quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

EFRACÇÃO


 

Comecei a ler, na noite de Natal, o romance Effraction do escritor francês Alain Defossé (1957-2017), publicado em 2015 e que foi o seu último livro.

Alain Defossé era um homem singular e solitário, possuidor de vasta cultura e capaz de captar os mais profundos sinais da alma das gentes. De uma lucidez implacável e de uma invejável sensibilidade, deixou marcada na dezena de livros que escreveu a sua visão dos homens, das suas grandezas e das suas misérias, das suas preocupações quotidianas e das suas angústias, que são para o comum dos mortais tão importantes como os grandes desígnios da humanidade.

O seu nome não fazia a primeira página dos jornais de referência e foram poucos os livros que escreveu, tendo, contudo, traduzido para francês quase cem obras de alguns dos maiores escritores anglo-saxónicos. Vivia modestamente do rendimento do seu trabalho de tradutor, uma actividade sempre mal remunerada, embora em França não tão mal como no nosso país.
 


Devo salientar que Alain Defossé era um grande amigo de Portugal, país que visitava regularmente, tendo uma especial predilecção pela cidade do Porto. A última vez que falámos foi em Setembro de 2016. Alain estava num jardim do Porto e cancelara um encontro comigo em Lisboa dias mais tarde devido a problemas de saúde (dores num ombro e num braço) que não quis especificar mais concretamente. Resolvera, por isso, antecipar o seu regresso a Paris. Ainda trocámos mensagens em Novembro desse ano, a propósito do rei D. Manuel II, cujos costumes suscitavam em Alain algumas suspeições. Dei-lhe conta de um livro, do diplomata brasileiro Cardoso de Miranda, O Último Rei, editado fora do mercado e que o autor me oferecera, isto em 1960. Depois silêncio. Não pensei que se tratasse de algo de grave, mas Alain Defossé viria a falecer em 14 de Maio de 2017.

O livro que acabei de ler é a história de uma mulher idosa que recorda a sua vida: sendo pouco é imenso. Uma mulher que vive agora praticamente sozinha. E que julga poder reconstituir o passado. Não vale a pena entrar em detalhes pois só a leitura integral do livro nos pode dar a dimensão da estória. Ao escrever esta sua obra, que seria a derradeira, Alain Defossé identifica-se de algum modo com a trajectória da velha senhora, a quem a marginalidade sempre atraiu. Nem se omite o fascínio pelas peles escuras, que foi de ontem, é de hoje e será de amanhã. Anne Rivière é uma mulher com passado, que Defossé descreve com frieza mas com sensibilidade, sublinhando a ambivalência das pulsões sexuais e amorosas.

Seguindo uma linha não cronológica, o escritor exige do leitor um esforço suplementar, obrigando-o a colar sucessivamente as peças do puzzle, a fim de tornar o texto inteligível.

Efracção significa em português arrombamento, ruptura. De facto, o livro começa por um arrombamento e termina numa ruptura. Efracção em lugar de infracção. Talvez um testamento de Alain Defossé.



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