quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

EFRACÇÃO


 

Comecei a ler, na noite de Natal, o romance Effraction do escritor francês Alain Defossé (1957-2017), publicado em 2015 e que foi o seu último livro.

Alain Defossé era um homem singular e solitário, possuidor de vasta cultura e capaz de captar os mais profundos sinais da alma das gentes. De uma lucidez implacável e de uma invejável sensibilidade, deixou marcada na dezena de livros que escreveu a sua visão dos homens, das suas grandezas e das suas misérias, das suas preocupações quotidianas e das suas angústias, que são para o comum dos mortais tão importantes como os grandes desígnios da humanidade.

O seu nome não fazia a primeira página dos jornais de referência e foram poucos os livros que escreveu, tendo, contudo, traduzido para francês quase cem obras de alguns dos maiores escritores anglo-saxónicos. Vivia modestamente do rendimento do seu trabalho de tradutor, uma actividade sempre mal remunerada, embora em França não tão mal como no nosso país.
 


Devo salientar que Alain Defossé era um grande amigo de Portugal, país que visitava regularmente, tendo uma especial predilecção pela cidade do Porto. A última vez que falámos foi em Setembro de 2016. Alain estava num jardim do Porto e cancelara um encontro comigo em Lisboa dias mais tarde devido a problemas de saúde (dores num ombro e num braço) que não quis especificar mais concretamente. Resolvera, por isso, antecipar o seu regresso a Paris. Ainda trocámos mensagens em Novembro desse ano, a propósito do rei D. Manuel II, cujos costumes suscitavam em Alain algumas suspeições. Dei-lhe conta de um livro, do diplomata brasileiro Cardoso de Miranda, O Último Rei, editado fora do mercado e que o autor me oferecera, isto em 1960. Depois silêncio. Não pensei que se tratasse de algo de grave, mas Alain Defossé viria a falecer em 14 de Maio de 2017.

O livro que acabei de ler é a história de uma mulher idosa que recorda a sua vida: sendo pouco é imenso. Uma mulher que vive agora praticamente sozinha. E que julga poder reconstituir o passado. Não vale a pena entrar em detalhes pois só a leitura integral do livro nos pode dar a dimensão da estória. Ao escrever esta sua obra, que seria a derradeira, Alain Defossé identifica-se de algum modo com a trajectória da velha senhora, a quem a marginalidade sempre atraiu. Nem se omite o fascínio pelas peles escuras, que foi de ontem, é de hoje e será de amanhã. Anne Rivière é uma mulher com passado, que Defossé descreve com frieza mas com sensibilidade, sublinhando a ambivalência das pulsões sexuais e amorosas.

Seguindo uma linha não cronológica, o escritor exige do leitor um esforço suplementar, obrigando-o a colar sucessivamente as peças do puzzle, a fim de tornar o texto inteligível.

Efracção significa em português arrombamento, ruptura. De facto, o livro começa por um arrombamento e termina numa ruptura. Efracção em lugar de infracção. Talvez um testamento de Alain Defossé.



quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

SALÓNICA VI - O ARCO DE GALÉRIO



O Arco de Galério, também conhecido por Kamara, faz parte do Complexo arquitectónico que incluía também a Rotunda e o Palácio do imperador, como referimos em post anterior. A via que ligava o Palácio à Rotunda passava por baixo do Arco.



Edificado para celebrar a vitória de Galério sobre os persas sassânidas, foi construído entre 298 e 299 e encontra-se na intersecção das actuais avenida Egnatia e rua Dimitriou Gounari, perto da moderna igreja Panagia Dexia. 


Galério luta contra o rei persa Narses
 
O Arco construído em alvenaria estava revestido por painéis de mármore com relevos, representando a vitória sobre os persas na batalha de Satala, em 298. Originalmente, o Arco era triplo, assente em oito pilares, de que restam hoje apenas três. A abertura do arco central media 9,7 m de largura e 12,5 m de altura. Os arcos laterais eram iguais e mediam 4,8 m de largura e 6,5 m de altura.

Cerimónia de acção de graças

Os relevos do arco central estão parcialmente conservados, permitindo observar as etapas da batalha e outras cenas, como uma cerimónia de acção de graças da família imperial. Galério era casado com Valéria, filha do imperador Diocleciano, que também figura na cerimónia ao lado do marido, mas em todos os painéis os rostos foram cuidadosamente apagados, talvez um sinal da posterior intolerância das imagens. Há também um painel que celebra a unidade da Tetrarquia, mas só Galério enverga uma armadura.

Celebrando a unidade da Tetrarquia
 
Nos últimos anos as autoridades responsáveis procederam a obras de consolidação do Arco, tendentes a preservar este precioso monumento que é, com a Rotunda, o mais antigo da cidade e constitui um precioso testemunho do Império Romano.


domingo, 23 de dezembro de 2018

A HOMOSSEXUALIDADE NA "WEHRMACHT"




O artista visual Martin Dammann (n. 1965), a viver em Berlim, acabou de publicar um interessante livro bilingue (alemão/inglês) sobre a homossexualidade nas forças armadas alemãs durante o III Reich: Soldier Studies: Cross-Dressing in der Wehrmacht.


Desde 1990 que Dammann, no exercício da sua actividade profissional, vem adquirindo fotografias de soldados para o Archive of Modern Conflict, em Londres. Ao mesmo tempo, constituiu também uma colecção pessoal que é a base do seu trabalho artístico. Ao longo dos anos, e provenientes das mais variadas fontes, obteve fotografias e postais evidenciando a existência da prática de actividades homossexuais entre os militares alemães. Na Introdução, Martin Dammann tece algumas considerações sobre a sua investigação, de que transcrevemos três parágrafos, utilizando a versão inglesa:


«During World War II, as during World War I, great efforts were made, through all manner of entertainment, to distract soldiers from the existential threat they faced. Not for altruistic reasons, of course: in the end, the aim was to embolden the will to fight. The National Socialists had an additional goal in mind, which was to remind the soldiers of their Heimat (homeland) through the use of professional theatrical performances. These front theater shows were financed and put in place by the propaganda ministry and the Kraft durch Freude (Strength through Joy) organization.»


«It seems plausible that, across the centuries, soldiers have always responded to their longing and desires not only by imagining what they were missing but - also - by trying to evoke its immediate presence. The phenomenon of soldiers dressing up in female clothing can be traced across all nationalities and conflicts that have been photographically documented, while the written sources go even further back. Strangely enough there is a particular plethora of such material in German photo albums from World War II. By this I mean that, in every twenty to thirty wartime albums, one will normally find one or two photographs of soldiers dressed up as women.»


«Even the majority of soldiers were heterosexual, we can see evidence of homo - and transsexual orientation with unusual clarity. This is remarkable, given that, if there is one genuine taboo in German photo albums of World War II (in contrast to, say, American ones), then it is the explicit representation of sexuality. This is even more striking if one considers that in the Third Reich homosexuality could lead to imprisonment in a concentration camp. Above all, it is surprising how openly these men expressed their desires: even on photos which show a larger group of men watching a performer whom one might assume to have a homo - or transsexual orientation, it does not appear that the heterosexual men are keeping distance. Without exception, all these men seem to be completely abandoned to the moment and to their own desires, in a unique state of bliss that makes itself evident in all the photos, no matter how different the situations in which they came about.»


O álbum agora dado à estampa é tanto mais curioso quanto é conhecida a severidade do governo do Reich relativamente à homossexualidade, uma orientação considerada contrária aos princípios do nacional-socialismo. E contudo... As autoridades nazis perseguiram judeus, homossexuais, ciganos, diminuídos mentais e físicos, etc., embora essa perseguição tivesse não só a ver com motivos ideológicos como oportunismo político. Daí que as sanções tenham sido aplicadas consoante as pessoas e as circunstâncias, e o grau de rispidez tenha oscilado no decorrer do tempo.


A legislação alemã punia os actos homossexuais, desde 1871, através do § 175 do Código Penal, mas desde o começo do século passado existia na Alemanha uma grande liberdade de costumes, que permaneceu durante a Primeira Guerra Mundial e depois durante a República de Weimar. Ainda no tempo do Império registou-se mesmo um escândalo notório, o chamado Caso Eulenburg, que agitou toda a imprensa da época. O jornalista Maximilian Harden acusava o príncipe Philipp zu Eulenburg, primo de Guilherme II e seu amigo íntimo, o general conde Kuno von Moltke, comandante militar de Berlim, e outras altas individualidades próximas do imperador de realizarem festas homossexuais com a participação de jovens oficiais e soldados. Os processos e contra-processos judiciais foram inconclusivos. Admite-se que por detrás das acusações de Harden houvesse intenções essencialmente políticas contra o Kaiser.


Após a ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 30 de Janeiro de 1933, a condenação manteve-se, mas só depois da "Noite das Facas Longas" (30 de Junho para 1 de Julho de 1934) e da execução de Ernst Röhm, em 2 de Julho de 1934, se apertou o cerco aos homossexuais. Röhm era o chefe das SA (Sturmabteilung), o esquadrão de assalto do Partido Nazi, uma informal tropa arruaceira que contava, porém, nessa altura, dois milhões de membros. Amigo pessoal e um dos grandes apoiantes de Hitler, Röhm era também um homossexual público e as SA contavam no seu seio centenas ou mesmo milhares de jovens que se entregavam a práticas homossexuais entre eles ou com os seus chefes. As Forças Armadas detestavam Röhm, por isso e igualmente por causa do seu poder. O chefe das SA constituía também um estorvo às ambições de Heinrich Himmler e de Reinhard Heydrich. Alvo de pressões, e também porque suspeitava que Röhm lhe viesse a disputar a liderança da Alemanha, Hitler resolveu eliminar as SA e ordenar ao seu chefe que se suicidasse. Este recusou e Hitler mandou executá-lo. A partir daí, não só os actos homossexuais mas a própria suspeição de homossexualidade passaram a ser progressivamente mais penalizados, com o pretexto de que constituíam uma ameaça para a nação alemã.


O § 175 só veio a ser parcialmente revogado em 1950, na República Democrática Alemã, e em 1969, na República Federal da Alemanha.  A sua rigidez foi atenuada em 1973, e foi finalmente abolido em 1994, já depois da reunificação da Alemanha.


No seu filme La caduta degli dei (Os malditos), de 1969, o famoso realizador Luchino Visconti evoca a "Noite das Facas Longas", de que se reproduz aqui o episódio do massacre:



Importa notar que persiste a suspeita de que o próprio Hitler era homossexual. O historiador alemão Lothar Machtan publicou em 2001 o livro Hitlers Geheimnis, de que existe (ou existia) uma tradução portuguesa, editada pela Bertrand, com o título A Face Oculta de Hitler (2002). Nele, Machtan expõe factos bastantes para sustentar a homossexualidade do Führer e de como ela condicionou a sua vida pessoal e política.


É evidente que Hitler não exterminou todos os homossexuais (não conseguiria fazê-lo) como não exterminou todos os judeus, embora neste caso as perseguições fossem mais sistemáticas. O anti-semitismo de Hitler, já revelado no Mein Kampf, tinha a ver com a pureza da raça ariana. A aversão à homossexualidade resultava do facto de a sua prática reduzir o ritmo da procriação e logo a diminuição do número de cidadãos alemães. No que aos judeus respeita, a ideia inicial de Hitler teria sido a de se desembaraçar deles do território germânico, tendo sido encaradas várias regiões para onde "exportá-los" como Madagáscar, Chipre, Uganda e até Angola (ideia liminarmente rejeitada por Salazar) ou a Palestina, local que se afigurava mais indicado depois da Declaração Balfour de 1917. A impossibilidade de concretização destes planos conduziria à ideia do extermínio, supostamente decidido na Conferência de Wannsee (20 de Janeiro de 1942), por iniciativa de Reinhard Heydrich, onde terá sido adoptada a "solução final" para a resolução da questão judaica.


Regressando ao livro de Martin Dammann, de que reproduzimos algumas fotos, o autor salienta o facto de serem consideradas aceitáveis, inclusive pelo regime nazi em tempo de guerra, certas práticas homossexuais nas casernas de todo o mundo, onde o convívio próximo e prolongado de homens convida a que se forjem laços de amizade que em muitos casos, apesar de se tratar de indivíduos habitualmente heterossexuais, levam à prática de relações homossexuais, abandonando-se o padrão da heteronormatividade vigente.


sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

SALÓNICA V - A ROTUNDA



A Rotunda é um dos principais monumentos de Salónica, e o mais antigo. Quando foi edificada, o seu provável destino seria tornar-se num templo romano. Foi mais tarde convertida em igreja, depois em mesquita, e é hoje finalmente um museu.


A sua construção terá sido iniciada pelo imperador Galério (293-311) (até 305 como César e a seguir como Augusto), após a sua vitória sobre os Persas Sassânidas, comandados pelo rei Narses (298), ou mais provavelmente a partir de 305, quando, por morte de Diocleciano, Galério foi elevado (no conceito da Tetrarquia Imperial), de César a Augusto.


A Rotunda estaria pois destinada a servir como templo, e evoca de alguma forma o Panteão de Roma, concluído sob o reinado de Adriano. Poderia também estar na mente de Galério que o edifício viesse a tornar-se o seu mausoléu, mas quando o imperador morreu, em 311, ainda não estava terminado, e Galério foi sepultado longe de Salónica, na sua cidade natal, Romuliana, no Illyricum, hoje o sítio arqueológico de Gamzigrad, na Sérvia.


A Rotunda fazia parte de um complexo que incluía o Arco de Galério e o Palácio de Galério (a que nos referiremos mais tarde). Seguindo um eixo norte-sul perpendicular ao mar, encontramos a norte a Rotunda e a sul o Palácio. Caminhando deste para norte, existia um vestibulum (42 x 18 m), hoje submergido pela avenida Egnatia (Odos Egnatia), que dava acesso ao Arco de Galério (ou Kamara), de que subsistem três dos oito pilares. Passado o Arco, uma monumental colunata processional (hoje desaparecida) conduzia à Rotunda.


A Rotunda possui, como o nome indica, uma estrutura circular, é construída principalmente em tijolo, e encontra-se hoje rodeada por edifícios de apartamentos. O seu diâmetro interior é de 24 m e o exterior de 36,5 m.e as suas grossas paredes, de 6,3 m, ao nível térreo, eram interrompidas, em intervalos regulares, por oito nichos abobadados, sendo o que ficava voltado para sul a entrada original. Janelas em abóbada, a nível superior, permitem a entrada da luz.


O edifício incompleto, e provavelmente sem tecto, foi posteriormente concluído, coberto por uma cúpula e convertido em igreja, hoje conhecida por Igreja de São Jorge (Agyos Georgiou). Na Idade Média foi também chamada a Igreja de Asomatoi (os Anjos), mas terá sido originalmente dedicada a Cristo e aos mártires. Quando o templo foi transformado em igreja o nicho oriental foi aumentado pela adição de um coro em abside e as paredes finais dos outros sete nichos foram eliminadas para dar acesso a um amplo ambulatório que foi criado em volta do perímetro do edifício. Assim, a impressionante igreja ficou com um perímetro de 54 m. Um terramoto na primeira metade do século VI ocasionou vários estragos e quando da reparação foi construído um baptistério octogonal a oeste da entrada. O ambulatório foi mais tarde destruído e abandonado, presumivelmente em consequência de outro sismo que abalou a zona por volta do ano 620. Este sismo, que provocou sérios danos no edifício, está descrito nos Milagres de São Demétrio.  Os nichos foram depois reerguidos na forma como hoje os vemos.


A data da conversão do edifício em igreja é altamente controversa. e as opiniões variam entre o século IV e o século VI. Parece como mais credível a tese que sustenta que terá ocorrido por instigação de Teodósio I (379-395), que pretendia uma igreja para servir o palácio, sendo a Rotunda a construção mais próxima e mais adequada para o efeito. A superfície interior, paredes e tectos, foi revestida de mármores brancos e coloridos, que infelizmente não foram preservados, restando apenas minúsculos fragmentos. O chão original encontrava-se um metro abaixo do actual, e a distância ao zénite da cúpula é de cerca de 29 metros. A cúpula e as abóbadas de passagem estavam revestidas de mosaicos, que resistiram aos vários sismos e, apesar de danificados, chegaram aos nossos dias.


Não cabe aqui discorrer sobre a excelência dos mosaicos bizantinos, a sua técnica, a sua estética e as figurações apresentadas (especialmente Cristo e os Mártires), matéria para ocupar muitas páginas. A sua execução só poderá ter decorrido de uma iniciativa imperial. São apontados alguns soberanos obviamente posteriores a Galério, mas afigura-se consensual que a tese que atribui a decisão a Teodósio I, o Grande, que foi o último imperador do Império Romano unificado a residir em Salónica. Ele viveu na cidade de Janeiro de 379 a Novembro de 380, regressou por um longo período entre 387 e 388 (em Janeiro de 388 celebrou a sua decennalia, o décimo aniversário como imperador) e voltou em 391 e 394. Foi ainda Teodósio que, em 391, instituiu o cristianismo como religião oficial do Império, proibindo os cultos pagãos.


Como se escreveu em post anterior, Salónica foi conquistada pelos turcos em 1430. A data da conversão da Rotunda (Agyos Georgiou) em mesquita pelo poder otomano está estabelecida em 1591. Todavia, os turcos não destruíram os mosaicos, limitando-se a ocultá-los fazendo pinturas por cima deles. Curiosamente, ou não, os livros gregos sobre a Rotunda omitem qualquer referência ao período otomano. Esta observação é válida relativamente a todos os outros monumentos, como pudessem ser simplesmente apagados cinco séculos de história. No local, a única recordação desse período é um minarete que sobreviveu ao encerramento da mesquita.


Um novo sismo em 1978 voltou a danificar o monumento, que, após restauro, foi reaberto provisoriamente em 1999 e definitivamente em 2015.


A descrição dos mosaicos ocuparia um livro, mas eles representam além de Cristo e dos mártires, muitos desconhecidos do Martirológio oficial, faisões, patos, estrelas, flores, cestos, etc., e à primeira vista parecem coloridos tecidos de seda da época sassânida.


A maior parte das imagens evoca a escultura e pintura da Roma Imperial, misturando elementos ocidentais e orientais, e mesmo persas, os tradicionais inimigos do Estado.


No exterior, ainda se vêem restos da colunata que ligava a Rotunda ao Arco de Galério, que descreveremos noutro local.


Perto do minarete existe uma fonte e há uma edificação, provavelmente também da época turca, que não consta da maqueta que é apresentada nos jardins circundantes do monumento.


Pelo exposto, e por tudo o que não se escreveu, a Rotunda é um dos mais importantes monumentos que deve ser visitado na cidade de Salónica.


Lamenta-se que o catálogo, que privilegia em absoluto os mosaicos, e bem, seja contudo praticamente omisso quanto aos pormenores da utilização do edifício ao longo da história, nomeadamente durante a ocupação otomana, como dissemos, e mesmo depois desta até à sua transformação em museu.


Existem túmulos otomanos não identificados no recinto circundante a leste do santuário da igreja.


Durante o período otomano a Rotunda foi designada por Eski Metropol. O nome de Agyos Georgiou, por que é hoje conhecida, deriva de uma pequena igreja dedicada a São Jorge, edificada em frente à porta ocidental do complexo.


domingo, 16 de dezembro de 2018

HITLER E OS ALEMÃES



Foi publicada em 2003, com o título Hitler et les Allemands, a tradução francesa das célebres lições dadas pelo doutor Eric Voegelin (1901-1985), na Universidade de Munique, em 1964, que haviam sido já editadas em inglês, em 1999 (Hitler and the Germans), a partir do dactilo-escrito alemão (com base na gravação sonora) daquele filósofo (que leccionou na mesma cátedra de Max Weber), aquando de um regresso  temporário à Alemanha, vindo dos Estados Unidos, onde se refugiara em 1938, fugindo da Áustria, após o Anchluss.

A obra compõe-se das dez lições do Mestre, sobre a responsabilidade dos alemães na ascensão do Nazismo, mais uma undécima, relativa à grandeza de Max Weber, e inclui ainda uma conferência dedicada a "A Universidade e a Esfera Pública. Sobre a Pneumopatologia da Sociedade Alemã". Curiosamente, não existe (pelo menos à data da edição francesa), uma edição em língua alemã desta obra considerada uma das mais singulares críticas do totalitarismo hitleriano, juntamente com a Terceira Noite de Walpurgis, redigida em 1933 pelo escritor vienense Karl Kraus (1874-1936), aliás só publicada em 1952, pois o seu autor, em 1934, desistira de imprimir o texto.

A fim de explicar a natureza do nazismo, Voegelin não escolheu como referências preferidas obras científicas, mas sim romances, dramas e poemas. Durante as suas lições, desfiou Os Demónios e Os Merovíngios, de Heimito von Doderer, Doutor Fausto, de Thomas Mann, O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, Os Sonâmbulos, de Herman Broch, os Sonetos Sagrados, de John Donne, Gargantua e Pantagruel, de Rabelais, o Rei Lear, de Shakespeare, Biedermann e os Incendiários, de Max Frisch, Dom Quixote, de Cervantes, e, certamente, a Terceira Noite de Walpurgis.

Apenas cabem neste texto alguns apontamentos sobre a volumosa obra, mas importa sublinhar o interesse que as lições de Voegelin despertaram na imensa assistência que se apinhava no anfiteatro da Universidade. Surpreendente e provocante, o professor assinalou metodicamente a necessidade de se dotar de uma linguagem que lhe permitisse dissecar propriamente sobre o tema, uma linguagem que abrisse uma crítica e um julgamento adequados. Tal linguagem, ignorada enquanto conjunto de chaves teóricas, elaborou-a Voegelin sistematicamente no seu curso, e demonstrou-a por meio da análise filosófica, da ironia, da sátira, da polémica, do poder de despertar, do esclarecimento e, no plano moral, da imunização. Para ele, a morte foi a primeira e a última realidade do nazismo. Karl Kraus já o constatara em 1933. E é contra essa morte, que ele articulou a vida da inteligência atenta, crítica, imunizante, ao redigir a Terceira Noite de Walpurgis, que encontra a origem nesta frase: «Mir fält zu Hitler nichts ein» («A propósito de Hitler, nada me vem ao espírito»).

Da Introdução dos Editores: As aulas de Eric Voegelin constituem o apogeu da sua carreira de professor universitário e sábio alemão, ainda que controversas na Alemanha daquela época [e porventura hoje], ao explicar os conceitos fundamentais da sua filosofia política. O tema de Voegelin era a cumplicidade dos alemães com o governo nazi, o nível espiritual da vida intelectual alemã e o tratamento habitual pelos próprios alemães do seu passado nacional-socialista. «Selon lui, le défi le plus important que devait relever la société allemande n'était pas la "maîtrise du passé"(Vergangeinheitsbewhältigung) - expression courante et opaque pour désigner ce processus -, mais bien plutôt une "maîtrise du présent". Pour Voegelin, cela revenait à se demander si les Allemands avaient correctement réfléchi sur leur passé nazi et accompli une révolution spirituelle ou si la mentalité qui avaient rendu possible l'accession de Hitler au pouvoir ne dominait pas l'Allemagne de manière continue et ininterrompue.» (p. 17) «Dans l'esprit du célèbre livre de Jaspers La Culpabilité allemande, de 1946 - qui fut un temps important dans la discussion après guerre en Allemagne du passé nazi -, la question principale de Voegelin concernait les conséquences politiques, pour la République fédérale, de la mauvaise volonté apparente ou de l'incapacité à aborder sur le plan individuel la question de la culpabilité et de la responsabilité collectives.» (p. 18)

Segundo Voegelin, a resolução de enfrentar a questão da culpabilidade exige o vocabulário espiritual adequado. Por isso, a sua indignação relativamente à caracterização de Hitler por Percy E. Schramm (1894-1970), eminente historiador alemão, professor da Universidade de Göttingen, na edição dos Propos de table tenus par Hitler à son quartier général, 1941-1942 (Hitlers Tischgespräche im Führerhauptquartier, 1941-1942), de Henry Picker. Foi Schramm que escreveu a introdução a esta obra, publicada em 1963, e a que deu o título Anatomia de um ditador. Esta introdução foi editada mais tarde em inglês, em conjunto com outro ensaio, sob a designação Hitler: The Man and the Military Leader.

Não que Schramm tivesse afinidades secretas com o nacional-socialismo, mas o facto de ter sido membro do Partido Nazi e ter sido recrutado para prestar serviço durante a guerra, junto do general Alfredo Jodl, levou a que fosse demitido da sua Universidade, onde mais tarde foi reintegrado. Aliás, em 1958 o governo da República Federal da Alemanha condecorou-o com a Ordem do Mérito, de que viria a ser chanceler desde 1963 até à sua morte. O próprio Voegelin iliba Schramm das acusações que então lhe foram dirigidas, apenas o criticando pelas suas afirmações, demonstrativas de que a elite intelectual alemã estava desarmada dos conceitos elementares que permitiriam julgar correctamente Hitler. As considerações de Schramm acerca de Hitler são mesmo um dos motivos que levaram Voegelin a proferir na Universidade de Munique as lições em apreço.

Seria impossível compilar aqui, mesmo sumarissimamente, as lições de Voegelin, mas é conveniente registar algumas notas, principiando pela forma como este volume foi elaborado. A Primeira Parte intitula-se "Descida ao Abismo" e inclui: Introdução (Lição 1), Apresentação dos Instrumentos de Diagnóstico (Lições 2 e 3), Descida aos Abismos Académicos tornados manifestos pela Anatomia de um ditador, de Schramm (Lições 4 e 5), Descida ao Abismo Eclesiástico: a Igreja Protestante (Lição 6), Descida ao Abismo Eclesiástico: a Igreja Católica (Lições 7 e 8) e Descida ao Abismo do Direito (Lição 9). A Segunda Parte intitula-se "Para uma Restauração da Ordem" e inclui: A Primeira e a Segunda Realidade durante os Períodos de Crise Antiga, Pós-medieval e Moderna (Lição10) e Grandeza de Max Weber (Lição 11). Em Apêndice: A Universidade e a Esfera Pública: Sobre a Pneumopatologia da Sociedade Alemã.

O autor começa por fazer uma análise da chegada de Hitler ao Poder e procede a uma violenta crítica, já nessa altura (1964) à forma como começaram a ocupar altos cargos na República Federal da Alemanha, logo após a sua criação (1949), inclusive lugares de ministro, pessoas altamente comprometidas com o regime nazi. É um dos trechos mais interessantes, e acessíveis, deste livro obviamente complexo.

Curiosa a definição de canalha. Transcrevo da página 75: «Je proposerai donc l'expression neutre "canaille" (Gesindel). Il existe des hommes qui sont des canailles, en ce sens qu'ils n'ont ni l'autorité qui vient de l'esprit et de la raison, ni l'aptitude à répondre à la raison ou à l'esprit s'ils se manifestent sous forme de conseils et de mises en garde. Nous rencontrons ici de nouveau le "sindrome Buttermelcher": il est extrêmement difficile de comprendre que l'élite d'une société puisse être composé de canailles. Mais elle se compose réellement de canailles, nous devons en être bien conscients.»

A propósito de Hitler: «Hitler savait donc exactement ce qu'il faisait. Il possédait les grandes lignes d'une vision du monde. Il devait défendre des thèses comme orateur, et ces théses étaient étayées par un matériau qu'il se procurait par ses lectures, afin de réfuter son adversaire à l'occasion d'un débat.
[...] Ce que j'ai dit, dans les cours précédents, sur la curieuse division, chez Hitler, entre les aptitudes pragmatiques impérieuses, qui, selon lui, ne sont pas méprisables, et le caractère méprisable de l'homme dépourvu de raison se confirme ici tout seul. C'était un homme sans esprit ni raison, et il ne s'est jamais appuyé sur aucun ouvrage important de l'histoire de l'humanité en s'y confrontant vraiment pour son propre développement. Il possédait exactement le même niveau que le doctrinaire libéral fondamentaliste qui soutient des thèses et cherche ensuite des arguments en faveur ou en défaveur de ces thèses, faisant ainsi un mauvais usage de l'histoire universelle et de ses productions littéraires, en les utilisant à des fins subjectives. C'est peut-être le document le plus pertinent sur Hitler, fourni par lui-même et, pour autant que je sache, auquel personne n'a prêté attention. De même que, de manière générale, Mein Kampf de Hitler n'est pas un document si méprisable que cela, parce que Hitler était beaucoup plus intelligent que la plupart de ses interprètes - et, naturellement aussi, beaucoup plus intelligent que Schramm, qui se trouve désarmé devanr ces choses là.» (pp. 136-7)

Sobre a Igreja Protestante: «Nous devons plutôt établir la problématique générale de la décadence petite-bourgeoise, y compris dans l'Église. Cette situation de décadence, qui remonte avant Hitler et le nazisme, n'a pas changé fondamentalement depuis Hitler. Je vais vous présenter certains documents importants du Kirchentag protestant de 1960. »(p. 178) Voegelin explica depois que o sínodo protestante, baseando-se no Antigo e no Novo Testamento, se recusou a condenar as agressões de que os judeus foram alvo na época.

O autor inicia a Lição 7 com uma observação sobre o curso: «Permettez-moi de vous retracer brièvement le plan de ce cours. Il se divise en deux parties. Premièrement l'étude de Hitler e des Allemands à partir de la question suivante: quel type d'Allemands et quelle attitude spirituelle spécifique ont amené Hitler au pouvoir? C'est la question de la petite bourgeoisie allemande, des philistins instruits, de la décadence intellectuelle des élites, etc. La seconde partie traite évidemment de la question de savoir quels sont les Allemands qui n'ont pas participé à l'entreprise nazie, qui ont saisi le problème grâce à des analyses très précises, et lesquels poursuivent cette analyse aujourd'hui. Et c'est au cours de cette seconde partie que, la dernière fois, j'ai dû prononcer plus tôt que prévu la leçon sur Max Weber, ou du moins une grande partie de celle-ci, en raison de mes obligations universitaires. J'ajoute tout de suite que le reste de l'étude sur Max Weber précédera une leçon sur Thomas Mann. Il y aura ensuite une leçon sur la première et la seconde réalité, en commençant par Rabelais et Cervantès, et en poursuivant par l'étude du traitement ultérieur de ce phénomène chez Musil et Doderer. Pour conclure, il y aura encore une leçon sur Goethe et Novalis, afin d'expliquer davantage la problématique intérieure à l'Allemagne. Malheureusement, cette partie plus réjouissante du cours, dans laquelle nous aurons affaire à des hommes et à des oeuvres d'un haut niveau spirituel, est encore à venir. Pour l'instant, il nous faut descendre dans l'abîme en poursuivant notre étude des Églises.» (pp. 191-2)

«Mais il existe encore bien d'autres différences notables entre les deux Églises, qui se manifestent dans le traitement des questions posées par le nazisme. Dans l'Église protestante, en conséquence du libre examen, il existe une libérté théologique, en ce sens que les protestants ne sont pas liés à une tradition de doctrines dogmatiques [...] Donc, du côté catholique, il y a niveau philosophique plus élevé. Et cela a des conséquences sur les formes sur laquelles les dignitaires cléricaux de l'Église protestante et ceux de l'Église catholique expriment leur opinion sur ces questions.» (pp. 192-3)

«Sans l'Église catholique, nous pouvons, par exemple, observer ce fait curieux: alors que dans l'Église protestante il y a eu toute une série de figures qui ont joué par la suite un rôle important et qui, sous la République de Weimar, ont allégrement voté pour Hitler (par exemple, le célèbre pasteur Niemöller), ce phénomêne ne se retrouve pas dans l'Églse catholique. Avant la prise du pouvoir par Hitler, nous possédons des documents condamnant fermement le nazisme en tant qu'idéologie incompatible avec l'attitude chrétienne. Il n'existe pas de  condmnations aussi radicales du côté protestant. [...] Immédiatement après la prise du pouvoir, en mars 1933, commence un grand retournement de veste politique de l'Église catholique, lorsqu'elle exprime son soutien à Hitler par la voix de son épiscopat, et lorsqu'elle exorte les chrétiens catholiques à se montrer des citoyens dociles, fidèles et obéissants à Hitler, et à se mettre à son entière disposition. Mais ce n'est là qu'une phase, marquée par la conclusion du Concordat.» (p. 193)

«Mais la docilité et la volontés soudaines de collaborer avec les nazis sont étroitement reliées aux pourparlers sur le Concordat. Or immédiatemengt après le Concordat, cette attitude, loin de se montrer payante, amena un sérieux revers, lorsque les nazis commencèrent une lutte systématique contre toutes les organizations catholiques,...[...] Durant la même période, il existait un mouvement qui reprenait le thème qui avait suscité le refus du nazisme avant 1932, à savoir l'existence persistante de l'idéologie représentée, en particulier, par Rosenberg et son Mythe du XXe siècle. Au sujet de cette idéologie, l'épiscopat a soutenu l'idée que le néo-paganisme - c'est ainsi qu'on appelait ce phénomène - et l'idéologie du régime ne s'identifiaient pas. Le régime a volontiers encouragé ce malentendu - s'il s'agit bien d'un malentendu - afin de détourner l'attention sur des personnages tels que Rosenberg, qui n'avaient prétendumment rien à voir avec le nazisme en tant que forme de gouvernement, et afin de les distinguer du régime hitlérien lui-même en tant que gouvernement du Reich allemand. Donc, sous prétexte que l'Église était contre le néo-paganisme mais n'avait aucune objection à formuler à l'endroit d'un régime autoritaire, l'affaire a encore duré un certain temps.» (pp. 194-5)

O autor refere a seguir a conduta do cardeal Faulhaber, arcebispo de Munique (que ainda hoje suscita discussão na Igreja Católica). Escreve Voegelin: «La conduite étrange du cardinal Faulhaber en 1933 et 1934, ses sermons d'Avent et les événements qui allaient les suivre, tout cela s'inscrit dans ce contexte de la question juive. Il suffira que je vous fasse un exposé des faits. Les sermons d'Avent de 1933 ont connu une certaine célébrité, à cause, notamment, de leur défense du caractére sacré de l'Ancien Testament. Mais Faulhaber est allé encore plus loin pour faire comprendre à ses auditeurs qu'en défendant l'Ancien Testament il ne défendait pas ses contemporains juifs.» (p. 198). [No sermão, que Voegelin transcreve, o cardeal faz expressa referência aos judeus antes da vinda de Cristo e depois da sua  morte, condenados a errar sobre a terra]. Este, e outros textos, deram lugar a uma falsificação histórica publicada em 1961, em Recklinghausen, Die katholische Kirche und die Rassenfrage (A Igreja Católica e a Questão Racial) pelo padre dominicano Yves-Marie Congar (elevado a cardeal em 1994), que pretendia que o sermão fosse uma condenação das perseguições aos judeus. A posição do cardeal não se presta a qualquer equívoco, como o demonstra a seguir Voegelin nas subsequentes tomadas de posição por Faulhaber.

«Il était embarrassant pour le clergé catholique, de même pour le clergé protestant, du type Niemöller¨, que Jésus soit un Juif.» (p. 199)

Carta pastoral de Mgr Gröber, arcebispo de Friburgo (considerado hoje um opositor do nazismo) em 1939: «Même avec la meilleure volonté du monde, le Christ ne pouvait pas être transformé en Aryen; mais le Fils de Dieu était fondamentalement différent des Juifs de son époque, au point que ceux-ci l'avaient haï, avaient demandé sa crucifixion et que "leur haine meurtrière s'était poursuivie dans les siècles ultérieurs".» (p. 200)

Também as Igrejas católica e  protestante, que mantinham os registos de nascimento antes da introdução do registo nacional do Estado, não se recusaram a cooperar com o regime a fim de determinar a origem judaica dos cidadãos. (p. 200)

Aquando da "Noite de Cristal", o deão Bernhard Lichtenberg, prior da catedral de Santa Edvige, de Berlim, protestou: «Ce qui s'est passé hier, nous le savons; ce qui se passera demain, nous ne le savons pas; mais ce qui se passe aujurd'hui, nous en somme témoins; tout près d'ici, la synagogue (c'était donc juste en face de l'église) est en flammes, et c'est aussi l'une des maisons de Dieu.» (p. 201). Lichtenberg foi preso em 1941 e depois transferido para o campo de comcentraçao de Dachau, onde morreu em 1943. Foi beatificado em 1996.

«En Juin 1936, Mgr Berning, évêque d'Osnabrück, membre du Conseil d'État prussien (nommé par Göring), visita des camps de concentration dans sa diocèse, et selon ce que raporta la Kölnische Volkszeitung, en loua les installatins. [...] Et l'on prétendit qu'après avoir conversé avec les gardiens du camp, après avoir fait l'éloge de leur travail, l'évêque termina en lançant trois fois "Sieg Heil!" en honneur du Führer et de la patrie.» (p. 203)

É claro que houve resistência de protestantes, e especialmente de católicos, contra a degenerescência nazi. Voegelin fornece exemplos. É o caso do padre Alfred Delp, que esteve implicado no atentado de 20 de Julho de 1944, organizado pela resistência militar, embora não participasse pessoalmente na conspiração. Foi enforcado em 2 de Fevereiro de 1945, por alta traição. O autor transcreve muitos dos textos escritos por Delp contra a desumanização operada pelo nazismo.

No início da 8ª Lição, escreve o autor: «Dans la dernière leçon j'ai commencé la discussion du probléme du corpus mysticum, parce qu'il est au fondement de l'attitude curieuse du clergé et des théologiens, et que, pour cette raison, il mérite donc d'être clarifié. Je me suis d'abord référé au passage dans lequel saint Thomas dit que le Christ est la tête de tous les hommes depuis le commencement du monde jusqu'à sa fin. Et cette communauté de toute les hommes sous Christ est l'ecclesia. De cette idée globale de l'Église il faut donc distinguer l'idée des Églises en tant qu'institutions sociales dans des situations historiques données.» (p. 215)

Entrando no campo do Direito, Voegelin elabora sobre "Le Rechtsstaat en tant que concept spécifiquement allemand", "Le conflit entre système hiérarchique de normes juridiques et séparation des pouvoirs, illustré par la loi fondamentale (Grundgesetz) allemande", "Le positivisme juridique, le droit créé par le juge et le régime autoritaire", "L'arrière-plan historique des systèmes juridiques clos", "|Droit positive| et |Droit naturel|: le primat de la substance morale de la société" e "La question de la moralité dans les procès pour crime de guerre en Allemagne". Impossível desenvolver aqui a matéria.

Um extracto: «À Ulm, les juges et les jurés ont décidé que les véritables auteurs (une fois encore, il s'agissait de meurtres en masse) étaient Hitler, Himmler et Heydrich), et que les accusé qui avaient exécuté leurs ordres ne pouvaient être condamnés pour complicité. Par la suite, toutes le autres cours ont repris cette argumentation, et, depuis, les verdicts de culpabilité dans les procès des Einsatzgruppen parlent toujours de comdamnation pour "complicité d'assassinat."» (p. 250)

Entrando na Segunda Parte da obra, Voegelin aborda a primeira e a segunda realidade durante os períodos de crise antiga, pós-medieval e moderna. «Les concepts de première et seconde réalités, que j'ai souvent employés, et l'identification de la seconde réalité à l'ideologie ont été eleborés par Robert Musil dans les analyses que contient son roman - qui, en réalité, n'en est pas un, mais possède en grande partie toutes les caractéristiques d'un essai - intitulé L'Homme sans qualités (à quoi correspondent des qualités sans homme). Ces concepts de Musil ont été repris, développés et approfondis par Doderer, en particulier dans ses grands romans politiques, Die Dämonen ("Les Démons"), et Die Merowinger oder Die totale Familie ("Les Mérovingiens ou la Famille totale"). (p. 259). O fenómeno chamado "segunda realidade" pelos críticos do nosso tempo não é um simples fenómeno alemão, é muito mais antigo e mais geral, ainda que seja neste momento preciso que concentrou as atenções. Simplificando, a segunda realidade, a da imaginação, substitui-se à primeira realidade, a da experiência. O autor cita a Utopia, de Thomas More e Gargantua e Pantagruel, de Rabelais, e, de forma muita desenvolvida, a segunda realidade de Dom Quixote, como divertissement, um trecho notável. E aborda ainda o Paradoxo de Russell e a decisão in dubio pro reo.

«Doderer, dans Les Démons, remonte à la fin du Moyen Âge pour démontrer l'analogie avec le déclin moderne de la civilisation. La croyance aux sorcières, que l'on impute souvent au Moyen Âge, est un phenomène du Moyen Âge tardif et, surtout, de la modernité. Il a fallu attendre 1434-1445 et les années quatre-vingt du XVe siècle pour voir déferler la première vague de croyance aux sorcières, puis il y en a eu de nouveau aux XVIe et XVIIe siècles; on en a observé encore quelques cas isolés jusqu'au XIXe siècle. Il existe une continuité entre la seconde réalité de la croyance aux sorcières et la seconde réalité du national-socialisme. C'est cela que Doderer analyse. Dans l'article "Witchcraft" ("Sorcellerie") de l'Encyclopedia britannica, on peut lire qu'au sommet du Moyen Âge il n'y avait pas de croyance aux sorciéres. Dans une société chrétienne, on croit en Dieu et non aux sorcières. Celui qui croit aux sorcières est un hérétique. La croyance aux sorciéres n'a été rendue possible que par le développement d'une vaste démonologie.» (p. 277)

«Le roman Les Mérovingiens s'achève par la discussion entre le chroniquer du roman, le Dr. Döblinger, et un lecteur, M. Aldershot. Pour justifier la fin de l'histoire, c'est-à-dire la déposition de Childéric III suivie de sa castration, le Dr. Döblinger cite Heidegger, à quuoi M. Aldershot rétorque que sont là des "stupidités monstrueuses", et le Dr. Döblinger l'approuve: "Quoi d'autre, sinon des stupidités? Tout cela est absurde." Cela veut dire que le langage de la seconde réalité doit être castré, il doit être atteint dans sa virilité, il faut l'eradiquer. L'exposé du problème dans le roman débouche sur le burlesque. Doderer soutient sans cesse cette position: il ne faut pas engager de discussion avec la stupidité (Blödsinn). Si l'on est confronté à une société corrompue, il n'y a rien d'autre à faire que la boycotter, refuser de s'y impliquer - ou la représenter adéquatement sous forme littéraire, c'est-à-dire transformer la stupidité en burlesque (ce qui n'est pas la même chose qu'une satire). Le problème était insoluble pour Karl Kraus. La réalité du IIIe Reich était, selon lui, tellement corrompue qu'il ne pouvait plus en faire la caricature sous forme satirique. C'est la raison pour laquelle la Troisième Nuit de Walpurgis s'ouvre par la phrase: "À propos d'Hitler, rien ne me vient à l'esprit (Mir fällt zu Hitler nichts ein.)" (pp. 278-9)

A 11ª Lição é dedicada á grandeza de Max Weber.

«Dans l'histoire intelectuelle allemande de l'esprit, une rupture de style s'est produite dans les années trente du XIXe siècle. Celle-ci a été précédée, en philosophie, par l'époque de l'idéalisme et, en littérature, par celle du classicisme et du romantisme, qui s'est achevée à la mort de Hegel (1831) et de Goethe (1832).» (p. 281)

«En effet, c'est pendant cette période sans traits reconnaissables que le monde allemand a donné naissance à quatre figures de stature mondiale: Karl Marx (1818-1883), Friedrich Nietzsche (1844-1900), Sigmund Freud (1856-1939) et Max Weber (1864-1920). Quatre figures de stature mondiale - ce n'est pas rien." (p. 282)

O autor ocupa-se depois de Max Weber, o célebre autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, em cuja cátedra leccionou em Munique, abordando especialmente "A Não-Experiência da Transcendência Conduzindo à Desumanização", "A Tensão não Resolvida de Weber em Relação à Transcendência" e "Weber, Místico Intelectual". Trechos demasiado extensos que não cabe aqui analisar.

A encerrar o livro, em Apêndice, "A Universidade e a Esfera Pública: Sobre a Pneumopatologia da Sociedade Alemã". Nesta parte final, Voegelin aborda "História Descritiva versus História Crítica", "A Desorientação Espiritual da Alemanha: Três Estudos de Casos (Heidegger, Niemöller, Schramm)", "A Desorientação Espiritual da Alemanha: A Resposta Literária (Musil, Doderer, Thomas Mann)", "Uma Teoria Narcisista da Cultura (Bildung)" e "A Universidade Alemã e a Perda da Comunidade Espiritual".

Apesar do comprimento deste post, mais não pudemos do que salientar alguns temas e proceder à transcrição de algumas passagens.

Mas vale a pena, a terminar, reproduzir o texto do próprio Eric Voegelin na contra-capa:

«Tel est donc l'argument qu'on nous oppose: si Hitler avait été stupide ou criminel, étant donné que les gens ont massivement voté pour lui, cela aurait impliqué que, eux aussi, étaient stupides ou criminels. Or cela n'est pas possible. Donc Hitler n'était ni stupide ni criminel.

L'autre possibilité - mais c'est ce point qu'on refuse d'envisager - est qu'un très grande nombre d'Allemands, peut-être l'écrasante majorité, se sont en effet montrés particulièrement stupides et le sont encore aujourd'hui en grande partie sur le plan politique, et que nous nous trouvons ici dans une situation de corruption intelectuelle et morale, due à un certain nombre de facteurs qui ont porté le phénomène Hitler au pouvoir. Ce n'est pas seulement un problème allemand, c'est un problème international. Car, parmi les droits de l'homme ne figure pas le droit d'être stupide et si la plupart des gens sont dépourvus de convictions et se sentent irresponsables, l'indifférence politique s'apparente étroitement à la perversion éthique. C'est un manque de culpabilité culpable



sábado, 8 de dezembro de 2018

AS FAMÍLIAS REAIS EUROPEIAS



Foi apresentado no passado dia 27 de Novembro, no Grémio Literário, o mais recente livro do embaixador José de Bouza Serrano, As Famílias Reais dos Nossos Dias - Tradição e Realidade. Profundo conhecedor das Casas Reais Europeias, tendo representado Portugal em alguns países de regime monárquico, o embaixador Bouza Serrano é um especialista na matéria, e tendo desempenhado, entre outras funções, a de chefe do Protocolo do Estado, a ele se deve O Livro do Protocolo, editado em 2011, obra do maior interesse, a mais completa do género publicada até hoje no nosso país, e de grande utilidade para todos quantos se movimentam em esferas que implicam o conhecimento das regras da etiqueta, mesmo nos acontecimentos de carácter não oficial.

Considerando que nas Casas Reais Europeias, ainda reinantes, se tem assistido, nas últimas décadas, a uma "vulgarização" dos comportamentos das Pessoas Reais, quer pelas suas atitudes, quer pelos casamentos que têm contraído, ainda impensáveis há meio século, Bouza Serrano interroga-se sobre a mudança de paradigma da Instituição Monárquica, e até que ponto encontra justificação a existência de uma monarquia num país em que a família reinante não se distingue das famílias plebeias, mesmo não considerando já que os monarcas o eram por direito divino, doutrina que prevaleceu na Europa Católica e Protestante e que foi abandonada, nomeadamente em Inglaterra, com a Revolução Gloriosa, e com a Revolução Francesa, mas que subsistiu ainda no Mundo Islâmico até à Primeira Guerra Mundial, em que o sultão otomano era também o Califa dos Crentes e no Japão até à Segunda Guerra Mundial, quando os americanos obrigaram o imperador a renunciar à sua qualidade de Filho do Sol, declaração que, curiosamente, não foi reconhecida pela maioria dos seus súbditos.

Esta mudança de paradigma tem consistido principalmente em casamentos morganáticos, isto é, casamentos de pessoas de sangue real com pessoas de origem plebeia, ou mesmo aristocrática, por um lado, e por outro, no desempenho de funções profissionais e de comportamentos individuais que, durante muito tempo, foram considerados não compatíveis com a realeza. Tem sido entendido que estas atitudes visam aproximar os soberanos e herdeiros dos respectivos súbditos, numa época em que a globalização avassaladora exige a modernização das instituições, e no caso dos casamentos,  a uma prevalência das razões do coração sobre as razões ditas de Estado.

«A monarquia deve certamente modernizar-se mas, de modo algum, vulgarizar-se», cita Bouza Serrano (de Jaime Peñafiel, um especialista espanhol da Realeza), e mais adiante escreve: « Hoje em dia, como já mencionámos e veremos, os casamentos "desiguais" não causam, por enquanto, demasiados problemas nas dinastias reinantes. São até, para muitos observadores, um elemento de sobrevivência e renovação da estirpe, pela assimilação e aproximação aos valores e estilos de vida da sociedade burguesa e uma educação universitária. No entanto, os seus "súbditos" ou "concidadãos" podem achar, por agora, natural que os seus príncipes e princesas escolham os consortes e futuros pais e mães dos seus filhos que num futuro reinarão no país, entre as pessoas comuns, com vidas e percursos cada vez mais semelhantes aos seus ou da vizinha do lado. Será que em determinado momento não se interrogarão sobre para que serve a monarquia se os soberanos são idênticos a eles? Podem os herdeiros prescindir de mais reserva, disciplina e resignação como fizeram os seus antepassados reais? O futuro dirá.» (p. 30)

Este livro foi inspirado ao autor pela entronização de Guilherme Alexandre como rei dos Países Baixos. Bouza Serrano era então embaixador de Portugal naquele país e constatou que os soberanos reinantes nas actuais dez monarquias da Europa são todos descendentes, por via masculina ou feminina, de Johan Willem Friso (1687-1711), príncipe de Orange, sobrinho de Guilherme III, também príncipe de Orange e rei de Inglaterra.

As Casas Reais apresentadas no livro são as seguintes: Países Baixos, Dinamarca, Noruega, Luxemburgo, Suécia, Bélgica, Espanha, Inglaterra, Mónaco e Liechtenstein (as duas últimas são principados).

No início, Bouza Serrano faz uma alusão aos "exilados régios no Estoril" (incluindo Estoril, Sintra, Cascais, Carcavelos, Alcoitão e Manique), onde viveram durante anos, no pós-Segunda Guerra Mundial, alguns soberanos destronados ou pretendentes ao trono, como Umberto II rei de Itália, Carol II rei da Roménia, Simeão II rei da Bulgária, Miklós Horthy, regente da Hungria, Don Juan de Borbón (conde de Barcelona e pai do rei Juan Carlos de Espanha), Henri d'Orléans (Conde de Paris e chefe da Casa Real de França), o arquiduque José de Habsburgo, a princesa Dona Teresa d'Orléans e Bragança (da Casa Imperial do Brasil) e respectivas famílias, além da Família Real portuguesa que residia em Coimbra e em Lisboa.

A propósito  destes "exilados" recordo o livro que Júlio Sauerwein publicou em 1955, Exilados Régios no Estoril.


Não cabe obviamente aqui a narração das peripécias, descritas com fina ironia, que Bouza Serrano refere no livro, a propósito do casamento das reais figuras das dinastias abordadas, nem outras considerações sobre as casas reinantes. Por isso, e para simplificar, indicaremos apenas os aspectos mais polémicos dos casamentos mais recentes.

- Países Baixos: o rei Guilherme Alexandre, calvinista, casou, enquanto príncipe herdeiro,  com Maxima Zorreguieta, plebeia, católica e argentina, que acabou por ser aceite pelos futuros sogros e pelas instituições estatais. Em 2013, a rainha Beatriz abdicou no filho e passou a usar o título de princesa, como já fizera sua mãe, a rainha Juliana, quando igualmente abdicou em Beatriz. e sua avó, a rainha Guilhermina, quando abdicou em Juliana. Desde 1890 até 2013 (123 anos), os Países Baixos tiveram três mulheres a reinar: Guilhermina, Juliana e Beatriz. Seguindo uma tradição que considero incompreensível, mas os neerlandeses são uma gente muito especial, todas as rainhas que abdicam voltam à situação de princesas. Tal não se verifica, por exemplo, em Espanha, onde Juan Carlos abdicou em Felipe, mas continua a conservar o título de rei, ou na Bélgica, em que Leopoldo III, abdicou em Balduíno e mais tarde Alberto II abdicou em Philippe, continuando ambos a conservar o título de rei. Esta situação excêntrica dos Países Baixos é como se o papa Bento XVI, que resignou, não tivesse mantido o título de papa (emérito) e passasse, por exemplo, a cardeal. Há um caso em que o monarca perdeu o título de rei, mas que é compreensível atendendo a uma complexidade de circunstâncias que não é para aqui convocada: quando Eduardo VIII de Inglaterra abdicou, passando a usar o título de duque de Windsor, aliás a designação da dinastia. Tratou-se de uma situação absolutamente sui generis e não penso que Isabel II, se porventura abdicar, perca o título de rainha. A aceitação do casamento do príncipe Guilherme pela Família Real holandesa foi de alguma forma facilitada pelo facto de já a mãe, a rainha Beatriz, ter tido de vencer muitas resistências para se casar com o diplomata alemão Claus von Amsberg, depois príncipe-consorte, e que pertencera às Juventudes Hitlerianas. Também o casamento da avó, a rainha Juliana, suscitara grande contestação entre os súbditos, pelo facto do noivo, o príncipe alemão Bernhard de Lippe-Biesterfeld, ser também proveniente da Alemanha Nazi.

- Dinamarca: Também o casamento do príncipe herdeiro Frederik foi rodeado de controvérsia, já que escolheu para mulher uma australiana que trabalhava em publicidade, Mary Donaldson, mas a noiva adaptou-se bem às suas novas funções. A rainha Margarida II não se opôs verdadeiramente a este casamento, já que ela mesma -  que pôde tornar-se rainha devido a uma emenda constitucional permitindo o acesso de mulheres ao trono, até então vedado, que se tornou imperativa quando se concluiu que o pai, o rei Frederico IX não teria filhos homens - se casara com um diplomata francês, o conde Henrique de Laborde de Monpezat, não oriundo de famílias reais.

- Noruega: Não cabe aqui historiar as relações das casas reais da Noruega e da Dinamarca, dois ramos da Casa Real de Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg. O príncipe herdeiro, Haakon, filho do rei Harald V, resolveu casar com Mette-Marit Tjessem Hoiby, uma norueguesa empregada de cafés e frequentadora de animados festivais de música mas, pior do que isso, toxicómana e mãe solteira do pequeno Marius, que serviu de pajem no casamento. O pai do rapaz, Borg, fora mesmo condenado e preso por posse de cocaína. Como o rei da Noruega é também o chefe da Igreja Luterana Norueguesa, o casamento suscitou não só um problema político mas também religioso, que acabou por ser ultrapassado. Aliás, já o rei Harald V se casara com uma plebeia norueguesa, Sônia Haraldsen, que trabalhava em costura e alfaiataria e é hoje rainha. Também por isso, Harald acabou por aceitar a decisão do filho, que ameaçou renunciar aos seus direitos ao trono se o não deixassem casar com Mette-Marit, que manifestou publicamente arrependimento pelo seu passado. Esta questão do "passado" foi outrora muito importante, mas parece que está a cair em desuso. O falecido conde de Barcelona afirmou uma vez, aludindo à Pragmática Sanção do rei Carlos III: «A rainha de Espanha não pode ter passado». E lembro-me, aquando das hesitações dos noivados do príncipe Felipe, ter ouvido o rei Juan Carlos afirmar: «Nenhum homem pode dizer que dormiu com a rainha de Espanha». Mas, afinal, não foi isso o que aconteceu.

- Luxemburgo: Descreve o autor a criação do Grão-Ducado do Luxemburgo (inicialmente ducado), desde o primeiro soberano, Adolfo I, filho de Guilherme de Nassau. O actual grão-duque. Henri, é casado com Maria Teresa Mestre Batista, de origem cubana mas naturalizada suíça, plebeia, rica, instruída e sem passado. Este matrimónio que contou inicialmente com a oposição do pai, o grão-duque Jean, e especialmente da avó, a grã-duquesa viúva Charlotte, que estava convencida que os Batista tinham sangue negro e que poderiam nascer bisnetos mulatos. Com a ameaça do príncipe de desistir dos seus direitos dinásticos, o casamento acabou por se realizar. O herdeiro do trono, Guilherme, hoje com 37 anos, casou com a condessa Stéphanie de Lannoy, da aristocracia belga, depois de alguns romances amorosos.

-Suécia: A Casa Real Sueca descende de Jean Baptiste Bernadotte, marechal de Napoleão, que reinou na Suécia como Carlos XIV João de 1818 a 1844 e como Carlos III João, rei da Noruega, que esteva reunida à Suécia até 1905. O rei actual, Carlos XVI Gustav, casou com uma plebeia de origem alemã-brasileira-espanhola, Sílvia Sommerlath, e tomou a decisão sendo já rei, pois de outra forma os pais teriam certamente impedido o casamento. No entanto, a rainha Sílvia tem desempenhado muito bem o seu papel. O rei desejava que lhe sucedesse o seu filho varão Carl Philip, mas havendo nascido anteriormente uma rapariga, Vitória, o rapaz foi príncipe herdeiro apenas 232 dias, pois entretanto o Governo legislou, com efeitos retroactivos, no sentido de que acabaria a precedência dos homens sobre as mulheres, estabelecendo a primogenitura como princípio sucessório. Vitória também entendeu que as razões do coração se sobrepunham às razões de Estado, e decidiu casar com o seu personal trainer Daniel Westling [como eu a compreendo]. Apesar do seu casamento morganático, o rei não viu com bons olhos esta união, nem a Corte, que o considerava provinciano e sem cultura. Mas Vitória persistiu na sua escolha e o casamento concretizou-se. O casal tem dois filhos, a princesa Estelle, que será sucessora, e o príncipe Óscar. Daniel Westling foi feito duque de Västergötland, com o tratamento de alteza real. Um ajudante de campo do rei Carlos Gustav comentou na altura: «A princesa do Mónaco casou com um guarda-costas, mas nem era a herdeira do trono nem a Suécia é um rochedo no Mediterrâneo».

- Bélgica: Quando morreu subitamente, sem descendência,  o rei Balduíno da Bélgica, especulou-se que o trono passaria para o sobrinho Philippe, como era desejo do falecido, que se encarregara da sua educação, ultrapassando na ordem dinástica o pai deste, Alberto, não muito vocacionado para os assuntos da Coroa. Mas tal não se verificou, respeitando-se a ordem sucessória, e o irmão de Balduíno subiu ao trono como Alberto II. O príncipe Philippe casou em fins de 1999, já com 39 anos, com a aristocrata belga Matilde d'Udkem d'Acoz, o que foi muito bem recebido pelos seus concidadãos, por ser a primeira futura rainha nascida no país. Em 2012, foi publicado um livro polémico do jornalista Frédéric Deborsu, Questions Royales, em que o autor faz afirmações polémicas, entre as quais a de que Philippe, "a quem não se conheceu qualquer namorada entre os 21 e os 35 anos", teria vivido "uma relação de amizade intensa com um homem", o conde Thomas de Marchante et d'Ansembourg, advogado e psicoterapeuta, dois anos mais velho. Verdade é que Philippe e Matilde têm hoje quatro filhos, sendo o mais velho a princesa Isabel, duquesa de Brabante e herdeira, uma vez que o pai subiu ao trono em 2013, devido à abdicação de Alberto II que, no entanto, já emérito, persiste em intervir publicamente, uma situação inédita. [Também existiram sempre rumores de que o falecido rei Balduíno era homossexual, embora tenha casado aos 30 anos com a aristocrata espanhola Fabíola de Mora y Aragón, de que não houve descendência.]

- Espanha: A Casa Real de Espanha é aquela a que Bouza Serrano dedica um maior número de páginas. Não só porque se trata do país vizinho mas, principalmente, devido aos problemas que têm ensombrado a monarquia nos últimos anos. O espaço permitir-me-á apenas apontar os aspectos fundamentais, que para os pormenores os leitores deverão comprar o livro e lê-lo. Em primeiro lugar, o comportamento do rei Don Juan Carlos. Devendo-se-lhe a consolidação do regime e a sua determinação na contenção da tentativa de golpe militar de 1981, a sua vida amorosa foi sempre complicada, ainda que contando com a benevolência da rainha Sofia, que foi aceitando as infidelidades do marido em nome das razões de Estado. Mas a relação do monarca com a "princesa" Corinna zu Sayn-Wittgenstein, na companhia da qual teve um acidente numa caçada no Botswana e com quem pensou mesmo casar, divorciando-se da rainha Sofia e abdicando, desgastou profundamente a sua popularidade, tanto mais que, pelo meio, existem rumores de irregularidades financeiras. Outro caso que abalou a monarquia foi a descoberta do esquema de corrupção envolvendo verbas do Estado montado pelo seu genro Iñaki Urdangarin, marido da infanta Cristina, antigos duques de Palma (o título foi-lhes retirado por Felipe VI). Foi a primeira vez na história de Espanha que uma pessoa da Família Real foi criminalmente imputada, e ainda que a infanta fosse absolvida o marido foi condenado a cinco anos de prisão. Acresce a estes casos o casamento de Felipe. Com várias namoradas sucessivas com quem, devido à sua condição social, Felipe foi sempre impedido pela família de se casar, resolveu o príncipe desposar finalmente Letizia Ortiz Rocasolano, jornalista, divorciada e filha de pais divorciados, ameaçando abdicar dos seus direitos dinásticos se tal não lhe fosse permitido. O casamento acabou por ser celebrado em 2004 e, devido à abdicação de Don Juan Carlos em 2014, o príncipe das Astúrias tornou-se o rei Felipe VI. O casal tem duas filhas, sendo a mais velha, Leonor, a actual princesa das Astúrias e herdeira presuntiva do trono

Grã-Bretanha e Irlanda do Norte: O autor detém-se especialmente na rainha Isabel II e na sua descendência. O casamento do príncipe Carlos com Diana Spencer foi um desastre, tendo esta acabado por morrer num desastre de viação em Paris, acidente então largamente comentado em todo o mundo. Em minha opinião, Diana não tinha o perfil para princesa herdeira e eventualmente futura rainha. Apesar de louvada por toda a ignara imprensa cor-de-rosa, a sua posição impunha-lhe um comportamento que não soube, ou não quis, manter. Também Carlos nunca se desligou totalmente de Camilla Shand (ex-Parker-Bowles). Assim, um casamento votado ao fracasso. A morte de Diana, um ano após o divórcio, fez correr rios de tinta, mas não é este o lugar para comentários a latere. Carlos casaria depois com Camila. Da união com Diana nasceram dois filhos: Guilherme, duque de Cambridge e Henrique (conhecido por Harry), duque de Sussex. Ambos tiveram casamentos fora dos meios aristocráticos: Guilherme casou com Kate Middleton (assistente de vendas numa cadeia de roupas), inglesa e sem passado e já têm três filhos: Jorge, Carlota e Luís. Henrique casou com Meghan Markle (actriz), norte-americana e divorciada, ainda sem geração.  Os outros filhos da rainha Isabel também realizaram uniões plebeias. A princesa Ana (princesa real) casou em primeiras núpcias com Mark Phillips, de quem se divorciou e a segunda vez com Timothy Laurence. Tem dois filhos do primeiro casamento: Peter e Zara. O príncipe André (duque de York) casou com Sarah Ferguson e tem duas filhas: Beatriz e Eugénia. O príncipe Eduardo (conde de Wessex) casou com Sofia Rhys-Jones e tem dois filhos: Luísa e Jaime. A rainha Isabel II é que teve um casamento principesco, ao desposar Philip de Battenberg (o nome foi depois mudado para Mountbatten, por causa das conotações germânicas), príncipe da Grécia e Dinamarca, filho do príncipe André da Grécia e Dinamarca e da princesa Alice de Battenberg. Recebeu, pelo casamento, o título de duque de Edimburgo, e depois o de príncipe consorte.

Mónaco: A Família reinante no Mónaco é a antiquíssima Família Grimaldi (de origem genovesa), que remonta ao século XII, tendo o principado sido fundado em 1297. O actual soberano é o príncipe Alberto II, filho do príncipe Rainier III e de sua mulher a actriz norte-americana Grace Kelly. Dada a popularidade de Grace o casamento foi bem recebido. Além de Alberto o casal teve mais duas filhas: Caroline e Stéphanie. O primeiro casamento de Caroline foi com o banqueiro francês Philippe Junot, de quem se divorciou,mantendo a seguir várias relações amorosas. Casou segundamente com o desportista italiano Stefano Casiraghi. com quem teve três filhos: Andrea, Charlotte e Pierre. Tendo Stefano morrido, casou pela terceira vez, agora dentro da aristocracia, com o príncipe Ernesto Augusto V, de Hanover, de quem tem uma filha, Alexandra. A princesa Stéphanie teve dois filhos do seu guarda-costa, Daniel Ducruet, antes de casar com ele: Louis e Pauline. Divorciou-se um ano depois. Teve também uma filha de outro dos seus guarda-costas, Jean Raymond Gottlieb, chamada Camille. Casou pela segunda vez com o trapezista português Adans Lopez Peres, de quem também se divorciou. O príncipe Alberto, hoje reinante como Alberto II, casou, já com 52 anos (constava que não se casaria; até 2002, não havendo herdeiros da Casa Grimaldi, o principado passaria para a França) com a nadadora sul-africana Charlene Wittstock, com geração: Jacques (actual príncipe herdeiro) e Gabriela. Tem dois filhos ilegítimos: Alexandre Coste e Jazmin Grace Rotolo, de mães respectivamente togolesa e americana. Os romances amorosos são uma constante da Casa do Mónaco, no presente e no passado.

Liechtenstein: É uma casa principesca que conserva a tradição. O actual soberano é o príncipe Hans-Adam II casado com a condessa Marie Aglaë Kinsky de Wchinitz e Tettau. Têm quatro filhos: Aloïs, o herdeiro, Maximiliano, Constantino e Tatiana. Segundo as disposições constitucionais o príncipe governa o seu Estado minúsculo com poderes absolutos. O príncipe herdeiro Aloïs casou com a princesa Sofia, duquesa da Baviera e tem quatro filhos: José, Maria-Carolina, Jorge e Nicolau. Em 2004, o príncipe Hans-Adam II transferiu os poderes efectivos para seu filho Aloïs.

Ao escrever este texto, privilegiei a descrição dos casamentos e descendências das Famílias reinantes na Europa, embora o livro de Bouza Serrano seja naturalmente mais abrangente. E incluí algumas observações pessoais. Sendo o autor monárquico, é interessante verificar que não se coíbe de equacionar a questão da permanência dos regimes monárquicos tendo em consideração os matrimónios "híbridos" que tiveram lugar nas últimas décadas. De facto, a Instituição Real exige o cumprimento de regras, a realização de cerimoniais, a adopção de comportamentos que são inerentes à tradição monárquica, que não se compadece do estilo de vida das gentes comuns. E o autor cita Antonio Gala: "Se as famílias reais, para além dos seus altos privilégios querem ter os dos pequenos burgueses (amores, ciúmes, cornos, divórcios e outros modestos aditamentos da vida) vão por mau caminho. Porque se todos fôssemos iguais, é evidente que todos seríamos iguais para tudo." A Realeza exige alguma "servidão" para poder desempenhar convenientemente o seu papel. Os casamentos "desiguais" dos últimos tempos, porque isso convinha sentimentalmente aos interessados e também com o pretexto de uma aproximação ao "povo", para tornar as monarquias mais populares, acabará por ter consequências  contrárias às pretendidas. Para ser respeitada, a Instituição Real necessita de uma encenação adequada, tal como acontece na Igreja Ortodoxa e acontecia na Igreja Católica, que perdeu muito da sua magnífica liturgia depois do Concílio Vaticano II. Eu sei que já lá vai o tempo em que os soberanos europeus eram todos "primos" (o que também acarretou inconvenientes), mas não se pode ignorar completamente a Tradição. Como escreve Bouza Serrano, "Não se pode medir o êxito ou a continuidade de uma monarquia, senão pela utilidade da instituição e as qualidades dos seus protagonistas, que resultem uma referência sólida, um exemplo inspirador ou sejam úteis aos seus concidadãos."

Muitas das monarquias europeias já desapareceram, por razões diversas, mas nos países onde ainda existe a instituição monárquica, a maioria dos cidadãos é, em geral, favorável à sua manutenção. Pelo menos assim tem sido até aos nossos dias. E os monarcas actuais reinam mas não governam, pois já não são considerados soberanos de direito divino. E essa circunstância empresta-lhes uma outra autoridade, dado que estão acima das disputas partidárias que são a essência da democracia. Não pretendendo alongar-me, concluo com mais uma citação do autor, com a qual ele encerra o seu livro: "Os governos sejam de esquerda ou de direita, são apenas para uma ou duas temporadas; os reis ou rainhas para uma geração; mas uma dinastia é para a História!"

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NOTA: Tendo em vista uma futura reedição da obra, não quero deixar de assinalar algumas imprecisões e incorrecções constantes da árvore genealógica do príncipe João Guilherme Frísio, que antecede o texto do livro e que creio não ser da exclusiva responsabilidade do autor:

1) Os nomes dos soberanos são indicados indistintamente em português ou na língua original, inclusive dentro da mesma dinastia;
2) Não é costume colocar-se o nº I quando só houve um soberano do mesmo nome até ao presente;
3) Na Dinastia Belga foi omitido o nome do rei Balduíno entre seu pai, Leopoldo III e seu irmão Alberto II;
4) Ainda na Bélgica, uma vez figura (rei) da Bélgica e outras dos Belgas (que é a forma correcta);
5) Na Dinastia do Luxemburgo está omitido o nome da grã-duquesa Maria-Adelaide entre Guilherme IV e Charlotte;
6) O falecido príncipe do Mónaco chamava-se Rainier e não Ranier. E era III e não II.

Não fiz propriamente uma revisão mas foi o que me saltou à vista.