Comecei
a ler, na noite de Natal, o romance Effraction
do escritor francês Alain Defossé (1957-2017), publicado em 2015 e que foi o
seu último livro.
Alain
Defossé era um homem singular e solitário, possuidor de vasta cultura e capaz
de captar os mais profundos sinais da alma das gentes. De uma lucidez
implacável e de uma invejável sensibilidade, deixou marcada na dezena de livros
que escreveu a sua visão dos homens, das suas grandezas e das suas misérias,
das suas preocupações quotidianas e das suas angústias, que são para o comum
dos mortais tão importantes como os grandes desígnios da humanidade.
O
seu nome não fazia a primeira página dos jornais de referência e foram poucos
os livros que escreveu, tendo, contudo, traduzido para francês quase cem obras
de alguns dos maiores escritores anglo-saxónicos. Vivia modestamente do
rendimento do seu trabalho de tradutor, uma actividade sempre mal remunerada,
embora em França não tão mal como no nosso país.
Devo
salientar que Alain Defossé era um grande amigo de Portugal, país que visitava regularmente,
tendo uma especial predilecção pela cidade do Porto. A última vez que falámos
foi em Setembro de 2016. Alain estava num jardim do Porto e cancelara um
encontro comigo em Lisboa dias mais tarde devido a problemas de saúde (dores
num ombro e num braço) que não quis especificar mais concretamente. Resolvera,
por isso, antecipar o seu regresso a Paris. Ainda trocámos mensagens em
Novembro desse ano, a propósito do rei D. Manuel II, cujos costumes suscitavam
em Alain algumas suspeições. Dei-lhe conta de um livro, do diplomata brasileiro
Cardoso de Miranda, O Último Rei, editado
fora do mercado e que o autor me oferecera, isto em 1960. Depois silêncio. Não
pensei que se tratasse de algo de grave, mas Alain Defossé viria a falecer em
14 de Maio de 2017.
O
livro que acabei de ler é a história de uma mulher idosa que recorda a sua
vida: sendo pouco é imenso. Uma mulher que vive agora praticamente sozinha. E
que julga poder reconstituir o passado. Não vale a pena entrar em detalhes pois
só a leitura integral do livro nos pode dar a dimensão da estória. Ao escrever
esta sua obra, que seria a derradeira, Alain Defossé identifica-se de algum
modo com a trajectória da velha senhora, a quem a marginalidade sempre atraiu.
Nem se omite o fascínio pelas peles escuras, que foi de ontem, é de hoje e será
de amanhã. Anne Rivière é uma mulher com passado, que Defossé descreve com
frieza mas com sensibilidade, sublinhando a ambivalência das pulsões sexuais e
amorosas.
Seguindo
uma linha não cronológica, o escritor exige do leitor um esforço suplementar,
obrigando-o a colar sucessivamente as peças do puzzle, a fim de tornar o texto inteligível.
Efracção
significa em português arrombamento, ruptura. De facto, o livro começa por um
arrombamento e termina numa ruptura. Efracção em lugar de infracção. Talvez um
testamento de Alain Defossé.
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