sábado, 27 de fevereiro de 2021

KRÓL ROGER

Vi hoje, em DVD, a ópera de Karol Szymanowski (1882-1937), Król Roger, na produção estreada em 2015 no Covent Garden e que foi apresentada pela primeira vez, em 19 de Junho de 1926, no Wielki Theatre de Varsóvia.

Compositor polaco, nascido na Ucrânia quando esta fazia parte do Império Russo, a sua obra musical é considerável e foi executada pelos mais notáveis intérpretes. Destaca-se nela a ópera Król Roger (Rei Rogério), inspirada n’As Bacantes, de Eurípides, da qual escreveu o libretto em conjunto com seu primo Jaroslaw Iwaszkiewicz.

Apaixonado pelo mundo árabe, e depois de uma estada no Maghreb, Szymanowski escolheu para tema a corte de Rogério II (1095-1154), rei da Sicília, onde coexistia uma forte presença cultural católica, bizantina e muçulmana. Aliás, foi exactamente na Sicília que passou a maior parte do seu tempo Frederico II (1194-1250), Santo Imperador Romano-Germânico, homem de leituras, protector das artes, interessado na cultura islâmica e que se rodeou de conselheiros árabes. Note-se que Frederico II era neto de Rogério II.

A intenção de Szymanowski, ao escrever esta ópera, foi estabelecer uma ponte musical, religiosa e filosófica entre o Oriente e o Ocidente, o que é mais ou menos evidenciado consoante as encenações.

A ópera foi baptizada com dois títulos alternativos, Rei Rogério ou O Pastor, tendo prevalecido o primeiro. De facto, há verdadeiramente dois protagonistas, o Rei, senhor todo-poderoso na Corte de Palermo, e o Pastor, que chega inesperadamente, qual o Visitante, no Teorema, de Pasolini, e que provoca a desordem sentimental da família.

Deve dizer-se que tanto Szymanovski como seu primo Iwaszkiewicz eram homossexuais, orientação que se reflecte nos seus escritos. O romance Efebos, do primeiro, perdeu-se num incêndio em 1939, mas o capítulo central fora traduzido para russo e oferecido pelo compositor, em 1919, a Boris Kochno, um bailarino então com 15 anos, seu amante durante algum tempo.

Nesta produção de Król Roger são intérpretes principais dois jovens cantores: o barítono polaco Mariusz Kwiecien, no papel de Rei e o tenor albanês Saimir Pirgu, no papel de Pastor. A orquestra da Royal Opera House Covent Garden foi dirigida por Antonio Pappano e o espectáculo foi encenado por Kasper Holten, numa perspectiva actualizada mas convincente, a que a dança orgíaca de nus masculinos no II Acto empresta um clima adequado às intenções do autor.

Fiz referência, há semanas, da outra gravação desta ópera em DVD, com a designação King Roger, apresentada no Festival de Bregenz, em 2009, com execução musical da Wiener Symphoniker, dirigida por Sir Mark Elder e encenação de David Pountney.

 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

UMA GRANDE FAMÍLIA


Foi publicado no mês passado o livro La familia grande, de Camille Kouchner, em que a autora relata a história da sua família, nomeadamente o caso do assédio sexual ao seu irmão gémeo (então com 13 anos, à vezes aparece com 14, segundo o livro ou a informação divulgada na imprensa), ocorrido há mais de 30 anos, por parte do padrasto de ambos, o professor Olivier Duhamel, um dos mais prestigiados politólogos e juristas franceses, professor universitário emérito, deputado europeu e presidente da Fundação de Sciences-Po.

Neste livro, que está a perturbar a França, e cuja intenção é, sem dúvida, mais do que relatar a estória agitada da poderosa família, denunciar publicamente aquele episódio, Camille Kouchner modifica o nome de alguns intervenientes, pretensamente para proteger a sua privacidade. Trata-se, todavia, de uma precaução inútil, já que é fácil verificar as respectivas identidades, além do que o caso era desde há anos conhecido do círculo mais restrito de familiares e amigos, embora o grande público o ignorasse.

 

Assim, antes de me referir propriamente ao livro, entendi conveniente inscrever as dramatis personae:

 

- Bernard Kouchner (n. 1939) – Médico e político, fundador de Médicins sans frontières e Médicins du monde (conhecido como o French Doctor), militante comunista, depois socialista, foi ministro de várias pastas no tempo de François Mitterrand, de quem era próximo. Mais tarde aceitou o convite de Nicolas Sarkozy para sobraçar a pasta dos Negócios Estrangeiros, o que provocou a sua expulsão do Partido Socialista. Recentemente, apoiou a candidatura de Emmanuel Macron à presidência da República. Foi um defensor do “dever de ingerência humanitária”, conceito que se substituiu ao de “direito de ingerência humanitária” e sustentou o bombardeamento da Jugoslávia pela NATO, sendo a seguir nomeado Alto Representante das Nações Unidas no Kosovo. Durante a sua carreira, com intervenção pessoal ou política em diversos conflitos, apoiou os Estados Unidos e o Reino Unido nas duas guerras do Iraque. Também as suas posições relativamente ao conflito israelo-palestiniano são controversas. É membro da Agência de Modernização da Ucrânia, com Bernard-Henri Lévy e Karl-Georg Wellmann e é colaborador da Compagnie Edmond de Rothschild. Em 1977, assinou com mais 69 personalidades um manifesto escrito por Gabriel Matzneff e publicado em “Le Monde”, contra a detenção de pessoas suspeitas de relações com menores então com 13 anos. Entre os subscritores contam-se Louis Aragon, Roland Barthes, Simone de Beauvoir, Jean-Louis Bory, François Châtelet, Patrice Chéreau, Copi, Gilles Deleuze, Bernard Dort, Jean-Pierre Faye, André Glucksmann, Félix Guattari, Jean-Luc Hennig, Guy Hocquenghem, Jack Lang, Michel Leiris, Jean-François Lyotard, Catherine Millet, François Ponge, Jacques Rancière, Jean-Paul Sartre, René Schérer, Philippe Sollers e Hélène Védrine, isto é, os maiores nomes da intelectualidade francesa da época.

Conheceu em 1964, aquando de uma viagem a Cuba, a sua futura mulher Évelyne Pisier, a qual manteve então uma ligação com Fidel Castro. Passou a viver com Evelyne, com quem partilhava as suas posições revolucionárias, pouco antes do nascimento do primeiro filho de ambos, Julien (n. 1970). Em 1975 nasceram os gémeos, Camille e Antoine. Devido às suas longas ausências em missões no estrangeiro, Évelyne decidiu separar-se em 1980, tendo-se divorciado oficialmente em 1987. Desde a separação, Évelyne passou a viver com o professor e jurista Olivier Duhamel. Bernard Kouchner tornou-se companheiro de Christine Ockrent (1980), famosa jornalista, tendo tido um filho, Alexandre Kouchner (n.1986)

 

- Évelyne Pisier (1941-2017) – Militante feminista de esquerda, apoiante dos movimentos revolucionários, jurista, professora universitária emérita da Sorbonne, alta funcionária do Ministério da Cultura, escritora, conferencista, casou a primeira vez com Bernard Kouchner, acima citado, em 1970. Tiveram três filhos, como acima se referiu. Devido às longas ausências do marido no estrangeiro, separou-se em 1980, passando a viver com Olivier Duhamel, nove anos mais novo, com quem se casou em 1987. O casal adoptou duas crianças chilenas, Aurore, em 1987, e Simon, em 1989. Irmã da notável actriz Marie-France Pisier, os pais de ambas suicidaram-se, o pai Georges, em 1986, com um tiro na cabeça e a mãe, Paula, em 1988, por envenenamento. Depois da morte da mãe, Evelyne tornou-se alcoólica e veio a morrer numa operação a um cancro do pulmão.

 

- Julien Kouchner (n. 1970) – Filho de Bernard Kouchner e de Évelyne Pisier, estudou na École Spéciale des Travaux Publics, du Bâtiment et de l’Industrie de ParisEspecialista dos media e da transição digital é director-geral do Groupe Profession Santé. Casado, tem um filho chamado Joachim, nascido em 2009.

 

- Antoine Kouchner (n. 1975) – Filho de Bernard Kouchner e de Évelyne Pisier, estudou na Universidade de Paris-Diderot e especializou-se em electrónica e neurinos cósmicos. É professor-investigador do Laboratório de Astropartículas e Cosmologia. Casado, tem três filhos. Terá sido abusado sexualmente por seu padrasto Olivier Duhamel, desde os 13 anos e durante alguns anos. Revelou o caso à irmã gémea Camille Kouchner, com a promessa de rigoroso segredo mas esta viria a revelar o caso à mãe, que lhe pediu silêncio para evitar a dissolução do seu casamento. Só depois da publicação do livro de Camille, ele viria a apresentar queixa ao Ministério Público, estando todavia os factos prescritos desde 2003.

 

- Camille Kouchner (n. 1975) – Filha de Bernard Kouchner e de Évelyne Pisier, irmã gémea do anterior, mestre de conferências, publicou o livro La Familia Grande em 2021, onde denuncia o abuso sexual continuado do seu padrasto na pessoa do seu irmão gémeo, começado quando este tinha 13 anos. Vive com um companheiro, e tem filhos.

 

- Marie-France Pisier (1944-2011) – Irmã de Évelyne Pisier, famosa actriz de teatro e de cinema, tendo trabalhado com os mais notáveis encenadores e realizadores. Viveu com o actor Robert Hossein, foi casada com o advogado Georges Kiejman (1973-1979) e depois com Thierry Funck-Brentano desde 2009, mas com quem já vivia a partir de 1984. Funck-Brentano é primo direito de Olivier Duhamel. Foi encontrada morta pelo marido, no fundo da piscina da sua residência, entalada numa cadeira metálica, tendo a polícia aberto um inquérito e presumido tratar-se de um suicídio, embora a hipótese de assassinato não fosse totalmente descartada. Marie-France estava zangada com sua irmã Évelyne, por questões ideológicas e também por esta se opor à divulgação do abuso sexual do cunhado sobre o sobrinho. Tornara-se alcoólica nos últimos anos.

 

Olivier Duhamel (n. 1950) – Um dos mais notáveis constitucionalistas e politólogos, professor das universidades de Besançon, Paris-Nanterre e Paris-Sorbonne e de Sciences-Po, presidente da Fundação Nacional das Ciências Políticas, conselheiro da presidência do Tribunal Constitucional Francês, deputado europeu, conferencista, ensaísta. Em 2020 assumiu a presidência do clube de influência “Le Siècle”. Esteve casado de 1974 a 1981 com Leïla Murat (n. 1953), descendente do príncipe Joachim Murat. Casou em 1987 com Évelyne Pisier, com quem vivia desde os anos 1980. É acusado de relações sexuais incestuosas com o seu enteado Antoine Kouchner, iniciadas quando aquele tinha 13 anos de idade. Depois da divulgação pública deste caso, situação que ele contesta, demitiu-se de todos os seus cargos. Reconhecendo ter tido conhecimento destes factos desde 2018, e tendo-os ocultado, também o director de Sciences-Po, Frédéric Mion, se demitiu este mês das suas funções.

 

- Alexandre Kouchner (n. 1986) – Filho de Bernard Kouchner e de Christine Ockrent, diplomado de Sciences-Po, analista político, jornalista, actor  e conselheiro em comunicação.

 

- Christine Ockrent (n.1944) – Jornalista célebre, escritora, apresentadora do “Journal de 20 heures”, directora-geral do Audiovisual Exterior da França, membro do Grupo de Bilderberg, vive desde 1980 com Bernard Kouchner, com quem teve um filho, Alexandre Kouchner, acima referido.

 

- Thierry Funck-Brentano (n. 1947) – Homem de negócios, universitário, administrador e director de Relações Humanas do Grupo Lagardère. Primo direito de Olivier Duhamel, casou em 2009 com Marie-France Pisier, com quem vivia desde 1984. Há dois filhos desta união: Mathieu (n. 1984), actor e Iris (n. 1986), actriz.

 

São estas as principais personagens referidas no livro La Familia Grande, ainda que a autora tenha modificado alguns nomes próprios. Assim Julien Kouchner aparece citado como Colin, Antoine Kouchner, como Victor, Alexandre Kouchner, como Adrien, os filhos adoptivos chilenos, como Luz e Pablo, etc.

Os curricula, ainda que sumários, estão, relativamente aos parentescos, tão completos quanto pude averiguar, ignorando-se as datas mais recentes de alguns dos netos dos principais protagonistas.

 

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Tendo encomendado o livro por curiosidade, esperava que se tratasse de uma prosa intragável, atendendo às repercussões do conteúdo na imprensa. Devo confessar alguma surpresa ao lê-lo. O texto está razoavelmente bem escrito e até cerca de metade do volume a história da família (e nunca se sabe o que é verdadeiramente real ou o que é ficcionado) afigura-se coerente. Quando a autora se começa a debruçar sobre o caso do “incesto” propriamente dito e sobre os seus “problemas de consciência” em não ter denunciado imediatamente os factos, e também sobre as suas relações com a mãe, com a tia, com os irmãos e com o padrasto, então o texto torna-se verdadeiramente alucinante e muitas vezes incompreensível. Afigura-se que pretende uma justificação para a sua denúncia do caso mas que se sente simultaneamente culpada por tê-la feito e por ter obrigado o irmão “abusado” a reconhecer publicamente a situação, ele que sempre desejara o silêncio sobre esses episódios já antigos. Camille Kouchner relata também os seus vários problemas de saúde, donde ressalta uma grande instabilidade emocional. Poderemos até concluir que se trata de uma doente mental.

Para frisar bem a culpabilidade do padrasto, Camille transcreve (ignoro se a transcrição é fidedigna) os artigos do Código Penal francês que condenam a 20 anos de reclusão criminal os culpados de violação e que consideram relações incestuosas as praticadas por um ascendente ou colateral (digamos assim para simplificar) seja "carnal", seja por um pacto civil. Isto é, a legislação francesa consagra o incesto “por afinidade” (curiosa figura jurídica), quando sempre se definiu o incesto através da consanguinidade. O facto, contudo, não me espanta, pois os franceses atingiram já um patamar de delírio jurídico que se arrisca a ultrapassar as controversas leis de Vichy, decretadas pelo marechal Pétain.

Também não é revelado no livro, “por pudor?” ou por ignorância ou inexistência de factos, o tipo exacto de relações que o padrasto mantivera durante anos com o seu irmão gémeo sem este nunca se ter queixado, excepto através de uma confidência à irmã. Insinua esta que poderia tratar-se de acariciamento e felação activa ou irrumação, por parte do padrasto. Deduz-se que  nunca houve coito anal. Também não se diz se o irmão exerceu alguma posição activa em relação ao padrasto. Talvez conste dos autos.

Para concluir, que este post já vai longo, devo referir que Camille Kouchner, que viveu sempre no seio de uma grande família e de numerosas amizades (atendendo ao seu elevado estatuto social) lamente que após a revelação dos factos apenas um número restrito de pessoas se tenha solidarizado com a sua atitude, passando muita gente a afastar-se dela: uns, preferiram ignorar o que se terá verificado; outros acharam que estas coisas se resolvem no seio da família e nunca se trazem para a praça pública.

Permanece uma questão: o que levou verdadeiramente Camille Kouchner a decidir-se publicar agora este livro?

- Ânsia de protagonismo numa família em rota descendente e onde ela nunca atingiu o nível da mãe, do pai, da tia e do padrasto;

- Necessidade de dinheiro;

- Vingança pessoal ou política;

- Ciúme do padrasto ter preferido relacionar-se com o irmão gémeo em lugar de a procurar a ela;

- Perturbação mental acentuada, evidenciada na escrita e no relato que faz das suas sucessivas doenças, e tendo em atenção que quer a mãe, quer a tia se tornaram alcoólicas dependentes no fim da vida.

Talvez o tempo responda a estas questões!

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

GÖTTERDÄMMERUNG

Concluí hoje a revisitação de "Der Ring" na versão Barenboim/Kupfer, vendo (e ouvindo) a última parte da Tetralogia: "Götterdämmerung", apresentada no Festival de Bayreuth.
 
A morte de Siegfried e a devolução do ouro às Filhas do Reno conduz à destruição do Walhalla, a morada dos Deuses. Crepúsculo anunciado desde que Wotan, para satisfazer sua esposa Fricka (a guardiã das virtudes domésticas) sacrificou Siegmund, quebrando-lhe a espada Notung no combate com Hunding. Siegmund, filho adulterino de Wotan, tivera uma relação incestuosa com Sieglinde, sua irmã gémea, engendrando Siegfried. O próprio Siegfried cometerá incesto com sua tia Brünnhilde e, tendo as Nornas deixado de tecer o destino dos homens, acabará morto por Hagen. 
 
Resulta da história dos Nibelungos, e mesmo da vida de Wagner, que foi a condenação do incesto, desejada por Fricka, que levou à queda dos Deuses.
 
Um tabu controverso ao longo dos tempos, sobre o qual muitos se debruçaram no século passado com especial autoridade, como Sigmund Freud e Claude Lévi-Strauss.
 
Apesar das lições da História, o juízo social e penal relativamente ao tabu continua a ser severo, já que o discernimento humano não cessa de obnubilar-se.
 
 
(Publicado no Facebook em 25 de Fevereiro de 2021) 

RICHARD WAGNER ERA RACISTA?

Prosseguindo na visualização de "Der Ring", revi ontem e hoje "Siegfried" na versão Barenboim/Kupfer.
 
Poderá acusar-se Wagner de racista, tal como se tem qualificado Shakespeare de anti-semita por causa de "O Mercador de Veneza"?
 
Certamente Wagner produziu escritos e teve atitudes anti-semitas, mas não lhe é atribuída posição racista em relação aos negros. Contudo, oiça-se "Siegfried" com atenção, no diálogo da caverna, entre Wotan (O Viajante) e Mime. Respondendo às perguntas deste Wotan diz: «No cimo das montanhas habitam os Deuses e o Walhalla é o seu domínio... Sobre a terra estão os Gigantes e Riesenheim é o seu domínio... Nas entranhas da terra habitam os Nibelungos e Nibelheim é o seu domínio. São anões pretos, ...» e a palavra "schwarz" é repetida várias vezes com o significado de seres pretos e disformes.
Esperemos que esta alusão não conduza ao "cancelamento" de "Siegfried"! Nem de Wagner! (se não o foi por anti-semitismo não será agora).
 
(Publicado no Facebook em 20 de Fevereiro de 2021)
 

RICHARD WAGNER OU A PAIXÃO DO INCESTO

Revi ontem e hoje a Primeira Jornada de "Der Ring": "Die Walküre", na versão que já comentei a propósito do Prólogo.
 
Richard Wagner foi homem de grandes paixões e acumulou muito próximas, ou íntimas, relações femininas e masculinas: Wilhelmine Planer (Minna), Mathilde Wesendonck, Cosima Liszt ou Luís II da Baviera, por exemplo.
 
A sua vida caracterizou-se pela excentricidade e por uma fractura dos costumes, que a sua obra também revela. Em "Die Walküre", Wagner proporciona o encontro dos dois gémeos, Siegmund e Sieglinde, que procriam Siegfried, o qual, por sua vez, fará descobrir o amor a sua tia, a valquíria Brünhilde, filha de Wotan.
 
O incesto é tão antigo como a Humanidade, mas ao longo dos tempos tem constituído o tabu cultural por excelência, ainda que largamente praticado apesar da repressão social (e penal). No Antigo Egipto era comum e bem aceite (na Família Real era frequentemente usado). Também se verificava na velha Grécia (Sófocles encena o casamento de Édipo com sua mãe Jocasta, nas circunstâncias conhecidas) e igualmente em Roma, embora aqui menos tolerado.
 
Shakespeare revela-nos a paixão incestuosa de Hamlet por sua mãe Gertrude. Nos impérios Inca e Azteca foi comportamento utilizado, bem como em África (antes da chegada dos europeus) e em muitas regiões do Extremo-Oriente e da Oceânia. Freud analisou-o com pormenor em "Totem e Tabu" e Claude Lévi-Strauss debruçou-se sobre ele em toda a sua obra. A ele dedicou Yvan Simonis o livro "Claude Lévi-Strauss ou 'La Passion de l'Inceste'".
 
li dei" (Os Malditos), coloca na cama o jovem Martin von Essenbeck e sua mãe a baronesa Ingrid. E Bernardo Bertolucci, em "La luna", não hesita em mostrar Caterina Silveri a afagar seu filho, o adolescente Joe.
 
No seu último livro, "As Núpcias", Natália Correia ficciona também a relação entre um casal de irmãos incestuosos, reinterpretando o mito de Osíris e Isis.
 
Breves apontamentos registados de memória. Seria interessante revisitar a História.
 
(Publicado no Facebook em 18 de Fevereiro de 2021)
 

DAS RHEINHOLD

Revisto ontem à tarde o primeiro DVD de "Der Ring des Nibelungen", o prólogo "Das Rheingold", no Festival de Bayreuth de 1991. Direcção musical de Daniel Barenboim. Encenação de Harry Kupfer. Supervisão artística de Wolfgang Wagner, que ainda conheci em São Carlos. 
 
Navegando entre deuses (Wotan, Donner, Froh e Loge), deusas (Fricka, Freia e Erda), os nibelungos (Alberich e Mime), os gigantes (Fasolt e Fafner) e as filhas do Reno (Woglinde, Wellgunde e Flosshilde).
 
Homenageando o célebre compositor no aniversário da sua morte em Veneza (13 de Fevereiro de 1883).
 
Continuarei a revisão da Tetralogia nos próximos dias.
 
(Publicado no Facebook em 14 de Fevereiro de 2021)
 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

CONTOS DO EGIPTO

Foi publicado em 2010 um volume com a tradução inglesa (de Chip Rosseti) de duas novelas de Bahaa Abdelmegid, um jovem escritor egípcio, professor da Universidade de Alexandria e das Universidades de Al-Azhar e de Ain-Shams, no Cairo, que adquiri em 2014, mas que só agora li.

Tinha aguardado uma ocasião propícia para contactar com a prosa deste promissor intelectual, e acabei por fazê-lo devido a um infausto acontecimento de que só há pouco tempo tive conhecimento: Bahaa Abdelmegid morreu no Cairo, no passado dia 13 de Dezembro, vítima de Covid-19, um vírus que é a maldição do século, se outras calamidades, naturais ou artificiais, não surpreenderem o planeta nas décadas que ainda faltam para se concluir o século.

Compõe-se o volume das novelas Saint Theresa e Sleeping with Strangers, editadas inicialmente e separadamente em árabe com a designação Sant Tereza (2001) e   النوم مع الغرباء (2005).

Reproduzo a notícia do falecimento do escritor transmitida pela newsletter de The American University in Cairo Press:


Remembering Bahaa Abdelmegid

«It was with great sadness that AUC Press learned of the death of young Egyptian novelist Bahaa Abdelmegid. He passed away in Cairo on December 13 from complications due to Covid-19.

A week ago, he posted a photo of himself on oxygen on social media. “Today, his Facebook page was filled with hundreds of tributes from colleagues and readers who wrote about his kindness, his gentle nature, and his encouragement of fellow writers,” wrote ArabLit blogger Marcia Lynx Qualey in her online tribute to the late writer.

“We will miss Bahaa greatly, as he was a big part of the AUC Press family of Egyptian writers,” said Trevor Naylor, AUC Press associate director, sales and marketing.

Abdelmegid combined two passions: writing and teaching. He was the author of a collection of short stories, two novellas, Saint Theresa and Sleeping with Strangers, translated by Chip Rossetti (AUC Press, 2010), and several novels, among them Temple Bar, translated by Jonathan Wright (AUC Press, 2014).

“Bahaa was a great author and a kind, gentle soul. It was wonderful to work with him as translator for his two novellas: he was generous with his time, responsive, and animated by his genuine love of literature,” said Rossetti.

Abdelmegid was also a visiting professor at Alexandria University and at Cairo’s Al-Azhar University, and taught English and English literature at Ain Shams University.

In a book review of Temple Bar, Al-Ahram Weekly described Abdelmegid’s style as “absolutely arresting.” The novel explores the cultural and spiritual troubles of Egyptian student Moataz after he leaves Cairo for Dublin in 1998. A Fulbright scholar from a poor family, the protagonist endures various unexpected struggles after he enrolls at Dublin’s Trinity College to research a PhD thesis on Irish literature. The late author once referred to his novel as “semi-autobiographical.”  His most latest novel, القطيفة الحمراء (Red Velvet), came out this year.

He obtained a BA in English and later an MA and a PhD in English literature from Cairo’s Ain Shams University. His MA thesis, entitled “The Theme of Violence in the Animal Poetry of Ted Hughes,” explored “the relationship between human violence in comparison to animal violence and how the two differ from each other.” While working on his MA, Abdelmegid obtained a Fulbright to study at Saint Michael’s College in Vermont, and he spent a year as a PhD student at Trinity College, Dublin.

Tarek Ghanem, former AUC Press commissioning editor, attended one of Abdelmegid’s Arabic novel-writing workshops. “Bahaa was a gifted teacher, capable of bringing together creative writing, politics, psychology, all of which were bustling inside the workshop and outside the window.” said Ghanem. “He was widely read, passionate about world literature and its role in human existence and personal experience, filled with moving stories and anecdotes, capable of motivating all the participants to write and produce. Above all, everyone in the workshop loved him. . . . After meeting him, one can tell he is a popular and loved literature professor, the type you hear about in novels, impacting people’s lives for love. He was this kind of a person.”

AUC Press extends its deepest condolences to Bahaa’s family at this difficult time.»

As duas novelas incluídas no volume revelam um escritor preocupado com a vida social no Egipto de hoje, os problemas amorosos, económicos, sociais, religiosos dos egípcios numa perspectiva comparável à que Naguib Mahfuz (Prémio Nobel da Literatura em 1988) nos forneceu na sua vastíssima obra, especialmente na "Trilogia do Cairo": Entre Dois Palácios (1956)بين القصرين ; O Palácio do Desejo (1957)قصر الشوق ; O Jardim do Passado (1957)السكرية , sobre o quotidiano egípcio do século passado.

Entre os temas escolhidos conta-se, nestas novelas, a emigração para os Estados Unidos, a pequena delinquência, episódios no interior das prisões, prostituição, dinheiro, negócios, relações familiares e sexuais, questões entre muçulmanos, cristãos e judeus, a guerra com Israel, superstições, djinns,  e tantos assuntos que não é possível descrever neste espaço.

Curiosa a epígrafe de Saint Theresa: "The Spirit is Willing but the Flesh is Weak", que é uma máxima cristã. 

Deu-me especial prazer a referência a tantos restaurantes, cafés, ruas, lojas e outros sítios que tão bem conheço no Cairo e em Alexandria. Ler estas novelas foi também revisitar esses locais. Incluindo especialmente o restaurante Estoril, no Cairo, num espaço entre dois edifícios, em Tala'at Harb, onde nunca entrei porque olhando de fora vi-o sempre vazio. Ignoro se é bom ou mau, ainda que os preços da ementa fossem ligeiramente superiores aos normais. Mas com o Felfela ao pé, ou o Groppi ou o Café Riche, a opção estava feita.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

PIERRE LOTI NA INTIMIDADE

Tendo-me referido a Pierre Loti (1850-1923) nos últimos dias, resolvi ler Pierre Loti - L'écrivain et son double (1998), que jazia na minha biblioteca desde a data da publicação. Eu sei que o tempo não estica e que muitos serão os livros que possuo e nunca chegarei a ler. É a vida!

O autor, Alain Buisine (1949-2009), professor na Universidade de Lille, é um especialista do famoso escritor turcófilo francês, sobre o qual publicou outros títulos.

É intenção deste livro descodificar a enigmática vida de Loti, mascarada desde as suas primeiras obras e desdobrada entre o oficial de marinha Julien Viaud, de seu verdadeiro nome, e o escritor e académico Pierre Loti. 

Note-se, por curiosidade, que, enquanto aspirante, o barco cuja tripulação então integrava, o "Vaudreuil", passou por Lisboa em 1871.

Uma das fontes importantes para a reconstituição da sua vida é, evidentemente, o seu Journal intime, embora certas passagens estejam rasuradas ou anotadas em código. 

Importa dizer que Loti foi desde muito cedo confrontado com o fantasma da morte, devido ao falecimento prematuro de seu irmão mais velho Gustave, médico militar, que adoeceu em serviço na Indochina e, sendo repatriado tardiamente, acabou por morrer a bordo do navio que o transportava de regresso a França, tendo o corpo sido lançado ao mar no Golfo de Bengala. Este facto jamais foi esquecido por Loti e é recorrente ao longo de toda a sua obra.

Também Tahiti, onde estivera seu irmão, foi objecto de grandes descrições de Loti, especialmente das jovens (e dos jovens) que facilmente e gostosamente se entregavam aos europeus. É que em Tahiti reinava alguma indiferenciação entre corpos femininos e masculinos, uma noção diferente de família, num ambiente de sensualidade e de voluptuosidade específico das ilhas polinésias. 

Um dos prazeres favoritos de Loti era mascarar-se e ser fotografado com as vestes mais extravagantes. Podemos vê-lo vestido de indígena do Senegal, de grego, de marinheiro, de albanês, de acrobata de circo, de bretão, de emir, de deus Osíris, de académico, de sheikh, de mandarim chinês, de pescador haitiano, de spahi, ou mesmo nu (com indumentária de ginástica). Usando às vezes o fez turco ou a boina basca. Diz-se que a grande satisfação que experimentou ao ser eleito para a Academia Francesa foi precisamente a de poder passar a envergar o trajo de académico.

Em 1876, Loti passa a prestar serviço no navio Gladiateur, que está à disposição da Embaixada de França em Constantinopla. É aqui que se apaixona por Aziyadé, jovem e bela escrava de um harém, com quem se encontra em Eyüp, graças à cumplicidade de um criado albanês.  Os encontros têm lugar à noite, numa barca junto ao sopé do vasto cemitério muçulmano que se estende por toda a colina, desde a mesquita de Ayub Ansari (Eyüp) companheiro do profeta, que foi morto em 670, no primeiro cerco de Constantinopla. Depois da tomada da cidade, em 1453, por Mehmet II, este descobriu miraculosamente o túmulo desse discípulo, mandando construir no local um mausoléu e uma mesquita em sua honra. Loti está pois no seu meio, entre os mortos, praticando o amor. 

Transcreve-se uma passagem do livro: «Déjà à Salonique, dont les minarets ont "l'air d'un tas de vieilles bougies, posées sur une ville sale et noire où fleurissent les vices de Sodome." (Aziyadé) Lors de ses soirées en compagnie de Samuel, le fidèle serviteur: "[...] j'ai vu d'étranges choses la nuit avec ce vagabond, une prostitution étrange dans les caves où se consomment jusqu'à une complète ivresse le mastic et le raki..." (Aziyadé) Encore à Salonique, lorsque le pauvre Samuel complètement paniqué, croit que l'officier de marine lui fait des avances éhontées quand il lui prend la main en signe d'amitié. À vrai dire les choses s'étaient déroulées tout autrement si l'on se reporte au Journal intime où il apparaît nettement que Samuel était demandeur: "Sa main tremblait dans la mienne, et je soulevai sa tête pour le voir. Il était toujours étendu: immobile, mais son regard avait une animation étrange, et son corps tremblait:/'Che volete, dit-il d'une voix sombre et troublée, che volete mi? (Que voulez-vous de moi?)...'/ Et puis il me pris dans ses bras, et en me serrant sur sa poitrine il appuya ardemment ses lèvres sur les miennes... Le but étaient atteint cette fois, et même terriblement dépassé; j'aurais pu prévoir cette solution, je fus navré de l'avoir si étourdiment amenée. Et je me dégageai de son étreinte sans colère: 'Non, lui dis-je, ce n'est pas là ce que je veux de vous mon pauvre Daniel, vous vous êtes trompés; dans mon pays ce genre d'amour est réprouvé et interdit. Ne recommencés plus, ou je vous ferais prendre demain par les Zoptiés' Alors il se couvrit la figure de son bras et restait immobile et tremblant. Mais, depuis cet instant étrange, il est à mon service corp et âme." À vrai dire l'attitude de Loti fut sans doute nettement moins décourageante et beaucoup plus ambiguë si l'on se fie à la suite du Journal, racontant ce qui se passe quand Hakidjé a quitté la barque de Loti pour rejoindre la vieille négresse et le serviteur albanais: "quand nous fûmes seuls, Daniel vint s'asseoir près de moi dans la barque; il m'attira sur sa poitrine et appuya ma tête sur la sienne; c'est ainsi qu'il restait chaque nuit quelques minutes immobile et heureux - à force de tendresse, d'humilité, de charme insinuant, de persistance, il avait obtenu de moi cet étrange salaire de son dévouement sans limites./Je ne me méprenais point sur les sensations physiques inavouées de cet homme, le péché de Sodome fleurit dans cette vieille ville d'Orient où le hasard nous a réunis. Mais je ne sais pas repousser les humbles qui m'aiment, quand il ne me coûte rien de leur éviter ce genre de peine, le plus dur de tous . Y a-t-il un Dieu, y a-y-il une morale?"» (pp. 113-114-115)

Esta passagem ilustra bem a versatilidade das relações sexuais de Loti, que, contudo, preferiu manter sempre um clima de ambiguidade, nunca assumindo uma postura homossexual. Aliás, Loti não seria inclinado em exclusivo para o mesmo sexo, mas antes um bissexual praticante, com confirmadas aventuras com pessoas do sexo oposto, casado e pai de vários filhos, alguns deles ilegítimos.

O livro de Alain Buisine não é uma biografia no sentido tradicional, antes tendo como objectivo principal proceder a uma comparação entre a vida real de Loti e a forma como ele a descreve na sua vasta obra. De facto, as personagens dos seus livros são (a começar por ele) figuras reais mas travestidas, que transmitem ao leitor aquilo que Loti gostaria que tivessem sido mas que verdadeiramente não foram. É curioso que possamos detectar algumas dessas incongruências comparando os livros com o Diário íntimo, onde Loti deixa transparecer, às vezes intencionalmente, outras por acaso ou descuido, a realidade dos factos. 

Aliás, a vida de Loti foi sempre uma fantasia, como se comprova pela sua casa de Rochefort, transformada em habitação turca, onde, inclusive, mandou construir uma mesquita, tributo da sua paixão pelo Oriente, e onde promovia festas exóticas, especialmente concorridas.

Uma certa apreciação de Loti pelo sexo masculino, nem sempre dissimulada, constitui também uma preocupação de Buisine.  Transcrevo, a propósito do reencontro, regressado da Turquia, com o quartier-maître Pierre Le Cor, com quem já tinha navegado, um rapaz dotado de grande beleza fisica: «"Mon ami Pierre a vingt-six ans. [...] De haute taille, étonnamment large de poitrine, avec des bras d'Hercule, des muscles de fer. La figure à peu près imberbe, d'ailleurs entièrement rasé. Basané, bronzé par tous les hâles de la mer; - des sourcils froncés, sous lesquels sont pronfondément enfoncés des yeux brun clair, qui dans la vie ordinire conservent une expression de 'regard en dedans'./ Le nez extrêmement  fin et régulier, - la lèvre méprisante, quelque chose de grave qui tient du moine et du soldat." (Cette éternelle nostalgie) Dans son Journal intime, Pierre Loti ne se cache pas l'extrême plaisir qu'il prend à dessiner son ami, nu, posant en druide, appuyé contre un menhir. "Quand les gens se déshabillent, d'ordinaire, c'est assez laid [...] Quand Pierre enlève ses vêtements, on dirait une statue grecque, dépouillant son enveloppe grossière, et l'on admire. Dans le même albâtre bronzé, dur et poli, se dessinent les saillies mobiles des muscles, et les lignes puissantes de l'athlète antique."» (pp. 118-119)

Registados alguns dos propósitos mais evidentes do livro de Alain Buisine, remete-se o leitor para a obra ou, caso seja esse o interesse, para uma biografia convencional de Pierre Loti.

 

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

MAALESH

Escrevi há dias um texto sobre o livro Cocteau, l'Égyptien de Ahmed Youssef, onde o escritor egípcio se debruça sobre as duas viagens de Jean Cocteau ao Egipto, nomeadamente sobre a segunda, em 1949, que relataria no livro Maalesh - Journal d'une tournée de théâtre.

Ahmed Youssef faz numerosas referências a Maalesh, algumas das quais reproduzi no meu texto, embora então não tivesse ainda lido integralmente a obra, o que fiz agora.

Esta segunda viagem de Cocteau, acompanhado por uma troupe teatral, iniciou-se no Egipto, mas teve continuação na Turquia e na Grécia, permitindo ao poeta francês visitar museus e monumentos e manter uma intensa vida social com os notáveis locais. Ao mesmo tempo fazia conferências e superintendia a montagem das peças que constavam do repertório da companhia, peças francesas naturalmente (as pessoas educadas de então, e os estudantes, compreendiam todos a língua francesa (o que não seria o caso de hoje, em que o inglês se arvorou numa espécie de esperanto comercial), designadamente peças de Victor Hugo, Feydeau, Sartre e dele mesmo.

O grosso do volume é dedicado ao Egipto, onde passou mais tempo, uma parte menor é consagrada à Turquia e outra ainda menor à Grécia, onde a companhia não chegou a representar por falta de local.

Nesta sua digressão oriental, Cocteau passou para o papel as suas impressões: no Egipto, quase exclusivamente sobre o período faraónico, já que o passado islâmico não lhe interessava; o mesmo se diga da Turquia, onde prevalecem as considerações sobre a época bizantina, descurando a época otomana, ainda que haja bastantes referências a Mustafa Kemal Atatürk, et pour cause, já que o fundador da Turquia moderna era manifestamente francófilo.

As observações sobre o Egipto Antigo são um tanto superficiais, mas Cocteau não era um especialista e estava especialmente preocupado com as suas relações mundanas, numa sociedade em que a classe dominante vivia em grande esplendor e o resto do país vivia na miséria, não existindo sequer uma classe média, como insiste em afirmar, embora isso não fosse totalmente verdade. Aliás, a República seria proclamada poucos anos depois. E Cocteau também não dispensou a mínima atenção às classes "baixas", chegando mesmo a desconsiderá-la, o que lhe valeu, mais tarde, a proibição do livro no Egipto.

Nas considerações sobre a Turquia, Cocteau alude a um assunto muito comentado: a paixão de Pierre Loti por uma lindíssima turca, Aziyadé, que descreve no romance homónimo. Ao fazer a "peregrinação" que todos fazemos em Istanbul, deslocando-nos ao Café que Loti frequentava em Eyüp, refere Cocteau que essa beldade seria possivelmente do sexo masculino, como sempre foi voz corrente, atendendo aos costumes do oficial e escritor francês. Escreveu Cocteau: «...je le vois mal rejoignant une Aziyadé aussi ambiguë que les jeunes filles de Proust.» (p. 152)

Existe um outro Maalesh (2003), o livro de fotografias de Étienne Sved (1914-1996), judeu húngaro de seu nome original Istvan Süsz, que fugiu para o Egipto em 1938, devido às perseguições nazis, onde se manteve até 1946, data em que se instalou em França, mudando então de nome. No Cairo, Sved estabelecera laços de amizade com Étienne Drioton, director do Museu Egípcio, que lhe facilitou as deslocações por todo o país, permitindo-lhe realizar milhares de fotografias, as mais diversas. 

A publicação do livro de viagens de Cocteau em 1949 sugeriu-lhe a ideia de fazer uma edição de fotografias tiradas no Egipto que pudesse de alguma forma constituir a ilustração da obra do poeta. Não só da monumentalidade faraónica mas também do verdadeiro povo, da vida do quotidiano nas suas misérias e grandezas. Quando recebeu a maquete, Cocteau mostrou-se entusiasmado e encorajou Sved a fazer a publicação, mas a obra foi sucessivamente rejeitada por vários editores, pois não correspondia a um género consagrado. Só em 2003 o livro-álbum fotográfico viria a ser publicado, incluindo no fim o texto de Maalesh, de Cocteau, na parte respeitante ao Egipto (portanto com exclusão da Turquia e da Grécia).

As belíssimas fotografias (mais de uma centena) de Sved são legendadas por passagens do livro de Jean Cocteau, ainda que não refiram directamente ao próprio texto mas tão só a uma alusão iconográfica.