terça-feira, 22 de dezembro de 2020

UMA CARICATURA DA LAICIDADE EM FRANÇA

 Excelente artigo de Régis Debray no nº 2927 (3 a 9 de Dezembro de 2020) de "L'Obs", sobre a forma como Emmanuel Macron pretende implantar em França uma caricatura da laicidade do Estado:


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A DERIVA SECURITÁRIA EM FRANÇA

Notável artigo do prof. Olivier Roy em "L'Obs" (nº 2927, de 3 a 9 de Dezembro 2020). A propósito de defender os "valores da República", Emmanuel Macron e a sua corte, através de uma pedagogia autoritária encaminham-se para uma deriva securitária cujo propósito é a implantação progressiva de um Estado totalitário em França. Macron sonha com Napoleão III!


sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

ANDRÉ VENTURA E A CONSTITUIÇÃO

Tem provocado por estes dias grande clamor nos media e nas redes sociais a intenção de André Ventura de promover a revisão da Constituição da República Portuguesa (CRP), bem como o teor de várias propostas apresentadas pelo líder do Chega, agora candidato a presidente da República.

Analisemos ambas as situações, já que constituem matéria distinta.

Comecemos, todavia, por uma outra questão: a pretensão de ilegalização do Chega. Esta ideia já foi manifestada por duas das actuais candidatas presidenciais, Ana Gomes e Marisa Matias, e até por Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Também esta semana Ana Catarina Mendes, líder parlamentar do Partido Socialista, não recusou essa hipótese, no programa "Circulatura do Quadrado". Baseia-se esta pretensão no facto de considerarem que o Chega é um partido de extrema-direita, fascista, racista, xenófobo, anti-imigração, que viola os princípios fundamentais da nossa democracia. Acontece que o Chega foi reconhecido pelo Tribunal Constitucional (TC), no cumprimento de formas e conteúdos, e que só a ele cabe, segundo o artigo 223º- e) da CRP «verificar a legalidade da constituição de partidos políticos», embora possa, de acordo com a mesma disposição, «ordenar a respectiva extinção, nos termos da Constituição e da lei». Não tendo o Tribunal Constitucional, até à data, tomado qualquer iniciativa sobre a matéria, o Chega existe como partido político na plenitude dos seus direitos. Argumenta-se que o Chega defenderá hoje ideias que não constavam do seu programa entregue ao TC; como desconheço que documentos foram entregues àquele tribunal e também não conheço o actual programa do Chega (parece que tem sofrido muitas alterações) não me permito emitir opinião sobre a matéria.

É evidente que algumas das propostas que o Chega pretenderia ver consagradas na lei fundamental, e que a comunicação social tem divulgado, devem merecer repúdio imediato, tais como o estabelecimento da pena de morte, a ablação dos ovários a mulheres, em certas circunstâncias (esta não passou de um episódio), a castração química de pedófilos. Tudo o que constitui mutilação física da pessoa humana justifica um liminar repúdio. A redução dos serviços públicos de saúde e de educação e da segurança social, num país com as limitações que se conhecem, seria também simplesmente trágico. Já a diminuição do número de deputados da Assembleia da República é matéria susceptível de discussão.

Não subsistem, porém, dúvidas de que o combate às ideias do Chega deve ser feito no campo político e não por processo administrativo. Afinal, as constantes invectivas contra ele acabam tão só por favorecê-lo, conferindo-lhe uma maior visibilidade.

Mas o que me leva a escrever estas linhas é especialmente a argumentação contra o facto de  Ventura pretender rever a Constituição, reputando essa atitude de anti-democrática. Ora todas as Constituições podem ser revistas e as propostas mais contundentes do Chega nunca alcançariam a maioria de «dois terços dos deputados em efectividade de funções» (artigo 286º-1), exigida pela actual CRP, respeitando os limites fixados no artigo 288º.

Mas até os limites materiais de revisão podem, em algumas circunstâncias, ser alterados. Recordo que a CRP de 1976, no seu texto original, estabelecia como limites materiais de revisão, no seu artigo 290º-f), «O princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, e a eliminação dos monopólios e dos latifúndios», implicando isto naturalmente a irreversibilidade das nacionalizações de 1975. Ora esta disposição, hoje inexistente no texto fundamental, desapareceu, por conjugação de vontades do PSD e do PS, na altura em que era secretário-geral deste último partido, se a memória não me falha, Vítor Constâncio. Assim, encontrou-se uma forma habilidosa de contornar juridicamente o impedimento da revisão material e depois procedeu-se à revisão do que interessava. 

Os nossos políticos actuais têm a memória fraca, ou fazem por tê-la, e também não se dão muito ao cuidado de respeitar o Direito.

Não sou jurista e limito-me a relembrar factos e disposições legais. O assunto merecia ser desenvolvido por especialistas na matéria.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

O IRMÃO DE ARTHUR RIMBAUD

Publiquei há alguns dias um post sobre um livro recente que procede à revisitação nos nossos dias dos locais outrora frequentados em Paris por Arthur Rimbaud e Paul Verlaine.

Aconteceu que, entretanto, me chegou às mãos um recentíssimo livro, L'Autre Rimbaud, de David Le Bailly, em que o autor se debruça sobre uma figura (ostensivamente) quase desconhecida, Frédéric Rimbaud (1853-1911), o irmão mais velho de Arthur Rimbaud (1854-1891).

A vasta bibliografia dedicada ao poeta de Une saison en enfer é geralmente omissa ou pouca explícita quanto à existência de um irmão mais velho de Arthur, e que se manteve praticamente afastado da família, salvo no período da adolescência. Frédéric e Arthur, com apenas um ano de diferença, frequentaram o mesmo colégio, tiveram os mesmos companheiros, viveram na mesma casa, partilharam o mesmo quarto e, como acontece frequentemente nestas idades, é mesmo possível que tenham dormido juntos, o que não seria de estranhar dada a subsequente inclinação homossexual de Arthur. 

De Arthur Rimbaud sabemos tudo, ou pelo menos tudo o que ele não impediu que se soubesse. Porém,  a biografia de Frédéric é quase inexistente, pois ele era o mal-amado da família, o falhado, o inútil, o "raté", como os franceses o costumam qualificar. É pois sobre Frédéric Rimbaud que incide o livro de David Le Bailly, um texto de agradável leitura, onde a investigação minuciosa que o autor se propôs efectuar é envolvida numa atmosfera de ficção, já que não seria possível reconstituir a vida de uma figura de quem tão pouco se conhece. 

Sabemos, e Le Bailly enfatiza-o, que a mãe Rimbaud (Vitalie Cuif) era uma mulher difícil, puritana, intriguista, avarenta, autoritária, invejosa, que tornou a vida dos filhos, especialmente a de Frédéric num inferno. Mas os irmãos mantinham uma relação fraterna, ainda que no colégio Arthur se distinguisse desde logo do irmão, obtendo as melhores classificações e ganhando todos os prémios. Das duas irmãs mais novas apenas Isabelle interessa, já que Vitalie (filha) morreu muito cedo, com apenas 17 anos. O pai, também Frédéric Rimbaud, capitão de infantaria, incapaz de aturar a mulher, abandonou o lar conjugal logo após o nascimento de Isabelle, para não mais regressar.

Arthur Rimbaud, como todos sabem, encontrou-se com Paul Verlaine em Paris (1871), ainda não tinha completado os 17 anos e manteve com ele uma relação sexual apaixonada e tumultuosa, que os levou a Londres e a Bruxelas, onde Verlaine, dez anos mais velho, acabou por disparar sobre o jovem, ainda que sem consequências maiores. A sua relação provocou escândalo público e Verlaine (que já se separara da mulher e abandonara o filho recém-nascido) acabou por ser preso, encontrando-se com Arthur, pela última vez, em Stuttgart, em 1875. Arthur, poeta genial, escreveu neste período a sua breve mas imortal obra. Poesia tão genial quanto insuportável e verdadeiramente infrequentável era a sua pessoa, cuja vida de embriaguês, luxúria, desacatos e até proxenetismo os seus contemporâneos testemunham. Em 1876 abandonou a França, viajou e acabou por se instalar em Aden e Harar (na Etiópia) onde se dedicou ao tráfico de café, de armas, de marfim e até mesmo (há quem o afirme) de escravos, amealhando algum dinheiro, a única coisa que passou então a interessar-lhe. Doente, regressou a França em 1891, sendo-lhe amputada uma perna num hospital de Marselha. Morreu pouco depois. Não mais escreveria uma linha de poesia, o que não deixa de constituir um mistério sobre a sua estranha personalidade.

Frédéric Rimbaud (de pé) e Arthur Rimbaud (sentado) no dia da primeira comunhão, em 1866

Mas regressemos a Frédéric, que é o objecto do livro, ainda que a sua vida não se possa dissociar da de Arthur.

Injustamente considerado o inútil da família, Frédéric não teve a profissão a que a sua mãe para ele aspirava. Os Cuif possuíam propriedades e viviam com alguma abastança. Mas o rapaz, para lá de uma passagem pela vida militar (em homenagem ao pai) em serviço na Argélia, foi criado, cocheiro, camionista e viveu toda a vida em Charleville (a terra natal) ou arredores. Casou, contra a expressa vontade da mãe, com uma rapariga de um meio ainda "inferior" ao seu, Blanche Justin, que lhe deu quatro filhos e de quem acabaria por se separar. A irmã Isabelle, que casaria mais tarde com um jornalista e escultor de pouca envergadura, Pierre-Eugène Dufour (de pseudónimo Paterne Berrichon), herdou a maior parte dos bens da mãe, que detestava Frédéric (e também Arthur, mas de quem passou a gostar para o fim da vida, procurando apagar todas as manifestações de libertinagem, poesia e anti-religiosidade do filho). Isabelle conseguiu também obter de Frédéric uma renúncia aos direitos autorais de Arthur, inicialmente insignificantes mas que a pouco e pouco se tornaram imensos, à medida que a sua obra poética era progressivamente conhecida. Deve-se também a Isabelle, igualmente puritana e avarenta como a mãe, a ideia de que Arthur, confessadamente ateu e progressista (chegou a estar na Comuna de Paris, para horror da família) se teria convertido ao catolicismo antes de morrer, já que foi ela que permaneceu à sua cabeceira nos últimos dias que ele viveu no hospital.

Explica David Le Bally que se interessou por Frédéric Rimbaud porque a sua vida tem algumas semelhanças com a deste, e também porque ele é sistematicamente ignorado, ou quase, nas obras dedicadas ao irmão. Mesmo a Wikipédia não lhe consagra qualquer página, mas apenas ao seu pai e homónimo, o capitão Frédéric Rimbaud. Para escrever o livro, Le Bailly procedeu a uma investigação minuciosa nos prováveis ou improváveis arquivos e junto de pessoas que ainda poderiam ter alguma recordação do falecido e pacífico cidadão de Charleville. Salvo em alguns casos, não conseguimos descortinar na obra o que é realidade ou ficção.

O livro começa pela descrição da inauguração, em 21 de Julho de 1901, de um busto de Arthur, em Charleville, com a presença das autoridades e já de alguns intelectuais que se haviam apercebido da importância do poeta. E prossegue, ao longo de mais de 300 páginas, mantendo sempre vivo o interesse do leitor.

Quem estiver interessado no desvendar da vida desta figura quase desconhecida encontrará no livro a satisfação da sua curiosidade.

sábado, 5 de dezembro de 2020

SEPARAR O HOMEM DO ARTISTA

Em entrevista publicada no nº 2925 (19 a 25 de Novembro de 2020) de "L'Obs", a socióloga Gisèle Sapiro, a propósito do seu recém-publicado livro Peut-on dissocier l'oeuvre de l'auteur?, discorre sobre a questão de separar a obra de arte do seu autor. Pode dissociar-se um livro, um filme, um quadro da pessoa do criador, quando este afronta pessoalmente a moral pública e o politicamente correcto hoje insidiosamente dominantes? 

A polémica ganhou uma especial actualidade com os casos mais recentes de Roman Polanski e Gabriel Matzneff, por questões de ordem sexual, mas Gisèle Sapiro recorre a outros exemplos como Céline, Heidegger, Maurras, Michel Houellebecq, Peter Handke, Günter Grass, Maurice Blanchot, Paul de Man, para não recuar até Flaubert e Baudelaire.

Poderia a autora ter lembrado na entrevista o livro de Marcel Proust, Contre Sainte-Beuve, a propósito da distinção entre o homem e a obra, quando aquele escreve: « L'homme qui fait des vers et qui cause dans un salon n'est pas la même personne », mas esqueceu-se ou não conhece.

É evidente que a excitação presente decorre particularmente do movimento #Metoo e da chamada "cancel culture", invenções provenientes dos Estados Unidos, país onde as preocupações pelo acessório se sobrepõem sempre aos cuidados a ter com o essencial, como o nível de pobreza, a iliteracia, a igualdade, a protecção social e outros valores que definem a qualidade de um povo.

Os casos evocados por Gisèle Sapiro são de naturezas diferentes, uns sexuais, outros políticos, nuns é o comportamento do homem que inquina a obra, noutros é a própria obra que desmerece o homem e, nalguns, ainda, a obra e o homem que se confundem. 

Estamos a viver agora um período de puritanismo exacerbado e começamos a sofrer os preconceitos de uma censura "moral" inevitavelmente conducente à instauração de regimes totalitários a coberto da proclamação dos valores da "democracia". Isto é, estamos confinados (duplamente, por causa da pandemia) a participar numa farsa de bons costumes que conduzirá a remeter muito rapidamente para os subterrâneos da História muitos dos homens e das obras que marcaram a Arte dos últimos séculos. 

Os novos movimentos censórios preparam-se com certeza para atacar em breve Gide, Wilde, Sade, Pasolini, Visconti, Gombrowicz, Henry Miller, Essenin, Gauguin, Caravaggio, Lorca, Goethe, Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo e por aí fora... uma lista infindável. E como os políticos se tornaram complacentes, e coniventes, com este atentado à CULTURA, é preciso, é mesmo indispensável, que a chamada sociedade civil erga barreiras contra a progressiva destruição daquilo a que orgulhosamente se chama o património da Civilização Ocidental.  Como se poderá condenar o "obscurantismo islâmico" surgido nos últimos anos (as sociedades muçulmanas nunca tiveram na prática, que não no Livro, durante os séculos passados, preocupações maiores com as condutas "morais") se o próprio Mundo Ocidental se ilumina como farol de todas as castrações?

Não li o livro de Gisèle Sapiro, ainda não me chegou, as considerações acima são minhas e não dela, e foram-me sugeridas apenas pela entrevista, na qual ela mesma se interroga sobre tão pertinente questão.

Voltaremos ao assunto.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

RELEMBRANDO AS "PRIMAVERAS ÁRABES"

Por razões que não vêm ao caso, reli A Síria em Pedaços (2015), de Bernardo Pires de Lima. O volume reúne os artigos de opinião publicados pelo autor na sua coluna no "Diário de Notícias", entre Janeiro de 2011 e Janeiro de 2015, sobre a situação no Médio Oriente em geral e na Síria em particular, após a eclosão das chamadas "primaveras árabes". Inclui um oportuno glossário com a indicação das organizações citadas no texto, das siglas (das organizações que são designadas por estas) e das principais dramatis personae.

Os textos (breves) a que o autor chama "fotogramas de guerra", não mencionam os dias da respectiva publicação no jornal, impossibilitando o leitor de saber se são agora apresentados cronologicamente, embora tal se possa presumir, encontrando-se o livro dividido em três partes: 1) Circo de Feras (Janeiro de 2011 a Maio de 2012); 2) Linhas Vermelhas (Junho de 2012 a Agosto de 2013); 3) O Nosso Amigo Assad (Setembro de 2013 a Janeiro de 2015).

Procurou Bernardo Pires de Lima fazer como que um diário da evolução dos acontecimentos desencadeados na Tunísia pela imolação de Mohamed Bouazizi, em 17 de Dezembro de 2010, e que levou à queda do regime do presidente Ben Ali, até ao controle pelo Estado Islâmico de grande parte do território situado entre os rios Tigre e Eufrates. Com as diversas insurreições (ou tentativas) nos países árabes, o bombardeamento da Líbia, o assassinato de Qaddafi e a revolução no Egipto, que conduziria à demissão do presidente Hosni Mubarak. Uma página negra da história universal, que, na sequência da invasão do Iraque, provocou milhões de mortos, feridos, desalojados, migrantes, e em que o chamado "mundo ocidental" foi criminosamente cúmplice.

Não pretendeu Pires de Lima emitir um juízo moral sobre tudo o que ocorreu, e ocorre ainda, no Mundo Árabe, limitando-se a descrever os factos, a relação das forças em presença, e a sua previsão do evoluir dos acontecimentos. Sem prejuízo do cuidado do autor em nos fornecer informação tão detalhada quanto as circunstâncias lho permitiram, acontece que as suas análises se verificaram erradas na maior parte dos casos. A sua convicção, reiterada ao longo desses quatro anos, de que Assad teria de ser necessariamente derrubado do poder é a prova evidente de que mesmo os bons analistas desconhecem muitas vezes certas realidades que se impõem para lá da espuma das negociações diplomáticas, da força das armas e das alianças conjunturais. Assad continua presidente da Síria, está bem e recomenda-se, e continuará ainda por mais tempo se nenhum acontecimento imprevisível entretanto se verificar.

Mas o livro de Bernardo Pires de Lima tem o mérito de nos recordar o vai-vem das posições dos países árabes e dos países ocidentais, estes mais interessados nos recursos daqueles do que na proclamada necessidade deles acederem à "democracia", uma ideia cada vez mais vaga em territórios de tradições ancestrais, que não se compaginam verdadeiramente com a noção corrente no Ocidente. Além de que a intromissão "ocidental" no Mundo Árabe mais não fez do que despoletar ou incentivar movimentos islamistas radicais, com as consequências que hoje todos conhecemos.

Se passarmos em revista o estado em que se encontra o Médio Oriente desde a invasão anglo-americana de 2011, protagonizada por George W. Bush e Tony Blair, até ao momento actual, encontramos um Marrocos e uma Argélia (felizmente poupados a males maiores) periclitantes, uma Tunísia largamente dominada pelo organização islamista Ennahda com governos fracos, uma economia em crise e um turismo destruído, uma Líbia completamente destroçada, com dois governos e numerosas facções tribais, um Egipto que, depois da experiência "democrática" falhada de Mohamed Morsi, tem hoje um governo mais "duro" do que o de Mubarak, um Iraque a recompor-se muito lentamente da invasão de que foi vítima, parcialmente esfacelado pelos "Aliados" e pelo Estado Islâmico, uma Síria em pedaços (para citar o título do livro de Pires de Lima), com uma parte da população morta e a restante fortemente debilitada, um Líbano, alvo de sucessivas catástrofes, um Iémen dividido por uma guerra civil, uma Jordânia tentando equilibrar-se entre os os terramotos vizinhos. Sem esquecer o drama da Palestina. Subsistem, na sua majestade petrolífera, a Arábia Saudita e as monarquias do Golfo. A Turquia, sob a batuta demencial de Erdogan, continua a sacrificar a economia e a vida civil aos sonhos presidenciais do restabelecimento do Império Otomano e do Califado e o Irão prossegue, no meio das sanções ocidentais e da tentativa de progressos nucleares, uma política de afirmação no xadrez local, em disputa com sauditas, egípcios e turcos. Israel, esse sempre apoiado pelos Estados Unidos, vai-se aproveitando deste cataclismo para alargar o seu território. E o Curdistão continua a não existir, apesar das promessas dos vencedores da Primeira Guerra Mundial.

Para a situação que hoje se verifica no Médio Oriente concorreram por ignorância, estupidez, cupidez ou má-fé muitos dos líderes ocidentais, com especial destaque para Barack Obama, David Cameron, Nicolas Sarkozy e François Hollande (um desgraçado que pretendia a todo o custo bombardear a Síria).  Nunca será demais recordar que as decisões destes homens, a que se devem juntar George W. Bush, Tony Blair e uma parte significativa da administração norte-americana, e que são responsáveis pelos crimes de guerra ocorridos naquela zona, provocaram milhões de mortos, feridos, estropiados, famílias desfeitas, migrações de povos que perduram até aos nossos dias.

Concluindo, diria que os textos de Bernardo Pires de Lima estão factualmente bem documentados mas que as suas análises decorrem de uma perspectiva demasiado ocidental e são assentes em raciocínios baseados num quadro lógico, que é o do autor mas que não corresponde às circunvoluções médio-orientais, ou russas e chinesas. Contudo, o livro não deixa de ser um instrumento interessante para nos recordar, dia após dia, o que aconteceu durante os quatro primeiros anos das "primaveras árabes".