quinta-feira, 26 de agosto de 2021

MOEDA FALSA, MAS POUCA!

Quase cem anos separam a publicação de Les faux-monnayeurs (1925), de André Gide (1869-1951) e o filme homónimo (2010)  de Benoît Jacquot (n. 1947). Vários foram os realizadores que tentaram passar ao cinema a célebre obra, a única que Gide classificou de "romance", entre a sua numerosa ficção. Entre os mais conhecidos contam-se Luigi Comencini e o próprio Marc Allégret (que na juventude fora um dos amantes preferidos de Gide) mas a difícil, e problemática, passagem à película só viria a ser concretizada por Benoît Jacquot. 

Trata-se de um livro complexo, recheado de personagens principais e acessórias (o que justificaria no fim uma tábua com a identificação dos intervenientes e as suas relações familiares), dominado contudo pela figura de Édouard, um alter ego de Gide, através do qual o escritor exprime as suas próprias opiniões sobre a literatura, até porque se trata de um romance de alguma forma autobiográfico.

Apesar de uma grande liberalidade em matéria de costumes, ao longo da obra aflora a educação protestante de André Gide, que se manifesta em subtis pormenores. Na contracapa do vídeo, o editor refere que o realizador escolheu para interpretar as personagens adolescentes do filme jovens com menos idade do que a referida no romance. Com esta atitude terá pretendido, porventura, acentuar a inclinação pederástica de Gide, revelada pelo escritor desde Corydon e assumida na primeira pessoa nos seus livros, pelo menos em Si le grain ne meurt e no Journal. Gide afirmava ser pederasta mas, curiosamente, rejeitava a classificação de homossexual, no melhor estilo da Antiga Grécia.

O filme, para mais sem legendas, é por vezes dificilmente inteligível. Mas não seria possível condensar claramente em duas horas de película as 400 densas páginas do romance. Um livro em que se cruzam várias histórias, com desfechos por vezes surpreendentes e abundam personagens de ambígua orientação sexual. A acção concentra-se todavia à volta de Édouard, 40 anos, nitidamente homossexual, em seu sobrinho Olivier, de 17 anos, que nutre uma óbvia paixão pelo tio, que é retribuída, e em Bernard, também 17 anos, colega de Olivier, que não sendo homossexual assume comportamentos de grande afectividade em relação aos anteriores.

André Gide, que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1947, e que foi considerado pelos franceses como o "contemporâneo capital" (subtítulo da célebre biografia de Éric Deschodt), expõe neste romance as suas ideias sobre a arte e a vida. Tudo o que escreveu neste livro é essencial, mas deve atender-se também a tudo o que não escreveu e que deve ser lido nas entrelinhas.

O título da obra, Les faux-monnayeurs, é o nome que Édouard, o alter ego de Gide, pretende dar a um romance que tenciona escrever, mas no livro apenas surge, episodicamente no fim, um curto apontamento de colocação em circulação de moeda falsa, deixando entrever que a verdadeira moeda falsa são as relações dissimuladas que se tecem entre familiares e amigos.

Seria ocioso proceder a citações, naturalmente redutoras, de passagens deste riquíssimo livro. Mas não resisto, a título de curiosidade, em assinalar três momentos:

«"Oh! ce n'est pas la mémoire seulement qui faiblit. Tenez: quand je marche, il me semble à moi que je vais encore assez vite; mais, dans la rue, à présent tous les gens me dépassent.

"- C'est, lui dis-je, qu'on marche beaucoup plus vite aujourd'hui.

"- Ah! n'est-ce pas?... C'est comme pour les leçons que je donne: les élèves trouvent que mon enseignement les retarde; elles veulent aller plus vite que moi. Elles me lâchent... Aujourd'hui, tout le monde est pressé."» (p. 117)

Recordei-me de L'Homme Pressé, de Paul Morand. 

«Tenez... il y a quelque chose que je voulais vous demander: pourquoi est-il si rarement questions des vieillards dans les livres?... Cela vient, je crois, de ce que les vieux ne sont plus capables d'en écrire et que, lorsqu'on est jeune, on ne s'occupe pas d'eux. Un vieillard ça n'intéresse plus personne... Il y aurait pourtant des choses très curieuses à dire sur eux.» (p. 118)

«"Avez-vous remarqué que, dans ce monde, Dieu se tait toujours? Il n'y a que le diable qui parle. Ou du moins, ou du moins..., reprit-il, quelle que soit notre attention, ce n'est jamais que le diable que nous parvenon à entendre .» (p. 377)

 Leia-se, portanto, Les faux-monnayeurs, leia-se a vastissíma e notável obra de André Gide.

 

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

ALL'ERTA TENTATOR!


ALL'ERTA! ALL'ERTA TENTATOR!

 All'erta! all'erta!

È la battaglia incerta

fra Satana e il Ciel. 

 

Revi hoje, uma vez mais, Mefistofele, de Boito, numa produção da Ópera de San Francisco (1989), com direcção musical de Maurizio Arena, encenação de Robert Carsen e Samuel Ramey no protagonista. Um espectáculo musicalmente de grande nível e com uma encenação curiosíssima e às vezes sexualmente provocante.

Ecco il mondo,

vuoto e tondo, 

s'alza, scende,

balza e splende,

fa carole

intorno al sole,

terma, rugge,

dà e distrugge,

ora sterile, or fecondo.

Ecco il mondo.

 


Arrigo Boito (1842-1918) foi um interessante novelista, compositor e libretista que, todavia, se tornou notável por ser o autor dos textos das óperas La Gioconda, de Ponchielli e Otello e Falstaff, de Verdi e o autor do texto e música de Mefistofele (1868), talvez a mais diabólica incursão musical no mundo operático sobre o mito de "Fausto".

 


Seu irmão,Camillo Boito (1836-1914), arquitecto, historiador e escritor, seria o autor da novela Senso (1882), que Luchino Visconti imortalizaria mais tarde no cinema, num dos seus mais notáveis filmes, que é também um das películas mais célebres de toda a cinematografia italiana e mundial.

 


Existem várias edições em disco e vídeo desta ópera, a única de Boito que permaneceu no repertório operático, entre elas a que foi dirigida pelo maestro Oliviero de Fabritiis, que, noutra encarnação, vi muitas vezes no Teatro de São Carlos, e que contou com a participação de Nicolai Ghiaurov, Luciano Pavarotti, Mirella Freni e Montserrat Caballé.


segunda-feira, 23 de agosto de 2021

PRAÇA DOS HERÓIS

Assisti hoje, no Centro Cultural de Belém, à peça "Praça dos Heróis" ("Heldenplatz"), do célebre e controverso dramaturgo austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), cuja estreia, no Burgtheater de Viena, em 4 de Novembro de 1988, provocou um verdadeiro tumulto. O espectáculo assinalava o centenário do famoso teatro, e também o cinquentenário da anexação da Áustria pela Alemanha (Anschluss), na sequência da qual Adolf Hitler (ele próprio natural da Áustria), proferiu nessa mesma Heldenplatz, em 15 de Março de 1938, um famoso discurso e foi entusiasticamente aclamado por muitos milhares de austríacos em verdadeiro delírio nazi.
 
 
Eu, há alguns anos, na Heldenplatz

Na peça, que já lera mas vejo pela primeira vez, o autor procede a uma implacável denúncia dos seus compatriotas, atacando de uma maneira geral os austríacos, o Burgtheater (o Teatro Municipal, aliás o verdadeiro Teatro Nacional), os governos, os políticos, os partidos, a Igreja Católica, o socialismo e o nacional-socialismo, os sindicalistas, as universidades, os jornais, a burguesia, no fundo, a profunda hipocrisia da sociedade austríaca e da sua II República.
 
O espectáculo, longo de três horas e sem intervalo (covid oblige), é por vezes um pouco cansativo e a dicção dos actores nem sempre é a melhor, mas quero salientar o intérprete da personagem do Doutor Robert Schuster, julgo que Paulo Pinto, já que não havendo programa nem sequer folha de sala, não conhecemos as fichas artística e técnica do espectáculo. Existe à entrada um daqueles selos de código QR que se pode descarregar para o telemóvel com a dita folha, mas como me esquecera do meu em casa, nem uma folhinha de papel me deram. Um problema a merecer a atenção do meu amigo Elisio Costa Santos Summavielle, que não é o directo responsável mas que, como presidente do CCB, convém que tenha conhecimento.
 

domingo, 8 de agosto de 2021

SEBASTIÃO JOSÉ

Comprei Sebastião José, de Agustina Bessa-Luís, em 1981, ano da sua publicação. Jazia desde então, inlido (não sei se existe a palavra, mas pouco interessa), na minha biblioteca, como acontece a tantos outros livros. Devido a uma referência de Maria Ângela Pires, resolvi agora lê-lo.

A exemplo da generalidade das obras da escritora, que ainda conheci pessoalmente, esta "biografia" do marquês de Pombal constitui mais uma oportunidade para Agustina debitar, com o talento que se lhe reconhece, os seus habituais aforismos, exercício que sempre prezou.

Mais do que uma história da vida do marquês, pretende a autora traçar um perfil psicológico, nem sempre conseguido, já que Sebastião José escapa às extrospecções possíveis. E perfil por perfil, temos o Perfil do Marquês de Pombal, de Camilo Castelo Branco.

Há que reconhecer que a autora não se restringe à figura do Marquês mas entra na apreciação da sociedade portuguesa, e europeia, da época, que pretende descrever, ainda que de forma muitas vezes confusa e principalmente segundo um ângulo muito subjectivo. Como é seu costume, e apesar da abundância da bibliografia citada, que Agustina certamente não leu, existem inexactidões e conclusões precipitadas. A começar pela imprecisão da informação genealógica e pelo aparecimento, a despropósito, de muitas figuras, algumas das quais se perdem pelo caminho. Esta perda das personagens não é inédita nas obras de Agustina; uma vez questionei-a a esse respeito e ela respondeu-me, com a maior naturalidade (e até satisfação!) que não tinha a menor importância: esquecia-se delas, quando já não interessavam à estória e seria uma maçada recuperá-las.

O anacronismo da narrativa acabou por me distrair do essencial, mas também não era intenção da autora escrever uma biografia "clássica" de Sebastião José. Algumas ideias fortes são todavia enfatizadas: as inclinações jansenistas de Pombal, o permanente conflito deste em relação a Roma (o marquês terá sido iniciado na Maçonaria em Londres, ou mais provavelmente em Viena, no período em que foi representante diplomático naquelas cortes, embora Agustina o não refira), a origem de nobreza provinciana de Pombal (que sempre o afectou e o pôs em conflito com a grande nobreza da época), os dotes intelectuais habitualmente atribuídos ao marquês (que a I República tanto salientou mas que Agustina considera um exagero), a atribuição a D. José, mais do que a Pombal, da perseguição dos Távoras (que não posso ajuizar, embora possua alguns valiosos volumes sobre o Processo que, por lamentável falta de tempo, nunca tive oportunidade de ler), a ideia de que se deve ao marquês o plano de reedificação de Lisboa depois do terramoto, embora este apenas tenha criado os meios para a sua realização.

Não se cansa Agustina de criticar os ingleses por sistematicamente terem explorado Portugal, e pelas atitudes que contra nós tomaram. E que muito se avolumariam nos séculos posteriores, e até hoje. A famigerada Aliança Luso-Britânica (1373), firmada entre Eduardo III de Inglaterra e D. Fernando I, funcionou sempre em sentido único, mesmo quando disfarçada de intervenção a favor da soberania portuguesa! 

É dedicado um capítulo às questões económicas, que Agustina não domina mas que não a leva a abster-se de longas dissertações, com incorrecções evidentes.  Salientando-se contudo no livro a criação da Companhia dos Vinhos do Alto Douro, para pôr termo às depredações inglesas no terreno, assunto que a escritora, como avisada mulher do Norte, conhece muito bem, até por raízes familiares.

A expulsão dos Jesuítas por Pombal merece também destaque, considerando Agustina que este os odiava mais do que aos próprios Távoras, e salientando a execução do padre Malagrida, queimado num auto-de-fé no Rossio, depois de garrotado, e a expulsão do próprio núncio do Papa, mons. Acciaiuoli.

Neste livro, que oscila entre história e alguma ficção (para lá das considerações pessoais e naturalmente muito subjectivas da autora), Agustina insiste em que Pombal pretendeu seguir o exemplo de Sully, o célebre ministro de Henrique IV de França, mas que o seu papel junto de D. José esteve, dadas as circunstâncias, muito longe de se assemelhar ao célebre militar e político francês.

Permito-me duas transcrições:

«No meio desta desfilada de apetites, intrigas, decepções, só a casa Marialva parece prosperar. O Marquês de Marialva é hábil, bom bebedor e o bastante libertino para parecer um Tibério reformado; a sua fortuna permite-lhe estar acima de toda as suspeitas - políticas e morais. Beckford, que o conheceu ainda no meio de uma multidão de poetas, músicos, lacaios, macacos, anões, toureiros e crianças com asinhas transparentes extremamente formosas, poupa-o às suas ferroadas e até lhe pretende a filha para casamento. Para um inglês respeitar um velho devasso é preciso que ele o impressione muito, ou pela fortuna, ou pelo humor um tanto original que é o sintoma de liberdade justificada pela fortuna. Beckford, de resto, mal aceite pela colónia inglesa devido à sua extravagância de rastacouère [suspeito de que a palavra está mal escrita em francês], encontrou em Lisboa a atmosfera imparcial e doce que se confunde com a licença. A Corte nunca o recebeu oficialmente, e só o Marialva o aceitou, com essa largueza de vistas um pouco displicente com que se suportam os visitantes cuja reputação é um excitante, mas não um compromisso.» (pp. 116-7)

[Não escreve Agustina mas digo eu que William Beckford, riquíssimo e excêntrico aristocrata inglês, chegou a Portugal em 1787, devido às pressões britânicas para deixar então o seu país e viajar pela Europa, devido aos escândalos homossexuais que provocara. Em Lisboa (arredores) instalou-se no Ramalhão e conviveu com muita gente da nobreza, especialmente com D. Diogo de Meneses de Noronha Coutinho, 5º marquês de Marialva, que, atendendo à riqueza do inglês pensou casá-lo com sua filha, que viria mais tarde a desposar o duque de Lafões. Mas não era na filha que Beckford (com 27 anos) estava interessado mas no filho, D. Pedro de Meneses Coutinho, então com doze anos, e que viria a ser o 6º marquês de Marialva. Houve mesmo uma relação de grande intimidade entre o jovem e Beckford, conforme consta do Diário deste, embora não se possa afirmar que o ilustre visitante tenha passado das palavras aos actos, como sucedeu em relação a muitos outros rapazes que conheceu em Portugal.]

Nas páginas dedicadas ao processo dos Távoras, Agustina escreve: «Porque isso que, sob tormento, declarou o porteiro do Duque de Aveiro, que no dia seguinte ao atentado se reuniu na casa do dito Duque parte dos conjurados, parece ser falso, pela imprudência que descreve. Há testemunhas de antemão preparadas para confessarem coisas francamente comprometedoras, como no caso do boleeiro do Duque, Francisco da Costa, da cidade de Braga, e que não é sujeito a tormento, pela acusação violenta que fornece. Descreve o Duque como "péssimo de génio e pior condição, que parecia herege, sumamente soberbo, e desprezador de todos, porque todos os criados descompunha sobre lhes não pagar". E que, tendo ele, respondente, dito uma vez: "Que ele duque, era mais bem servido que El Rey", lhe respondera, como soberba e desprezo: "Que me importa cá El Rey; cabrão, filho da puta".» (p. 130)

Não pretende Agustina, nem eu tão pouco, formular um juízo cabal sobre as grandezas e misérias de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782). Demitido (ou demitindo-se) de "primeiro-ministro" de D. Maria I, logo após a morte de D. José, tem o tempo julgado, e continuará a julgar, o seu longo consulado à frente dos destinos do país. Longe de poder ser comparado a Richelieu, o 1º marquês de Pombal deixou, contudo, e inegavelmente, uma marca indelével na História de Portugal.