domingo, 14 de novembro de 2021

PENSAR A MORTE É ENFRENTAR A PRIMEIRA DAS CERTEZAS


«Notre société, tournée vers les sciences "exactes", veut oublier ce moment inéluctable; elle cherche à oublier les rites, les croyances anciennes mais, au jour de notre passage dans l'autre monde, nous voici encore plus dépourvus, désamparés, plongés dans la crainte alors que des civilisations anciennes acceptaient et se réjouissaient même d'accéder à cet autre monde. Alors ne convient-il pas  de parler de la mort afin de surmonter notre angoisse?» (p. 36)

Entre as muitas obras publicadas sobre a Morte, Le sens caché des rites mortuaires - Mourir est-il mourir? (1993), de Jean-Pierre Bayard (1920-2008) é uma das mais notáveis e completas, sendo o seu autor um dos grandes especialistas do esoterismo contemporâneo. 

«La crainte de la mort a sans doute toujours existé; les vestiges les plus anciens montrent une réaction humaine fort compréhensible; la foi en une survie n'a pu modifier cette attitude défensive mais, dans notre civilisation de consommmation, la mort est encore plus mal perçue.» (p. 47)

Recorda o autor a última frase de Mémoires d'Hadrien, de Marguerite Yourcenar: «Tâchons d'entrer dans la mort les yeux ouverts...»

A Primeira Parte do livro trata da Fabulosa Aventura Humana, da morte em si mesma, do medo desta  e da mortalidade.

A Segunda Parte é dedicada ao Culto dos Antepassados. Debruça-se sobre a universalidade dos ritos mortuários, dos ritos no pensamento ancestral, dos costumes das sociedades tradicionalistas e da morte iniciática.

Relativamente aos ritos funerários, o autor detém-se especialmente no Oriente (karma, Bardo Thödol [o Livro dos Mortos do budismo tibetano], a alma e o nirvana, o ciclo dos renascimentos [Sri Aurobindo], incineração, viagem da alma na China Antiga), no Egipto [com particular referência ao embalsamamento], no Mazdeísmo, na Bacia Mediterrânica, nas Canárias, na África Negra [ausência do receio da morte, perda do nome, rituais da morte, purificação, pigmeus e ritos iniciáticos, reinserção no clã], no Maghreb, na Oceania, nos Índios da América, no México e na América Antiga, no vaudou, em Madagáscar.

Nos costumes das sociedades tradicionalistas, o autor aborda os ritos abraâmicos, israelitas, cristãos, islâmicos, celtas e ciganos. 

Ainda na Segunda Parte é reservado particular espaço à morte iniciática, aos ritos maçónicos (câmara de reflexão, graus de Mestre ao 33º do Rito Escocês Antigo e Aceite e cerimónias fúnebres).

A Terceira Parte trata do Culto do Corpo: o acompanhamento da morte, o combate à morte, as mortes violentas e os monumentos funerários. Se a morte não existe, segundo as teorias primitivas, então ela é devida a malefícios que vêm pôr fim à nossa existência: epidemias, pena de morte, guerras e duelos, sacrifícios, suicídio. Nos monumentos funerários distinguem-se as cavernas, as construções megalíticas, os túmulos etruscos e citas, as pirâmides, os túmulos, mausoléus e catacumbas cristãs, etc. 

A Quarta Parte ocupa-se do Culto da Alma: o mundo de além-túmulo, o inferno, as vidas anteriores, os sonhos e as premonições; a imortalidade e a ressurreição, as relíquias, os fantasmas, os vampiros, o tribunal supremo e a festa dos mortos; ainda, a reencarnação e a sua abordagem nas diversas religiões. 

No fim, o testamento vital, endereços úteis, uma extensa bibliografia e um índice pormenorizado.

Livro cuidadosamente ilustrado, ainda que escrito há mais de duas décadas, mantém a sua actualidade é será de grande utilidade para os interessados na matéria.


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

SOBRE "LE GRAND REMPLACEMENT", DE RENAUD CAMUS


Como anunciara, quando li Tricks, debrucei-me agora sobre a polémica obra de Renaud Camus, Le Grand Remplacement, que conhecia de nome mas que só mais recentemente suscitou a minha curiosidade, embora não ignorasse o tema. 

De há muito que Renaud Camus (RC) está preocupado com o facto da população francesa nativa vir a ser substituída parcial ou mesmo totalmente pelos imigrantes das mais diversas origens que convergem para França, nomeadamente os africanos e os árabes. 

A obra que acabei de ler é a 5ª edição (2019) de um volume muito mais extenso (500 páginas) do que o original. Nela, RC engloba o primeiro livro dedicado ao tema, "Le Changement du peuple" (2013), artigos, entrevistas, conferências, discursos e outros textos, desde 2010 até 2017.

Inegavelmente, RC é um autor de pena elegante, de prosa fluente, e os factos são, no geral, confirmadamente objectivos, ainda que algumas conclusões possam ser por vezes forçadas e o remédio para os males invocados ineficaz, porque tardio, a menos que os governos europeus, no caso vertente o Governo francês, pudessem adoptar medidas que extravasam largamente os padrões actualmente aceites e que, mesmo assim, talvez se revelassem infrutíferas.

Sendo um conjunto de 28 publicações, na presente edição de Le Grand Remplacement, tratando invariavelmente do tema que preocupa o autor, a substituição parcial ou mesmo total da população francesa indígena pela população migrante, torna-se inevitável a repetição da argumentação e até a repetição de vários episódios, como o facto  do escritor Richard Millet ter manifestado há já alguns anos a sua estupefacção, perante as câmaras da televisão, de ter verificado um dia, às seis horas da tarde, na estação de Châtelet (a mais movimentada estação de metro de Paris) que era o único (ou quase) indivíduo branco naquele local àquela hora. Sendo o livro a compilação de textos de diversas datas, essa repetição seria sempre fatal, mas ocorre também dizer que se torna fastidiosa.

Desde há muito tempo que a obsessão de RC é a possibilidade de os franceses autóctones virem, num futuro próximo, a ser substituídos por migrantes de alheias etnias, religiões, tradições, costumes, etc. E é um facto que a população actual de França conta hoje com cerca de 15% de cidadãos franceses oriundos das migrações ou seus descendentes. Isto sem falar dos imigrantes já estabelecidos no solo francês mas que ainda não obtiveram a respectiva nacionalidade.

Os factos e os acontecimentos descritos por RC são, em geral, confirmados pelos dados oficiais, ainda que algumas das conclusões possam ser eventualmente adaptadas às conclusões a que o autor pretende chegar. E existem também, há que dizê-lo, outros factos e acontecimentos que, contrariando a tese de RC, o autor não menciona. 

As grandes migrações árabo-africanas para França começaram em finais do século XIX, e foram sempre bem aceites pelos governos franceses, até porque se tratava de pessoal trabalhador, pouco reivindicativo e que aceitava desempenhar as tarefas cada vez mais desinteressantes para os franceses de souche. Na grande maioria foram remetidos para as periferias das cidades, englobados em cités, confinados a uma vida mais do que modesta. O problema do convívio surge por altura dos anos oitenta do século passado, quando essas populações tranquilas começam a manifestar as suas exigências, devido até ao seu peso demográfico e às deficientes condições de integração. Principiam a surgir entre a juventude os pequenos delitos, o tráfico de droga, a insuficiência de escolaridade, etc. E o convívio começo a tornar-se difícil. Tudo isto é agravado pelo fundamentalismo islâmico. A campanha wahhabita desencadeada em especial pela Arábia Saudita, e levada a cabo por imames locais, o interminável conflito israelo/palestiniano (com o qual RC pouco se importa) e, a coroar este caldo de cultura, a invasão anglo-americana do Iraque, as "primaveras árabes", o bombardeamento da Líbia e o assassinato de Qaddafi, a guerra na Síria, a turbulência no Afeganistão, determinaram um aumento exponencial de imigrantes e a radicalização dos comportamentos de algumas faixas de franceses muçulmanos, com expressão nos diversos atentados ocorridos em solo gaulês. Nunca esquecer, e eu tive ocasião de verificar in loco, que o regime de Qaddafi constituía um tampão a sul do Mediterrâneo que impedia o afluxo para França (e Itália) de, nomeadamente, milhares de africanos sub-saharianos, que eram travados em Tripoli ou Benghazi, e utilizados nos trabalhos menores que os líbios desdenhavam fazer.

Só muito tarde os governos europeus se aperceberam, ou quiseram aperceber-se, desta substituição populacional que tanto preocupa RC e tantos milhares de pessoas.

Ao proceder ao diagnóstico da situação, aventa o autor algumas medidas para travar o "agravamento" da situação ou até revertê-la. Não creio que sejam eficazes ou exequíveis.

Numa perspectiva mais geral, e como Toynbee ensina, as migrações maciças e o declínio das civilizações insere-se no plano geral da História. Quem estiver interessado poderá ler A Study of History, um estudo imenso de que existe uma versão inglesa condensada, por acaso até traduzida em português (1964) pelo prof. Vieira de Almeida. Numa perspectiva mais dos nossos dias, podemos recorrer a Umberto Eco, quando afirma, em 1997: «Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem, "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma. Este confronto (ou choque) de culturas poderá ter saídas sangrentas, e estou convencido de que em certa medida as terá, que serão inevitáveis e durarão muito tempo. Porém, os racistas deveriam ser (na teoria) uma raça em vias de extinção. Não existiu um patrício romano que não suportava que se tornassem também cives romani os gauleses, ou os sarmatas, ou os judeus como São Paulo, e que pudesse subir ao trono imperial um africano, como veio por fim a acontecer? Este patrício esquecemo-lo, foi derrotado pela história. A civilização romana foi uma civilização de mestiços. Os racistas dirão que é por isso que se dissolveu, mas foram precisos quinhentos anos - e acho que é um espaço de tempo que nos permite também a nós fazer projectos para o futuro.»

O problema das populações exógenas na Europa reveste-se de particular acuidade em França. Suponho que é difícil reverter os erros do passados.  Não podem os governos franceses livrar-se agora dos indivíduos árabo-africanos, até porque a expulsão dos mesmos, não sendo eticamente aceitável, também não seria exequível, pois sendo eles de pleno direito (excepto os ilegais) cidadãos franceses, não haveria países para devolvê-los. E também ninguém advoga o fuzilamento em massa!!! E quanto às actuais imigrações ilegais em curso, elas poderão ser dificultados mas não decisivamente travadas, como refere Umberto Eco, a menos que se bombardeiem os barcos que fazem a travessia do Mediterrâneo, o que não se afigura compatível com o actual status civilizacional. Claro que também existem imigrações terrestres, contra as quais a Polónia e a Hungria vêm erguendo muros, ou a Turquia retendo migrantes por conta do dinheiro da União Europeia, mas não serão medidas decisivas.

Que fazer?

Não possuindo remédio milagroso para obstar a todas as futuras calamidades profetizadas por RC, e contornando Soumission, de Michel Houellebecq, que prevê um futuro presidente da República Francesa de origem tunisina, não são muitas as opções a considerar. Sendo os negros e os "escuros" seres humanos a quem é devido o "ontológico" respeito, devem ser -lhes garantidos os mesmos direitos económicos e sociais de que desfruta a população autóctone, exigindo-se-lhes em troca o respeito pelas tradições e costumes da República, se necessário com a utilização dos meios indispensáveis. E deve atender-se, também, ao melhoramento da sua inserção social o que, apesar do muito que está escrito em seu favor ou desfavor, é ainda deficiente, decorrente até da enlouquecida globalização económica sofrida pelo mundo nos últimos anos. Há, porém, uma medida de mais fácil aplicação e que se afigura de alguma razoabilidade, atendendo até ao índice do crescimento demográfico das populações emergentes: a concessão de direitos políticos deve processar-se com muita parcimónia, para evitar um dos principais receios de Michel Houellebecq e de Renaud Camus: que os franceses venham a ser governados, a breve trecho, por indivíduos cujas etnias, religiões, costumes, nada tenham a ver com a França, e a sua Grandeza, para evocar o general De Gaulle.

É claro que este tema convoca vastos desenvolvimentos, não é apenas a França, e mesmo a Europa, que está em causa, mas o planeta por inteiro, já que, embora menos visíveis ou menos mediatizadas, se verificam hoje outras transferências de populações, como, por exemplo, no continente americano. Mas este texto constituiu tão só uma modesta proposta de reflexão sobre o livro de Renaud Camus.

Aguardemos...


segunda-feira, 1 de novembro de 2021

SOBRE "LE CAMP DES SAINTS", DE JEAN RASPAIL

Publicado em 1973, o livro Le Camp des Saints, de Jean Raspail (1925-2020), passou sem especial controvérsia, ou realce, pelo meio editorial e com o particular silêncio da crítica de esquerda. Foi a partir da sua edição americana em 1975, com o título The Camp of the Saints, que a obra adquiriu particular notoriedade, vindo a ser reeditada em França em 1978 e obtendo então um sucesso de vendas, o que levou à realização de nova edição em 1985. A amplitude real dos eventos ficcionados atingiu tal dimensão que conduziu à presente edição de 2011, que agora comento, à qual o autor acrescentou um prefácio, "Big Other", título parafraseando a obra de George Orwell, e onde explica a carreira acidentada do livro, obra verdadeiramente premonitória, cujo argumento é amplamente confirmado pelos factos que se verificaram posteriormente, em especial desde o início da passada década. 

Como refere o autor nesse prefácio, este livro seria hoje impublicável, ou objecto de uma censura que o amputaria e desfiguraria completamente. Aliás, Jean Raspail inclui em apêndice todas as passagens do livro que cairiam eventualmente sob a alçada das celeradas leis Pleven (1972), Gayssot (1990), Lellouche (2001) e Perben (2003) que introduziram em França severas penalidades e interdições relativamente a afirmações consideradas (ou supostamente consideradas) racistas e anti-semitas. Não tendo, porém, efeitos retroactivos, Le Camp des Saints, publicado em 1973, escapou, e continua a escapar, à censura francesa, sendo publicado no respeito integral do texto original.

A propósito do título do livro, o autor cita o Apocalipse:  «À la fin des mille ans, Satan sera delivré de sa prison. Il en sortira pour séduire les nations qui sont aux quatre coins de la terre, Gog et Magog, et les rassembler pour le combat, elles qui égalent en nombre le sable de la mer. Elles partirent en expédition sur la surface de la mer, elles investirent le camp des saints et la ville bien-aimée. Mais Dieu fit tomber un feu du ciel qui les dévora. Et le diable qui les séduisait fut jeté dans l'étang de feu et de soufre, où étaient déjà la bête et le faux prophète, et où leur tourment, de jour et de nuit, durera aux siècles des siècles.»

Dada a sua extensão, qualquer comentário pormenorizado sobre o assunto do livro seria sempre demasiado longo e imperfeito. Para um adequado conhecimento do enredo deve ler-se a obra ou, pelo menos, a sinopse que consta da Wikipédia. 

Eis um resumo de um possível resumo do texto. Cem barcos, alguns deles quase podres, partem de Calcutá, do delta do Ganges, com um milhão de bengalis, na maioria famélicos e doentes, e dirigem-se à Côte d'Azur, o paraíso idealizado dos "damnés de la terre", após infrutíferas tentativas de vários países em desviar a rota da "armada" ou até em aniquilá-la. A hesitação, primeiro na Europa (ignorando-se o destino final) e depois em França é de pânico absoluto. Os defensores dos direitos do homem, os anti-racistas, as organizações não governamentais, as Nações Unidas e apêndices, os espíritos bem-pensantes, a esquerda chique, proclamam a imperiosidade do acolhimento mas perante a iminência de um desembarque geral a população do sul de França abandona casas e haveres e dirige-se para o norte do país. O presidente da República apela à tranquilidade e garante que a fronteira será defendida manu militari, sem convicção, já que não ignora que as tropas se recusarão a disparar contra uma multidão faminta, composta especialmente por velhos, mulheres e crianças, embora não só. Simultaneamente, ocorrem em toda a França greves e tumultos dos imigrantes já instalados, árabes ou negros, que se solidarizam com os recém-chegados, ao contrário de outros imigrantes, igualmente árabes e negros mas pertencendo já às elites franceses e que pretendem conservar os privilégios adquiridos. Tirando um punhado de bravos, as tropas cederão à invasão migrante e os novos habitantes ficarão instalados nas casas e cidades abandonadas pelos seus proprietários. Uma nova era começa.

Trata-se, evidentemente, e com uma larga antevisão (1973), do problema das migrações maciças para a Europa ocorridas nos últimos anos, sobretudo a partir da invasão anglo-americana do Iraque e da guerra na Síria. E do receio dos franceses, já com um número considerável de migrantes árabes e africanos no seu território (vindos de Marrocos, da Tunísia, da Argélia, especialmente depois da descolonização, e de algumas antigas colónias africanas que entretanto alcançaram a independência) se verem substituídos na sua terra natal por cidadãos oriundos de excêntricas paragens. O mérito de Jean Raspail é o de ter previsto a amplitude do fenómeno com cinquenta anos de avanço. O problema não se colocava ainda com especial acuidade na altura em Raspail escreveu o seu livro, já que os migrantes então existentes foram essenciais para fazer funcionar a economia francesa carecida de mão-de-obra mais barata e disponível para a execução de tarefas que os nativos se recusavam a desempenhar.

Esta obra é o que se costuma designar em França por "roman à clef": as personagens fundamentais, os jornais, as instituições, são designadas por nomes supostos, alguns tão diferentes do original que só um especialista conseguirá determinar a verdadeira identidade. Exercício difícil não só para um estrangeiro, ainda que bem informado sobre a pretérita vida política e cultural francesa do último meio século, mas igualmente para o francês de hoje, mesmo que possua uma cultura média. 

Trata-se de um romance inegavelmente bem escrito, e muito claro, até pelo menos três quartos do seu texto. A partir daí, e quando o autor começa a debruçar-se sobre as perturbações registadas na própria França, nos seus meios operários, estudantis, militares, políticos, etc., Jean Raspail deixa-se envolver na teia dos acontecimentos que ele mesmo convoca e o livro torna-se algo ininteligível e até, digamos, um tanto maçador. O pormenor das possíveis repercussões no tecido social do país, decorridas da pretensa invasão bengali, é mais do domínio de uma análise sociológica do que de um romance de antecipação histórica. Expostas as linhas gerais, o detalhe ficcional é supérfluo.

Pode, contudo, considerar-se Le Camp des Saints o primeiro grito de alarme literário sobre o problema das imigrações em território francês, que Renaud Camus explicitaria mais recentemente no seu livro Le Grand Remplacement (2011 e edições seguintes).

A tese fundamental de Raspail é a de que o mundo ocidental, através de todos os seus movimentos e organizações internacionais criou um clima propício à deslocação maciça de populações do terceiro mundo, só entrando em pânico quando essas populações lhe batem à porta. É também uma violenta denúncia da hipocrisia da sociedade contemporânea e dos seus principais representastes (no livro nem o Papa, um papa fictício,  e a Igreja Católica escapam) e da tibieza daqueles cuja missão é precisamente a preservação dos valores e do modo de vida da civilização ocidental.

A argumentação de Jean Raspail é pertinente (obviamente do seu ponto de vista) mas ignora alguns dados históricos de irrefutável veracidade. Sempre, ao longo dos tempos, se verificaram volumosas transferências de populações, motivadas pelas mais variadas causas: fome, guerra, anseio de melhor nível de vida, curiosidade de outras paragens, ou até forçadas pelos governos dos seus próprios países. A História está cheia de exemplos e contra essas movimentações a pena de Raspail é inútil. Arnold Toynbee, em A Study of History, explica isso.

Além do mais, e apesar dos acontecimentos a que vimos assistindo nos últimos anos (muitos dos quais, i. e., o terrorismo, são exógenos a essas movimentações e decorrem da instrumentalização política de terceiros), é possível uma assimilação razoável dos recém-chegados no seio dos indígenas de tradições milenares, desde que criadas as condições indispensáveis para uma integração progressiva e humana. Uma coisa que a França (nem a maioria dos países) não soube fazer desde há mais de um século. Nem é preciso pertencer às inúmeras associações anti-racistas, anti-xenófobas, anti-qualquer coisa, que vivem (elas e os seus membros) à custa dos subsídios dos governos, para compreender que nada impede a sã convivência de brancos, negros, árabes, ou quaisquer outras raças (ou etnias) ou mesmo de credos diferentes ou sem credo algum, desde que seja possível estabelecer um "pacto" tácito de relacionamento, "pormenor" até hoje sistematicamente ignorado.

A análise do livro de Raspail levar-nos-ia muito longe, não cabendo naturalmente no espaço de um post. Mas não posso deixar de referir uma passagem de uma conferência do célebre Umberto Eco em Valência, no Convénio organizado sobre as Perspectivas do Terceiro Milénio, em 23 de Janeiro de 1997, e incluída no seu livro Cinque scritti morali (1997), de que existe uma tradução portuguesa, da qual reproduzo: «Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem, "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma. Este confronto (ou choque) de culturas poderá ter saídas sangrentas, e estou convencido de que em certa medida as terá, que serão inevitáveis e durarão muito tempo. Porém, os racistas deveriam ser (na teoria) uma raça em vias de extinção. Não existiu um patrício romano que não suportava que se tornassem também cives romani os gauleses, ou os sarmatas, ou os judeus como São Paulo, e que pudesse subir ao trono imperial um africano, como veio por fim a acontecer? Este patrício esquecemo-lo, foi derrotado pela história. A civilização romana foi uma civilização de mestiços. Os racistas dirão que é por isso que se dissolveu, mas foram precisos quinhentos anos - e acho que é um espaço de tempo que nos permite também a nós fazer projectos para o futuro.»

Voltaremos ao tema, quando comentarmos Le Grand Remplacement, de Renaud Camus.