quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CAIM

A recente publicação de Caim, de José Saramago, desencadeou uma polémica curiosa, já que os intervenientes, ao que parece, não leram o livro. Proferiu Saramago, no acto de lançamento, algumas declarações sobre a sua obra mais recente, no estilo que o caracteriza, desassombrado mas provocatório, o que levou algumas pessoas, e instituições, a comentarem em termos, estes descabidos, as afirmações de Saramago.

Ouvi até na rádio que um eurodeputado do PSD, cuja nome não fixei nem sabia que existia, pretendeu, no Parlamento Europeu, que o escritor renunciasse à nacionalidade portuguesa. Não me admira a insanidade destes propósitos já que a classe política portuguesa (todos os partidos incluídos) é de uma ignorância confrangedora. Não só a portuguesa como a da maioria dos países.

O livro, que me obriguei a ler esta noite, já que não poderia pronunciar-me quanto a uma obra que não conhecia, é uma efabulação sobre temas bíblicos, protagonizada por Caim, e reproduz fielmente velhas estórias do Antigo Testamento, acerca das quais Saramago tece comentários que não se coadunam com a tradição veiculada pelos nossos antepassados ou com a doutrina oficial da Igreja. Aliás, as posições assumidas neste livro pelo Nobel pouco ou nada diferem das expressas em obras anteriores e que traduzem o pensamento de José Saramago sobre Deus e a Religião.

Espanta-me, por isso, o sentimento de agravo manifestado por alguns sectores da Igreja face a uma obra literária que, ao contrário da Bíblia, não pretende ser o "Livro" mas um romance. Fiquei até com a impressão que alguns prosélitos desejariam queimar esta obra e, quiçá, o seu autor. Mas os tempos, felizmente, são outros, embora os autos-de-fé de livros não estejam tão distantes de nós como se possa pensar.

Já me espanta menos as críticas da comunidade judaica que - dado o Antigo Testamento (que não o Novo) da Bíblia ser propriedade comum das religiões judaica e cristã, especialmente o Pentateuco, a Torah, para os judeus- acabou por ser chamada à colação.

Ester Mucznik, na TV, desvalorizou inteligentemente o episódio, afirmando não ter lido o livro (o que me permito duvidar). Joshua Ruah, igualmente na TV, foi mais contundente, condenando as interpretações de Saramago. Se bem me lembro, foi até deselegante na sua intervenção.

É que o livro, especialmente para o fim, refere-se muitas vezes (como não poderia deixar de ser numa narrativa sobre a Bíblia) aos israelitas. E algumas referências sobre o Senhor Deus dos Exércitos (Dominus Deus Sabaoth) que está ao lado de Josué e o conduz à vitória em Jericó não pode deixar de convocar outras invocações sobre vitórias israelitas mais recentes, neste caso sobre os palestinianos. Não se ignora o posicionamento de Saramago nesta matéria e as ilações são fáceis de tirar.

Aceito que possa não se gostar de Saramago como pessoa ou até como autor (literáriamente falando e não quanto às suas opiniões). Mas já não posso aceitar que, nos nossos dias, alguém se escandalize com um romance que transmite o parecer de um escritor sobre um livro apenas considerado sagrado por uma parcela da população mundial, a maioria da qual nunca o leu. Mais se poderia dizer quanto ao facto de a própria Igreja Católica entender que é impossível fazer uma interpretação literal dos factos narrados no mesmo, que a Ciência e a História há muito se encarregaram de negar. Resta-nos da Bíblia, para os não crentes, a beleza de alguns textos, para os crentes um livro simbólico mas nunca o relato autêntico da criação do mundo e do homem.

1 comentário:

Anónimo disse...

Saramago pode ser insuportável mas o livro só diz verdades. Então, para umas coisas a leitura deve ser literal e para outras simbólica. ora se fossem todos par o c.....