa dos ideais republicanos mas constituiu uma opção deliberada que por vezes ultrapassou elementares conveniências do regime democrático. Mas seria Mitterrand um verdadeiro democrata?


terça-feira, 7 de junho de 2016

PETER SHAFFER




O dramaturgo britânico Peter Shaffer, um dos vultos maiores do teatro inglês da segunda metade do século passado, morreu ontem em Cork, na Irlanda, com 90 anos.

Autor de peças que obtiveram sucesso mundial, Sir Peter Shaffer é um nome conhecido do público teatral português. A sua primeira peça representada entre nós foi Five Fingers Exercise (Exercício para Cinco Dedos), pela Companhia do Teatro Estúdio de Lisboa, dirigida por Luzia Maria Martins.

Outras peças tiveram grande êxito em Portugal, como Equus, The Royal Hunt of the Sun (A Caçada Real do Sol) e Amadeus.


Equus teve a primeira apresentação em Lisboa, no Teatro Variedades, numa encenação de Manuel Collado; A Caçada Real do Sol foi apresentada no Teatro Nacional D. Maria II, com encenação de Carlos Avilez, que encenou igualmente a estreia em Portugal de Amadeus, com tradução minha, no Teatro da Seiva Trupe, espectáculo incluído nas comemorações do Porto Capital da Cultura 2001.

Aquando da estreia de A Caçada Real do Sol, Peter Shaffer deslocou-se a Lisboa, tendo revelado particularmente na altura que se preparava para escrever uma peça sobre a morte de Tchaikovsky. Como é sabido, o famoso compositor russo, que era homossexual, suicidou-se, embora a versão oficial sustente que morreu devido à cólera.

Era intenção de Peter Shaffer escrever uma peça em que mostrasse que os amigos mais próximos do compositor o tinham forçado a suicidar-se devido ao escândalo de uma das suas relações com um rapaz. Tendo contactado o dramaturgo, nos primeiros anos deste século, acerca da possibilidade da peça, foi-me dito que estaria apenas em fase embrionária. Nada mais soube desse projecto.

Não admira que o tema fosse caro ao dramaturgo, já que um perfume de homossexualidade atravessa, ainda que discretamente, quase todas as suas obras.

Em 2002, Shaffer, que era uma personalidade multifacetada (fora durante anos crítico musical num jornal inglês) publicou um livro sobre cozinha americana.

Algumas das suas peças foram transpostas para o cinema com um sucesso estrondoso: The Royal Hunt of the Sun, por Irving Lerner, em 1969; Equus, por Sidney Lumet, em 1977; Amadeus, por Milos Forman, em 1984.

Cartaz de "Amadeus" no National Theatre

Muitas das suas peças foram estreadas no National Theatre, de Londres. Amadeus esgotou lotações neste importante teatro londrino e no termo da sua carreira, para aceder aos pedidos do público, o espectáculo foi transferido para o Her Majesty's Theatre, onde permanceu em cena por mais um ano. Refira-se que tanto Equus como Amadeus tiveram mais de 1.000 representações consecutivas na Broadway.

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O PIO MONTE DELLA MISERICORDIA, EM NÁPOLES


"As Sete Obras de Misericórdia", pelo Caravaggio

O Pio Monte della Misericordia, em Nápoles, é uma instituição de beneficência, fundada em 1601 por sete jovens da nobreza napolitana.



O palácio histórico foi construído pelo arquitecto real Francesco Antonio Picchiatti. No interior do edifício esconde-se uma magnífica igreja barroca octogonal, onde se pode admirar o grande quadro a óleo sobre tela representando as "Sete Obras de Misericórdia", pintado por Michelangelo Merisi da Caravaggio, bem como outras importantes obras-primas de pintura e de escultura, entre as quais a "Libertação de São Pedro", de Battistello Caracciolo, um dos mais notáveis testemunhos do naturalismo napolitano.





A Galeria de Pintura, no primeiro andar, expõe, além da mais importante série de pinturas e de esboços de Francesco De Mura, obras italianas e estrangeiras, do século XVI ao século XIX, de artistas como Ribera, Giordano, Pitloo, Stanzione, Vaccaro, Santafede, van Somer.

Altar-Mor

O palácio, a igreja e a galeria de pintura, constituem uma das mais significativas colecções privadas abertas ao público e representam uma unidade artística indivisível. Trata-se, sem dúvida, de um conjunto histórico de grande interesse, que permite reviver atmosferas desta antiga instituição de beneficência de Nápoles.


"Sant'Antonio Abate", por Ribera

Sala do Governo

Idem

Documentos sobre Caravaggio

quarta-feira, 1 de junho de 2016

A FRANÇA DE VICHY




Não vendo televisão diariamente, tomei conhecimento, graças a uma referência do Eduardo Pitta no Facebook, de que a RTP2 estava a transmitir uma série sobre a ocupação da França pelos alemães, durante a Segunda Guerra Mundial: "Uma Aldeia Francesa". Vi três ou quatro episódios (não sei quantos ficaram para trás) e pareceu-me que as situações retratadas eram um pouco "forçadas", mas só no fim poderei avaliar da qualidade desta produção.

Curiosamente, acabei de ler o livro de Robert O. Paxton, La France de Vichy, 1940-1944, que o historiador americano publicara em 1972, com o título Vichy France, Old Guard and New Order, 1940-1944 e que reeditou, revisto e com algumas correcções, em 1997. Ambas as edições foram traduzidas para francês, com a denominação que referi, tendo saído há algum tempo uma reedição da tradução francesa, aquela que agora li.

Acerca de um assunto sobre o qual existem centenas, se não mesmo milhares de livros, a obra de Paxton foi uma primeira abordagem pretensamente objectiva da situação em França no tempo do governo do marechal Pétain. Na altura em que publicou a 1ª edição, Paxton consultou os arquivos alemães e americanos, já que os franceses estavam ainda indisponíveis, ao abrigo da legislação vigente. E a maioria das obras até então dadas à estampa adoptavam uma posição claramente favorável ou desfavorável ao regime de Vichy.

Na 2ª edição, Paxton actualizou alguma informação (já tinha decorrido meio século sobre o fim do conflito), embora considere que no essencial nada havia a mudar.

A invasão da França pelas tropas de Hitler constituiu um doloroso período para os franceses, tanto na zona ocupada como na zona dita livre, e que a partir do desembarque aliado no norte de África iria ficar igualmente ocupada. Foram cometidos actos terríveis, de ambas as partes, e a Libertação não pôde evitar (certamente não poderia) os posteriores ajustes de contas que, aliás, se verificam normalmente em situações semelhantes.

A dúvida que se colocou logo após o fim da guerra - e que ainda hoje permanece - foi a seguinte: teria sido preferível o armistício de 1940 acordado com Hitler ou a criação de um governo no exílio. Pétain sempre sustentou, inclusive no seu julgamento, que a sua acção fora motivada pelo desejo de poupar maiores males ao povo francês.

Como não é possível submeter a história a experiências laboratoriais, a dúvida subsistirá. Ao contrário do que muita gente será levada a pensar, a maioria dos franceses esteve ao lado de Vichy durante os primeiros tempos, digamos que até 1942. E terá estado com Pétain praticamente até ao fim, já que estabelecia uma nítida separação entre o velho marechal e o seu governo, progressivamente mais detestado, especialmente o presidente do Conselho, Pierre Laval. Apoiado  por uma investigação exaustiva, Paxton concluiu que o homem comum procurou manter-se neutro, pelo menos enquanto isso lhe foi possível, e que a Resistência, ou as várias resistências que se uniram precariamente para celebrar a vitória, só conseguiu aumentar os seus membros com a aproximação do fim da guerra. Muitos pétainistas aderiram já muito tarde ao general De Gaulle, mesmo algumas figuras militares do maior prestígio, como os marechais Alphonse Juin e Jean De Lattre de Tassigny. Encontraremos bom número de partidários do marechal Pétain em lugares de relevo na IV e na V República. Os intelectuais tiveram sorte diversa. Charles Maurras, o ideólogo da Nova Ordem desejada por Pétain, morreu na prisão, Céline, que fugira para a Dinamarca, foi condenado à indignidade nacional e morreu em casa. Pierre Drieu La Rochelle suicidou-se e Robert Brasillach foi fuzilado, depois de uma petição a seu favor, assinada por numerosos vultos das artes e das letras, como Paul Valéry, Paul Claudel, Jean Anouilh, Arthur Honegger, Albert Camus, Jean Cocteau ou Colette, ter sido recusada pelo general De Gaulle.

Mas não é este o lugar nem o momento para discorrer sobre Vichy. Vejamos, pois, a série televisiva.