quarta-feira, 7 de outubro de 2009

PRAGA - A BERTRAMKA

A Villa Bertramka foi construída em Praga, na zona de Smíchov, no fim do século XVII, numa quinta que pertencera aos frades cartuxos, que nela haviam instalado o seu primeiro mosteiro em terras checas, em 1324, sob a protecção de João do Luxemburgo, rei da Boémia e filho do imperador Henrique VII.

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A casa, em cujos terrenos se cultivava principalmente a vinha, mudou várias vezes de proprietário, tendo sido comprada em 7 de Março de 1743 por Franziska Bertram e Franz von Bertram, que restauraram a construção original e alargaram as zonas de cultivo das videiras e os pomares adjacentes. A sua influência na região foi tão notável que os habitantes de Smíchov passaram a chamar à propriedade a Bertramka.


Aos Bertram sucederam-se outros proprietários até que, em 23 de Abril de 1784, a Villa e as suas dependências foram adquiridas pela cantora Josepha Duschek por 3.525 florins renanos. A cantora comprou também por 1.705 florins o terreno contíguo à Bertramka e alargou os seus domínios até ao jardim Pelletka, mercê de um outro terreno adquirido por 2.000 florins no ano anterior. Isto testemunha a riqueza da Senhora Duschek à época – apenas seis anos após o seu casamento com o compositor e professor de música Franz Xaver Duschek – que lhe permitiu um investimento de mais de sete mil florins, quando o salário anual de um compositor da corte ao serviço da aristocracia não ultrapassava em média os 500 florins.


Tem-se especulado sobre a proveniência da fortuna de Josepha Duschhek, supondo-se que a maior parte proviria da herança de seu pai Anton Hambacher, proprietário de uma farmácia na Cidade Velha, que foi vendida depois da sua morte, e também da ajuda do seu avô materno Ignaz Anton Weiser, grande comerciante de Salzburg, cidade de que chegou a ser presidente da câmara. Contudo, em cartas de 1785, Leopold Mozart afirma que Josepha era amante do Conde Christian Philipp Clam-Gallas, um dos mais importantes fidalgos de Praga, em cujo palácio se realizavam importantes concertos e onde Beethoven (e possivelmente Mozart) tocou algumas das suas obras. O Palácio Clam-Gallas, na rua Husova, na Cidade Velha, cujos pórticos são flanqueados por dois pares de Hércules esculpidos por Matthias Braun, é hoje usado para guardar os arquivos da cidade.


Palácio Clam-Gallas


Depois da sua aquisição por Josepha Duschek, a Bertramka tornou-se um dos lugares que desempenharam um papel chave na história artística de Praga na passagem do século XVIII para o século XIX, devido ao prestígio dos seus proprietários, que organizavam concertos e recebiam as mais importantes personalidades da vida cultural.


Josepha Duschek


Franz Xaver Duschek, filho de gente humilde, foi baptizado em 1731 e, graças ao seu excepcional talento musical, obteve o apoio do Conde Johann Karl Sporck que o enviou para o colégio dos jesuítas de Hradec Králové e mais tarde para Viena. Em jovem, foi vítima de um acidente, de que se ignoram os pormenores, mas sabe-se que era corcunda e que coxeava. No fim dos seus estudos, regressou a Praga, mas não ficou ao serviço de nenhuma casa senhorial, como era hábito, antes se dedicando ao ensino do cravo e apresentando-se em recitais. Foi considerado um dos maiores pianistas da sua época. Tendo permanecido solteiro até aos 42 anos, a sua vida modificou-se radicalmente quando se casou com a jovem e encantadora Josepha Hambacher, uma das grandes sopranos da época. Josepha fora baptizada em 1754 e Franz Duschek conhecia-a desde que nasceu, pois ambos habitavam o mesmo prédio, na rua Celetná. Fora mesmo seu professor de canto e piano. O casamento teve lugar em 21 de Outubro de 1776 e resultou muito mais de uma combinação em que pesaram o longo conhecimento das famílias e a posição social do músico do que de uma súbita paixão recíproca.


Em 1777 o casal visitou o avô Weiser em Salzburg e aí começou a estreita relação de amizade dos Duschek com a família de Leopold Mozart, em especial de Wolfgang com Josepha, a quem Mozart dedica o recitativo e ária para soprano “Ah, lo previdi” (K.272).


A influência artística do casal Duschek rapidamente se estendeu a toda a sociedade praguense. Josepha tornou-se uma das maiores cantoras checas, requisitada e aplaudida em todos os teatros e salões e Franz, paralelamente às lições às famílias nobres e aos concertos em que se apresentava, iniciou uma fecunda actividade como compositor, tendo deixado numerosas obras, entre as quais 36 sinfonias e oito concertos para piano. A sua residência permanente no Palácio Liechtenstein, na zona de Malá Strana, e a residência de Verão na Bertramka passaram a ser ponto de reunião do meio artístico de Praga e lugar de acolhimento de todas as pessoas importantes que passavam pela cidade, não só músicos, mas pintores, escritores e cultores de outras artes.


Palácio Liechtenstein


Todavia, o mais célebre dos seus hóspedes, na Bertramka, foi, sem dúvida, Wolfgang Amadeus Mozart (27.1.1756-5.12.1791). As suas estadas na Villa, as obras aí compostas, os sucessos artísticos obtidos em Praga, a relação pessoal com os seus anfitriões, o entusiasmo que a cidade lhe testemunhou, passaram a fazer parte da história da música e outorgaram à Bertramka um lugar especial na biografia do compositor. Mozart influenciou o discurso musical checo e foi também influenciado pelas obras de compositores checos, como Georg (Jirí) Benda, Josef Myslivecek ou Franz (Frantisek) Xaver Brixi. Mais do que os austríacos, influenciados pela escola italiana, foram verdadeiramente os checos que reconheceram em Mozart o seu compositor. Viena só começou realmente a apreciá-lo depois da sua morte.


O sucesso praguense de Die Entführung aus dem Serail pela companhia do empresário Karl Wahr no Outono de 1782, despertou o interesse de Mozart por Praga. Em Dezembro de 1786, foi a vez da companhia Pasquale Bondini, certamente por sugestão do casal Duschek, que assistira à representação da ópera em Viena, apresentar Le Nozze di Fígaro no Teatro Nostitz, hoje o Teatro dos Estados. O espectáculo constituiu um sucesso estrondoso e Mozart, a convite dos seus amigos checos, decidiu efectuar a primeira visita A Praga, aonde chegou a 11 de Janeiro de 1787, acompanhado da mulher Constanze e do cunhado, o violoncelista Franz de Paula Hofer.


Teatro Nostitz, hoje Teatro dos Estados


Instalado no palácio Thun (do Conde Johann Josef Thun), em Mala Strana, hoje ocupado pela Embaixada de Itália, Mozart participou em múltiplas recepções e festas de carnaval e encontrou diversas personalidades da cidade e os seus irmãos maçons da Loja de Praga. Em 17 de Janeiro assistiu a uma representação de Le Nozze, e a 19 apresentou no Teatro Nostitz a sua Sinfonia nº 38 em ré maior (K.504), dita de Praga.


Palácio Thun


Os contactos artísticos e pessoais que estabeleceu em Praga ligaram-no definitivamente à cidade e foram decisivos para que Bondini lhe encomendasse uma nova ópera, que seria o Don Giovanni, com libretto de Lorenzo da Ponte, tendo sido o tema, ao que parece, sugerido pelos próprios representantes da companhia teatral.


A 4 de Outubro de 1787, Mozart e Constanze estão de novo em Praga, agora hospedados na Bertramka, mas Don Giovanni não está ainda concluído. Assim, a 14 de Outubro, dirige, em substituição, Le Nozze di Figaro, em homenagem ao casamento da Arquiduquesa Maria Teresa, sobrinha do imperador José II, com o príncipe Anton Clemens de Saxe e só a 29 de Outubro apresenta, em estreia absoluta, no Teatro Nostitz, o Don Giovanni, que obtém um extraordinário sucesso. Reza a tradição que Mozart escreveu a Abertura da ópera, na véspera da estreia, numa mesa de pedra que ainda hoje existe nos jardins da Betramka.



Mozart permaneceu em Praga até meados de Novembro e visitou diversos monumentos, entre os quais o Mosteiro de Strahov, em cujo órgão efectuou algumas improvisações, mais tarde registadas pelo organista do convento. Voltou a Praga, com o príncipe Karl Lichnowsky, futuro mecenas de Beethoven, em Abril de 1789 e regressou pela última vez à cidade, em Agosto de 1791, acompanhado da mulher e do compositor Franz Xaver Süssmayer, para a apresentação da sua ópera La Clemenza di Tito, escrita em honra do imperador Leopoldo II, para a festa da coroação deste como rei da Boémia, e que foi estreada a 6 de Setembro sob a direcção do autor. Os Mozart ficaram de novo na Bertramka, mas o pouco êxito da ópera desiludiu-o terrivelmente. A decepção quanto ao acolhimento da ópera e o agravamento do seu estado de saúde levaram-no a regressar a Viena na semana seguinte.


Mosteiro de Strahov


Mozart não voltaria a Praga e faleceu no dia 5 de Dezembro desse ano.


Depois da sua morte, os contactos entre os Duschek e os Mozart mantiveram-se. O filho mais velho, Karl Thomas Mozart, estudou em Praga, em casa do professor Niemetschek, entre 1792 e 1797, mas eram os Duschek que lhe forneciam a alimentação e lhe pagavam as lições. Em 1796, Constanze deixou na Bertramka o filho mais novo Franz Xaver Wolfgang, quando foi a Berlim assistir ao concerto organizado pelo rei Frederico Guilherme II em honra de Mozart. Regressou em Novembro de 1797, tendo então levado os dois filhos para Viena.


Como palco de encontro de diversas personalidades, cumpriu a Bertramka o seu papel, recebendo figuras como Beethoven, que dedicou uma ária a Josepha Duschek, ou até o célebre Casanova, que teria encontrado Mozart e Da Ponte em Praga na altura da composição de Don Giovanni.


A Bertramka continuou propriedade dos Duschek até 3 de Dezembro de 1799, quando, menos de um ano depois da morte do marido, Josepha a vendeu a Elisabeth Ballabene. Seguiram-se outros proprietários, como o conde Adolph Kaunitz, e em 11 de Junho de 1838 a Villa foi comprada pelo comerciante Lambert Popelka. Herdada por seu filho Adolf, a Bertramka foi parcialmente destruída por um fogo no dia 31 de Dezembro de 1872. Adolf Popelka procedeu à reconstrução, mantendo-se os aposentos de Mozart, segundo o seu desejo, no estado original. Mais estabeleceu Popelka no seu testamento: “os dois quartos cujas cinco janelas dão para a rua Plzenská, onde Mozart permanecia, devem manter-se para todo o sempre desabitados, em memória do grande Mestre da música”. Também a sua viúva, nas últimas vontades, determinou que “até ao fim dos tempos, (se deverão) conservar sem modificações e em bom estado o quarto de Mozart, o jardim e o seu busto, a fim de que seja perpetuado o culto do refúgio de Mozart, consagrado pelo próprio Mestre que aqui terminou a sua maior obra”. Contudo, como hoje se pode verificar, o mobiliário não foi conservado.


Adolf Popelka morreu em 1895 e a sua viúva Emma, no testamento de 1912, legou a Villa Bertramka à Fundação Internacional Mozarteum, de Salzburg. Após a criação da primeira República Checoslovaca, em 1918, a opinião pública começou a interessar-se pela Bertramka. O Mozarteum tinha deixado degradar as instalações, talvez devido ás dificuldades da guerra, e em 1928 Leos Janácek fez soar o alarme. Em 1927, fora criada uma sociedade, a Associação Mozart da República Checoslovaca, com o objectivo de se ocupar da Villa Bertramka e da sua tradição. Janácek denunciou a pretensão do Mozarteum que exigia 343.000 coroas para ceder o bem à Associação de Praga. Com a participação do Estado e de particulares a compra acabou por ter lugar em 1929. As reparações começaram progressivamente com diversas doações e o Estado, através dos Ministérios das Obras Públicas e das Finanças, atribuiu em 1934 e 1938 dotações substanciais para o restauro da Villa.


Com a invasão da Checoslováquia pelas tropas alemãs e a criação do Protectorado da Boémia-Morávia, o Führer nomeou para chefiar a região Konstantin von Neurath, que se interessou pela Bertramka, projectando ali criar “Die Nationale Mozartgedenkstätte des Grossdeutschen Reiches”, o Museu Nacional Mozart do Reich, que além da Villa deveria incluir todos os terrenos adjacentes que tinham pertencido aos Duschek. Após a resolução dos múltiplos problemas legais decorrentes desta decisão, que implicava alterações legislativas, o governo do Protectorado aprovou finalmente, em 21 de Maio de 1941, o conjunto das determinações do Protector do Reich. Com a substituição de von Neurath por Reinhard Heydrich o assunto foi suspenso e uma parte dos terrenos que seriam adstritos ao Museu foi objecto de construção depois da guerra.


Após o conflito, a Associação retomou as suas actividades. Com o advento da governação comunista a Bertramka tornou-se um bem comunitário e a sua gestão passou para o Estado em 1956, por intermédio do Museu Nacional de Praga. Posteriormente foi criado o Museu W.A. Mozart e Esposos Duschek. A Associação Mozart prosseguiu a sua actividade no período comunista, embora sem interferência na administração da Villa. Em 1986, a Associação Mozart, que perpetua a sua actividade no seio de uma sociedade independente, concluiu um acordo com o Estado em que este abdicava da sua propriedade da Bertramka. Em 1991, a Villa Bertamka tornou-se património da municipalidade de Praga 5, que assegura agora a sua gestão e organiza eventos culturais ao longo do ano.




1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente texto,e muito devemos agradecer ao autor o interesse(e o trabalho de composição) em partilhar conosco algumas memórias da sua recente visita a Praga. Poucos entre os leitores,mesmo os mais viajados,conhecerão em tanto pormenor a história dessa Residência,em que supremamente passa a sublime figura do Wolfgang Amadeus,mas infelizmente(embora só de raspão) também inquinada pelas atenções que lhe tenham dedicado repelentes figuras dos tristes anos 40,em particular o sinistro Heydrich,que em Praga encontrou o seu merecido destino. Expurgado desses detritos,este texto mereceria sem dúvida ser publicado em revista ou antologia, dado que boa parte das que se vão lendo por aí pouco material contêem com o interesse e o nível informativo e cultural do post. Já me pronunciei no mesmo sentido quanto ao trabalho sobre o António Ferro. Estes textos merecem melhor destino do que a obsolescência fatal da blogosfera. Autor,agite-se,apareça,siga o exemplo de outros bloguistas,e prepare-se para a edição dos seus (à moda do Camilo) "Dispersos"!