quinta-feira, 29 de outubro de 2009

SALAZAR III


É hoje apresentada em Washington a obra de Filipe Ribeiro de Meneses Salazar - A Political Biography. Porque se trata do primeiro estudo académico sobre o antigo presidente do Conselho de Ministros, que durante 40 anos governou a nação, e porque é a primeira obra escrita em língua inglesa sobre um homem político que profundamente marcou o seu país, saúda-se a sua publicação.

Importa que os admiradores e os adversários de Salazar leiam um livro que se presume sério e documentado, ainda que o autor, investigador português a trabalhar na universidade de Dublin, afirme a impossibilidade de analisar exaustivamente, por falta de tempo e de espaço (as páginas das editoras têm limites) , a vida e a obra de uma figura indelével da história de Portugal.

Aguarda-se que a edição original chegue rapidamente às nossas mãos e que, muito em breve, possamos dispor de uma cuidada tradução portuguesa, a fim de se iniciar um estudo sério, e tão isento quanto possível, da acção política de Salazar (é aí que reside o principal interesse da obra), já que até hoje existia unicamente a biografia, sem dúvida meritória mas visando outros propósitos, realizada por Franco Nogueira.

Talvez esta obra revele facetas inéditas de Salazar, mas só a sua leitura, que certamente aproveitará a apoiantes e inimigos do Estado Novo (regime que o autor não confunde com o próprio Salazar), permitirá que se confirmem ou infirmem as opiniões por uns e por outros expendidas ao longo dos anos e sustentadas até hoje.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O PAQUISTÃO

Depois das trágicas explosões de domingo em Baghdad, eis que esta manhã se verifica outra terrível explosão num mercado de Peshawar, com uma centena de mortos e cerca de meio milhar de feridos.

O clima de violência que se vive no Oriente médio prossegue num crescendo a que as polícias, as tropas regulares e os contingentes estrangeiros não logram pôr fim. A incursão no Afeganistão (onde também prosseguem diariamente os ataques indiscriminados) como represália pelos supostos ataques dos talibans aos Estados Unidos - como se os actos (isolados) suicidas contra o World Trade Center e o Pentágono (?) justificassem a invasão de todo um país - seguida da ocupação do Iraque e da colocação de tropas no Paquistão, torna mais evidente, dia após dia, a insanidade da administração Bush, cujo fim último, começa a presumir-se, seria a eclosão de uma Terceira Guerra Mundial. É dos manuais que a ausência de um inimigo credível (e a União Soviética implodiu) exige sempre a criação de outro, por muito imaginário que seja, que possa ser vendido, através de toda uma máquina de propaganda, às populações incautas deste triste planeta.

Há contingentes de soldados americanos e europeus um pouco por todo o Médio Oriente, à excepção (curiosa) de Israel, onde muita falta fariam para exigir àquele Estado o cumprimento das Resoluções das Nações Unidas, que, em plena impunidade, sempre ignorou. "Malhas que o Império tece".

A situação no Paquistão, para lá de outros factores, releva ainda da desastrosa consequência do desmembramento do chamado Império das Índias, de que foi imperatriz (hoje dir-se-ia imperadora) uma mulher de má memória, a rainha Vitória, e cujo último vice-rei, Lord Mountbatten, presidiu, impávido e sereno, à formação de dois Estados artificiais, o Paquistão e a Índia (hoje União Indiana), com a deslocação forçada de muitos milhões de pessoas (tendo uma boa parte morrido na trasfega) em função da sua crença, muçulmana ou hindu. Por questões políticas, religiosas e demográficas houve no início dois Paquistões e não um, separados pelo imenso território da Índia, tendo o mais pequeno, o Paquistão Oriental, acabado por se cindir do actual único Paquistão, passando a constituir o Bangla Desh. E sobra ainda o conflito latente, periodicamente reacendido, de Jaipur e Caxemira, onde não foi possível encontrar uma solução, mesmo precária, de autonomia política.

Como várias vezes tenho escrito, os conflitos actuais decorrem principalmente das desastrosas políticas anglo-saxónicas e o futuro afigura-se sombrio. Não me permite o tempo alargar-me em outras considerações, mas não resisto a recomendar uma leitura ou releitura atenta do livro do falecido Samuel Huntington The Clash of Civilizations. Livro premonitório ou encomendado? Um dia voltaremos a este tema.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

AS PRAXES

Alerta o PÚBLICO de hoje para mais uma indignidade surgida na aplicação das praxes académicas. Transcreve-se, a seguir, a notícia:


"Os estudantes alegam que, durante as tertúlias académicas ("um nome pomposo para designar os rallys das tascas"), os caloiros são obrigados a circular de bar em bar, bebendo até não poderem mais, sendo no final encaminhados para uma discoteca ou bar dançante, de onde o Conselho de Viriato retira supostos dividendos.

"Os caloiros não devem ser obrigados a sair de casa à noite, faltando às aulas de manhã, para que superiores da praxe [Conselho Viriato] ganhem dinheiro com isso", lê-se no e-mail. A mandatária de todo este esquema, apontam, é a líder do Conselho de Viriato, Ana Pinto, aluna do curso de Engenharia Civil e empregada num dos bares da zona do Politécnico.

A confirmarem-se as queixas, Fernando Sebastião, presidente do Instituto Politécnico de Viseu, diz que a situação é "inadmissível". Aquele responsável já se reuniu com a Associação Académica de Viseu e anunciou que, "para acabarem as suspeições", as actividades de praxe só serão retomadas em Novembro, quando começar a semana de recepção ao caloiro.

Porém, em conferência de imprensa, Rafael Guimarães, presidente da AAV, sublinhou, vezes sem conta, que acredita não haver quaisquer negócios de enriquecimento pessoal, entendendo que são "calúnias".

Ana Pinto, líder do CV, esclarece que as tertúlias são reuniões que servem para debater temas relacionados com a praxe e que se desenrolam em diversos bares "que patrocinam legalmente as tertúlias" e que o dinheiro é destinado a suportar as despesas com os festejos dos caloiros, explica. Garante também que ninguém é obrigado a consumir, muito menos bebidas alcoólicas.

O PÚBLICO contactou vários proprietários de bares que garantiram já ter pago 25 euros, sem recibo, para garantir a presença dos caloiros. Um deles contou que, no ano passado, lhe foi proposto pagar 50 euros, mas, como recusou, os caloiros não voltaram a entrar no bar.

O PÚBLICO teve acesso às chamadas folhas de pontuação, que o presidente da AAV afirma desconhecer, nas quais estão definidos os pontos que cada estudante ganha, de acordo com o tipo de bebidas que consome. Por exemplo, um fino (5 pontos) vale menos do que um shot (15 pontos). A maior valorização (100 pontos) é dada a quem beber de uma só vez mais de meio litro de cerveja."

Quanto a esta prática de praxar os caloiros, escrevi há dias, em comentário a um post do blogue "Portugal dos Pequeninos", o seguinte:

Já a violência, qualquer violência, deverá ser severamente condenada. Quanto às praxes académicas, que se pretendem iniciáticas na vida universitária, elas decorrem de costumes já antigos, criados por espíritos mesquinhos e constituem hoje um aviltamento da pessoa humana. Passando há dias frente ao Teatro Nacional D. Maria II, vi alguns "veteranos" obrigarem os "caloiros" a tomar banho vestidos nos lagos do Rossio; sem a menor intervenção da polícia. Não sei qual é o poder dos reitores e directores de faculdades para se evitarem estas manifestações abjectas e fundamentalistas. Mas para os seus autores, que já várias mortes têm provocado, esta cena que presenciei no Rossio, aconselharia a que, neste local de tantas tradições, os mesmos fossem queimados vivos, como no tempo da Santa Inquisição.

O que agora o PÚBLICO denuncia vem apenas confirmar a pertinência da minha convicção. Os cortejos de praxe que invadem as ruas em horas de ponta paralisando o trânsito, que provocam o alarido e o alarme público, que sujeitam os "caloiros" às provas mais infames, muito mais graves do que alguns actos que são hoje julgados pelos nossos tribunais , constituem uma perturbação da vida democrática. As praxes deverão ser rapidamente extintas por disposição governamental, com o pat
rocínio do presidente da República, e os infractores deverão ser presentes a tribunal e sujeitos a condenação exemplar, a bem da Nação.

domingo, 25 de outubro de 2009

O IRAQUE

Baghdad, a que o califa Al-Mansur chamou Madinat as-Salam (a Cidade da Paz), foi hoje novamente sacudida por duas violentas explosões que causaram cerca de 200 mortos e perto de um milhar de feridos. Para lá dos efeitos da guerra, incomensuráveis, os ataques, os atentados, as retaliações, as perseguições, sucedem-se.

Desde que em 2003 o Iraque foi invadido por uma "Coligação" encabeçada pelos Estados Unidos e o Reino Unido, a que, lamentavelmente se juntaram, por oportunismo ou cobardia, alguns outros países, a Cidade da Paz passou a ser um teatro de guerra. Não só Baghdad mas todo o Iraque.

Decidido o ataque por Bush e Blair, criminosos de guerra só comparáveis a Hitler, Stalin, Churchill e Roosevelt (ou Truman), na horrenda Cimeira das Lajes - onde se associaram Aznar (que teve azar com os ataques de Madrid) e Barroso (que recebeu como prémio a presidência da Comissão Europeia) - desde 2003 que um país onde se vivia em relativa segurança, ainda que sob um regime autoritário, porventura não muito diferente do dos seus vizinhos, passou a caracterizar-se pela intranquilidade absoluta, com um cortejo de mortos, feridos, estropiados, desalojados, emigrados, loucos, que ultrapassa já os cinco milhões de pessoas. Com mais um esforço, atingiremos a cifra simbólica dos seis milhões e poderemos então classificá-lo, segundo as normas em vigor, como um Holocausto.

É evidente que a primeira preocupação vai naturalmente para os seres humanos, mas que dizer das destruições, delapidações, saques, roubos, e toda a série de malfeitorias de que foi vítima o património histórico material da Mesopotâmia, herança máxima da história da Humanidade. E dos próprios animais, mortos, feridos, abandonados sem dó nem piedade.

A invasão do Iraque (por sua vez culpado de outras invasões com a cumplicidade ou conivência dos Estados Unidos, como o caso do Irão e do Kuwait), constituiu o acontecimento mais trágico do mundo desde a Segunda Guerra Mundial. Vivia o Iraque, sob Saddam Hussein, num clima de certo desenvolvimento económico e social, apesar da limitação de algumas das liberdades chamadas fundamentais e do eterno problema curdo, uma herança vinda do tempo da queda do Império Otomano e que o protectorado britânico, como de costume, não quis ou não soube resolver.

Afirmou um neoconservador americano, cujo nome a náusea me impede de escrever, referindo-se ao conflito israelo-palestiniano e à paz no Médio Oriente, que "o caminho para Jerusalém passa por Baghdad". Ao fim de seis anos de inferno, em que tudo está pior do que nunca, pode-se constatar a bondade desta afirmação.

Terra de muitas religiões, sempre no Iraque foram permitidos e protegidos todos os cultos e assegurado o seu livre exercício. Neste momento, em que sunitas e xiitas se digladiam ferozmente, que as outras confissões religiosas são perseguidas, nomeadamente os vários ramos do cristianismo, a população que ainda resiste, heroicamente, numa cidade que albergou, há séculos, a Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma) e num país de Entre-os-Rios (parte primordial do Crescente Fértil) recorda-se com saudade Saddam Hussein, e são muitos os que ansiariam pelo regresso de Saddam, não tivesse este sido eliminado fisicamente após um julgamento de farsa como o que se preparava para condenar Milosevic, em Haia, não tivesse este morrido (ou sido assassinado) antes de promulgada a sentença.

O problema do Iraque não terá solução, como o do Afeganistão, o da Palestina, e demais afins, sem que sejam tomadas medidas drásticas, inteligentes e corajosas. Mas uma parte do mal já feito é e será irreversível.

O Mundo Civilizado (ou o que quer que isso seja) deveria pedir desde já contas aos principais autores deste crime sem paralelo na história contemporânea. Importa que Bush e Blair e demais acólitos sejam presos, devidamente julgados e condenados à morte por enforcamento para exemplo das gerações vindouras. Esse será um primeiro passo para o começo da reconciliação mundial.

Outras atrocidades serão cometidas no percurso da História, porque o Homem (faça-se essa justiça), não foi criado à imagem de Deus. Mas o ataque ao Iraque é um caso ímpar e terá de servir de referência futura, para a Guerra e para a Paz.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CAIM

A recente publicação de Caim, de José Saramago, desencadeou uma polémica curiosa, já que os intervenientes, ao que parece, não leram o livro. Proferiu Saramago, no acto de lançamento, algumas declarações sobre a sua obra mais recente, no estilo que o caracteriza, desassombrado mas provocatório, o que levou algumas pessoas, e instituições, a comentarem em termos, estes descabidos, as afirmações de Saramago.

Ouvi até na rádio que um eurodeputado do PSD, cuja nome não fixei nem sabia que existia, pretendeu, no Parlamento Europeu, que o escritor renunciasse à nacionalidade portuguesa. Não me admira a insanidade destes propósitos já que a classe política portuguesa (todos os partidos incluídos) é de uma ignorância confrangedora. Não só a portuguesa como a da maioria dos países.

O livro, que me obriguei a ler esta noite, já que não poderia pronunciar-me quanto a uma obra que não conhecia, é uma efabulação sobre temas bíblicos, protagonizada por Caim, e reproduz fielmente velhas estórias do Antigo Testamento, acerca das quais Saramago tece comentários que não se coadunam com a tradição veiculada pelos nossos antepassados ou com a doutrina oficial da Igreja. Aliás, as posições assumidas neste livro pelo Nobel pouco ou nada diferem das expressas em obras anteriores e que traduzem o pensamento de José Saramago sobre Deus e a Religião.

Espanta-me, por isso, o sentimento de agravo manifestado por alguns sectores da Igreja face a uma obra literária que, ao contrário da Bíblia, não pretende ser o "Livro" mas um romance. Fiquei até com a impressão que alguns prosélitos desejariam queimar esta obra e, quiçá, o seu autor. Mas os tempos, felizmente, são outros, embora os autos-de-fé de livros não estejam tão distantes de nós como se possa pensar.

Já me espanta menos as críticas da comunidade judaica que - dado o Antigo Testamento (que não o Novo) da Bíblia ser propriedade comum das religiões judaica e cristã, especialmente o Pentateuco, a Torah, para os judeus- acabou por ser chamada à colação.

Ester Mucznik, na TV, desvalorizou inteligentemente o episódio, afirmando não ter lido o livro (o que me permito duvidar). Joshua Ruah, igualmente na TV, foi mais contundente, condenando as interpretações de Saramago. Se bem me lembro, foi até deselegante na sua intervenção.

É que o livro, especialmente para o fim, refere-se muitas vezes (como não poderia deixar de ser numa narrativa sobre a Bíblia) aos israelitas. E algumas referências sobre o Senhor Deus dos Exércitos (Dominus Deus Sabaoth) que está ao lado de Josué e o conduz à vitória em Jericó não pode deixar de convocar outras invocações sobre vitórias israelitas mais recentes, neste caso sobre os palestinianos. Não se ignora o posicionamento de Saramago nesta matéria e as ilações são fáceis de tirar.

Aceito que possa não se gostar de Saramago como pessoa ou até como autor (literáriamente falando e não quanto às suas opiniões). Mas já não posso aceitar que, nos nossos dias, alguém se escandalize com um romance que transmite o parecer de um escritor sobre um livro apenas considerado sagrado por uma parcela da população mundial, a maioria da qual nunca o leu. Mais se poderia dizer quanto ao facto de a própria Igreja Católica entender que é impossível fazer uma interpretação literal dos factos narrados no mesmo, que a Ciência e a História há muito se encarregaram de negar. Resta-nos da Bíblia, para os não crentes, a beleza de alguns textos, para os crentes um livro simbólico mas nunca o relato autêntico da criação do mundo e do homem.

domingo, 18 de outubro de 2009

BERLIM - O NEUES MUSEUM

Foi inaugurado oficialmente anteontem e abriu ontem ao público o Neues Museum de Berlim, criminosamente destruído durante a Segunda Guerra Mundial, nomeadamente pelos bombardeamentos de 1943 e 1945.

Conclui-se assim o restauro dos cinco edifícios que compõem a Ilha dos Museus, no rio Spree, no centro de Berlim e que integra, além do Neues (Novo) Museum, agora reaberto, o Altes (Antigo) Museum, o Pergamonmuseum, o Bode Museum e a Alte Nationalgalerie. Este conjunto foi considerado Património Mundial pela UNESCO e a sua recuperação completa deverá estar terminada em 2028.

A construção do Neues Museum iniciou-se em 1843, segundo um projecto de Friedrich August Stüler, sendo inaugurado em 1855 (algumas dependências abriram ao público posteriormente), e destinou-se a acolher várias colecções que o Altes Museum já não conseguia albergar, nomeadamente as relativas à Pré-História, ao Egipto e à Grécia Pré-Clássica.

Após a guerra foi criado um plano para recuperar estes notáveis museus de Berlim, embora muitas peças raras tivessem sido destruídas pelos bombardeamentos aliados. Algumas, pelas suas menores dimensões, foram transferidas para lugares seguros e salvaram-se, sendo agora expostas nos cinco museus, para fruição dos amantes da arte. Estes museus, nomeadamente o Pergamonmuseum, pela sua monumentalidade, passaram a fazer também parte do roteiro dos turistas que, em permanente desassossego, perturbam a serena contemplação de obras de valor inestimável, algumas verdadeiros tesouros da humanidade.

Os trabalhos de recuperação do Neues Museum começaram em 1986, ainda no tempo da República Democrática Alemã, mas foram suspensos em 1989 com a queda do muro de Berlim. Em 1997, o arquitecto britânico David Chipperfield foi encarregado da reconstrução e remodelação interior do Museu, tentando manter a estrutura original, mas deixando visíveis na fachada os buracos das balas do tempo da guerra.

Entre as peças mais notáveis agora expostas no Neues Museum encontra-se o busto de Nefertiti, mulher do faraó Akhenaton (obra reclamada pelo Governo Egípcio e cuja autenticidade foi recentemente posta em causa), que tive o prazer de ver em Abril passado, no Altes Museum, onde se encontrava provisoriamente colocada, o Tesouro de Príamo, descoberto em Tróia por Heinrich Schliemann, que o ofereceu à cidade de Berlim e o crânio do Homem de Neanderthal.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A GRIPE H1N1

SE FOR VERDADE O QUE SE AFIRMA NESTE VÍDEO, QUE VALE A PENA ESCUTAR ATÉ AO FIM, ESTÁ A PREPARAR-SE UM GENOCÍDIO À ESCALA MUNDIAL!

PRAGA - O CAFÉ SLAVIA

Na capa do livro, "O Bebedor de Absinto"


O Café Slavia é um dos emblemas de Praga. Constitui, há mais de um século, o ponto de reunião por excelência de artistas, intelectuais, políticos e outras gentes que ali vão não só para degustar o que a ementa propõe mas especialmente para conversar ou para ler os jornais e revistas que a casa fornece ou, outrora, para jogar o bilhar ou as cartas. É hoje também passagem obrigatória dos turistas mais esclarecidos que visitam a capital checa e que não se deslocam incluídos nos rebanhos apascentados pelas agências de viagens.


Verdade se diga que mesmo em Praga, onde existem ainda - e são frequentados - muitos cafés, tal como nas outras capitais do antigo Império Austro-Húngaro, Viena e Budapeste, o convívio em tais estabelecimentos começa pouco a pouco a perder-se. Muitas pessoas tinham mesa certa no seu café, aonde se deslocavam diariamente e onde encontravam os amigos, muitos estudantes tiravam os cursos estudando nos cafés, muitos cidadãos anónimos, ou não tanto, faziam nos cafés (lugares semi-públicos) as suas conquistas amorosas entre os clientes, do mesmo sexo, primeiro, do sexo oposto, depois, quando os cafés passaram a ser frequentados por mulheres.


Foram os cafés, para os burgueses, os substitutos dos salões da aristocracia, a partir do século XVIII. Paris deu-nos o exemplo, embora também aí, apesar de subsistirem cafés históricos como De la Paix, Flore, Deux Magots, Coupole, etc., muitos outros já fecharam devido aos ares do tempo. Londres, que realmente não faz parte da Europa, nunca cultivou o “género” café.


Este desaparecimento dos cafés, consequência da instauração de um tipo de vida individualista e inseguro, reflecte uma sociedade consumista e globalizada, dominada pelas novas tecnologias, onde as televisões, os computadores, os telemóveis e quejandos substituíram as relações pessoais, o intercâmbio cultural e a tradicional discussão política.


Lisboa, que foi uma cidade onde os cafés floresceram, onde, em tertúlias, neles se reuniram poetas e escritores, actores e artistas plásticos, políticos e jornalistas, está hoje reduzida a uma apagada e vil tristeza, em que sobram, na Baixa, mas diferentes do passado, o Martinho da Arcada, o Nicola e a Brasileira do Chiado.


Palácio Lazansky


O Café Slavia foi instalado no Palácio Lazansky, construído pelo Conde Leopold Lazansky em 1861/3, na esquina da Národní (Avenida Nacional) com a Smetanovo nábrezí (a Marginal de Smetana, ao longo do Moldava). O palácio, uma combinação dos estilos do Renascimento francês e holandês, é representativo das residências em Praga das velhas famílias da aristocracia da Boémia e foi projectado pelo arquitecto Ignác Ullmann e edificado pelo construtor Frantisek Havel. Não tendo sido inteiramente ocupado pela família Lazansky, o edifício, de três andares, foi parcialmente arrendado e nele viveu, entre 1863 e 1869, o célebre compositor checo Bedrich Smetana. No rés-do-chão onde o Café viria a ficar situado existiu a Escola de Dança Gorsky, tendo o local começado a notabilizar-se com o lançamento, no lado oposto, da primeira pedra do Teatro Nacional Checo, em 16 de Maio de 1868. A esta cerimónia assistiu, das janelas do palácio, o último rei coroado da Boémia, Fernando V (Fernando I como imperador da Áustria), que nessa altura já tinha abdicado da dignidade imperial e real no seu sobrinho Francisco José e vivia em Praga como simples cidadão.


Teatro Nacional


O Teatro Nacional foi concluído em 1881, tendo sido inaugurado em 11 de Junho, com a presença do herdeiro do trono, o Arquiduque Rodolfo de Habsburg, mas durante as obras finais de acabamento o edifício foi devorado pelas chamas, em 12 de Agosto, julga-se que por descuido de alguns operários que trabalhavam no telhado. A comoção que se apoderou da população foi imensa e seis semanas mais tarde já havia sido colectado o dinheiro suficiente para reconstruir o teatro, que seria finalmente re-inaugurado em 18 de Novembro de 1883, com a ópera Libuse, de Smetana.


Após a inauguração do Teatro em 1881, um conhecido comerciante de Praga, Václav Zoufalý, solicitou autorização para montar um café no rés-do-chão do palácio, tendo em vista não só a previsível frequência dos espectadores como dos próprios actores e de outras gentes que passaram a deslocar-se àquela zona da cidade, então em franco desenvolvimento. Tendo o incêndio do Teatro tido lugar dois dias depois da entrada do requerimento para a criação do café, as obras para instalação deste tiveram lugar em simultâneo com a reconstrução do Teatro. Assim, o Café Slavia abriu ao público em 30 de Agosto de 1884, primeiro apenas com dois salões, sobre a Smetanovo, virados para o Castelo, depois ocupando também as salas em frente ao Teatro.


É longa a história do Café Slavia. Com o decorrer dos anos transformou-se num lugar privilegiado de reunião de uma classe média em ascensão e também num fórum patriótico, que sobreviveu às vicissitudes políticas de Praga, do Império à Primeira Guerra Mundial, da República à Ocupação Alemã, do Regime Comunista à Segunda República. Durante muitos anos, o Café Slavia, como a maioria dos cafés clássicos, não servia refeições mas tinha à disposição dos clientes jornais e revistas, bilhares, jogos de cartas, xadrez, dominó e outros, permitidos por lei.


No fim do século XIX, Praga era habitada por três grupos étnicos principais: checos, alemães e judeus. O crescimento da população checa e o seu sucesso económico criaram paixões nacionalistas por parte de checos e alemães. Os checos pediam igualdade de direitos enquanto os alemães receavam perder os privilégios de que gozavam. Também os cafés, de acordo com as clientelas, tomaram partido e o Slavia rapidamente se converteu num centro do patriotismo checo. A Avenida Ferdinand (hoje Národní), entre o Café e o Teatro, tornou-se o lugar de passeio dos checos enquanto os alemães elegiam para os seus ócios a Na Prikopê (ao fundo da Praça Venceslau).


Na literatura revivalista, Slavia é o nome da mãe mítica de todos os eslavos, um símbolo dos movimentos pan-eslavos. O interior original do Café era dominado por um tríptico pintado por Viktor Oliva, representando a figura alegórica da mãe dos eslavos rodeada pelos súbditos das várias nações eslavas que lhe prestavam homenagem. A pintura, que foi enegrecendo pela atmosfera de fumo do Café, deixou de ter qualquer significado para os clientes depois da Primeira Guerra Mundial e quando os novos locatários a enviaram para a Galeria da Cidade de Praga, em 1932, ninguém lhe sentiu a falta.


Painel central do tríptico da "Mãe Slavia"


No começo dos anos 1930, o Café foi arrendado por Jaroslav Stêrba e Václav Fiser, tendo sofrido grandes modificações. As paredes que dividiam as salas individuais foram removidas, novas janelas foram rasgadas, permitindo uma melhor visibilidade sobre a margem oposta, e foi criada uma nova entrada com um lobby e um bengaleiro. O tríptico da “Mãe Slavia” foi substituído por outra pintura, também de Viktor Oliva, “O Bebedor de Absinto”. Os novos arrendatários encarregaram o arquitecto alemão Pavel Jindrich Koester da remodelação do interior. Especialista em projectos de restaurante, Koester adoptou uma concepção funcional baseada na experiência alemã. Instalou longas filas de bancos estofados sob as janelas e colocou mesas clássicas quadradas e redondas no espaço interior. As paredes foram apaineladas com madeira, mármore e vidro negro. O facto de ser um profundo conhecedor da Art Deco levou-o a utilizar adereços de metal claro, madrepérola e marfim nas paredes, como ainda hoje se pode observar no Restaurante Parnas, um prolongamento do Café do lado do rio.


Durante a Ocupação Alemã, a Marginal Smetanovo passou a designar-se Marginal Heydrich e a Avenida Nacional, a Národní Trída, foi rebaptizada Viktoriastrasse. O próprio Slavia tornou-se Kaffee Viktoria und Konditorei e o Palácio Lazanský, pela sua situação e condições, foi usado como quartel-general das forças ocupantes. Quando o Teatro Nacional foi encerrado em 1944 e a maior parte dos actores foi enviada para fábricas e brigadas de trabalho, a vida social do Café perdeu o seu brilho, que não foi readquirido mesmo depois da Guerra, devido ao racionamento e às sequelas do conflito.


Jirí Kólar


Com o estabelecimento do Regime Comunista em Fevereiro de 1948, o Café Slavia foi nacionalizado ficando a pertencer à companhia estatal Raj Praha 1. A aparência do Café manteve-se mas desapareceram os jornais, as revistas e as mesas de bilhar, bem como os antigos empregados. Muitos clientes de outrora afastaram-se. Por razões óbvias, os regimes totalitários opõem-se à vida de café, à sua efervescência espiritual e à livre expressão das opiniões. As actividades das associações de artistas também acabaram e no seu lugar surgiram associações profissionais que garantiam cuidadosamente a aceitação ideológica da arte. Durante o regime socialista, os artistas encontravam-se principalmente em clubes criados pelo Estado. Por fim, mesmo a mesa do escritor e pintor Jirí Kólar ficou vazia – este exilou-se em Paris, vindo a falecer mais tarde em Praga.


Jaroslav Seifert


Em 1983, o Café Slavia sofreu nova remodelação que acabou com o que restava da atmosfera original. Mas o pior aconteceu, contudo, em 1991, quando, durante o processo de reprivatização, o Café foi abandonado pelo seu operador, a companhia municipal Raj Praha 1. Na sequência de um concurso para decidir qual o melhor operador privado, a empresa americana HN Gorin, de Boston, obteve a concessão, oferecendo quatro milhões de dólares para a reconstrução. Assinado o contrato com o proprietário do edifício, a Academia das Artes do Espectáculo, a HN Gorin encerrou o Café na primavera de 1992, sem ter iniciado quaisquer obras. Esta atitude provocou uma série de protestos envolvendo estudantes e o próprio presidente da República Václav Havel. A morosidade do processo levou a que no Outono de 1993 o muito danificado Café fosse ocupado por um numeroso grupo de intelectuais com um grito de protesto: “Não abandonaremos o Slavia”. Dois anos mais tarde, em 17 de Novembro de 1995, o Tribunal da Cidade de Praga declarou finalmente o contrato inválido. O Café foi então adquirido pela companhia checa Parnas, que com o apoio financeiro da firma Centrotex, começou os trabalhos de reconstrução em Janeiro de 1997. Procurou-se devolver ao Café o estilo Art Deco concebido por Koester nos anos 1930, eliminando desnecessárias alterações subsequentes. Em 17 de Novembro de 1997 o Slavia reabriu ao público com o seu aspecto actual.


Václav Havel


Pelo Café Slavia passaram gerações de intelectuais e artistas. Entre os nomes mais sonantes incluem-se o poeta Vladimír Holan, o escritor Jaroslav Seifert, que recebeu o Prémio Nobel da Literatura (e escreveu um poema dedicado ao Slavia), os escritores irmãos Josef Capek e Karel Capek (que escreveu O Caso Makropulos), o professor Václav Cerný que com o poeta Jirí Kolár reuniu no Café, nos anos 1970, a oposição ao Regime, o pintor Jan Zrzazvý, o filósofo Jan Patocka, o dramaturgo Václav Havel (que veio a ser o primeiro presidente da Segunda República), os actores Jakub Vojta Slukov, Frantisek Ferdinand Samberk, Eduard Vojan e Jakub Seifert, o compositor Bedrich Smetana, que habitou no imóvel, etc. Por lá terão passado ainda Franz Kafka, Max Brod, Dvorak, Rilke, Apollinaire, Milan Kundera, Milos Forman, etc. Foi no Café Slavia que foi concebida a célebre Carta 77 e que se começou a organizar a Revolução de Veludo que poria fim ao Regime Comunista na Checoslováquia.


Por tudo o que se escreveu, merece o Café Slavia uma visita e uma meditação sobre o papel dos cafés na vida das sociedades. E merecem os praguenses um aplauso por terem impedido a mais do que certa destruição de um património inestimável que os americanos certamente preparavam.



quarta-feira, 7 de outubro de 2009

PRAGA - A BERTRAMKA

A Villa Bertramka foi construída em Praga, na zona de Smíchov, no fim do século XVII, numa quinta que pertencera aos frades cartuxos, que nela haviam instalado o seu primeiro mosteiro em terras checas, em 1324, sob a protecção de João do Luxemburgo, rei da Boémia e filho do imperador Henrique VII.

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A casa, em cujos terrenos se cultivava principalmente a vinha, mudou várias vezes de proprietário, tendo sido comprada em 7 de Março de 1743 por Franziska Bertram e Franz von Bertram, que restauraram a construção original e alargaram as zonas de cultivo das videiras e os pomares adjacentes. A sua influência na região foi tão notável que os habitantes de Smíchov passaram a chamar à propriedade a Bertramka.


Aos Bertram sucederam-se outros proprietários até que, em 23 de Abril de 1784, a Villa e as suas dependências foram adquiridas pela cantora Josepha Duschek por 3.525 florins renanos. A cantora comprou também por 1.705 florins o terreno contíguo à Bertramka e alargou os seus domínios até ao jardim Pelletka, mercê de um outro terreno adquirido por 2.000 florins no ano anterior. Isto testemunha a riqueza da Senhora Duschek à época – apenas seis anos após o seu casamento com o compositor e professor de música Franz Xaver Duschek – que lhe permitiu um investimento de mais de sete mil florins, quando o salário anual de um compositor da corte ao serviço da aristocracia não ultrapassava em média os 500 florins.


Tem-se especulado sobre a proveniência da fortuna de Josepha Duschhek, supondo-se que a maior parte proviria da herança de seu pai Anton Hambacher, proprietário de uma farmácia na Cidade Velha, que foi vendida depois da sua morte, e também da ajuda do seu avô materno Ignaz Anton Weiser, grande comerciante de Salzburg, cidade de que chegou a ser presidente da câmara. Contudo, em cartas de 1785, Leopold Mozart afirma que Josepha era amante do Conde Christian Philipp Clam-Gallas, um dos mais importantes fidalgos de Praga, em cujo palácio se realizavam importantes concertos e onde Beethoven (e possivelmente Mozart) tocou algumas das suas obras. O Palácio Clam-Gallas, na rua Husova, na Cidade Velha, cujos pórticos são flanqueados por dois pares de Hércules esculpidos por Matthias Braun, é hoje usado para guardar os arquivos da cidade.


Palácio Clam-Gallas


Depois da sua aquisição por Josepha Duschek, a Bertramka tornou-se um dos lugares que desempenharam um papel chave na história artística de Praga na passagem do século XVIII para o século XIX, devido ao prestígio dos seus proprietários, que organizavam concertos e recebiam as mais importantes personalidades da vida cultural.


Josepha Duschek


Franz Xaver Duschek, filho de gente humilde, foi baptizado em 1731 e, graças ao seu excepcional talento musical, obteve o apoio do Conde Johann Karl Sporck que o enviou para o colégio dos jesuítas de Hradec Králové e mais tarde para Viena. Em jovem, foi vítima de um acidente, de que se ignoram os pormenores, mas sabe-se que era corcunda e que coxeava. No fim dos seus estudos, regressou a Praga, mas não ficou ao serviço de nenhuma casa senhorial, como era hábito, antes se dedicando ao ensino do cravo e apresentando-se em recitais. Foi considerado um dos maiores pianistas da sua época. Tendo permanecido solteiro até aos 42 anos, a sua vida modificou-se radicalmente quando se casou com a jovem e encantadora Josepha Hambacher, uma das grandes sopranos da época. Josepha fora baptizada em 1754 e Franz Duschek conhecia-a desde que nasceu, pois ambos habitavam o mesmo prédio, na rua Celetná. Fora mesmo seu professor de canto e piano. O casamento teve lugar em 21 de Outubro de 1776 e resultou muito mais de uma combinação em que pesaram o longo conhecimento das famílias e a posição social do músico do que de uma súbita paixão recíproca.


Em 1777 o casal visitou o avô Weiser em Salzburg e aí começou a estreita relação de amizade dos Duschek com a família de Leopold Mozart, em especial de Wolfgang com Josepha, a quem Mozart dedica o recitativo e ária para soprano “Ah, lo previdi” (K.272).


A influência artística do casal Duschek rapidamente se estendeu a toda a sociedade praguense. Josepha tornou-se uma das maiores cantoras checas, requisitada e aplaudida em todos os teatros e salões e Franz, paralelamente às lições às famílias nobres e aos concertos em que se apresentava, iniciou uma fecunda actividade como compositor, tendo deixado numerosas obras, entre as quais 36 sinfonias e oito concertos para piano. A sua residência permanente no Palácio Liechtenstein, na zona de Malá Strana, e a residência de Verão na Bertramka passaram a ser ponto de reunião do meio artístico de Praga e lugar de acolhimento de todas as pessoas importantes que passavam pela cidade, não só músicos, mas pintores, escritores e cultores de outras artes.


Palácio Liechtenstein


Todavia, o mais célebre dos seus hóspedes, na Bertramka, foi, sem dúvida, Wolfgang Amadeus Mozart (27.1.1756-5.12.1791). As suas estadas na Villa, as obras aí compostas, os sucessos artísticos obtidos em Praga, a relação pessoal com os seus anfitriões, o entusiasmo que a cidade lhe testemunhou, passaram a fazer parte da história da música e outorgaram à Bertramka um lugar especial na biografia do compositor. Mozart influenciou o discurso musical checo e foi também influenciado pelas obras de compositores checos, como Georg (Jirí) Benda, Josef Myslivecek ou Franz (Frantisek) Xaver Brixi. Mais do que os austríacos, influenciados pela escola italiana, foram verdadeiramente os checos que reconheceram em Mozart o seu compositor. Viena só começou realmente a apreciá-lo depois da sua morte.


O sucesso praguense de Die Entführung aus dem Serail pela companhia do empresário Karl Wahr no Outono de 1782, despertou o interesse de Mozart por Praga. Em Dezembro de 1786, foi a vez da companhia Pasquale Bondini, certamente por sugestão do casal Duschek, que assistira à representação da ópera em Viena, apresentar Le Nozze di Fígaro no Teatro Nostitz, hoje o Teatro dos Estados. O espectáculo constituiu um sucesso estrondoso e Mozart, a convite dos seus amigos checos, decidiu efectuar a primeira visita A Praga, aonde chegou a 11 de Janeiro de 1787, acompanhado da mulher Constanze e do cunhado, o violoncelista Franz de Paula Hofer.


Teatro Nostitz, hoje Teatro dos Estados


Instalado no palácio Thun (do Conde Johann Josef Thun), em Mala Strana, hoje ocupado pela Embaixada de Itália, Mozart participou em múltiplas recepções e festas de carnaval e encontrou diversas personalidades da cidade e os seus irmãos maçons da Loja de Praga. Em 17 de Janeiro assistiu a uma representação de Le Nozze, e a 19 apresentou no Teatro Nostitz a sua Sinfonia nº 38 em ré maior (K.504), dita de Praga.


Palácio Thun


Os contactos artísticos e pessoais que estabeleceu em Praga ligaram-no definitivamente à cidade e foram decisivos para que Bondini lhe encomendasse uma nova ópera, que seria o Don Giovanni, com libretto de Lorenzo da Ponte, tendo sido o tema, ao que parece, sugerido pelos próprios representantes da companhia teatral.


A 4 de Outubro de 1787, Mozart e Constanze estão de novo em Praga, agora hospedados na Bertramka, mas Don Giovanni não está ainda concluído. Assim, a 14 de Outubro, dirige, em substituição, Le Nozze di Figaro, em homenagem ao casamento da Arquiduquesa Maria Teresa, sobrinha do imperador José II, com o príncipe Anton Clemens de Saxe e só a 29 de Outubro apresenta, em estreia absoluta, no Teatro Nostitz, o Don Giovanni, que obtém um extraordinário sucesso. Reza a tradição que Mozart escreveu a Abertura da ópera, na véspera da estreia, numa mesa de pedra que ainda hoje existe nos jardins da Betramka.



Mozart permaneceu em Praga até meados de Novembro e visitou diversos monumentos, entre os quais o Mosteiro de Strahov, em cujo órgão efectuou algumas improvisações, mais tarde registadas pelo organista do convento. Voltou a Praga, com o príncipe Karl Lichnowsky, futuro mecenas de Beethoven, em Abril de 1789 e regressou pela última vez à cidade, em Agosto de 1791, acompanhado da mulher e do compositor Franz Xaver Süssmayer, para a apresentação da sua ópera La Clemenza di Tito, escrita em honra do imperador Leopoldo II, para a festa da coroação deste como rei da Boémia, e que foi estreada a 6 de Setembro sob a direcção do autor. Os Mozart ficaram de novo na Bertramka, mas o pouco êxito da ópera desiludiu-o terrivelmente. A decepção quanto ao acolhimento da ópera e o agravamento do seu estado de saúde levaram-no a regressar a Viena na semana seguinte.


Mosteiro de Strahov


Mozart não voltaria a Praga e faleceu no dia 5 de Dezembro desse ano.


Depois da sua morte, os contactos entre os Duschek e os Mozart mantiveram-se. O filho mais velho, Karl Thomas Mozart, estudou em Praga, em casa do professor Niemetschek, entre 1792 e 1797, mas eram os Duschek que lhe forneciam a alimentação e lhe pagavam as lições. Em 1796, Constanze deixou na Bertramka o filho mais novo Franz Xaver Wolfgang, quando foi a Berlim assistir ao concerto organizado pelo rei Frederico Guilherme II em honra de Mozart. Regressou em Novembro de 1797, tendo então levado os dois filhos para Viena.


Como palco de encontro de diversas personalidades, cumpriu a Bertramka o seu papel, recebendo figuras como Beethoven, que dedicou uma ária a Josepha Duschek, ou até o célebre Casanova, que teria encontrado Mozart e Da Ponte em Praga na altura da composição de Don Giovanni.


A Bertramka continuou propriedade dos Duschek até 3 de Dezembro de 1799, quando, menos de um ano depois da morte do marido, Josepha a vendeu a Elisabeth Ballabene. Seguiram-se outros proprietários, como o conde Adolph Kaunitz, e em 11 de Junho de 1838 a Villa foi comprada pelo comerciante Lambert Popelka. Herdada por seu filho Adolf, a Bertramka foi parcialmente destruída por um fogo no dia 31 de Dezembro de 1872. Adolf Popelka procedeu à reconstrução, mantendo-se os aposentos de Mozart, segundo o seu desejo, no estado original. Mais estabeleceu Popelka no seu testamento: “os dois quartos cujas cinco janelas dão para a rua Plzenská, onde Mozart permanecia, devem manter-se para todo o sempre desabitados, em memória do grande Mestre da música”. Também a sua viúva, nas últimas vontades, determinou que “até ao fim dos tempos, (se deverão) conservar sem modificações e em bom estado o quarto de Mozart, o jardim e o seu busto, a fim de que seja perpetuado o culto do refúgio de Mozart, consagrado pelo próprio Mestre que aqui terminou a sua maior obra”. Contudo, como hoje se pode verificar, o mobiliário não foi conservado.


Adolf Popelka morreu em 1895 e a sua viúva Emma, no testamento de 1912, legou a Villa Bertramka à Fundação Internacional Mozarteum, de Salzburg. Após a criação da primeira República Checoslovaca, em 1918, a opinião pública começou a interessar-se pela Bertramka. O Mozarteum tinha deixado degradar as instalações, talvez devido ás dificuldades da guerra, e em 1928 Leos Janácek fez soar o alarme. Em 1927, fora criada uma sociedade, a Associação Mozart da República Checoslovaca, com o objectivo de se ocupar da Villa Bertramka e da sua tradição. Janácek denunciou a pretensão do Mozarteum que exigia 343.000 coroas para ceder o bem à Associação de Praga. Com a participação do Estado e de particulares a compra acabou por ter lugar em 1929. As reparações começaram progressivamente com diversas doações e o Estado, através dos Ministérios das Obras Públicas e das Finanças, atribuiu em 1934 e 1938 dotações substanciais para o restauro da Villa.


Com a invasão da Checoslováquia pelas tropas alemãs e a criação do Protectorado da Boémia-Morávia, o Führer nomeou para chefiar a região Konstantin von Neurath, que se interessou pela Bertramka, projectando ali criar “Die Nationale Mozartgedenkstätte des Grossdeutschen Reiches”, o Museu Nacional Mozart do Reich, que além da Villa deveria incluir todos os terrenos adjacentes que tinham pertencido aos Duschek. Após a resolução dos múltiplos problemas legais decorrentes desta decisão, que implicava alterações legislativas, o governo do Protectorado aprovou finalmente, em 21 de Maio de 1941, o conjunto das determinações do Protector do Reich. Com a substituição de von Neurath por Reinhard Heydrich o assunto foi suspenso e uma parte dos terrenos que seriam adstritos ao Museu foi objecto de construção depois da guerra.


Após o conflito, a Associação retomou as suas actividades. Com o advento da governação comunista a Bertramka tornou-se um bem comunitário e a sua gestão passou para o Estado em 1956, por intermédio do Museu Nacional de Praga. Posteriormente foi criado o Museu W.A. Mozart e Esposos Duschek. A Associação Mozart prosseguiu a sua actividade no período comunista, embora sem interferência na administração da Villa. Em 1986, a Associação Mozart, que perpetua a sua actividade no seio de uma sociedade independente, concluiu um acordo com o Estado em que este abdicava da sua propriedade da Bertramka. Em 1991, a Villa Bertamka tornou-se património da municipalidade de Praga 5, que assegura agora a sua gestão e organiza eventos culturais ao longo do ano.