segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

AUTO-DA-FÉ




Talvez sugestionado pela recente leitura de Alfabetos, de Claudio Magris, resolvi reler uma obra maior da literatura do século passado: Auto-da-Fé, de Elias Canetti, numa edição velha de 30 anos, pelo menos, mas sem data de publicação, existente na minha biblioteca.

O original, com o título Die Blendung (o brilho intenso que cega), foi publicado em Viena, em 1935, e depois traduzido em várias línguas. Obra longa de 400 páginas, protagonizada pelo Dr. Peter Kien, o sinólogo homem-livro (Büchermensch esteve para ser o título do livro), o seu projecto inicial constava de oito novelas que vieram a transformar-se no grosso volume finalmente dado à estampa.

A primeira parte é uma consolação para todos os bibliófilos: Kien, que possuía em casa oitenta mil livros, chegou ao ponto de pedir ao senhorio autorização para entaipar as janelas, para poder colocar nesse espaço mais estantes. Saía de casa todas manhãs, mas bem cedo, para contemplar as montras das livrarias antes que estas abrissem, a fim de não ser tentado a comprar mais livros. E nesses passeios pela cidade transportava sempre uma pasta cheia de livros.

Pela obra perpassam algumas figuras grotescas, como a governanta Teresa, o anão Fischerle ou o porteiro Pfaff, numa sequência de alucinantes situações que não é possível aqui descrever. O casamento de Kien com Teresa, para proteger-se e à sua biblioteca, acaba por determinar a sua expulsão de casa e todas as aventuras subsequentes ocorridas no degrau ínfimo da escala social, até ao incêndio em que será consumido juntamente com a biblioteca, o auto-da-fé que servirá de título às edições europeias ocidentais.

 Elias Canetti (1905-1994), nasceu na Bulgária e em 1911 emigrou com os pais, judeus espanhóis, para Inglaterra. Depois da morte do pai, viveu em Zürich, em Frankfurt e, finalmente, em Viena, onde estudou química, acabando por abraçar a filosofia e a literatura. O incêndio do Palácio da Justiça, de Viena, na revolta operária de 15 de Julho de 1927, e a repressão que se seguiu, marcaram a sua vida. A queima de livros, por essa e por muitas outras razões, tornou-se-lhe uma obsessão, que se reflecte no livro em apreço.

A vasta obra de Canetti, designadamente Auto-da-Fé, Masse und Macht (Multidões e Poder) e as memórias, valeram-lhe, entre outras distinções, o Prémio Nobel da Literatura em 1981. Embora cidadão britânico, viveu em Zürich a maior parte dos últimos 20 anos da sua vida.

O livro de viagens, Die Stimmen von Marrakesch (1968), dedicado à sua primeira mulher, Veza, está publicado em português com o título As Vozes de Marraquexe.

sábado, 28 de dezembro de 2013

O OUTONO OCIDENTAL




Já se encontra nas livrarias a última obra do prof. Adriano Moreira, Memórias do Outono Ocidental - Um Século sem Bússola, onde o autor reúne vários textos já publicados «ao acaso do tempo», mas de absoluta pertinência e actualidade.

Estas reflexões de Adriano Moreira, mais do que memórias, abrangem temas variados, desde a geração grisalha (oportuníssimo), à União Europeia, à presente conjuntura económica e financeira, à lusofonia, ao declínio ocidental, às guerras mundiais, às perspectivas do futuro, et al. Lamenta-se que a edição utilize a "nova ortografia" o que contribui para aumentar a dificuldade de leitura de uma prosa já pouco linear, que é, aliás, característica do autor, sem prejuízo da notável informação que subjaz aos conceitos expressos.

Naturalmente, todo o livro está enformado pela perspectiva cristã (católica) de quem o escreve, o que condiciona, de algum modo, a nossa adesão às teses sustentadas. O mesmo se dirá quanto às convicções políticas e ideológicas do autor, que dificultam a nossa compreensão relativamente à forma como são apresentadas diversas questões. E a alguns esquecimentos, como, por exemplo, ao enumerar as minorias omita sempre as chamadas "minorias sexuais", que, como as outras, também lutam pelos seus direitos.

Ocupa-se Adriano Moreira, especialmente, em  denunciar a teologia de mercado que hoje parece dominar todo o mundo, um mundo em que o valor das coisas é progressivamente substituído pelo preço das coisas. Não que o preço, na acepção de Moreira, seja precisamente uma inovação do neo-liberalismo. Já Tosca, na ópera, perguntava a Scarpia qual o preço da libertação de Cavaradossi. O que se verifica actualmente é que as coisas passaram a ser em grande medida valorizadas em função do preço que ostentam e não do seu próprio valor intrínseco.

Também o domínio planetário do capitalismo financeiro preocupa o autor, bem como o Complexo Militar Industrial multinacional que vai provocando guerras aqui e ali para exclusiva satisfação dos seus interesses, a expensas da tragédia humana que esses conflitos, a maior parte das vezes artificiais e fomentados, provocam. Igualmente, a privatização das forças de segurança, e já hoje a privatização de guerras, merece especial relevo, pela abdicação de uma das funções da soberania, mesmo numa época de demencial fúria privatizadora. Saliente-se ainda a preocupação de Adriano Moreira sobre a ultrapassagem da fadiga fiscal que ocorre no nosso país, a sua visão das relações Estado/Igreja, a crítica ao unilateralismo americano defensor da tese de Fukuyama sobre o fim da história, a constatação de que a sabedoria está a ser subalternizada em relação ao saber.

Duas citações, colhidas no penúltimo capítulo:

«Deste modo, o citado neo-liberalismo adoptou como objectivo fundamental daquilo que ambiguamente chama e pratica com o nome de reforma do Estado, eliminar dos textos constitucionais os preceitos que afirmam o Estado Social a partir do conceito de dignidade humana, que tem principal lugar na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice em 7 de Dezembro de 2000, um conceito que apareceu pelos meados do século XII, e que implica não tratar a pessoa humana como um meio e assegurar a satisfação das suas necessidades vitais.» (pág. 371).

«O neo-liberalismo que se guia pela destruição-construtiva encontrou na crise brutal deste século sem bússola um conceito mais simples: não há dinheiro. isso não dispensa de haver princípios» (pág. 372).

A terminar,o autor cita Amin Maalouf (Le Dérèglement du monde, 2009) que alude a "um século sem bússola", em que poderão acontecer as maiores catástrofes se não for posto termo às desorientações reinantes, maxime, na Casa Europeia. E insiste em que a crise actual deve muito ao facto de os governos não terem presente a diferença fundamental entre a legitimidade da eleição e a legitimidade de exercício, o que provoca o sobressalto dos povos.

Como o livro é uma colectânea de textos, abundam as repetições, das quais o próprio autor nos adverte no início. Seriam dispensáveis, mas constituem, talvez, uma forma de melhor vincar as opiniões expendidas.

Enfim, uma lição de política e de história (com a decadência ocidental, de que já Spengler falava, em pano de fundo)

Nota 1 - Refere Adriano Moreira uma realidade que desconhecíamos:.«Em Portugal anuncia-se que os efectivos das empresas de segurança privada, sustentados pela sociedade civil, ultrapassam a soma dos efectivos da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana». E acrescenta: «O sociólogo Loïc Wacquant afirma que "a mão invisível do mercado usa uma luva de ferro, e conclui que um mau vento, que sopra da outra margem do Atlântico, fecha as fábricas e abre as prisões da velha Europa"» (pág. 344).

Nota 2 - Transcrevemos as citações de Adriano Moreira na ortografia dita "antiga", porque  nos sentimos inibidos de escrever qualquer texto utilizando o novo "Acordo".

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

BOMBEIROS DESPEM-SE PARA CALENDÁRIO




Um grupo de bombeiros da Companhia de Bombeiros Sapadores de Setúbal resolveu despir-se para fins de beneficência. Não, não é o que os leitores poderão pensar à primeira vista. Também poderia ser mas não é. O propósito é outro. Os homens em questão, dos 27 aos 46 anos, deixaram-se fotografar em tronco nu para que as suas imagens constem de um calendário editado pelo Fundo Social, Cultural e Desportivo do Pessoal da Companhia, e cuja receita de venda reverterá para as instituições de solidariedade social da cidade.


O preço dos calendários é de quatro euros e, segundo consta, a edição está a ser muito procurada. Não admira, já que o nu masculino (ainda há dias comentámos neste blogue a exposição do nu patente no Museu de Orsay, em Paris) está a registar cotações progressivamente mais elevadas.


A ideia não é original, mas, que me recorde, é a primeira vez que se utiliza em Portugal num calendário.Se a moda pegar, vamos ter a possibilidade de ver, por baixo das "fardas", toda uma série de modelos (alguns já não tão jovens como isso, mas não importa) das mais variadas profissões.


Esperemos que ninguém se entusiasme tanto que decida largar fogo à casa.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

ENTRE ÁRABES E PERSAS

 Segundo a "Voz da Rússia" (publicado hoje):

 Monarquias do Golfo Pérsico preparam-se para grande guerra

Golfo Pérsico, Omã, Irã, Arábia Saudita, Bahrein, Kuwait, Qatar, EAU

Monarquias do Golfo Pérsico estão formando forças coletivas de defesa que integram 100 mil pessoas. Pergunta-se em que grau esta decisão depende da crescente ameaça do lado do Irã.

Em meados de dezembro, o Conselho de Cooperação de Estados Árabes, em que entram seis monarquias árabes – Bahrein, Qatar, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Omã e Arábia Saudita, anunciou a formação de um comando militar único com a sede em Riad. Como se espera, este agrupamento será encabeçado por um militar saudita. Contudo, a rigor, as forças unidas de intervenção rápida deste grupo de países já existiam antes. Mas agora trata-se de um novo nível de cooperação militar-política, considera Elena Melkumyan, professora da cátedra do Oriente Contemporâneo da Universidade Humanitária de Estado da Rússia:

"Hoje, assiste-se a um alagamento, ao aumento do número de efetivos dessas forças. Em termos gerais, as monarquias do Golfo Pérsico dispensam hoje mais atenção à cooperação militar. Por um lado, estão continuando aquilo que foi feito antes. Por outro, novas circunstâncias obriga as monarquias a acentuar a temática defensiva. Veem a maior ameaça no Irã. Hoje, este país começou a negociar com os Estados Unidos, concluindo um acordo preliminar em Genebra sobre seu programa nuclear. E os Estados do Golfo Pérsico dão-se conta de que a situação está mudando. Enquanto antes eles confiavam no papel de contenção dos Estados Unidos na confrontação com o Irã, hoje têm que contar mais com suas próprias forças."

Não se deve pensar que as monarquias do Golfo Pérsico representam um monólito militar-político. São unidas em certo grau pela forma de governo, o Islã de orientação sunita e a existência à conta de venda de hidrocarbonetos. Contudo, as contradições entre os participantes do bloco são bastante grandes e, numa outra situação, poderiam, possivelmente, impedir a futura integração. Mas, face ao Irã, que está ganhando força, as monarquias estão dispostas a esquecer muitas coisas, considera Vasili Kuznetsov, colaborador científico do Instituto de Orientalística da Academia de Ciências da Rússia:

"É evidente que a situação na região do Golfo Pérsico agrava-se cada vez mais. Há duas potências concorrentes parecidas – a Arábia Saudita e o Irã. O Conselho de Cooperação sempre foi uma organização que deveria unir as monarquias do Golfo contra o Irã. A ameaça é real e a luta é séria. Por outro lado, desde o ponto de vista da capacidade combativa, nenhum exército do Golfo pode ser equiparado ao iraniano. Qualquer que seja o abastecimento técnico, os iranianos combatem melhor. Ao mesmo tempo, a probabilidade de ações militares entre estes países é muito pequena por diferentes causas, em primeiro lugar graças a um alto grau de pragmatismo dos regimes iraniano e saudita. A meu ver, a formação das forças conjuntas de defesa é um passo político positivo para as próprias monarquias árabes, que prova sua capacidade de chegar a um consenso, e não é uma resposta a mudanças reais na esfera da segurança."

Possivelmente, a formação das forças unidas de defesa das monarquias do Golfo Pérsico é um sinal dados aos americanos, que, na opinião de Riad, sejam envolvidos profundamente na regularização das relações com o Irã. Sabe-se que a política externa independente dos sauditas depende estreitamente da parceria estratégica com Washington. Os Estados Unidos são o único garante da segurança da Arabia Saudita na região.

Seja como for, mas a aliança militar das monarquias do Golfo Pérsico, cujos contornos se tornam cada vez mais evidentes, é capaz potencialmente de influir negativamente na região, contribuindo para o crescimento da tensão entre Riad e Teerã.

PROUST E OS BÚLGAROS




Christian Gury, jurista, historiador, ensaísta, poeta, advogado na Cour d'Appel de Paris, publicou mais um livro: Proust et les Bulgares. Autor de vasta obra sobre as "marginalidades sociais", nomeadamente sobre a homossexualidade, Gury aborda habitualmente a forma como ela se reflecte na literatura. Entre os seus escritores de eleição contam-se Verlaine, Barthes, Cocteau, Maurice Rostand e, designadamente, Proust, sobre o qual já escreveu vários livros. Além de se ter dedicado a outras eminentes personalidades francesas, como o marechal Lyautey e o cardeal Grente.

No livro que agora apreciamos, o autor trata da influência dos búlgaros (cuja palavra original, bougre ou boulgre, significa sodomita), na célebre Recherche, e das alusões que Proust lhes faz no decorrer da obra. Dá-se especial relevo ao rei  (depois, tsar) Fernando I da Bulgária e aos seus costumes. «Le tsar Ferdinand Ier de Bulgarie était passioné de fleurs et de bijoux - la duchesse de Guermantes se gaussait de ses bracelets -, et amateur de jeunes soldats blonds, "une pure coquine, une vraie affiche", selon le baron de Charlus, fin connaisseur de la matière.»

Segundo o autor, o tsar Fernando I teria emprestado algumas características ao baron de Charlus, ainda que Gury tenha sustentado em outro livro que Proust foi buscar ao marechal Lyautey a sua inspiração para compor a personagem do barão.

Para Christian Gury, os costumes dos búlgaros estão presentes ao longo da Recherche, especialmente os do seu rei, cuja vida pessoal e política é analisada na obra, salientando-se a sua responsabilidade nas guerras balcânicas e mesmo, pelas suas acções e omissões, na Primeira Guerra Mundial.

Não é possível, num post, entrar em pormenores sobre a obra, atendendo ao emaranhado de referências em que Christian Gury sustenta as suas teses. Julgamos que terá escalpelizado a Recherche, para poder defender os seus pontos de vista nos diversos livros que sobre ela escreveu, um trabalho certamente de grande envergadura.

O livro inclui mais três ensaios: Proust au tennis, Dans les griffes des logogriphes e Le zoo de Combray.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

ALAN TURING





Transcrevemos, a propósito de Alan Turing, o post hoje publicado por Eduardo Pitta no blogue "Da Literatura":

O PERDÃO REAL

 Isabel II concedeu ontem um perdão póstumo ao matemático Alan Turing (1912-1954), o homem que decifrou o código nazi Enigma. Considerado o pai da informática, Turing era homossexual e foi publicamente denunciado em Agosto de 1952 de manter relações ilícitas com Arnold Murray, então com 19 anos. A sua casa foi devassada pela polícia e o governo afastou-o do trabalho de criptoanálise que desenvolvia desde 1936. Processado, internado à força num hospital psiquiátrico, submetido a castração química, suicidou-se dias antes de completar 42 anos, mordendo uma maçã com cianeto. (Está a ver a maçã da Apple? Não serve de logotipo por acaso.) Ontem, o Reino Unido da Grã Bretanha e da Irlanda do Norte emendou a mão, reabilitando a memória do homem que, ao inventar “a Máquina” em 1940, deu um contributo decisivo para a vitória dos Aliados sobre o III Reich.

A campanha de reabilitação de Turing começou em 2009, por iniciativa de Gordon Brown, então primeiro-ministro de Sua Majestade, que apresentou à Nação um pedido público de desculpas aos herdeiros do cientista:

«[...] Turing was a quite brilliant mathematician, most famous for his work on breaking the German Enigma codes. It is no exaggeration to say that, without his outstanding contribution, the history of World War Two could well have been very different. He truly was one of those individuals we can point to whose unique contribution helped to turn the tide of war. The debt of gratitude he is owed makes it all the more horrifying, therefore, that he was treated so inhumanely. In 1952, he was convicted of ‘gross indecency’ — in effect, tried for being gay. His sentence — and he was faced with the miserable choice of this or prison — was chemical castration by a series of injections of female hormones. He took his own life just two years later. [...] So on behalf of the British government, and all those who live freely thanks to Alan’s work I am very proud to say: we’re sorry, you deserved so much better.» — 2009.

Martin Rees, astrónomo real desde 1995, defendeu esta semana na Câmara dos Lordes que o perdão devia ser extensivo a todos os que «têm antecedentes penais pela mesma razão

Antes tarde que nunca.

 

Não compreendo que Isabel II possa conceder um perdão póstumo a Alan Turing. A Inglaterra é que deveria pedir perdão ao mundo por todos os crimes infames cometidos ao longo da sua história.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

PROSTITUTOS BRASILEIROS EM LISBOA





Pela sua relevância, transcrevemos a notícia hoje publicada no jornal "i":

Maioria dos prostitutos em Lisboa são brasileiros e jovens
 
Os trabalhadores sexuais masculinos de Lisboa são maioritariamente brasileiros, jovens e trabalham em apartamentos e na rua, sendo os seus clientes na maioria homens, casados e da classe média-alta, revela um estudo hoje divulgado.

O retrato dos trabalhadores sexuais masculinos é traçado num projeto de intervenção que está a ser realizado desde 2011 por uma equipa técnica da Liga Portuguesa Contra a Sida (LPCS) junto de 149 trabalhadores e cujos resultados foram divulgados na conferência promovida pela Liga “Encontros (In)Seguros).

Segundo o projeto “Encontros (In)Seguros”, estes trabalhadores têm uma média de 29 anos, são solteiros, desempregados, homossexuais, brasileiros, a maioria legais, com o ensino secundário e uma localização incerta.

A presidente da LPCS adiantou à agência Lusa que 37% dos trabalhadores estão em Portugal há mais de cinco anos e 32% há menos de cinco.

O trabalho sexual é a principal fonte de rendimentos destes trabalhadores, que se relacionam “emocionalmente e sexualmente entre eles”, adiantou Maria Eugénia Saraiva.

Segundo Eugénia Saraiva, o projeto visou “uma intervenção integrada junto dos homens que têm sexo com homens em contexto de trabalho sexual na cidade de Lisboa”.

Trata-se de uma população “escondida”, que leva uma vida à margem da sociedade, o que dificulta o acesso aos programas de prevenção dirigidos à população geral.

Segundo o investigador do projeto, Henrique Pereira, o estudo permitiu, pela primeira vez, caracterizar esta população em Lisboa.

Os resultados do projeto indicam que a criminalização do trabalho sexual pode constituir o fator com maior impacto na vulnerabilidade destes trabalhadores.

“Fatores como o estigma e a discriminação afastam os trabalhadores sexuais dos serviços de saúde, e a ocorrência de violações e outras formas de violência não são denunciadas por temerem o contacto com as forças de segurança”, explicou o investigador.

O projeto, cofinanciado pelo Programa ADIS/SIDA, constatou que os trabalhadores sexuais apresentam-se “maioritariamente assertivos na utilização do preservativo com clientes, descurando a sua utilização nas relações emocionais com os companheiros”.

“Trata-se de uma necessidade de distinção entre a relação sexual profissional e o envolvimento sexual numa relação afetiva”, sublinhou Henrique Pereira.

Ao longo dos três anos, a equipa realizou 398 visitas a apartamentos e distribuiu cerca de 11.000 preservativos, 5.500 gel lubrificante, 6.500 folhetos de prevenção e 400 cartazes.

Fez 39 encaminhamentos para valências da LPCS e 80 para parceiros, na sua maioria para realização do teste ao VIH.

“No total de trabalhadores sexuais masculinos reativos, em termos de VIH, nós temos 12, e de número de trabalhadores sexuais masculinos para o VIH após intervenção do projeto temos sete”, disse Eugénia Saraiva.

A equipa, constituída por um mediador, uma assistente social e uma psicóloga, conseguiu chegar aos trabalhadores sexuais e aos clientes.

“As dúvidas destes utentes passavam pelas vias de transmissão do vírus VIH, os locais da realização do teste, qual o período de janela para poderem fazer o teste, as diferenças entre o VIH e a sida e a profilaxia pós-exposição”, explicou Eugénia Saraiva.

O estudo concluiu que “os comportamentos de prevenção com os clientes versus comportamentos de risco com os namorados têm de ser uma prioridade e têm de ser apoiadas as instituições que têm trabalho nesta área”, sublinhou.

Para Eugénia Saraiva, é “fundamental” a construção de programas específicos de prevenção e promoção de saúde para esta população.

A prevalência de infeção por VIH/Sida é de 5% em trabalhadores sexuais e em homens que têm sexo com homens.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O NU MASCULINO EM EXPOSIÇÃO




Encerra no próximo dia 2 de Janeiro (se o período não for prolongado) a exposição Masculin/Masculin - L'Homme Nu dans l'Art de 1800 à nos Jours, que foi inaugurada em 24 de Setembro passado, no Museu de Orsay, em Paris. Organizada em colaboração com o Leopold Museum, de Viena, que apresentou há um ano a exposição Homens Nus (Nackte Männer), a que nos referimos aqui e aqui, a presente mostra reúne cerca de 200 obras, quase todas originais, de pintura, escultura, desenho, fotografia e vídeo representando homens nus.

São Sebastião (Guido Reni)

Desde o ideal clássico, passando pelos nus heróicos e as relações com a natureza, ao objecto do desejo, a exposição percorre todo um caminho em que o nu masculino se foi desfazendo das folhas de parra e outros adornos ocultando o sexo (teria sido a rainha Vitória que mandou dissimular os atributos da réplica do David, de Miguel Ângelo, encomendada pelo Victoria and Albert Museum, de Londres), até se assumir na sua plenitude viril.

Os Adolescentes (Pablo Picasso)

A selecção é, todavia,  um pouco desequilibrada quanto à qualidade, mas a intenção dos comissários foi certamente fornecer uma perspectiva do tratamento do nu nos dois últimos séculos. Entre as obras maiores, figuram o São Sebastião, de Guido Reni, Os Adolescentes, de Pablo Picasso, A Morte de Jacinto, de Jean Broc ou Jovem nu sentado à beira-mar, de Flandrin.

A Morte de Jacinto (Jean Broc)

Dos autores representados, citamos Francis Bacon, William Blake, Arno Breker, Paul Cadmus, Cézanne, Cocteau, Jacques-Louis David, De Chirico, Thomas Eakins, Von Gloeden, David Hockney, Georges de La Tour, Thomas Lawrence, Herbert List, Robert Mapplethorpe, Gustave Moreau, Edvard Munch, Pierre et Gilles, Rodin, Egon Schiele e Andy Warhol.

Jovem nu sentado à beira-mar (Flandrin)

O escritor Dominique Fernandez, no artigo que publicou no Nouvel Observateur aquando da inauguração da exposição, embora elogiando a iniciativa, criticou a selecção e arrumação das obras: «On a l'impression d'être dans une salle des ventes, invité à faire son choix entre différents types anatomiques. Projet culturel ou revendication des droits civiques? J'applaudis à la victoire de ceux-ci, regretant qu'ils n'aient pas été mieux défendus par celui-là.»

Finistère (Paul Cadmus)

A propósito dos desenhos e fotografias, Dominique Fernandez manifesta também a sua decepção: «Les Cocteau sont de deuxième zone, les von Gloeden sans son audace légendaire, les Herbert List et les Mapplethorpe timides...L'Arno Breker, fort beau, fera bondir.»

La vie active, [ou Der Wager] (Arno Breker)

Não sendo possível abordar neste espaço todo o conteúdo da exposição, nem mesmo os seus aspectos mais relevantes, recomenda-se a todos os interessados a aquisição do catálogo, uma belíssima edição da Flammarion, em que para lá das imagens figuram valiosos textos sobre o nu masculino, subscritos pelos grandes especialistas na matéria.

domingo, 15 de dezembro de 2013

CRISTIANO RONALDO: O MUSEU




 Cristiano Ronaldo tem desde hoje o seu Museu, no Funchal. Não que CR7 seja já uma peça de museu, ainda está muito fresco para isso, mas tal não impede que a sua figura se erga, em cera, no espaço agora dedicado a albergar os troféus do que é, em minha opinião, o melhor jogador de futebol que conheci.

 A fama de Ronaldo, que se estende aos quatro cantos do mundo, não só é devida à sua habilidade de desportista, mas também ao seu  aspecto físico e ao cuidado que empresta ao visual, que o tornou  num ícone de beleza masculina exaltado quer nas revistas da especialidade, quer na imprensa em geral. Aliás, CR7 aprecia esse tratamento jornalístico e até o cultiva, para grande satisfação dos seus fans, o que, com a contribuição de muitos dos seus companheiros por esse mundo fora, está a tornar o futebol numa passerelle de modelos masculinos.

Guardadas as devidas proporções, parece que estamos a voltar aos jogos da Antiga Grécia, onde, em nome da estética (ou do que se quiser chamar-lhe), os atletas competiam nus.


PETER O'TOOLE




Morreu ontem em Londres, com 81 anos, Peter O'Toole (n. 1932), célebre actor irlandês de teatro e de cinema, especialista em Shakespeare e que se notabilizou pela sua interpretação do protagonista do filme Lawrence of Arabia, ou em películas de referência como Becket e The Lion in Winter.

Os seus desempenhos, no teatro, em King Lear, Othello, Macbeth, The Merchant of Venice e Hamlet ficaram famosos. Sobre ele, disse o seu agente Steve Kenis: «He was one of a kind in the very best sense and a giant in his field».

Recentemente retirado da vida artística, Peter O'Toole foi certamente um dos maiores actores do seu tempo, e a sua morte empobrece a cena britânica e mundial.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

DO ISLÃO AO ISLAMISMO




O romancista argelino Boualem Sansal acaba de publicar um interessantíssimo e oportuníssimo livro,  Gouverner au nom d'Allah, onde analisa, em apenas 150 páginas, o nascimento e a evolução do islamismo, um desvio do verdadeiro islão.

Trata-se de uma obra indispensável para todos quantos desejem compreender, num  competente resumo, um fenónemo que ocupa diariamente a imprensa mundial.

O autor começa por tratar do caso da Argélia, sua terra natal, da passagem do colonialismo para o islamismo, da guerra civil que durou uma dezena de anos, da situação actual do país. Detém-se depois sobre os princípios da religião muçulmana, descreve as correntes, as escolas e os ramos do islão, e situa a sua presença no mundo. Debruça-se, a seguir, sobre os movimentos islamistas radicais, sobre os estados muçulmanos, as elites intelectuais, os media, a "rua árabe" e a emigração.

Termina, escrevendo sobre o mundo árabe (um mundo virtual à procura de uma identidade e de um futuro) e sobre a política ocidental do islamismo.

É concedido, ao longo da obra, um lugar de relevo à Irmandade Muçulmana, à questão da Palestina,  à "primavera árabe" e, sobretudo, à forma subterrânea como o fundamentalismo islâmico se foi infiltrando, insidiosamente, não só no países árabes e muçulmanos, mesmo naqueles que são, ou eram, laicos, como no chamado mundo ocidental.

Para os especialistas, Boualem Sansal nada revela de novo, mas tem o imenso mérito de elucidar os menos familiarizados com o problema, e que só o conhecem pelas notícias, com uma realidade que nos está a bater já à porta.

Um serviço prestado à cultura islâmica e à cultura tout court.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

NELSON MANDELA





Nelson Mandela, primeiro presidente negro da África du Sul, herói da liberdade e da tolerância, uma das grandes figuras do século XX, morreu ontem à noite em Joanesburgo.

Transcreve-se notícia do jornal "i":


«Nelson Mandela morreu pacificamente às 20h50, menos duas horas em Lisboa,   na sua casa em Joanesburgo, África doSul. Mandela tinha 95 anos, completados a 18 Julho, na sua casa, para onde foi levado em Setembro, após quase três meses de internamento hospitalar em Pretória devido a uma grave infecção pulmonar.  O antigo prisioneiro número 46 664 da ilha prisão de Roben Island agonizou corajosamente durante meses no seu leito de morte, antes de ficar finalmente livre para entrar na eternidade. O anúncio da morte de Mandela foi feito pelo presidente sul-africano Jacob Zuma, vestido com uma camisa preta, num depoimento para a televisão estatal: “A nossa nação perdeu o seu filho mais importante”.
Zuma dirigiu-se aos sul-africanos referindo que “Mandela uniu-nos e é unidos que nos devemos despedir dele”. Apesar deste apelo à unidade, o internamento de Mandela esteve envolto num circo mediático montado junto ao hospital onde o ex-chefe de Estado esteve internado em Pretória e a presença oportunista de inúmeras personalidades políticas que rodeavam o paciente manteve-se quase até ao fim e passou mesmo para dentro da própria casa, com os herdeiros a digladiarem-se numa guerra suja pela partilha dos seus bens.
Mandela já não se terá apercebido desta luta travada pelos descendentes do seu primeiro casamento, filhas e netos, e destes contra a sua última mulher, Graça Machel, o foco principal do ódio e ressentimento dos herdeiros de Mandela.

Duas de três filhas de Mandela, no total teve seis filhos de três casamentos, Makaziwe e Zenani, intentaram uma acção judicial contra um grupo de advogados nomeados pelo pai para dirigirem duas empresas cujo objectivo é acumular dinheiro para os seus herdeiros. De forma intencional, Mandela decidiu não permitir que a família exercesse o controlo destas e de outras empresas patrimoniais. No entanto, duas irmãs,  apoiadas por outros membros da família, tentam por todos os meios, e contra os desejos expressos pelo pai, obter o controlo das referidas empresas.
As filhas do Prémio Nobel da Paz e primeiro presidente negro da História sul-africana recorreram aos tribunais pedindo acesso a uma parte da sua fortuna pessoal. Madiba havia-lhes negado tal direito em 2008, quando despediu um advogado que alegadamente facilitava o acesso das suas contas às filhas, substituindo-o na condução da fundação com o seu nome por dois homens de confiança, o advogado George Bizos e Tokyo Sexwale, actual membro do governo.

Enquanto os herdeiros aguardavam avidamente o momento das partilhas, durante algum tempo houve discussões públicas sobre a decisão de desligar os aparelhos vitais que mantinham vivo o pai da pátria. Desde logo, o governo quis capitalizar o efeito político Mandela e sempre temeu distúrbios após o seu desaparecimento.  
Muitos sul-africanos defenderam logo que Madiba foi internado que tinha chegado a hora da nação se preparar para o deixar partir em paz, enquanto alguns membros da sua família eram fortemente criticados por se preocuparem exclusivamente com a partilha do seu património.  “As pessoas estão profundamente perturbadas com a mesquinhez de alguns dos seus familiares”, denunciou, em certa altura, a professora Sarah Nutall ao jornal Today. “Ao contrário de Martin Luther King e de Gandhi, ele não foi assassinado. Deveríamos ter-lhe dado a oportunidade de morrer em paz”, sublinhou. Os políticos do CongressoNacional Africano (ANC) no poder sempre temeram que Mandela desaparecesse antes das eleições de 2014, com receio de que isso pudesse ter algum impacto negativo no resultado eleitoral. Mandela congregava tudo e todos. Muitos dos seus familiares e líderes de variadas procedências viviam praticamente à sombra do seu legado. Talvez isso fosse resultado do verdadeiro passe de mágica que realizou quando, em 1994, juntou no novo hino nacional duas músicas estruturalmente antagónicas: o hino nacional da África do Sul do apartheid, The Call (O apelo) e o do ANC, Nkosi Sikelel Africa, (Deus Abençoe África) para criar uma nova harmonia musical e racial.

O país do arco-íris, um conceito inventado pelo arcebispo Desmond Tutu, ainda é hoje uma miragem, numa certa África do Sul mergulhada na violência e na corrupção, mas é um sonho de Mandela e, como todos os sonhos, é passível de se realizar, desde que os homens o queiram.
Hoje, o novo dia na África do Sul será de dor e tristeza profunda marcado pela certeza absoluta da incapacidade de se conseguir encontrar uma referência nacional com a grandeza humana de Mandela. Para os sul-africanos, e para o mundo, resta o privilégio de se ter podido conhecer um ser humano excepcional.
Graça Machel, viúva pela segunda vez de um presidente da República, deve ter-se sentido a pessoa mais infeliz do mundo, com a perseguição que as filhas e um dos netos de Mandela sempre lhe moveram, chegando mesmo a questionar a legitimidade do seu casamento.

Winnie e Graça Machel. Duas mulheres marcantes na vida de  Mandela

Sob o título “A vigília de amor de Graça”, o semanário “City Press” de Joanesburgo destacou na primeira página, na sua peça principal, o amor e dedicação de Graça Machel ao ex-presidente Nelson Mandela, que ontem morreu. À semelhança de outros artigos, publicados na imprensa sul-africana durante a prolongada doença, a peça fala não só do amor incondicional que Graça Machel tem dedicado a Madiba,  mas também da dignidade pela qual a activista moçambicana tem pautado as suas acções desde que o marido ficou doente. Em contraste, a comunicação social, amigos e um número crescente de sul-africanos anónimos têm condenado em uníssono acções de membros da família de Mandela, que esgrimiram em tribunal argumentos sobre quem tem direito a ditar o local onde Madiba seria sepultado.

“A África do Sul tem para com Graça Machel uma tremenda dívida de gratidão pela alegria que ela deu à sua vida desde o seu casamento”, disse ao “City Press” o arcebispo Desmond Tutu. Nelson Mandela e Graça Machel casaram-se há 15 anos.
Ao contrário de Graça, mas reverenciada por milhões de pessoas nas cidades negras pobres e chamada de “Mãe  da Nação”, Winnie foi uma das vozes que se insurgiu contra o poder. Defensora da prática  do pneu a arder no pescoço dos adversários, disse um dia: “Com os nossos fósforos e pneus libertaremos este país”.

Também foi acusada de rapto e assassinato do activista Stompie Moekesti, de 14 anos, e membro do ANC. Alegações de violência envolvendo membros do Clube de Futebol Mandela United, que agiam como seu corpo de guarda e exército privado no Soweto, continuam recorrentes. Winnie desmente as acusações, mas as suspeitas sobre si persistem. Winnie diz frequentemente que o ANC falhou na resolução dos problemas da maioria negra e prevê um futuro negro se nada melhor for feito para os pobres.
“A vida de primeira-dama não me serviria”, disse Winnie. “E nem sei o que faria como dona de casa”, afirmou um dia. Hoje, Winnie faz parte da direcção política do ANC.»

AS MÁSCARAS DE "UM BAILE DE MÁSCARAS"



Gustavo III

O recente visionamento de Un Ballo in Maschera, de Verdi, na célebre produção de 1989 em Salzburg, encenada por John Schlesinger, que deveria ter sido dirigida por Herbert von Karajan, falecido dias antes da estreia e que foi, oportunamente substituído por Georg Solti, recordou-me as peripécias desta ópera.

Como se sabe, o tema é o assassinato do rei Gustavo III da Suécia, durante um baile de máscaras, na Ópera Real de Estocolmo, em 16 de Março de 1792. Sobre este acontecimento, Eugène Scribe escrevera um libretto para o compositor Daniel-François-Esprit Auber, cuja ópera, que subiu à cena em Paris em 27 de Fevereiro de 1833, se chamou Gustave III ou le Bal masqué. O espectáculo alcançou grande sucesso e Verdi apaixonou-se pelo assunto, tendo pedido um libretto ao seu colaborador Antonio Somma que, para o efeito, recorreu ao texto escrito por Scribe, efectuando as convenientes modificações e adaptações ao estilo verdiano.

Contudo, a censura de Nápoles recusou a ópera em 1859, com o pretexto de que não se mata um rei em cena. Para mais, algum tempo antes verificara-se uma tentativa de assassinato do imperador Napoleão III. Para satisfazer as exigências dos censores, Verdi deslocou a acção para Stettin, transformando o protagonista em duque da Pomerânia. Não chegou. Para a Casa das Duas Sicílias também era inconveniente a morte de um duque. Verdi resolveu então transferir a acção para a América e o rei Gustavo III  tornou-se o Conde Riccardo de Warwick, governador de Boston. O seu assassino, o jovem aristocrata Johan Jakob Anckarström passou a ser Renato, secretário e amigo fiel do governador.

A causa do assassinato é a suspeita (ou mesmo a certeza, dadas as circunstâncias) de Renato de que a sua mulher Amelia, é amante do governador. Aliado aos condes Adolf Ludvig Ribbing e Claes Fredrik Horn (na ópera Samuele e Tom) que conspiram por razões políticas, Renato, cego pelo ciúme, dispara o tiro fatal.

Habitualmente, é a versão "americana" que é apresentada, e só muito raramente a ópera se passa em Estocolmo, protagonizada pelo rei Gustavo III, o que, felizmente acontece na grandiosa produção a que nos referimos no início.

Assim, só com uma máscara a ópera pôde fazer carreira, constituindo um dos marcos na obra de Verdi.

Mas há mais. Existe uma outra máscara que não foi devida a qualquer censura oficial, senão à censura dos "bons costumes" da época. O rei da Suécia não terá sido assassinado por razões sentimentais ou mesmo políticas, apesar da contestação do seu governo por parte de muitos nobres. A causa seria o resultado de intrigas e rivalidades homossexuais, já que Gustavo III era gay (*) e vivia rodeado de muitos favoritos, entre os quais Axel von Fersen, Adolf Muell, Johan Aminoff e Gustave Arnfelt. Duvidava-se mesmo da paternidade do seu primeiro filho.



Na produção de Salzburg, que se incorpora, é evidente a preocupação do encenador John Schlesinger em salientar essa tendência do monarca, apresentando, no I e no III actos, o rei rodeado de jovens e bonitos cortesãos.

E assim se faz a arte e a história.

(*) Michel Larivière, Homosexuels et bisexuels célèbres, Delétraz Editions, 1997 (pág. 171)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

AUSTERIDADE



O economista escocês Mark Blyth (n.1967), professor da Brown University (Providence, EUA), publicou no princípio do ano um livro sobre a actual situação económica e financeira mundial, intitulado Austerity - The History of a Dangerous Idea, que entretanto foi traduzido em várias línguas, incluindo a portuguesa.


A ideia do livro, que lhe foi sugerida por um amigo, atendendo aos seus estudos sobre a matéria, entusiasmou-o e concretizou-se na presente obra, cuja oportunidade não carece de ser enaltecida. De facto, e em especial na Europa, a palavra "austeridade" circula de boca em boca e justifica as medidas governamentais mais incríveis e as injustiças mais flagrantes. Aliás, ela é exactamente evocada para justificar essas mesmas medidas e permitir a instauração de um estado de excepção nos Estados, cuja finalidade é a redução destes ao mínimo de intervenção na vida pública. Como o delírio não tem limites, ignora-se até onde os corifeus do neo-liberalismo absoluto pretendem limitar a acção estatal.

Apesar dos discursos dos políticos da nova ortodoxia (que se desembaraçou da economia keynesiana), é consensual entre os economistas que não sacrificam no altar de Merkel e do IV Reich que a austeridade produz recessão, a recessão impede o crescimento e, em consequência, aumenta a dívida, a hoje tão propalada "dívida soberana". A crise financeira nos Estados Unidos, que alastrou à Europa (e ao mundo), provocou um verdadeiro abalo no sistema financeiro internacional, nomeadamente no sistema bancário, e levou os estados a criarem o jargão da "austeridade" para salvarem a banca, já que os países do norte da Europa (maxime Alemanha) se opõem aos eurobonds, à mutualização da dívida, a todas as medidas que possam, de alguma forma, colidir com os seus interesses específicos, numa clivagem Norte/Sul que passou a substituir a ideologia Direita/Esquerda. Ainda agora, na coligação CDU/SPD, Merkel apenas aceitou medidas de "esquerda" para vigorarem na Alemanha, recusando qualquer compromisso de solidariedade com os países do Sul.

Por razões muito diversas, que não por serem os seus habitantes preguiçosos, são especialmente os países do sul da Europa os mais atingidos pelas políticas da austeridade: a Grécia, a Irlanda, Portugal, a Espanha, a Itália e, mesmo, a França. Cada um com os seus problemas particulares. As receitas para a crise, aplicadas pelas troikas impostas pela Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional, são as mesmas. A Espanha e a Itália evitaram até agora o resgate e não parece crível que venham a sujeitar-se ao mesmo. A Grécia, a Irlanda e Portugal têm situações diferentes. Na Grécia, o remédio tem sido catastrófico. Na Irlanda, parece que as coisas se recompõem lentamente. Em Portugal, o cenário é o que conhecemos.

Como afirma Mark Blyth, a história da austeridade é a história de uma ideia perigosa. Escreve o economista: «O facto de pura e simplesmente não funcionar é a primeira razão pela qual a austeridade é uma ideia perigosa. Mas também é uma ideia perigosa porque o modo como a austeridade está a ser apresentada, tanto pelos políticos como pelos meios de comunicação - como o retorno de uma coisa chamada "crise da dívida soberana", supostamente criada pelos Estados que aparentemente "gastaram de mais" -, é uma representação fundamentalmente errada dos factos. Esses problemas, incluindo a crise dos mercados de obrigações, começaram com os bancos e acabarão com os bancos. A confusão actual não é uma crise da dívida soberana gerada por gastos excessivos seja de quem for, à excepção dos gregos. Quanto a todos os outros, o problema são os bancos pelos quais os fundos soberanos têm de se responsabilizar, especialmente na zona euro. O facto de lhe chamarmos "crise da dívida soberana" sugere uma política muito interessante de "engodo e desvio" em acção.» (pág. 21 da edição portuguesa).

Mark Blyth recorda também o filme Inside Job, sobre a crise financeira e a que nos referimos aqui e aqui. A política actualmente seguida de destruição do Estado Social, de cancelamento do investimento público, de desregulação dos mercados, de desagregação do tecido social não permitirá o pagamento da dívida, antes provocará uma explosão de violência, a que Mário Soares se referiu já em Portugal e o Papa Francisco denunciou ao Mundo. O autor sustenta com números a sua argumentação (o livro foi editado pela insuspeita Oxford University Press e lembra que «os 400 norte-americanos mais ricos têm mais activos do que os 150 milhões de base, enquanto 45 milhões de norte-americanos, cerca de 15 por cento da população, vivem em famílias de quatro pessoas que ganham menos de 22 314 dólares por ano.» (pág. 33) [na edição original a cifra não é de 45 mas de 46 milhões].

É evidente que o empobrecimento incessante das nações provoca uma significativo aumento das desigualdades sociais, e que, em muitos países, uma parte da população se encontra já no limiar da pobreza, quando não na mais completa indigência. «Populismo, nacionalismo e apelos ao regresso de "Deus e dinheiro" em doses iguais é o que a austeridade desigual gera, e ninguém, nem mesmo os do topo, beneficia. Num mundo tão desigual e austero, os que partem do fundo da distribuição do rendimento ficarão no fundo, e, sem possibilidades de progresso, de "melhoria da situação de uma pessoa", como diz Adam Smith, o único movimento possível é um movimento violento. Apesar do que a Srª Thatcher terá dito um dia, não só existe uma coisa chamada "sociedade", como nós vivemos nela, tanto os ricos como os pobres, para o melhor e para o pior.» (pág. 36).

Não sendo possível alongar-me em considerações e citações (a edição portuguesa tem 400 páginas), recomendo a leitura desta obra.

Concluindo, nas circunstâncias actuais, a dívida portuguesa é impagável, qualquer que seja a dose de austeridade. Aliás, quanto maior a austeridade, mais difícil a possibilidade de pagamento.