quinta-feira, 31 de julho de 2014

JEAN JAURÈS




Completam-se hoje 100 anos sobre o assassinato de Jean Jaurès, no Café du Croissant, em Paris.

Filósofo e jornalista, deputado e tribuno, Jaurès é hoje um ícone da República. Está de tal forma inscrito no património nacional francês que o seu nome figura em ruas, praças ou edifícios públicos em mais de 3.000 comunas, a par de Pasteur e Victor Hugo e logo atrás do general De Gaulle. Mesmo fora do Hexágono, ele está presente em outros países. Recordo-o sempre, quando passo, em Tunis, na Avenue Jean Jaurès, a caminho do meu hotel habitual, na Avenue de Paris.

Não cabe aqui traçar a biografia do homem eminente, republicano e socialista, humanista e pacifista, patriota e internacionalista, mas registe-se que se deve especialmente a Jaurès a criação da SFIO (Section Française de l'Internationale Socialiste) em 1905, que é antepassada do Partido Socialista Francês, fundado em 1969.

Nos anos tumultuosos do princípio do século passado, Jaurès (n. 1859) foi uma voz poderosa em defesa dos fracos e na luta pela justiça. Personalidade polémica que, como convém,  suscitou paixões e ódios, foi, na definição do historiador Michel Winock «un réformiste de "l'évolution révolutionnaire"».

Paladino da paz, esforçou-se tenazmente para que a diplomacia resolvesse os problemas com que a Europa se debatia nesse mês de Julho de há cem anos. Acabaria por morrer às balas de um jovem nacionalista francês alucinado, Raoul Villain, partidário da guerra com a Alemanha. No dia seguinte, começava a mobilização do país para a Segunda Guerra Mundial.

Repousa, desde 1924, no Panthéon de Paris.

terça-feira, 29 de julho de 2014

O ENCANTO SINGULAR DOS NÚBIOS




Confesso que não conhecia o romance Le Dernier Combat du Captain Ni'mat, nem, naturalmente, o seu autor, o escritor marroquino Mohamed Leftah (1946-2008). Cheguei a ele por uma referência noutra obra.

Duas palavras sobre o autor: Mohamed Leftah nasceu em Settat, estudou em Casablanca e viajou depois para Paris, a fim de ingressar numa escola de engenharia de obras públicas. Viveu os acontecimentos de 1968 e regressou a Marrocos em 1972, especializando-se em informática, actividade que passou a exercer. Entretanto, tornou-se jornalista literário do "Matin du Sahara" e do "Temps du Maroc", onde começou a colaborar no princípio dos anos 90.

Em 1992, publicou Demoiselles de Numidie, nas Éditions de L'Aube. A sua obra, escrita originalmente em francês, viria a ser, todavia, editada integralmente pelas Éditions de la Différence, a saber:

2006 - Au bonheur des limbes; Ambre ou les Métamorphoses de l'amour; Une fleur dans la nuit suivi de Sous le soleil et le clair de lune e Demoiselles de Numidie (reedição)
2007 - L'Enfant de marbre e Un martyr de notre temps
2009 - Une chute infinie e Le Jour de Vénus
2010 - Hawa e Récits du monde flottant
2011 - Le Dernier Combat du Captain Ni'mat

Mohamed Leftah

Mohamed Leftah morreu no Cairo, onde residia desde 2000, em 20 de Julho de 2008.

Passemos agora ao livro, que recebeu, em 2011, o Prix de La Mamounia, destinado à promoção da literatura marroquina de expressão francesa.

Está dividido em três partes, cada uma inserindo em epígrafe versos de Baudelaire.

Na primeira, "La beauté indécidable", recorre ao Hymne à la beauté:

Que tu viennes du ciel ou de l'enfer, qu'importe,
Ô Beauté! monstre énorme, effrayant ingénu!
Si ton oeil, ton souris, ton pied, m'ouvrent la porte
D'un Infini que j'aime et n'ai jamais connu.

Na segunda, "L'offrande nubienne", cita Le Voyage:

Verse-nous ton poison pour qu'il nous réconforte!
Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?
Au fond de l'Inconnu pour touver du nouveau!

Na terceira, "Kom Ombo", ainda em Le Voyage:

Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre!
Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!
Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,
Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!

Este romance de Leftah, publicado postumamente como a maior parte da sua obra, tem por cenário a cidade do Cairo, mais concretamente a zona elegante de Maadi, onde reside o capitão Ni'mat, oficial reformado da força aérea egípcia. O capitão Ni'mat, como muitos dos seus colegas, fora irradiado das fileiras após a derrota pungente de 1967, passando agora uma parte do tempo na piscina do clube local, em conversas fúteis com ex-camaradas de armas igualmente reformados, alguns dos quais, por  não terem sofrido a humilhação daquela derrota, atingiram o posto de general.

Indisponível a piscina dos jovens, devido a obras, vêm estes ao princípio da tarde utilizar a piscina dos adultos, provocando grande agitação e impedindo de tomar banho os clientes habituais, que então abandonam o recinto. Um fim de tarde, em que se deixara ficar na cadeira e adormecera, e sendo na altura a única pessoa na piscina, tem um sonho: vê sair da água, todo nu e resplandecente, Islam [o nome, ainda que comum entre os árabes, não deve ter sido escolhido por acaso] o seu jovem criado núbio, natural da aldeia de Kom Ombo, entre Luxor e Assuão.

Templo greco-romano de Kom Ombo

Nessa noite, o capitão Ni'mat recordou-se do sonho, levantou-se e dirigiu-se instintivamente à cabana ao fundo do jardim onde Islam estava a dormir. Contemplou o adolescente, admirou-lhe o sexo e ficou por um momento simultaneamente fascinado e horrorizado. «En regagnant, lentement, l'intérieur de la villa, il ne se demandait plus si la beauté qui venait de le sidérer était une épiphanie divine ou une tentation satanique, mais tout simplement quels bouleversements sa révélation, si tardive mais foudroyante, allait introduire dans sa vie.»

No dia seguinte, acordou tarde e encontrou um bilhete da mulher, Mervet, que já tinha saído. Depois de beber o seu sumo de manga chamou o criado para, como habitualmente, o massajar (o capitão Ni'mat levara-o algumas vezes ao clube para aprender a arte com Abou Hassan, que exercia numa pequena sala junta ao sauna e aos duches da piscina). Achando-o sujo mandou-o tomar um banho e mudar de roupa. Depois, ordenou-lhe que o massajasse, mas ao contrário do costume, tirou o slip e quis também massagem nas nádegas, o que Islam executou, pensando que na sua aldeia alguém que pedisse tal coisa seria imediatamente tratado de khawala.

Cairo - Hammam Bishri

Quando saiu para passear o cão, Islam encontrou um velho núbio muito considerado no bairro a quem contou, apesar do capitão lhe ter recomendado segredo, o pedido do patrão. O Tio Samir confortou-o, dizendo-lhe que existia uma glândula sob a bexiga chamada próstata que se tornava sensível com a idade, o que tornava explicável o desejo do capitão. Islam encontrou ainda um seu conterrâneo a quem igualmente relatou o episódio [a proverbial indiscrição dos jovens árabes]. O amigo, Mustapha, confidenciou-lhe então que outro rapaz, Abdou, lhe dissera que o respectivo patrão começara assim e acabara por desejar ser penetrado.

Nessa mesma tarde, o capitão Ni'mat dirigiu-se à piscina e procurou Abou Hassan, com cinquenta anos acabados de fazer mas ainda em muita boa forma física. Como de costume, deitou-se no divã e entregou-se aos cuidados do massagista. Mas desta vez, e pela primeira vez, o austero Abou Hassan, com a cumplicidade do capitão, desenvolveu outras técnicas que satisfizeram o seu cliente e o levaram a pensar no criado núbio.

Mais um dia, e Ni'mat resolveu utilizar os préstimos de Islam até às última consequências. Quando este lhe foi proporcionar a massagem quotidiana, o capitão entregou-lhe um preservativo e ordenou-lhe que o aplicasse. Islam nunca vira tal coisa, habituado como os rapazes da sua aldeia, quando atingem a puberdade, a práticas zoófilas e depois à masturbação, mas obedeceu e sodomizou o patrão.

A partir daí estabeleceu-se entre Ni'mat e Islam uma cumplicidade que foi crescendo de dia para dia. E, com o tempo, Mervet foi-se apercebendo de uma transformação do marido, quer quanto aos cuidados que punha na sua apresentação, quer quanto a algumas familiaridades estranhas com o criado. Recusava-se, porém, a admitir o que suspeitava, e desejando, a ser verdade que o marido mantinha tal tipo de relações, que fosse ao menos com um homem da sua posição e jamais com um doméstico.

Cairo - Hammam Margush

A realidade impôs-se um ano mais tarde. Uma amiga confiou a Mervet que o seu jovem criado Mustapha lhe confidenciara que o capitão lhe fizera propostas "indecorosas", que ele havia recusado. E que o mesmo, falando com Islam, que era da sua aldeia, este lhe dissera que desde há um ano mantinha uma relação com o patrão.

A amiga aconselhou Mervet a ter calma e, como estavam em vésperas do mês de Ramadan, a propor ao marido uma peregrinação a Meca. Curiosamente, foi Ni'mat que sugeriu à mulher fazerem uma 'Omra à cidade santa muçulmana.

[Esclarecemos, porque o autor não o refere, que a 'Omra, ou pequena peregrinação, é efectuada fora do mês da grande peregrinação, o Hajj, que se realiza no décimo segundo mês do ano islâmico, dhû al-Hijja]

A ideia de realizar esta peregrinação, apresentada à mulher como tratando-se de uma experiência espiritual (apesar do capitão ser agnóstico) surgira, principalmente, pelo facto de Ni'mat começar a ficar inquieto com as consequências graves que poderiam advir da sua incessante procura de novos parceiros para satisfazer os seus desejos sexuais. Voltara a assediar o já citado Mustapha, que rejeitara indignado as suas propostas, relatando o facto a Islam. E ainda não há muito tempo a polícia fizera uma busca num dos restaurantes discotecas do Nilo prendendo dezenas de pessoas que acusou da prática de sodomia.

Restaurante-discoteca "Queen Boat"

[Trata-se de um episódio real. Em 11 de Maio de 2001, a polícia egípcia prendeu 52 jovens na discoteca flutuante, discretamente gay,  "Queen Boat", um barco atracado na margem esquerda do Nilo, frente ao Hotel Marriott. Cinquenta foram acusados de "deboche inveterado" e "comportamento obsceno", crimes previstos no artigo 9c, da Lei nº 10, de 1961, relativa à Luta contra a Prostituição. Dois foram acusados de "desprezo pela religião", crime previsto no artigo 98f do Código Penal. Todos se declararam inocentes. Após um longo processo, com repercussões internacionais, uma parte dos homens foi condenada e outra parte absolvida]

«L'homosexualité était considerée comme une perversion extrême, grave, mettant en caue les fondements de la religion et de la société, une diffamation insultante pour la virilité des Égyptiens. Certains des prévenus furent accusés de surcroît, dans un amalgame surréaliste, des délits de satanisme et de collaboration avec Israël!»

A partida do casal para Meca determinou o encerramento temporário da moradia, tendo o criado Islam ficado aos cuidados de Mustapha que, tendo-se tornado membro da Irmandade Muçulmana, resolveu afastar o amigo da senda do pecado e reencaminhá-lo no caminho certo. Debalde, pois apesar de acompanhar Mustapha diariamente à mesquita, Islam não deixava de pensar nos momentos de prazer com o patrão.

Regressado da Cidade Santa, Ni'mat voltou a encontrar-se com o criado, para grande satisfação de ambos (a reconversão ensaiada por Mustapha não resultara). Uma noite, Mervet surpreendeu-os e tal facto provocou-lhe uma profunda depressão e levou-a a um mutismo absoluto, ficando insensível às tentativas de explicação do marido. A insustentabilidade da situação obrigou o capitão a despedir Islam que, também ele incapaz de continuar ao serviço na villa, aceitara uma oportuna proposta de emprego, noutra zona do Cairo, no elegante bairro de Zamalik. A despedida [aliás provisória, como se calcula] foi emocionante.

Nesta fase da estória, Mohamed Leftah coloca Ni'mat a escrever um diário íntimo, o que permite ao autor tecer pertinentes considerações históricas e filosóficas sobre a homossexualidade em geral e, especialmente, entre os árabes.

Contudo, as provações maiores para Ni'mat estavam ainda para  chegar. Uma manhã, a nova empregada, analfabeta, avisou-o de que alguém escrevera algo a vermelho na porta da residência. Era esta a mensagem:  «Nous ne voulons pas de khawala dans notre quartier.» Mandou-a apagá-la e que nada dissesse à mulher.

Finalmente, Ni'mat e Mervet acordaram divorciar-se e o capitão, mais por razões pessoais do que materiais, resolveu ir viver para um modesto apartamento de um bairro popular, Al Fajjala. Era agora considerado um pestífero e não podia continuar a evoluir no seu meio social. «Je n'avais pas seulement aliéné ce que constitue aux yeux de mes compatriotes "l'essence" d'un homme, à savoir sa "virilité", j'avais aussi trahi ma classe, ses privilèges et l'aura d'autorité qui la nimbe, pour des amours "fangeuses" avec un domestique.» Logo que instalado, não conseguiu Ni'mat resistir aos seus impulsos amorosos e decidiu telefonar a Islam [ainda bem que foram inventados os telemóveis]. Tinha considerado que sem a companhia do criado e incapaz de suportar a solidão, só lhe restaria o suicídio. Islam veio na sexta-feira, dia de descanso semanal dos egípcios e passaram a tarde fazendo amor, enquanto os muezzins apelavam à oração.

O núbio Bilal, frente ao Hotel Old Cataract, em Assuão (2003)

A visita semanal não satisfazia, porém, o capitão, que já não concebia separar-se do seu bem-amado. Assim, um dia disse-lhe:
- «Habibi, chéri, tu ne trouves pas que c'est vraiment trop peu de ne nous voir que le vendredi, le jour de ton congé  hebdomadaire?»
- «Que faire, captain? Je n'ai pas un moment à moi les autres jours, je ne cesse de trimer de l'aube jusqu'à la dernière prière du soir.»
La réponse fusa toute seule dans ma bouche, simple, claire, nette:
- «Tu n'as qu'à venir vivre ici avec moi.»
Ma proposition étonna d'abord Islam, il réfléchit un instant, puis me fit remarquer:
- «Mais nous allons éveiller à nouveau les soupçons et vous n'avez vraiment pas besoin, captain, d'un surcroît d'ennuis.»
- «Nous n'aurons pas d'ennuis si tu n'indiques à personne l'endroit où tu travailles, ni la nature de notre liaison. Pour ma part, ajoutai-je la voix tremblante, je ne ferai plus de propositions à quiconque, car je sais désormais que tu es et tu seras jusqu'à ma mort mon unique amour.»

Dito e feito. Islam transferiu-se para o apartamento do capitão e passaram a viver juntos. Para evitar constrangimentos, Ni'mat disse ao ex-criado que passasse a tratá-lo pelo nome próprio e ele mesmo decidiu rebaptizar Islam. Lembrando-se da graciosidade do templo de Kom Ombo (aldeia donde o rapaz era natural) que vira uma vez navegando no Nilo, resolveu passar a chamá-lo pelo nome da sua terra.

O idílio não  foi duradouro. Os inquisidores estão sempre à espreita. Algum tempo depois, apareceu de novo na porta do modesto refúgio, a letras de sangue, esta mensagem: «Si vous ne quittez pas ce quartier les deux khawalas on vous fera la peau

Desta vez Islam sentiu-se verdadeiramente ameaçado e achou prudente regressar à aldeia natal. O capitão preferiu permanecer em Al Fajjala, considerando que nada já tinha a perder. Os perseguidores tinham atingido os seus fins. O anjo núbio não voltou.

Três anos passados, no dia do seu 65º aniversário, o capitão anotou no diário que festejara a data na companhia de um gato tão decrépito como ele, que recolhera na rua.

*****

Esta a história que Mohamed Leftah conta no seu romance e que aqui exaramos esquematicamente em traços largos. Importa dizer que o livro está escrito num francês de fino recorte literário e que o texto convoca uma abundância de evocações culturais que testemunham o elevado nível intelectual do autor. Mesmo as cenas mais íntimas (que, por desnecessário, nos abstivemos de referir) são descritas com inultrapassável elegância.

Este livro é uma pedrada no charco da hipocrisia moral dos árabes em matéria sexual, aliás compartilhada pelos povos cujas civilizações foram espiritualmente (e materialmente) tuteladas pelas religiões monoteístas (católicos e judeus começam agora a sacudir o estigma, mas entre protestantes e ortodoxos as coisas ainda são complicadas). No mundo muçulmano, os homens, oficialmente, só podem ter relações sexuais com mulheres, maxime com outros homens se assumirem a posição activa e desde que o assunto permaneça discreto. A realidade, porém, é bem diferente, como é comprovado por quem com eles convive e esta obra perfeitamente ilustra.


segunda-feira, 28 de julho de 2014

ELEKTRA




Acabou de ser editada em DVD a gravação da ópera Elektra, de Richard Strauss, apresentada em Julho de 2013 no Festival de Aix-en-Provence.

Trata-se de um espectáculo excepcional, co-produzido com o Teatro alla Scala (Milão), a Metropolitan Opera (New York), a Finnish National Opera (Helsínquia), o Gran Teatre del Liceo (Barcelona) e a Staatsoper Unter den Linden (Berlim).

Teve a seguinte distribuição:

Elektra - Evelyn Herlitzius
Klitämnestra - Waltraud Meier
Chrysothemis - Adrianne Pieczonka
Orest - Mikhail Petrenko
Aegisth - Tom Randle
Preceptor de Orest - Donald McIntyre ( o Wotan do célebre Ring de Bayreuth de 1980)



A encenação esteve a cargo de Patrice Chéreau e foi o último trabalho deste extraordinário homem de teatro (e de cinema), que viria a morrer a 7 de Outubro desse ano, vitimado por doença prolongada.

O maestro Esa-Pekka Salonen dirigiu a Orchestre de Paris e o Coro Gulbenkian.

Patrice Chéreau já não chegaria a ver este DVD, mas o mesmo insere uma notável entrevista em que ele nos dá a sua visão sobre a encenação da ópera. Esta edição é também, de alguma forma, uma homenagem ao  insigne Mestre prematuramente desaparecido.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O REGRESSO DO CAPITAL




Quase 150 anos depois de Marx ter publicado Das Kapital surgiu, em fins do ano passado, uma obra volumosa (cerca de 1.000 páginas) que estuda a evolução do capital desde o século XVIII até aos nossos dias: Le capital au XXIe siècle, de Thomas Piketty.

Especialista das desigualdades económicas, Thomas Piketty é doutorado em ciências económicas, com uma tese preparada na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e na London School of Economics, e, entre numerosos cargos, foi fundador, professor e director da École d'Économie de Paris. Em 2013, recebeu o Prémio Yrjö Jahnsson, concedido pela European Economic Association.

O seu livro Les hauts revenus en France au XXe siècle. Inégalités et redistributions 1901-1998, editado em 2001, suscitara já um amplo debate, ampliado pela obra que agora apreciamos. Quando esta foi publicada, Piketty manifestou ao "Nouvel Observateur" (Nº 2548, de 5 de Setembro de 2013) a sua inquietação pelo crescimento das desigualdades económicas.

Desde então o seu trabalho tem sido desvalorizado por alguns actores e algumas revistas científicas, pretendendo, como afirmou o "Financial Times", que ele cometeu erros estatísticos. Claro que as críticas de certos quadrantes não causam surpresa. Não tendo ainda cessado o coro de vozes em desmerecimento de uma tão profunda investigação, porventura o livro mais importante sobre o capital desde o famoso Das Kapital, de Marx, e cujas conclusões acabam por ser evidentes aos olhos do comum dos mortais que não possuem formação científica, é oportuno apresentarmos o texto da sua entrevista à prestigiada revista francesa.






(Clique nas imagens para aumentar)

Segundo Piketty, a lei fundamental do seu livro é a desigualdade r>g, onde r é a taxa de rendimento do capital (lucros, dividendos, juros, alugueres, etc.) e g a taxa de crescimento económico (o aumento anual do rendimento e da produção).

Considerando que é urgente repensar o capitalismo, Piketty propõe, a exemplo do imposto progressivo sobre o rendimento, criado no século XX, a instauração de um imposto progressivo sobre o capital, que, aliás, já existe, ainda que só parcialmente e apenas em alguns países. Para a sua completa eficácia, tal imposto deveria ser aplicado a nível mundial.

A falta de transparência no universo financeiro e a desregulação dos mercados que impera desde os anos fatídicos de Thatcher e Reagan, contribuíram decisivamente para a situação que se vive na Europa, e no Mundo, nos últimos anos, meses e mesmo dias.

Recomenda-se aos interessados, se tiverem tempo, a leitura do livro de Thomas Piketty ou, pelo menos, da esclarecedora entrevista que publicamos acima.

domingo, 20 de julho de 2014

O HORROR EM GAZA




A recente ofensiva israelita em Gaza suscita enorme indignação mundial mas, mesmo assim, insuficiente para mobilizar a chamada comunidade internacional contra o morticínio desencadeado pelo Estado Judaico.

O antiquíssimo conflito israelo-palestiniano, cuja história, mil vezes evocada, nos dispensamos de comentar agora, não só constitui um clamoroso atentado ao direito internacional (talvez a provar que esse direito internacional não existe) como é uma das mais evidentes causas da ascensão do fundamentalismo islâmico e da desintegração (certamente desejada por muita gente) do Médio Oriente.

A propósito da carnificina em curso, e pela sua pertinência, transcrevemos o post hoje publicado pelo embaixador Francisco Seixas da Costa no seu blogue "duas ou três coisas":

Gaza

Vai para duas décadas, dormi uma noite na Faixa de Gaza. Embora fosse novembro, a noite estava quente e abafada. A insónia fez com que eu me sentasse, por algum tempo, na varanda da espartana "guest house" que o governo de Arafat me tinha destinado. Recordo-me de ter dado por mim a notar o pesado silêncio da noite daquela que era, e ainda hoje é, uma das zonas mais densamente povoadas do mundo. Só ao fim de uns minutos realizei que, tendo sido assassinado horas antes o primeiro-ministro de Israel, Itzak Rabin, aquela não era para Gaza uma noite normal, numa terra que se habituou a conviver com a insegurança. O silêncio significava então algo mais: o medo.

Os últimos dias e noites não têm sido fáceis em Gaza e as muitas centenas de mortos árabes, para punir a mão-cheia de vítimas israelitas, repetem um "script" que todos conhecemos de cor.

Não faço a menor ideia de como vai acabar, se é que algum dia vai acabar, o triste conflito israelo-palestiniano. Uma coisa tenho por certo: as humilhações e os padecimentos, somados à pobreza e à raiva que vêm com eles, são o irreversível caldo de cultura em que foram criadas várias gerações de palestinianos. Nunca uma paz sustentável de construiu sobre a persistência do ódio e Israel sabe bem que, com esta sua postura, afasta, dia após dia, as hipóteses de uma paz negociada, numa guerra que nunca vai poder ganhar em absoluto. Pelo contrário, com a sua política de permanente desprestígio da Autoridade Palestiniana e desprezo notório pelas vidas dos seus vizinhos, Israel dá adubo ao terreno onde prosperarão sempre o Hamas e outros grupos radicais. O governo de Telavive recorre, ano após ano, às ações militares que só geram novos e eternos inimigos nas populações civis árabes, fartas de ver nascer, como cogumelos, sucessivos colonatos judaicos - sob a cínica complacência internacional - que afastam, a cada hora, a sua esperança de retornar à terra que as resoluções da ONU lhes atribuiu, mas que ninguém obriga Israel a cumprir.

Perante o mundo, desde os "taken for granted" EUA até à pusilanimidade europeia, os palestinianos parece só terem o dever à sua ritual humilhação. Israel, na assunção eterna do direito histórico à "terra prometida", potenciado pelo usufruto da memória da barbárie nazi e, mais recentemente, da onda anti-muçulmana depois do 11 de setembro, tem sempre mão livre para tudo quanto entenda fazer, não se lhe aplicando a condenação que atitudes idênticas provocariam, se acaso tivessem sido outros Estados a praticá-las. Por muito que alguns atos palestinianos sejam condenáveis, o saldo da violência israelita é incomensuravelmente maior, é uma insuportável bofetada no Direito Internacional, assumida com arrogância e com uma cegueira histórica que um dia acabará por se voltar, em definitivo, contra o Estado judeu.

Termino com uma pergunta: por que razão Israel não aceita que as Nações Unidas coloquem observadores internacionais com a responsabilidade de vigiarem as linhas de separação entre o seu território e as áreas atribuídas às autoridades palestinianas, que, por exemplo, facilmente poderiam denunciar os ataques feitos destes últimos para o seu território? É na resposta nunca abertamente dada a esta questão que reside a chave da verdadeira atitude de Israel perante todo este problema.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

HOMOSSEXUALIDADE EPISTOLAR




O historiador Philippe Artières publicou, há tempos, uma obra curiosa, Lettres d'un inverti allemand au Docteur Lacassagne (1903-1908), onde reúne as cartas de Georges Apitzsch ao célebre médico francês.

Segundo Artières, que prefacia o livro, existe uma gritante ausência na história do século XIX, a dos "invertidos", como então se designavam os homossexuais masculinos. Escreve o autor que esses ausentes - que "preferiam os operários jovens às raparigas que frequentavam os bailes públicos" - deixaram todavia numerosos traços ao contrário do que muitas vezes se diz: em pequenos anúncios, em cartas, em diários, ou mesmo numa ou noutra autobiografia. E ainda nos arquivos da justiça relativos à chantagem, à repressão, aos atentados aos costumes, à prostituição.

«Si les invertis sont absents de l'histoire, comme les femmes le furent longtemps, cela tient à notre incapacité à penser les homosexuels comme des acteurs comme les autres, c'est-à-dire comme présences. Ce refus se manifeste par le rejet d'une histoire du banal: il n'y aurait en somme d'homosexualité historicisable que dans ce qui rompt les cours ordinaires des jours. On associe ainsi ces pratiques à des moments particuliers, la guerre, à des  lieux spécifiques, la prison, la caserne, ou à des figures singulières, l'artiste et l'écrivain. En somme, on les construit comme relevant de l'extraordinaire. Or, il est une histoire ordinaire de l'homosexualité, une histoire qui croise celle des sociétés européennes, une histoire qui est aussi celle de la médecine et des corps, celle de la police, celle de nos institutions.» (p. 9-10)

Durante o século XIX os homossexuais viajaram pela Europa (Itália, Alemanha, Londres, Paris) atraídos por certos locais (points de recherche) onde poderiam encontrar espíritos afins, onde poderiam conviver com jovens atraentes, mas também onde poderiam consultar médicos famosos a respeito da sua própria orientação sexual. Assim os vemos a visitar Magnus Hirschfeld ou Albert Moll, em Berlim, Alexandre Lacassagne, em Lyon, Friedrich Salomon Krauss, em Viena ou Paolo Mantegazza, em Florença.

O caso de Georges Apitzsch é paradigmático. Estudante, pertencendo à burguesia industrial alemã protestante, com um irmão mais velho igualmente homossexual, distancia-se do meio familiar e instala-se em Dieulefit, a 170 km de Lyon. A sua correspondência com o doutor Lacassagne (1854-1924), professor da Faculdade de Medicina de Lyon, não só aborda o seu caso particular como constitui uma crónica científica e literária da inversão sexual na Europa. Constatando que o professor está, aos seus olhos, insuficientemente informado dos trabalhos contemporâneos, nomeadamente alemães, transmite-lhe as publicações existentes, com os seus próprios comentários. Refira-se que Lacassagne, célebre pelas suas perícias criminais, nomeadamente no caso do assassinato do presidente da República Sadi Carnot em 1894, tornou-se, em França,  um dos maiores especialistas em matéria de medicina legal, devendo-se-lhe, também, o artigo "Pederastia" (à época o termo era utilizado em sentido lato e designava todas as relações homossexuais masculinas independentemente da idade dos participantes) para o Dictionnaire Encyclopédique des Sciences Médicales, de A. Dechambre (1886), que o livro em apreço inclui como anexo. Foi nos arquivos de Alexandre Lacassagne, depositados na Bibliothèque de Lyon-La Part-Dieu, que Artières exumou as cartas de Apitzsch. A forte medicalização da sexualidade, de que o século XIX foi teatro, está amplamente analisada por Michel Foucault nas suas lições (Les Anormaux) no Collège de France, em 1974-1975.

 Passando às 31 cartas de Apitzsch a Lacassagne (não se conhecem as missivas deste ultimo para o seu interlocutor), constituem elas um manancial inexaurível de informações, não apenas sobre os "padecimentos" específicos do estudante alemão (a inversão, a depressão, a necessidade de circuncisão, uma fístula anal, inclusive uma infestação de piolhos púbicos), mas sobre as suas aventuras sexuais, os seus gostos, a descrição do panorama homossexual internacional da época, apoiada em viagens, livros, etc,

Algumas, só algumas, citações:

«La sexulité domine comme toujours ma vie, toutes mes pensées, tout, et je peux à peine me séparer de ces apparitions. Même dans les prières et très souvent au temple ces idées me poursuivent et cette obsession d'être contraint comme un esclave à penser à des soldats et à des bottes me rend fort malheureux. L'autre jour, j'ai vu un hussard qui était très beau et fort joli et le désir de le posséder, même seulement de pouvoir le caresser, l'embrasser, m'a beaucoup excité, mais, grâce au ciel, je n'ai guère pu le fixer, l'occasion n'étant pas favorable et il était trop jeune pour le salir avec de telles spéculations.» (p. 27)

(Hussard, em francês, provém do original sérvio gussar e refere-se à classe de cavalaria ligeira de origem servo-croata)

«J'ai senti une grande  prédilection pour des ordonnances. C'étaient ordinairement des gaillards robustes et forts (campagnards) à l'âge de 21-24 ans avec légère moustache, mais jamais dans ma vie j'ai senti un amour pour des mâles avec des barbes et mon amour est resté le même, [il] s'est concentré sur des jeunes gens du peuple (soldats surtout18-25 ou 30 s'ils sont restés jeunes dans le dernier âge). À cet égard voir la fin de ce[tte] mémoire. Ces ordonnances ont eu un[e] uniforme bleu[e] bien collant[e] de manière qu'ont pouvait toujours voir des formes bien viriles. Comme j'ai dit: c'était des campagnards avec des couleurs de visages bien saines et fraîches. Ils n'étaient pas esthétiquement beaux, quelquefois le contraire. Mais ils avaient quelque chose qui m'a aiguillonné. Quand j'ai vu ces ordonnances, je les ai suivis longtemps avec mes regards et avais le plus grand désir d'être avec eux, surtout quand ils étaient en des cullotes à cuir et de grandes bottes (mais jamais une personne d'une position socialement élevée avec des bottes m'a excité). J'ai souvent soupiré et désiré que mon père fusse oficier.
...................................................................................
Aussi des ouvriers et des gens du peuple, s'ils sont jeunes et forts, m'attirent, des matelots, des gendarmes et des gardiens de la paix (polices). Depuis que je suis en France, m'ont attiré le rouge de l'uniforme et surtout les cavaliers avec leurs grosses culottes et bottes. C'est une vraie manie; je peux suivre les derniers avec une persévérance insensée.» (p. 33-34)

«Aussi j'ai fixé trop de garçons télégraphistes qui étaient jeunes et jolis - ils sont en uniforme en Allemagne. Ces garçons toujours en des relations avec le personel des tramways électriques m'ont rapidement rendu populaire.» (p. 38)

(Em Portugal, eram famosos os boletineiros da Marconi, jovens que se deslocavam de bicicleta para entregar os telegramas. Houve tempo em que muitos homossexuais se enviavam mutuamente telegramas e quando o boletineiro surgia com a mensagem era logo convidado a entrar em casa)

«Pendant mon absence ma tante avait envoyé à ce petit homme duquel je vous parlais un panier de vivres. Donc sa femme m'écrit en me remerciant de tout son coeur qu'elle attend sa troisième enfant ce que l'homme n'avait pas osé me dire. Vous pouvez me figurer ma grande surprise, puiqu'il a fait justement cet enfant pendant nos premiers points d'attouchement au printemps passé.» (p. 52)

«Mon frère a de nombreuses conquêtes à faire. On lui dit qu'il soit très beau. Ce sera probablement le goût nommé "depravé" de mes confrères. Ordinairement il préfère les hommes de sa classe sociale entre 30-40 ans, mais il ne dédaigne pas un soldat. Il a beaucoup de liaisons et il lui fait un grand plaisir de coucher avec des hommes qu'il ne connaît que des heures.» (p. 55)

«Quelle belle pensée, quelle bonne idée que d'être allé en Italie, pays où l'on peut vivre sans gêne et où ne doit pas craindre l'indiscrétion d'autrui. Je puis donc vous dire que mon état s'est sensiblement amélioré. J'ai une liaison avec un jeune sous-officier de l'infanterie. C'est moins les rapports sexuels avec lui qui me rendent content, c'est surtout le sentiment de faire matériellement du bien au jeune homme qui de bonne famille était sans ressources, quand je l'ai rencontré un jour, et qui vivait chichement de ses qq. sous qui lui sert l'État. Je me suis proposé de lui trouver plus tard une place en France por qu'il puisse apprendre la langue. Il était garçon dans divers restaurants de Rome.» (p.67)

Estes breves excertos do livro dão uma ideia das preocupações de Apitzsch, da sua obsessão por fardas (aliás, um lugar-comum nas preferências dos homossexuais, embora não se saiba se hoje as mulheres-soldados exercem também idêntico fascínio sobre as lésbicas), da sua vontade de informar o doutor Lacassagne do estado da arte em vários países. Embora não se conheçam as respostas do médico, sabe-se que ele utilizava as informações dos "doentes" para o seu próprio estudo e para as suas publicações,

Muito mais haveria a dizer sobre esta obra, cuja leitura se recomenda aos interessados.


JOÃO UBALDO RIBEIRO




Morreu hoje, no Rio de Janeiro, com 73 anos, o escritor e jornalista brasileiro João Ubaldo Ribeiro, membro da Academia Brasileira de Letras, ficcionista e cronista, que recebeu, em 2008, o Prémio Camões.

Entre os seus romances contam-se Sargento Getúlio, Viva o Povo Brasileiro, O Sorriso do Lagarto e A Casa dos Budas Ditosas (1999), que provocou escândalo, tendo a sua venda sido proibida em Portugal em alguns estabelecimentos.

O SILÊNCIO INTERNACIONAL SOBRE A PALESTINA

 
 

Vergonhoso silêncio internacional

terça-feira, 15 de julho de 2014

O HORROR DEMOGRÁFICO




Está o primeiro-ministro (e o Governo) preocupado com o decréscimo da natalidade em Portugal, aliás como acontece com os líderes de outros países ocidentais. Não vislumbra essa gente, cujo horizonte, pretendendo ser de longo prazo, é de curtíssimas vistas, que o grande problema mundial é haver gente a mais, que morre de fome pelos quatro cantos do mundo, que é abatida em guerras de extermínio em vários países (quiçá para estabilizar o nível dos habitantes). Sabem todos, mas fingem ignorá-lo, que os recursos do planeta são limitados e que o problema actual consiste em diminuir o índice de natalidade como, por exemplo, a China já fez, e não em aumentá-lo.

Argumentar-se-á que  a população do Terceiro Mundo aumenta enquanto a dos países Ocidentais diminui, enfraquecendo-os. A História encarregou-se de provar que a vontade de hegemonia de umas civilizações sobre outras é um combate inelutável. Toynbee explica isso em A Study of History.

Também carece de validade o problema da sustentabilidade da segurança social, uma vez que as reservas existentes são suficientes para o efeito, se não forem (ou não tivessem sido) desviadas para outras finalidades. E também é verdade que a diminuição das contribuições para o sistema será equilibrada, no futuro (não longínquo), por um menor número de pessoas a receber pensões.

Por outro lado, os avanços tecnológicos e a informatização acelerada da sociedade vieram dispensar a mão-de-obra de grande parte da população. Quanto mais indivíduos, certamente mais desempregados.

Poderiam também tecer-se considerações de natureza filosófica, mas o que se escreveu basta.

Assim, a promoção do aumento da natalidade é, de facto, uma iniciativa criminosa. Nem compreendo como há gente capaz de sustentar tal pretensão.

Subordinada a uma obscura agenda, surgiu agora a proposta de umas comissões ad hoc no sentido de penalizar progressivamente em sede de IRS os cidadãos sem filhos em relação aos detentores de numerosa prole.

Pela sua oportunidade, transcrevemos o post que, a propósito desta escabrosa ideia, João Gonçalves publicou hoje no seu blogue "Portugal dos Pequeninos":

Uma moral

Uma "comissão de reforma do IRS" e outra da "natalidade" decidiram que apenas as famílias - com pais e mães que dêem à luz preferencialmente com relativa assiduidade - merecem a plena cidadania fiscal, ou seja, "deduções" progressivas consoante a vastidão da prole. Os solteiros e os viúvos - não sei se as adopções por estes seres esquisitos para o Estado contam - sofrem uma capitis diminutio para que a fiscalidade possa contribuir, em glória, para o nascimento de criancinhas. Para além de uma questão de direito, isto aparece como uma questão moral. O Estado, afinal, tem uma moral para além das tradicionais "funções" (agora devidamente apoucadas) que o justificam. O Estado não aprecia os seus funcionários, os seus ex-funcionários, os velhos, os solitários e os sozinhos (são coisas distintas) por força da vida e das circunstâncias. Não. O Estado deseja "famílias numerosas" com muitos meninas e meninos ranhosos que possam entrar nas colunas das declarações do IRS. Se os portugueses não fodem, o Estado obriga-os a foder com o elevado propósito procriativo que, depois, dá "desconto" nos impostos. Outra "moral" estilo "a função faz o "órgão". Ou, mais prosaicamente, o órgão tem uma função fiscal. Como dizia o Chateaubriand, é um horror ter de envelhecer num mundo que não se conhece. E que, cada vez mais, se despreza.


domingo, 13 de julho de 2014

A CRISE NO MÉDIO ORIENTE




Falar de crise no Médio Oriente é, de alguma forma, redundante, já que, desde há décadas, o Médio Oriente se encontra mergulhado em crise profunda. De facto, desde a queda do Império Otomano que a região vive em clima de grande instabilidade quando não de guerra declarada.

Abalado por violentos conflitos antes da dominação turca, o Médio Oriente conheceu uma paz relativa a partir do momento em que os sultões de Constantinopla submeteram a zona à sua suserania, com excepção da expedição napoleónica ao Egipto e da luta pela semi-independência deste país, já no século XIX.

É com o fim da Primeira Guerra Mundial, quando o Egipto estava já, de facto, sob o domínio britânico, que se desencadeiam verdadeiramente as hostilidades na região. Não é possível tratar, em algumas linhas, a génese e o desenvolvimento das movimentações que conduziram o Médio Oriente ao cenário actual, mas podem referir-se alguns factos relevantes.

Na perspectiva da derrota da Sublime Porta no primeiro conflito mundial, entenderam ingleses e franceses delinear um plano de partilha dos territórios daquela potência, ricos em petróleo e de inegável importância estratégica. Assim, em 1916, Mark Sykes, do lado inglês e Georges Picot, representando os franceses retalharam, com o aval de São-Petersburgo, em proveito próprio, o ainda consideravelmente extenso Império Otomano, através do Acordo que ostenta os seus nomes. Em 1917, Arthur Balfour, ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, manifestava por carta a Lord Rothschild, presidente da Federação Sionista, o acolhimento favorável do "Governo de Sua Majestade" ao estabelecimento de um Lar Nacional para o Povo Judeu na Palestina. Por outro lado, os ingleses, com a inestimável colaboração do coronel T.E. Lawrence (Lawrence da Arábia), agente secreto no Cairo, fomentavam, desde 1916, a Revolta Árabe, liderada pelo cherife Hussein de Meca e seus filhos Faiçal, Abdullah e Ali, representantes da dinastia Haschemita. O soberano do Hijjaz acreditara na promessa de Lawrence de que a Grã-Bretanha, após a derrota turca, promoveria um Estado Árabe unificado no Médio Oriente sob a sua liderança. Um erro fatal.

Terminado o conflito internacional em 1918, frustradas as perspectivas árabes, retalhado o território das antigas províncias otomanas, foi criada pela Sociedade das Nações a figura jurídica do Mandato, cometendo ao Reino Unido e á França a administração dos novos Estados saídos da guerra (por não estarem ainda em condições de ascender à independência ?!), a saber: a Palestina e o Iraque ao Reino Unido; a Síria e o Líbano á França. A Transjordânia (hoje Jordânia) que não correspondia a qualquer entidade política otomana é autonomizada mais tarde, enquanto a Palestina é dividida pelas Nações Unidas, em 1947, em dois estados, Israel, cuja independência foi proclamada em 1948 e um estado palestiniano propriamente dito, que ainda hoje aguarda concretização.

Na segunda metade do século XX, o Médio Oriente, configurado pelo desenho que lhe foi imposto por ingleses e franceses, foi teatro de revoluções, guerras, guerrilhas, golpes de estado que se prolongaram até hoje. A história deste período, porque mais próxima,  é-nos já tristemente familiar.

Como se não bastassem as convulsões internas e as interferências externas, o panorama agravou-se tragicamente com o infindável conflito israelo-palestiniano e a invasão anglo-americana do Iraque em 2003, protagonizada por Bush e Blair, acompanhados de alguns parceiros menores. As chamadas "primaveras árabes" encarregaram-se de compor o quadro, provocando uma das mais sangrentas hecatombes do pós-Segunda Guerra Mundial.

Assiste-se actualmente a uma guerra civil generalizada na Síria e no Iraque (com milhões de mortos, feridos, foragidos, estropiados, desalojados, loucos), à emergência de um califado no autoproclamado ISIS (Estado Islâmico do Iraque e da Síria), à instauração no Egipto de um regime militar para obviar ao caos resultante do governo islamista, à completa decomposição da Líbia (que não faz parte do Médio Oriente mas era uma província otomana) e à continuação da ofensiva israelita contra o que resta do estado palestiniano previsto pela ONU em 1947.

A invasão do Iraque, ditada por interesses geoestratégicos com o pretexto de estabelecer a democracia no país (afirmação tão risível que creio ninguém levou a sério, nem mesmo os apoiantes da dita), terá tido como objectivo, embora então inconfessável, e inconfessado, a redefinição de fronteiras no Médio Oriente, alterando as linhas estabelecidas pelo Acordo Sykes-Picot. Não terão os os autores, por incompetência ou má-fé, ou ambas, avaliado das consequências desastrosas da iniciativa. Não me refiro a nefastas consequências para os povos interessados, a que são naturalmente alheios, mas a consequências para si mesmos. O despertar do islamismo, devido em grande parte à eternização da Questão da Palestina, o alastrar da guerra santa islâmica, que aproveitou também a queda do regime de Qaddafi para fazer da Líbia um quartel-general e já se estende pelo Sahel, ameaçando toda a África Central, a reaparição das ambições dos curdos, que nunca se conformaram com a negação das suas pretensões a um estado imdependente (que os arménios conseguiram), o recrudescimento das hostilidades entre sunitas e xiitas (que podem agradar aos inimigos dos muçulmanos mas se revelarão catastróficas a médio prazo), a intensificação do terrorismo internacional, o ódio crescente ao Ocidente, constituem aspectos que não são, em caso algum, neglicenciáveis.

Assim, não é expectável um futuro risonho, nem no Médio Oriente nem no mundo em geral. Estão os países entregues a governantes de baixo nível intelectual e moral, quiçá sem paralelo na História, quer nos regimes autoritários, quer nos regimes pretensamente democráticos, mas para os quais, em geral, democracia é apenas sinónimo de economia de mercado desregulada e de capitalismo ultra-liberal. Não se vislumbram ideias altruístas, como em outras épocas da humanidade. Acredito que o panorama venha a alterar-se, mas não creio que isso aconteça sem uma confrontação global em larga escala.

Aguardemos.

sábado, 12 de julho de 2014

A REESTRUTURAÇÃO DA DÍVIDA




Um elucidativo artigo de José Manuel Pureza no "Diário de Notícias" de ontem:


A coragem do bom senso


A responsabilidade política exige que se reconheça, quanto antes, algo de essencial: mesmo que Portugal cumprisse, durante os próximos vinte anos, todas as exigências da troika, a dependência do País relativamente aos credores não se alteraria. Não vou cuidar sequer de entrar na polémica sobre quem é o principal responsável por esta espiral de dependência. Não tanto porque é uma polémica inútil e marcada pelas pré--compreensões ideológicas de cada um, mas sobretudo porque a responsabilidade política é também dar prioridade a uma solução e não à eternização do debate sobre quem fez o quê. É em nome dessa prioridade de uma solução que importa pôr no centro da reflexão nacional um facto muito concreto: até 2017, Portugal terá de amortizar dívida em cerca de cem mil milhões de euros e melhorar o saldo orçamental em cerca de sete mil milhões de euros. E é em nome da responsabilidade política que se impõe dizer com clareza: isso não será possível.

O manifesto dos 74 havia posto em evidência que a reestruturação da dívida portuguesa é acima de tudo uma questão de bom senso. O larguíssimo consenso que ele suscitou mostrou à evidência que só mesmo o radicalismo liberal - perfilhado pelo Governo e pelo seu universo próximo em que se situam o Presidente da República e o governador do Banco de Portugal - teima em não reconhecer os factos. A sua teimosia ideológica impõe-lhe um estado de negação. Tudo bem - dir-se-ia - não fosse a trágica consequência dessa cegueira abater-se sobre todo o País.

Agora, quatro economistas com pergaminhos académicos inegáveis vêm trazer ao debate um programa sustentável para a reestruturação da dívida portuguesa. Definitivamente, o discurso estafado do "pois, pá, criticar é fácil, mas qual é a alternativa?" fica sem chão. E esse é o primeiro grande mérito deste exercício. Ele vem mostrar não só que é a política que tem sido seguida que não é alternativa para o que gera endividamento da nossa economia mas também que a recusa da reestruturação da dívida pelo campo do Governo é um remake do "orgulhosamente sós" de má memória.

O segundo mérito do relatório ontem divulgado é o de fazer as contas. Doravante, discutir a reestruturação da dívida portuguesa passar-se-á a fazer num patamar diferente do das declarações de princípios. Agora é o tempo de discutir modalidades, instrumentos e objetivos intermédios e finais. O estudo apresentado assume como objetivo atingir uma redução de cerca de 149 mil milhões de euros na dívida pública e de 100,7 mil milhões de euros na dívida dos bancos portugueses. Para o efeito, os autores optam por uma proposta de negociação com os credores apontada à alteração de prazos e de juros que propicie uma amortização significativa do stock da dívida pública e por um processo de resolução bancária especial que, garantindo a solvabilidade e os rácios de capital dos bancos, conduza a uma redução da sua dívida estimada em cerca de 30% do PIB.

Mas o mérito essencial é provocar uma discussão política irrecusável: o que é preciso fazer para aproximar Portugal da autossustentabilidade financeira? É na resposta a esta pergunta fundamental que a austeridade mostrou ser um rotundo fracasso. A reestruturação da dívida, sem ser uma panaceia, é um passo essencial para a retoma do desenvolvimento e para a abertura de caminhos de mobilização nacional. Exige aos governantes a coragem de enfrentar as autoridades da União Europeia e o poder fáctico do sistema financeiro. Exige, por isso, uma viragem radical na política portuguesa.



sexta-feira, 11 de julho de 2014

JORGE DE SENA PARA O PANTEÃO NACIONAL




A recente trasladação de uma poetisa (escrevo poetisa, porque é o feminino de poeta) para o Panteão Nacional, suscita, mais uma vez, a questão dos critérios a que deve obedecer a "selecção" das figuras públicas dignas do reconhecimento da nação.

Não parece que seja a Assembleia da República, cujos deputados são escolhidos pelas direcções partidárias, que se movem por interesses políticos e que não possuem, na generalidade, especiais creditações na matéria, o órgão mais habilitado a decidir quem deve, em função dos seus méritos, receber as honras de uma sepultura consagrada pela pátria. Não que a panteonização acrescente (ou retire) algo ao valor dos trasladados, mas porque, tratando-se de uma homenagem simbólica, e sendo o Panteão, por definição, um lugar de alojamento restrito, importa distinguir bem os maiores de entre os grandes. E não é certamente o Parlamento a sede própria para o efeito, ainda que se lhe possa atribuir o direito de ratificação.

Encontram-se sepultadas no Panteão Nacional figuras de nível muito desigual, mas isso também não deve estranhar-se, pois o mesmo acontece em congéneres estrangeiros. Basta olhar para o Panthéon de Paris para termos uma ideia. Todavia, essa realidade não deve confortar-nos, nem levar-nos a exageros ridículos como o protagonizado por um deputado socialista que, logo após a morte de Eusébio, pediu a panteonização do futebolista. Acho que o caso de Amália, por quem tenho, aliás, a maior admiração, foi já uma excepção evidente, para não falar da inconcebível trasladação de Humberto Delgado. É por isso que o prazo do reconhecimento dos "altos feitos" deveria ser sensivelmente alongado.

Entre os grandes nomes da cultura, Camões (se os seus despojos são autênticos) e Pessoa estão ausentes daquele templo cívico, o que não incomoda, uma vez que se encontram sepultados no Mosteiro dos Jerónimos. Já merece uma interrogação a ausência do famoso político Passos Manuel, a quem se deve a criação do Panteão Nacional, e cuja trasladação dos restos mortais foi recusada por falta de verba.

Pergunto-me porque não está Cesário Verde, um dos maiores poetas do século XIX, no Panteão Nacional? Ou porque não se trasladam para lá os restos mortais de Jorge de Sena, certamente o maior intelectual português da segunda metade do século XX?

Ignoro se Jorge de Sena, alheio a capelinhas, dispõe de "apoios" e de "conivências" bastantes para mobilizar as energias necessárias a desencadear uma operação nesse sentido, ou se tal movimento contaria com a aprovação da sua viúva, Mécia de Sena? Presumo que esta, que já autorizou a vinda do corpo do marido para Portugal, a tal não se oporia.

Assim sendo, deixo aqui o meu apelo: JORGE DE SENA PARA O PANTEÃO NACIONAL. JÁ!


segunda-feira, 7 de julho de 2014

TEMPOS DE CRISE




O general Loureiro dos Santos publicou recentemente um importante livro sobre a actual situação política e económica nacional e internacional. Intitulado Reflexões Sobre Estratégia VII - Tempos de Crise, nele o antigo Vice-CEMGFA e ministro da Defesa Nacional traça o quadro geopolítico europeu, elabora sobre cenários futuros e aborda a crise no Mundo, na Europa e em Portugal.

A obra é constituída por textos originais e por outros já publicados (artigos na imprensa e comunicações efectuadas em diversas instituições) entre 2010 e 2013.

Considera o autor que na Europa existem apenas dois actores políticos significativos em termos de poder: a Rússia, cuja massa crítica permite dizer que se encontra no primeiro nível mundial, e a Alemanha, localizada num segundo nível mas que aparentemente deseja transitar para o primeiro, dadas certas circunstâncias objectivas susceptíveis de a catapultarem. Os Estados Unidos, se bem que sejam uma potência extraeuropeia do ponto de vista geográfico, podem considerar-se como europeia em termos geopolíticos. Sendo claramente uma ilha de poder global, aquela que muitos designam como a "potência indispensável", e agindo no domínio das relações internacionais como "potência directora", está em condições de interferir significativamente no desenho geopolítico europeu, aliás como tem feito desde a Primeira Guerra Mundial.

É possível que surja um eixo Russo-Germânico, se ambas as potências entenderem que não têm quaisquer vantagens em agir isoladamente e, pelo contrário, concluírem que os seus interesses mútuos aconselham em aliar-se, constituindo assim um eixo de natureza continental suficientemente robusto para desafiar a potência marítima dominante ou uma aliança entre potências marítimas. Tal aliança já se verificou duas vezes: o Tratado de Rapallo, em 1922, entre a Alemanha (República de Weimar) e a Rússia Soviética, que terminou em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder; e o Pacto Molotov/Ribbentrop, em 1939, entre a União Soviética e a Alemanha Nazi, que duraria até 1941, altura em que Hitler invadiu o território soviético.

Continuando a citar o general: «A Alemanha tal como a conhecemos actualmente, embora com as fronteiras modificadas como resultado da Segunda Guerra Mundial com maior expressão na fronteira Leste com a Polónia, ainda se aproxima do Império Alemão (Segundo Reich) fundado em 1871. Portanto é o resultado da unificação dos principados alemães reunidos, em 1867, na Confederação da Alemanha do Norte sob a liderança da Prússia, que lhe deu origem. Bismarck, chanceler da Prússia, desempenhou um papel essencial neste importante acontecimento para a Europa, pois foi o seu grande impulsionador a partir da criação do Zollverein - espaço económico alemão -, cuja evolução abriu caminho à "Grande Alemanha".

A sua afirmação como grande potência faz-se com a Guerra Franco-Prussiana, durante a qual a Alemanha invade a França com um exército comandado por Moltke, obrigando os franceses à rendição em menos de um ano. O que demonstrou que havia nascido o principal problema estratégico com que a Europa se tem debatido desde então, resultante da dificuldade da Alemanha acomodar o seu poder aos interesses nacionais dos restantes países do continente. A Alemanha considera-se herdeira do Sacro Império Romano-Germânico (Século X-1806, o Primeiro Reich), que tem origem na "união de territórios da Europa Central durante a Idade Média" do qual Carlos Magno é considerado ser o primeiro imperador; contudo a sua continuidade só se verificou a partir do ano 962, chegando a abranger a Áustria, Eslovénia, República Checa, oeste da Polónia, Países Baixos, leste da França, Suíça e partes da Itália.

A dificuldade da Alemanha se acomodar aos restantes países europeus iria originar, além da Guerra Franco-Prussiana, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, depois da qual foi dividida entre os aliados vencedores (EUA, Inglaterra, França e União Soviética) em quatro partes que vieram a constituir a República Federal Alemã (RFA - conjunto das parcelas dos países ocidentais) e a República Democrática Alemã (RDA - parcela soviética).

Com o fim da Guerra Fria (derrota da URSS), as duas "Alemanhas" reunificam-se, contra a vontade dos líderes francês e britânico, mas com a bênção dos EUA, assim regressando a "Grande Alemanha", que ingressa na Comunidade Económica Europeia a que a RFA já pertencia.

Com a reunificação alemã, tornar-se-ia novamente provável que a Europa voltasse a ser colocada perante aquele que já tinha sido o seu grande problema estratégico, cuja solução se pensou estar encontrada com a União Europeia. Veremos se será assim.

Os procedimentos políticos e estratégicos alemães, desde o Segundo Reich, revelam uma vulnerabilidade idêntica à principal vulnerabilidade russa - não possuir fronteiras cuja defesa possa ser apoiada em acidentes de terreno que a potenciem significativamente. Esta vulnerabilidade pode ser uma explicação de natureza geopolítica (geoestratégica) para as duas Guerras (Primeira e Segunda) Mundiais que muitos designam guerras civis europeias, Uma vitória alemã teria como resultado o controlo das costas marítimas do velho continente. Esta vulnerabilidade de grande monta traduz-se, a Leste e Sudeste, no interesse geopolítico (geoestratégico) de controlar os principais países situados nos corredores de aproximação da e para a Rússia, tanto no que se situa a Norte dos pântanos de Pripet, onde precisa de dominar os territórios planos da Polónia e da Bielorússia, como os que se  localizam a Sul, particularmente a linha de defesa dos Cárpatos que os percorrem, na República Checa, Eslováquia, Hungria e Roménia, assim como o território plano da Ucrânia.

A Sul e a Ocidente, o interesse geopolítico (geoestratégico) alemão exige que tenha o controlo das costas marítimas europeias, barrando eventuais desembarques de potenciais inimigos.

Outra vulnerabilidade da Alemanha é o facto de ter acesso ao Oceano Atlântico facilmente controlado por potências marítimas adversas, pois que terá de passar pela "área marítima confinada" pela Noruega a Leste e o Reino Unido a Oeste que liga o Mar do Norte ao Atlântico, o que tem como consequência o interesse alemão de controlar principalmente a Noruega, que se mostrou como preocupação estratégica durante a Segunda Guerra Mundial, mas também a Dinamarca,

É claro que a lógica destes interesses geopolíticos prolonga-se na necessidade de controlar todo o Rimland europeu, o que inclui os territórios arquipelágicos que dele fazem parte, como Reino Unido, Açores, Madeira, Chipre e Malta, além da região dos Balcãs e dos estreitos turcos.»

Citando ainda o autor: «Os Estados Unidos têm como objectivo nacional permanente criar condições para que não se venha a desenvolver em qualquer parte do mundo um actor (Estado ou coligação de Estados) suficientemente poderoso para colocar em causa a sua posição dominante na ordem internacional. ... Tanto durante a Primeira como a Segunda Guerra Mundial como durante a Guerra Fria, criaram-se situações que poderiam conduzir ao desenvolvimento no espaço europeu de um poderoso actor capaz de desafiar a posição dominante dos EUA e, como consequência, de criar condições que afectassem significativamente os (ou alguns) dos objectivos centrais da política (e estratégia) norte-americana. ... Os Estados Unidos não tiveram, nem poderiam ter outra opção senão a de se envolver em cada um dos três conflitos. Costuma afirmar-se que os EUA passaram a ser uma potência europeia desde a Primeira Guerra Mundial, atingindo mesmo a posição de potência europeia dominante...»

Prosseguindo a sua pertinente análise, Loureiro dos Santos analisa os efeitos na Europa da crise financeira global que afectou o Ocidente. E enuncia os eventuais realinhamentos geopolíticos no caso da implosão da União Europeia e/ou da NATO.

Num Primeiro Cenário (o mais desejável), manter-se-ia a NATO, complementada pela implementação do tratado de comércio entre os EUA e a UE, a UE, criando prosperidade particularmente na Zona Euro (ZE) e a CPLP, capaz de aprofundar os objectivos que a justificam.

Num Segundo Cenário (o menos desejável), assistir-se-ia à desintegração da actual ZE, seguida do desmantelamento da UE, a que, muito provavelmente, a actual NATO não conseguiria resistir. Nessa situação, e com a separação da França em relação à Alemanha, poderia regressar o Eixo Germano-Russo, e o arco marítimo europeu, desde o Báltico ao Mar Negro, poderia configurar uma Nova NATO.

Num Terceiro Cenário (cenário intermédio), manter-se-ia a NATO e a UE, com três sub-cenários:
Sub-cenário 1: A ZE desapareceria;
Sub-cenário 2: A ZE dividir-se-ia entre uma Zona Norte (Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Áustria) e  uma Zona Sul (a área sobrante, liderada pela França), cada uma com a sua moeda comum;
Sub-cenário 3: A ZE ficaria reduzida à Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Áustria.

Na impossibilidade de mencionarmos todos os temas contidos no livro, referiremos apenas alguns tópicos.

- Na era da informação estamos perante um diferente tipo de guerras: as guerras do caos.

- Nos dias de hoje, existem seis espaços operacionais: os tradicionais teatros de operações terrestre, marítimo e aéreo e ainda o espaço exterior, o ciberepaço e o espaço mediático.

- «A guerra, entendida como recurso á agressão armada para impor os seus termos, foi definida por Clausewitz como a continuação por outros meios das relações políticas (subentenda-se entre estados). E na sua excelente definição trinitária, a guerra é uma surpreendente trindade: por um lado, o raciocínio puro da liderança política que a decidiu e a continua a dirigir; por outro lado, a incerteza e o acaso do fragor das batalhas e das contingências de cujos contornos causais não nos conseguimos aperceber; e, finalmente, também é a paixão e ódio do povo em fúria ou em pânico, sujeito aos acontecimentos que não controla e se transformam no seu armagedão.»

- «Das suas [de Gene Sharp] numerosas obras, convém ainda salientar o livro From Dictatorship to Democracy, um verdadeiro manual prático para efectuar acções não violentas com a finalidade de promover a alteração de um regime, trabalho que foi escrito para o Movimento Democrático da Birmânia em 1993, depois de Aung San Suu Kyi ter sido presa pelos ditadores da Birmânia. Encontra-se disponível na internet em mais de vinte línguas e já foi traduzido para mais de trinta. ... As teorias de Sharp teriam começado a ser aplicadas contra Milosevic na Sérvia e Viktor Yanukovych na Ucrânia, na revolução de veludo na Checoslováquia, nas várias revoluções coloridas que provocaram a democratização dos satélites da URSS e de algumas repúblicas soviéticas, o que lhe valeu a acusação de pertencer à CIA. Note-se que Hugo Chavez utilizou um dos seus programas na televisão para avisar o país que Sharp era uma ameaça à segurança nacional a Venezuela, tal como os líderes iranianos transmitiram um filme pela televisão estatal que mostrava uma conspiração promovida por Sharp, contra o Irão, a mando de Washington. ... Com base nos seus livros e teorias, foi fundado na Sérvia um Centro para a Aplicação da Não-Violência (CANV). A este propósito, o director de um filme a exibir na próxima Primavera, com o título Gene Sharp: Como iniciar uma Revolução, afirma em artigo escrito para a BBC, em 21 de Fevereiro de 2011, que o Director do CANV em Belgrado (Srdja Popovic) lhe teria dito nessa cidade, em Novembro passado, que "o CANV tinha estado a trabalhar com os egípcios" os métodos de Gene Sharp e que "não imposta quem seja - pretos, brancos, muçulmanos, cristãos, gays, normais ou minorias oprimidas - eles funcionam. Se forem estudados, qualquer um o pode fazer".» (p. 123/124)

- «Na Era Electrónico-Nuclear, depois da Segunda Guerra Mundial, até aos anos noventa do século XX, vivia-se uma situação caracterizada por "paz impossível - guerra improvável", nas palavras de Raymond Aron - dois colossos militares, os EUA e a União Soviética, impondo ao planeta uma ordem internacional bipolar, mantinham-se preparados para combater, mas não o faziam, dada a certeza que tinham de que ela significaria a sua destruição mútua. ... Na Era da Informação, uma ordem internacional multipolar torna-se impotente para evitar uma guerra cujos efeitos são sempre potencialmente globais e cujos autores dispensam poderosos exércitos, tornando-se na verdadeira pandemia que a todos pode afectar. Não sendo possível estabelecer uma situação de ausência do uso da violência física organizada, no nosso mundo vive-se sem paz, numa nova situação que poderá ser caracterizada também de "paz impossível", como Raymond Aron observara durante a era electrónico-nuclear, mas agora, em vez da "guerra improvável" em que se vivia no mundo bipolar, vive-se uma situação de "guerra permanente", nos vários níveis da violência.» (p. 132)

- «... Independentemente da existência das infraestruturas necessárias à globalização económica e das tecnologias que a impulsionaram, ela pode ceder perante interesses políticos, económicos ou de segurança dos estados que temem perder posições ou querem atingir objectivos próprios, É que os estados não são organizações de solidariedade ou de caridade, mas sim entidades politicas cuja obrigação é manter o contrato (explicito ou implícito) com os seus cidadãos, isto é, garantir-lhes segurança e bem-estar, os objectivos essenciais de qualquer unidade política.» (p. 160)

- «Se for do interesse dos estados mais poderosos do mundo limitar a globalização, ela retrocederá, em todas as suas vertentes. Como parece estar a acontecer na sequência das crises económica e financeira, exactamente porque alguns estados - casos dos EUA e dos países europeus - argumentam  que a globalização económica não está suficientemente regulada para que sejam assegurados câmbios ajustados à existência de trocas comerciais equilibradas. Esta argumentação não se ouvia, quando os mesmos estados colocaram as suas empresas na China, beneficiando dos baixos custos da mão-de-obra, e, a partir daí, batiam toda a concorrência e empresas menos fortes; pelo contrário, apenas se ouviam elogios aos prodígios da globalização económica, durante muito tempo considerada, particularmente pela doutrina norte-americana, um dogma indiscutível.» (p. 161)

- «Registe-se que o Serviço Militar Obrigatório, contrariando a ideia de que só se aplica aos países subdesenvolvidos, existe na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Áustria, entre outros, e tem havido debates sobre o seu regresso em vários Estados, nomeadamente nos EUA.» (p. 203)

- «Mas o papel das Forças Armadas não se limita à defesa militar do Estado face a ameaças que se perfilem contra si, normalmente no quadro de alianças militares de que participam. Constituem também a garantia última da autoridade do Estado, assegurando o funcionamento das instituições democráticas e colaborando na manutenção da lei e da ordem quando for declarado o Estado de Emergência, ou assegurando-a quando for estabelecido o Estado de Sítio.» (p. 208)

- «A realidade dos factos, confirmada pela História, mostra que um Estado sem Forças Armadas não dispõe de soberania, soberania caracterizada em função dos termos que modelam as relações de força regionais e mundiais num determinado contexto temporal.» (p. 214)

Não é possível neste post, aliás já bastante extenso, referir todas as questões tratadas pelo general Loureiro dos Santos no seu livro de incontestável oportunidade e valor, pelas reflexões que consagra sobre problemas económicos, financeiros, políticos, sociais, militares.

Assinalámos tão só alguns aspectos que nos mereceram particular interesse, remetendo o leitor para a consulta da obra.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

DOMESTICAR A JUSTIÇA




Artigo de Fernando Dacosta, hoje no jornal "i", sobre a intervenção de Cunha Rodrigues no Grémio Literário:

“O ruir da Europa será o ruir de um dos mais extraordinários movimentos humanistas da história”, sublinhou Cunha Rodrigues, numa notável conferência no Grémio Literário.
Integrada no ciclo “Que Estado? Que sociedade? Que soberania?”, ali promovido em parceria com o Clube Português de Imprensa e o Centro Nacional de Cultura, a intervenção do ex-procurador-geral da República revelou-se, pela sua espessura humanista, de uma lucidez e de um desassombro invulgares. “A desconstrução dos direitos na Europa”, destacou, “é um dos aspectos mais devastadores da crise actual”. Por efeitos dela, “o papel dos juristas foi distribuído a outros actores, que alteraram tudo”. Consequentemente, os que “se manifestam hoje são titulares de direitos não cumpridos”, já que “todas as opções têm incidido na tributação do trabalho, não do capital”. Estamos numa “democracia pós-representativa” com o poder “entregue aos directórios dos partidos. O poder político elegeu-se crítico da justiça”. Décadas após a sua criação, “a CE continua um objecto político não identificado”. A crise provocou, entretanto, “um ambiente de pensamento único”, de “não haver alternativa”, ao mesmo tempo “que fez propagandear ser ela geradora de novas oportunidades, de empreendedorismos para os mais imaginativos”. Enquanto isso, “o direito e a justiça deixaram de constituir pilares de segurança, foram domesticados”. Daí os idosos, por exemplo, “terem deixado de ser donos do dinheiro que acumularam durante a vida de trabalho e os jovens terem de emigrar”.
Irónico, Cunha Rodrigues (de comunicabilidade envolvente)  fingirá, por fim, justificar as suas posições lembrando “que depois de meio século de magistrado ou se fica empedernido ou ingénuo – eu fiquei ingénuo!”