sexta-feira, 29 de junho de 2018

A NOVA DESORDEM MUNDIAL





Na impossibilidade da transcrição online, e pelo seu grande interesse, publico as páginas de "L'OBS" (nº 2797 - 14 a 20/6/2018) contendo a entrevista de Marie Lemonnier ao politólogo e especialista das religiões, Olivier Roy, professor do Instituto Universitário Europeu de Florença.


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Uma entrevista de excepcional lucidez que procura derramar luz sobre o obscuro mundo em que vivemos.


GENET EM EXPOSIÇÃO



Uma exposição sobre Jean Genet (1910-1986) no Fort Saint-Jean, em Marselha - Jean Genet et la Méditerranée -  organizada pelo Musée des Civilisations de l'Europe et de la Méditerranée (MuCEM) e pelo Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC), em 2016, está na origem do recém-publicado livro Apparitions de Jean Genet, de Emmanuelle Lambert.

Segundo os organizadores, « L’exposition cherche à faire comprendre comment la Méditerranée, avec ses appels au voyage et à la liberté, avec la diversité de ses cultures, avec les rencontres qu’elle a suscitées à plusieurs moments de sa vie… constitue un pôle magnétique du parcours littéraire de Jean Genet, auquel il revient obstinément. Elle a pour ambition de montrer comment la Méditerranée représente pour lui une « échappée belle ». Articulée autour de quatre thèmes dont chacun fait se croiser un moment de sa vie, une de ses oeuvres et un territoire méditerranéen (Le Journal du voleur – L’Espagne ; Les Paravents – L’Algérie ; Un captif amoureux – La Palestine ; la fin de sa vie au Maroc), l’exposition rassemble également des oeuvres qui témoignent de la sensibilité de Jean Genet, de ses rencontres avec les artistes plasticiens (notamment Alberto Giacometti) et avec le monde des arts du spectacle (évocation de la figure du Funambule).



A exposição foi comissariada por Albert Dichy, director literário do IMEC e um dos grandes especialistas da vida e obra de Genet e por Emmanuelle Lambert, escritora, organizadora do catálogo (que à época não consegui adquirir) e autora do presente livro.

Num récit de 110 páginas, Lambert conta a sua paixão pela obra deste "escritor maldito" do século passado e o convite que lhe endereçaram para participar na aventura que foi a obtenção da vasta documentação, muitas das peças inéditas, que permitiu organizar um itinerário de Genet, do seu nascimento à sua morte. As consultas dos arquivos e dos ficheiros, nomeadamente instituições sociais, polícia, exército, etc., foi tarefa complexa mas era certamente indispensável, ainda que muita informação constasse já de duas das obras fundamentais sobre o sulfuroso escritor: Jean Genet - Essai de chronologie, de Albert Dichy & Pascal Fouché e Jean Genet, de Edmund White.


Analisando as cartas da mãe de Jean Genet dirigidas ao director da Assistência, Lambert recolhe um curioso pormenor: na terceira e última carta da mãe, Camille Genet, esta pede notícias de Jean "et de son frère Frédéric", um irmão (?) que não consta de quaisquer ficheiros da administração. Talvez essa dúvida sobre a existência de um outro filho tivesse impedido a consulta do dossier Genet muito para lá dos prazos legais estabelecidos. (p. 29)

O livro de Lambert está semeado de pequenas curiosidades obtidas no seu trabalho de pesquisa do material para a exposição. Mas, no geral, todos conhecemos já o percurso de Genet, até nos mais ínfimos pormenores, graças às investigações prosseguidas após a sua morte.

A obra em apreço vem juntar-se à imensa bibliografia passiva de Jean Genet. Desde o livro de Sartre, Saint Genet, Comédien et Martyr, até hoje, a vida e a obra de Genet têm sido dissecadas, mas surgem sempre novos factos, novas interpretações, como se o homem sepultado em Larache permanentemente nos desafie a compreendê-lo nas contradições de que foi, e é, o protagonista.


domingo, 24 de junho de 2018

A IRRESISTÍVEL ASCENSÃO DE EMMANUEL MACRON




Emmanuel Jean-Michel Frédéric Macron (n. 21.12.1977) foi eleito presidente da República Francesa em 7 de Maio de 2017, com 66,10 % dos votos expressos contra 33,90 % a favor de Marine Le Pen. O escrutínio registou 11,52 % de votos brancos ou nulos e a taxa de abstenção foi de 25,44 %. Isto é, em  47 568 693 cidadãos eleitores, Macron apenas obteve 20 743 128 votos, o que significa que tão só 43 % dos franceses o elegeram para a chefia do Estado, menos de metade dos eleitores inscritos.

Tendo sido membro do Partido Socialista e ministro da Economia no governo de Manuel Valls, sob a presidência de François Hollande, abandonou o Governo em 2016 (já se tinha demitido do partido) para fundar o seu próprio partido, La République en Marche, e preparar a sua candidatura à presidência em 2017.

Antes da experiência governamental, Macron foi inspector de Finanças e depois, protegido pelo influente conselheiro de Mitterrand, Sarkozy e Hollande, o economista judeu Jacques Attali, tornou-se sócio do Banco Rothschild em França, tendo recebido entre 2009 e 2013, a quantia de 3,3 milhões de euros.

Habitado por um narcisismo doentio, possuído por uma ambição desmedida, cínico quanto baste, exibicionista e megalómano, meticuloso na programação da sua carreira, a falta de comparência de candidatos credíveis dos partidos tradicionais possibilitou-lhe alcandorar-se à chefia do Estado.

Profundamente calculista, simulou aos 15 anos uma paixão pela sua professora Brigitte Trogneux, 24 anos mais velha, casada e com três filhos mais velhos do que ele, com quem passou a viver depois dos 18 anos e com quem viria a casar em 2007, após o divórcio desta. Criou assim um primeiro caso de notoriedade que serviu para alimentar a lenda de menino-prodígio, aliada a outra, também afincadamente trabalhada, de que é um espírito brilhante. Daí a tão propagada notícia de que foi "colaborador" do falecido filósofo Paul Ricoeur.

Declarando após a eleição que não seria Júpiter, como se alguém o pudesse alguma vez tomar pelo pai dos deuses, passou a governar a França despoticamente (mas não iluminadamente), quiçá convencido que é mais importante do que Luís XIV ou Napoleão Bonaparte. Todavia, para mal dos franceses, o rei vai nu.

Julgo que Emmanuel Macron anseia pelo seu 18 de Brumário, que Marx descreveu como farsa a propósito de Luís Bonaparte. Não creio que o mesmo evento tenha lugar três vezes na História. E se tivesse, como o classificaria o velho filósofo de Tréveris?

Seguindo as instruções dos mestres que o apoiaram na sua aventura para a Presidência, Macron, destituído de quaisquer princípios, usando uma falsa espontaneidade, desprovido de escrúpulos, vai progressivamente liquidando o que resta do edifício do Estado francês, a favor do ultraliberalismo destruidor da economia da nação. Um seu antigo colega de Governo, em livro já publicado, afirmou que Macron tem um algoritmo no lugar do coração.



Como escreve Mathieu Morel, no site "Vu du Droit", do advogado Régis de Castelnau, a propósito de Macron, ESTE HOMEM SERÁ CAPAZ DE ABSOLUTAMENTE TUDO, SEM QUALQUER LIMITE.

Com a devida vénia, transcrevemos as palavras de Morel:


Macron : Jupitre est-il dangereux ?

 
«Le roi possédait un miroir magique, don d’une fée, qui répondait à toutes les questions. Chaque matin, tandis que le roi se coiffait, il lui demandait :
– Miroir, miroir en bois d’ébène, dis-moi, dis-moi que je suis le plus beau. Et, invariablement, le miroir répondait :
– En cherchant à la ronde, dans tout le vaste monde, on ne trouve pas plus beau que toi. »
Une fois de plus, on aurait tort de ne voir, dans les outrances répétées – et de plus en plus sidérantes – que nous sert frénétiquement notre distingué Jupitre Überschtroumpführer, que de bénignes maladresses, des erreurs de communication ou même un anodin excès de confiance qu’il suffirait de mettre sur le compte de son ardeur juvénile et « disruptive ».

On aurait tort également, sans doute, d’y déceler la fameuse preuve d’un esprit brillant, hors du commun, qu’on nous a copieusement vendu depuis son éclosion « miraculeuse », à grands renforts de feux d’artifice et de paillettes.

Ses insultes répétées, ses provocations grossières, ses initiatives ostensiblement débiles portent un message clair derrière cette fausse candeur faussement spontanée : « je suis votre chef, je fais ce que je veux, comme je veux, quand je veux et, pour commencer, je vous emmerde ». On pourrait évidemment, puisqu’on se targue d’être en démocratie, juger la méthode un peu culottée si on oubliait que, en bon élève des années « Mitterrand » (et lui-même « bébé Hollande/Attali »), ses provocations et initiatives visent également à repousser tous ses contempteurs, en bloc et sans la moindre espèce de nuance, dans les recoins forcément sombres de l’extrême-droite qui en rappelle d’ailleurs les heures, si l’on en croit l’adage éculé. Extrême-droite qu’en langage moderne, on aime qualifier plutôt de trucosphère ou autre machinosphère (ça sonne tellement plus « cool » et 2.0). Voilà plus de 30 ans que le camp du Bien se fabrique ainsi son adversaire favori, aussi inoffensif qu’efficace. Du moins jusqu’à la prochaine surprise funeste dont ils seront, une fois encore, les seuls responsables et les vierges les plus outragées (avant, une fois de plus, de retourner promptement leur veste).

Ce sire, au fond, est un parfait produit des années 80, une version aboutie – peut-être un peu tardive, c’est l’espoir qu’il nous reste – de l’Homme que ces 30 ou 40 dernières années ont tenté de fabriquer : une imposture, une illusion, un start-up-marabout, une uber-escroquerie. Le philosophe est un cuistre infantile, le « penseur » une machine à poncifs pompeux, le bâtisseur est un vandale, le centriste ouvert est un fanatique borné, l’esthète fin révèle un plouc fini, le « subversif dérangeant » n’est qu’un banal immature inconséquent, le démocrate est un mégalomane totalitaire, et le gendre idéal bienveillant un vicelard narcissique. On ne peut même pas dire qu’il sonne faux : il sonne creux, d’où qu’on toque.

Il ne lui reste plus qu’à compter sur l’effet de sidération que produisent ses pitreries scandaleuses pour – pendant que la plèbe s’offusque à bon droit de la mise à sac sauvage de tout le séculaire édifice sur lequel ce mal élevé s’est laissé hisser pour se goinfrer – engager mécaniquement toutes les liquidations que ses maîtres lui ont commandées.

Ce qu’il fera avec d’autant plus de zèle qu’il a été élu par dépit, vainqueur d’un concours de circonstances, rescapé d’une roulette russe tellement acrobatique qu’il est permis de se demander si le barillet était tout à fait réglementaire. Et soyons sûrs qu’il mènera l’entreprise de démolition bien plus loin que tous ses prédécesseurs puisque, absolument vain et dénué de tout ce qui ressemble à des principes, il est parfaitement polymorphe.

Ce roi nu, si prompt à rabrouer avec la violence puérile qui les caractérise les enfants qui le démasquent, n’est que le zélé valet, le reflet présomptueux d’une époque qui, poussant l’imposture et l’incohérence à des niveaux olympiques, a érigé en « valeurs fondamentales » l’exhibitionnisme pudibond et le puritanisme libertaire. Par son abyssale inconsistance, il est le parfait porte-voix – et le terrifiant porte-flingue – des opportunismes de ses maîtres insatiables. Et ce n’est que parce qu’il lui fallait une histoire, une légende, qu’on la lui a écrite, jusqu’à en faire le fils spirituel d’un philosophe dont il n’était, en réalité, qu’un marque-page. C’est le pion malléable sur lequel, faut-il croire, il était opportun de miser au bon moment. De diverses manières, quelques un(e)s ont su saisir leur chance et tirer le gros lot. Il ne faudrait pas en conclure pour autant qu’un tel individu ne présente qu’un danger « superficiel ». Au contraire.Mais ça n’est pas par son idéologie – quoi qu’on pense de celle à laquelle il s’est vendu – qu’il est dangereux. Il n’en a pas (ou plus exactement, il serait prêt à se vendre à toutes… c’est d’ailleurs ce qu’il fait, à certains égards).

C’est précisément par sa vacuité, pour elle, contre elle, à cause d’elle, ou un peu tout « en même temps », que cet homme sera capable d’absolument tout, sans aucune limite.


sexta-feira, 22 de junho de 2018

A TERRA E OS MORTOS





Foi publicado recentemente o texto do discurso de Maurice Barrès à Ligue de la Patrie française, em 10 de Março de 1899, com o título La Terre et les Morts, que evoca a palavra de ordem do escritor: "Les morts d'abord!"

Membro da Academia Francesa, Maurice Barrès (1862-1923), escritor e político, é considerado o pai do nacionalismo francês. Autor prolífico, devem-se-lhe nomeadamente três trilogias: Le culte du moi, uma exaltação do individualismo; Le Roman de l'énergie nationale e Les Bastions de l'Est. Em Les Déracinés, 1º volume do Roman de l'énergie nationale, disserta sobre as raízes, o amor à terra, a odisseia da sua Lorena natal e ataca a Alemanha imperial.

A sua trajectória ideológica evoluiu ao longo do tempo. Próximo de Charles Maurras, o fundador da Action française, mas republicano e não monárquico, colaborador de Gabriele d'Annunzio, anti-dreyfusard (contra Zola, que acusou de ser veneziano), mas penetrado por ideias socialistas, manteve-se sempre fiel às tradições, à família, ao exército, à terra e aos mortos. Depois da Primeira Guerra Mundial, mostrou-se favorável a uma reconciliação com a Alemanha. Naturalmente controverso, há que distinguir entre a obra literária e a acção política. Inspirador de várias gerações de escritores, como Henry de Montherlant, André Malraux, François Mauriac, Louis Aragon, ele foi uma referência nos meios tradicionalistas franceses, ao lado de Paul Bourget, René Bazin e Henry Bordeaux. Os protagonistas da nova escola monárquica, Jacques Bainville, Léon Daudet, Henri Massis, Jacques Maritain, Georges Bernanos, devem-lhe a inspiração.

Em 1928, foi inaugurado o monumento Barrès na colina de Sion (Moselle), que inspirou o seu romance La Colline inspirée, com a presença do presidente do Conselho, Raymond Poincaré e do marechal Lyautey.

A defesa da identidade nacional, sempre proclamada por Barrès, foi mesmo evocada em Metz, durante a campanha presidencial de 2007, pelo candidato Nicolas Sarkozy,

Quando morreu, em 4 de Dezembro de 1923, teve funerais nacionais em Notre-Dame de Paris, com a presença do presidente da República Alexandre Millerand, do presidente do Conselho, Raymond Poincaré e do marechal Foch.

O nome de Barrès foi ostracizado em França (e no mundo) nas últimas décadas, devido às suas posições ideológicas e políticas, consideradas de extrema-direita segundo a vulgata politicamente correcta. Analisando a sua vida e obra podemos constatar que tal preconceito se deve à ignorância. O seu percurso não encaixa realmente naquilo que se convencionou chamar de extrema-direita. As vidas não são lineares e o homem é sempre ele e a sua circunstância. Existe a obrigação de contextualizar antes e emitir os vereditos depois!


segunda-feira, 18 de junho de 2018

O RAPTO DE SÃO MARCOS




São Marcos (10 AC? - 65 DC?), discípulo de São Paulo, considerado como um dos quatro autores dos Evangelhos, foi, segundo a tradição, o primeiro bispo (ou patriarca, no caso vertente) de Alexandria, diocese de que foi fundador. É o santo mais importante da Igreja Copta, igualmente venerado por católicos e ortodoxos.

Catedral Copta de São Marcos (Alexandria)

O seu corpo foi sepultado na igreja (hoje a Catedral Patriarcal Copta) de Alexandria, mas em 828 os supostos restos mortais foram roubados por dois mercadores venezianos (Rustico da Torcello e Buono da Malamocco) e transportados para Veneza, a pedido do doge Giustiniano Participazio (Particiacus, em latim). Entendia o duque que, para contrariar a preponderância de Roma, que possuía as relíquias de São Pedro (e também de Aquileia e Ravenna), era necessário à República um símbolo poderoso, tanto mais que as relações de Constantinopla com Roma se tinham deteriorado e se caminhava a passos largos para o primeiro Cisma do Oriente. Para isso, nada melhor do que uma relíquia de São Marcos, que fora o evangelizador de Veneza.

Catedral Copta de São Marcos (Cairo)

Os dois venezianos e seus acompanhantes aproveitaram-se da confusão então reinante em Alexandria, já ocupada pelo Poder Califal, subornaram os guardiões do esqueleto e usaram de um estratagema para iludir os guardas "alfandegários" do porto de Alexandria: colocaram no cesto que continha a preciosa encomenda, cobrindo-a, pedaços de porcos recém-abatidos. Sendo o porco um animal impuro para os muçulmanos, o espectáculo dos animais mortos afugentou rapidamente os guardas e a mercadoria pôde passar sem mais vistorias para o barco que a aguardava no porto.

Saída do corpo de São Marcos de Alexandria (Mosaico na Basílica de Veneza)

Chegados os restos mortais a Veneza, foram depositados na capela do então palácio ducal de Rialto e depois transferidos para a igreja que a seguir se construiu e que é hoje a Basílica de São Marcos. Nestas coisas de relíquias sagradas deve manter-se sempre uma atitude prudente. Há santos cujas relíquias estão espalhadas por esse mundo fora, e o tráfico de relíquias foi comum durante séculos. Posso testemunhar, pessoalmente, que visitei na Basílica de Veneza o túmulo de são Marcos. Já tinha visitado, e voltei posteriormente a visitar, o relicário de São Marcos na Catedral Copta de Alexandria. E há também relíquias de São Marcos na Catedral Copta do Cairo (Abbassiyya), que visitei numa das minhas deslocações à capital egípcia. Todos estes bocados do santo (e porventura há mais) são independentes do presente concedido em 1968 ao papa Cirilo VI de Alexandria (os patriarcas de Alexandria usam o título de papa) pelo papa Paulo VI: um pequeno pedaço de osso de São Marcos que fora oferecido àquele pontífice pelo cardeal Giovanni Urbani, patriarca de Veneza.


Vem isto a propósito do livro que acabei de ler, Quand Dieu apprenait le dessin, um romance de Patrick Rambaud (n. 1946), publicado no princípio deste ano e supostamente sobre o mesmo tema. Mas quase nada do que escrevi vem lá. É Rambaud um escritor prolífico, autor de vasta e variada obra, galardoado com o Prémio Goncourt em 1997, também notabilizado pelas obras satíricas escritas sobre vários políticos, nomeadamente Nicolas Sarkozy e François Hollande.

Chegada do corpo de São Marcos a Veneza (Mosaico na Basílica de Veneza)

Foi o primeiro livro dele que li (e provavelmente o último). Esperava não propriamente um romance histórico, muito menos um ensaio, mas, pelo menos, uma ficção que incidisse directamente sobre o tema. Ora o que Rambaud nos propõe é um texto sobre costumes medievais, usando como pretexto o roubo dos restos mortais de São Marcos. Não se pode negar a ironia que perpassa ao longo das cerca de 300 páginas, mas os hábitos na corte de Luís, o Pio, soberano do Sacro Império Romano Germânico e filho de Carlos Magno e a vida na Alemanha da época, inseridos no roteiro da viagem dos venezianos e que ocupa a quase totalidade do livro, não justifica a publicitação do mesmo como tendo por tema o resgate do corpo do santo. É verdade que o título do livro remete para a capacidade de Deus para desenhar, recorrendo à designação da 6ª novela da 6ª jornada do Decameron, de Bocaccio, comparando essa inabilidade divina referida no conto com a inabilidade de Deus em desenhar a Veneza emergente no século IX, não comparável à delicadeza das posteriores pinturas de um Guardi ou de um Canaletto. Nesta perspectiva, a descrição dos venezianos e dos bárbaros que os assolavam não necessitava do episódio "São Marcos", mas foi essa a vontade do escritor.

Altar e Túmulo de São Marcos (Basílica de Veneza)

O humor característico de Rambaud está, todavia, presente ao longo do livro. Traduzo da página 50: «Em Bizâncio veneram-se os cueiros do Menino Jesus, a toalha de mesa da Última Ceia e a cana que deram como cetro a Jesus. Existe lá uma confusão de objectos piedosos, incluindo o pénis mumificado de Moisés, o cesto da Multiplicação dos Pães, o topo do crânio de João Baptista ou a esponja envinagrada com que os romanos molharam os lábios de Cristo quando ele pediu água. Afinal, dizia para si Rustico, os espartanos tinham conseguido recuperar o cadáver de Leónidas e os atenienses pretendiam deter os ossos de Teseu. Arron, rei dos Persas, oferecera o Santo Umbigo de Jesus a Carlos Magno, que por sua vez o deu ao papa Leão III. Mesmo em Rialto, no meia da laguna principal, no sítio do palácio ducal, os venezianos recolhem-se perante a relíquia de São Teodoro...».

Eu mesmo vi, há alguns anos, na capela de São Paulo, incrustada na muralha da Cidade Velha de Damasco, junto a Bab Kisan (Porta de Kisan), a réplica do cesto em que o santo foi descido para fugir da perseguição de que era alvo.

É pena que Rambaud não tenha abordado o tema de outra forma.

sábado, 9 de junho de 2018

AMORES MASCULINOS NA HISTÓRIA





O historiador francês Michel Larivière, um dos grandes especialistas da História da Homossexualidade, autor de uma obra vasta e erudita, publicou há tempos Les Amours masculines de nos grands hommes, onde descreve, apoiado em numerosa bibliografia, os retratos de algumas das mais célebres figuras homossexuais e bissexuais ao longo dos séculos, tantos quanto o recuo do tempo o permite.

Para o efeito, Michel Larivière não só traça o perfil das personalidades seleccionadas, apenas algumas dezenas entre os milhares que deveriam ser registados, como refere os nomes dos seus amantes e como podem as ligações amorosas facilitar aos mais novos (e belos) carreiras verdadeiramente meteóricas (nem sempre acompanhadas dos méritos requeridos) e até a intervenção nos assuntos políticos dos seus países.

Livro sério, peca todavia pelas omissões (não figura, por exemplo, um único português!) e pelo eurocentrismo (os retratados são praticamente todos europeus), mas também seria difícil alargar o espectro da investigação num livro de pouco mais de 400 páginas. Compreende-se que uma obra desta natureza obrigue a uma selecção rigorosa, pois "são muitos os chamados mas poucos os escolhidos". Aliás, Michel Larivière publicara já, em 1997, um livro mais abrangente, Homosexuels et bisexuels célèbres, prefaciado por Pierre Bergé e ilustrado por Jean Cocteau, uma espécie de dicionário, este com mais de 500 entradas, mas onde o autor consagra aos biografados apenas algumas dezenas de linhas.





Tratando da mesma matéria, existem outras obras, em língua francesa e inglesa, editadas nos últimos anos. Porém, Larivière tem a virtude de ser conciso e preciso, e os seus livros permitem uma consulta rápida e acessível. 

As pessoas mencionadas são, na sua maioria, conhecidas do grande público, embora surjam algumas surpresas para os menos esclarecidos.  Entre os citados, figuram Alexandre, o Grande, Júlio César, o imperador Adriano, Ricardo Coração de Leão, Eduardo II de Inglaterra, François Villon, Leonardo da Vinci, Erasmo, Miguel Ângelo, Solimão, o Magnífico, Cellini, Montaigne, Cervantes, Henrique III de França, Shakespeare, Caravaggio, Luís XIII, Cyrano de Bergerac, Molière, Lully, Guilherme III de Orange, Pedro I, o Grande da Rússia, Frederico II, o Grande da Prússia, Goethe, Luís XVIII, Lord Byron, Schubert, Balzac, Hans Christian Andersen, Chopin, Flaubert, Tchaikovsky, Verlaine, Rimbaud, Luís II da Baviera, Pierre Loti, Oscar Wilde, Marechal Lyautey, Gide, Proust, Max Jacob, Lawrence da Arábia, Cocteau, Eduardo VIII de Inglaterra, Montherlant, Aragon, Lorca, Poulenc, Julien Green, Jean Genet, Tennessee Williams, William Burroughs, Yukio Mishima, Michel Foucault, Maurice Béjart. 

De acordo com a tradição, o autor menciona apenas as pessoas já falecidas (ou aquelas que façam em vida o seu coming out, o que aqui não se verifica). Noto, ao acaso, duas omissões flagrantes: os escritores franceses François Mauriac e Roland Barthes. E também Roger Peyrefitte, homem de extraordinária erudição que dedicou uma vida a escrever romances sobre temas homossexuais, como Les Amitiés particulières. E a estrondosa ausência de Thomas Mann. Dos incluídos menos conhecidos como amantes do sexo masculino figuram Beethoven, o marechal Junot e Jules Verne. O mundo do teatro e do cinema está sub-representado, ou mesmo ausente: os homens de teatro referidos estão na sua qualidade de dramaturgos.

Interessante a menção a Sir Roger Casement (1864-1916), que foi cônsul da Grã-Bretanha em Angola e Moçambique e depois em Portugal e no Brasil. Casement anotava todas as suas relações com os rapazes. Larivière transcreve algumas linhas do seu diário «Londres: Arthur pour 11 schillings. À Funchal: Agostino, très joli, sexe énorme. À Luanda: Mawuki, a un joli sexe énorme, À Luanda: Mawuki, terriblement actif. À Rio: poussée très profonde de Polpito. São Paulo: Antonio, emmanché profond. Retour à Londres: Albert, 15 ans et demi, 10 schillings. Funchal: Carlos, 17 ans, couilles splendides, sexe très long et mince...».

O autor faz uma rápida introdução à história da homossexualidade, referindo não só as bem conhecidas Grécia Antiga e Roma, mas a China, a Índia, o Japão e a Oceânia, e salientando também o anátema de Moisés, que condicionaria desde há milhares de anos as relações same-sex dos judeus, dos cristãos e dos muçulmanos. Evoca também a censura às referências à actividade sexual de muitos protagonistas célebres, caso de Villon, Miguel Ângelo, Shakespeare, Cellini, Montaigne, Balzac, etc. que levaram mesmo à amputação de algumas das suas obras, só reconstituídas no presente graças à descoberta de manuscritos originais. Mas para lá da censura, existiu igualmente a auto-censura. Muitos escritores só autorizaram a publicação das suas obras homossexuais para depois da sua morte: Umberto Saba, E.M. Forster, Roger Martin du Gard. Até Cocteau publicou, anonimamente, as primeiras edições do Livre blanc. E Proust, na Recherche, trocou o sexo a muitas das suas personagens, tal como Montherlant, em Les Jeunes filles.

Mesmo hoje, apesar da evolução dos costumes, permanece uma evidente censura. Quando, em obra anterior, Larivière evocou a homossexualidade de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, foi atacado por um jornal de Istanbul e impedido de voltar à Turquia. [E, recordo-me eu, de que o filme recente (2004) de Oliver Stone, sobre Alexandre, o Grande levou a um protesto formal dos advogados gregos]. Em tempos da União Soviética, o famoso cineasta Eisenstein foi obrigado a escolher entre o casamento ou o exílio e o cientista inglês Alan Turing, que decifrou os códigos secretos das comunicações nazis, permitindo a vitória da Grã-Bretanha, foi sujeito a castração em 1952 (!?!), tendo-se suicidado em 1954. A Jean Moulin, o célebre resistente francês, cujas cinzas, por ordem de De Gaulle, repousam no Panthéon, foram-lhe atribuídas falsas ligações femininas, e só a recente peça de Jean-Marie Besset, Évangile, ousou abordar o tema da sua homossexualidade. E quando morreu o extraordinário poeta e romancista comunista Louis Aragon (1982), já viúvo de Elsa Triolet e por isso homossexual às claras, não houve uma palavra sobre os seus costumes em toda a imprensa francesa, apesar de ter constituído herdeiro o seu último amante, o poeta Jean Ristat.

Note-se que as personagens em apreço não foram todas, como acontece em geral na vida, exclusivamente homossexuais, muitas delas casaram e tiveram filhos, mas a sua inclinação predominante foram os homens, ou mais propriamente os rapazes, e as suas relações femininas foram mais por questões sociais, ou mesmo vitais, do que por desejo do sexo oposto.

Trata-se de assunto inesgotável, longo que foi o tempo em que esteve silenciado pelos poderes religiosos e profanos.

Vasto programa para tão curto espaço. Mas um livro não é propriamente uma lista telefónica. Nesta matéria quase o poderia ser. Acrescente-se que Michel Larivière, para colmatar o número reduzido de pessoas biografadas no livro, inclui no fim do volume, em anexo, uma lista compacta de homossexuais e bissexuais, incluindo milhares de nomes (não os contei), ordenados por ordem cronológica de nascimento, desde os faraós Neferkare II (cerca de 2000 AC) e Akhenaton (cerca de 1300 AC) até ao escritor Gustave Dustan (1956). Por curiosidade, perscrutei o século XIX e encontrei os portugueses Fernando Pessoa e António Botto. Nem tudo está perdido! Suponho que a leitura atenta desta lista, cuja autenticidade foi confirmada socorrendo-se o autor de declarações dos próprios, das suas obras, dos seus biógrafos, das referências dos historiadores, de testemunhos fidedignos, e muitas vezes dos arquivos nacionais, fará estremecer as almas mais sensíveis!

Oportunamente, regressaremos ao tema.

domingo, 3 de junho de 2018

A MENTIRA DAS GUERRAS HUMANITÁRIAS




Rony Brauman, antigo presidente de Médicos sem Fronteiras, acaba de publicar Guerres Humanitaires? Mensonges et Intox, onde denuncia a impostura das chamadas guerras humanitárias, guerras que, aliás, em Portugal, António Guterres defendeu quando se tratou do ataque à Sérvia.

O livro está organizado em forma de entrevistas, efectuadas ao autor por Régis Meyran, abordando as guerras da Líbia, Somália, Kosovo, Afeganistão e Iraque.

Começa Brauman por discorrer sobre o conceito de "guerra justa" que, na tradição cristã, aparece pela primeira vez em Santo Agostinho (século V). No século XIII, Tomás de Aquino enquadra-o teoricamente, fixando cinco critérios para que uma guerra possa ser considerada justa, os quais limitam simultaneamente as declarações das hostilidades (jus ad bellum) e os meios utilizados (jus in bellum).

A "Responsabilidade de proteger", R2P na gíria internacional, é originalmente o título de um relatório redigido por uma comissão de "personalidades de alto nível", instituída pelo governo canadiano em Dezembro de 2000, em resposta à pergunta do secretário-geral da ONU, Kofi Annan, sobre os critérios que deveriam reger as "intervenções humanitárias". Esse relatório oficializa o alargamento das circunstâncias da entrada em guerra (jus ad bellum), sem todavia criar novos mecanismos. Em substância, a legitimidade do uso da força assenta na gravidade da ameaça (crimes de massa), no facto de que se deve tratar de um último recurso, e na proporcionalidade da resposta, remetendo para o Conselho de Segurança a decisão de saber se estes elementos estão reunidos. Causa justa, último recurso, proporcionalidade, autoridade legítima, são os critérios clássicos da "guerra justa" já presentes em Tomás de Aquino.

O autor precisa devidamente os quatro critérios: 1) a intervenção deve ser decidida pelo Conselho de Segurança da ONU, a autoridade legítima; 2) a violência da resposta não deve exceder a das exacções, princípio da proporcionalidade; 3) todos os outros meios, nomeadamente diplomáticos e económicos tais como condenações públicas ou sanções financeiras devem ser tentados, princípio do último recurso; 4) devem existir razoáveis probabilidades de sucesso.

Os dois primeiros critérios são de ordem jurídica, decorrendo do direito internacional, embora uma decisão legal possa não ser legítima, e vice-versa. Assim, a guerra do Kosovo não foi "legal" porque decidida fora do Conselho de Segurança, ainda que eventualmente legítima, e a guerra da Líbia foi "legal", ainda que se duvide da sua legitimidade. Os dois últimos critérios são mais complexos, porque políticos, ou político-éticos. Até quando se pode ganhar tempo negociando, gesticulando? E qual o nível de violência que se pode tolerar esperando que, por outros meios não violentos, se chegará a uma solução? Estas questões implicam uma notável capacidade de cálculo, permitindo uma projecção do resultado final. Sendo "o objectivo da guerra uma melhor situação de paz", como lembra Michael Walzer em Guerres justes et injustes, obra largamente citada por Brauman, resta saber o que se entende como sucesso?




Num debate travado em plena guerra da Líbia, sobre o "dever de ingerência", o politólogo francês Pierre Hassner recordou duas ideias contraditórias de Clausewitz: por um lado, ninguém sensato deveria começar uma guerra sem ter previamente uma ideia clara do que pretende concretizar com essa guerra e de que forma a pode conduzir; e, por outro lado, devido às fricções, ao nevoeiro, à alteração de meios provocada pela mudança dos objectivos, nenhuma guerra termina segundo o esquema inicialmente previsto.

Embora as guerras recentes tenham sido geralmente desencadeadas por falsos motivos, ainda que anunciando a pretensão de serem "humanitárias", os dois primeiros critérios afiguram-se pertinentes. Quanto ao facto de serem o último recurso, isso foi deliberadamente ignorado nos conflitos examinados no livro. As "razoáveis probabilidades de sucesso" são impossíveis de estimar quando se fixam objectivos vagos e gerais, como a democracia, a libertação das mulheres, o bem-estar geral, etc. Voltando a Michael Walzer: "Uma intervenção estrangeira, se for breve, não pode alterar o equilíbrio do poder interno a favor das forças da liberdade; se a intervenção se prolongar [...] tal constituirá a ameaça mais grave para o sucesso dessas forças". Para Brauman, uma guerra "justa" é, finalmente, aquela 1) que se tentou activamente evitar; 2) cuja causa é justificável prima facie; 3) cujo objectivo é delimitado e atingível.

O autor procede a um exame detalhado das guerras abordadas no livro, aqui impossível de descrever, pelo que mencionaremos apenas alguns aspectos das guerras recentes que, motivadas por interesses que nada tinham a ver com os invocados, provocaram, inutilmente (como é óbvio) a morte e o deslocação de dezenas de milhões de pessoas. Sendo a invasão do Iraque a última mencionada no livro, é um facto que desse acto tresloucado e insidioso está o mundo, especialmente a Europa, a sofrer as consequências, com as vagas imparáveis de imigrantes e o alastramento em força do terrorismo ao Velho Continente. Os autores dessa invasão, criminosos contra a Humanidade, continuam impunes.

Começando pela Líbia, sabemos hoje que tudo assentou numa mentira, propagandeada à exaustão. Embora o ataque fosse autorizado pelo Conselho de Segurança (com a abstenção da Rússia e da China), as razões invocadas eram falsas e as operações transcenderam largamente o que fora previamente acordado. Não estava à partida em causa a substituição de Muammar Qaddafi, e muito menos o seu assassinato, ao que tudo leva a crer directamente encomendado por Nicolas Sarkozy. Em 21 de Fevereiro de 2001 a Al-Jazira informou que a aviação líbia estava a bombardear os manifestantes de Tripoli. O sinistro Bernard-Henri Lévy, que viu as imagens (falsas) no aeroporto do Cairo, tornou-se o grande arauto desta invasão. Só que não houve qualquer bombardeamento em Tripoli, como o reconheceram, aliás, em 2 de Março, o secretário de Estado da Defesa e e o chefe de Estado-Maior americano perante o Congresso, mais honestos que os dirigentes franceses e britânicos. Como não existiu qualquer tentativa de aniquilar a população de Benghazi. Nem Qaddafi para tal tinha meios. Mas, ainda em 2 de Março, o secretário-geral da Liga Líbia dos Direitos do Homem afirmava em Paris que 6.000 pessoas tinham sido já mortas pelo regime, das quais 3.000 em Tripoli e 2.000 em Benghazi, o que fez passar despercebido o desmentido da Casa Branca sobre o ataque a Tripoli. A hipótese de um ataque a Benghazi poderia perfeitamente ser travada, desde que se atacasse essa famosa (inexistente) coluna de carros que caminhava pelo deserto. Em 18 de Março Qaddafi anunciou que aceitava um cessar-fogo mas o comandante dos rebeldes Khalifa Haftar recusou-a liminarmente, bem como os seus novos aliados franco-britânicos-americanos. Nova proposta do líder líbio a 20, foi igualmente rejeitada. A campanha de intoxicação da opinião pública ocidental foi desmesurada. Como escreve Brauman, foi uma story telling à maneira de Fort Apache, ou alter facts, na terminologia da Casa Branca. A guerra da Líbia foi uma guerra de Sarkozy, tornada possível pelo empenhamento anglo-americano e do Qatar, que arrastou consigo a Liga Árabe. O Pentágono mostrou-se inicialmente reticente mas Obama acabou por intervir a favor de Hillary Clinton, então secretária de Estado, criminosa e intervencionista assumida. Tratou-se de uma excelente montagem dilomática por instigação do Eliseu, de que BHL (sempre este facínora) foi um comunicador infatigável e eficaz. É claro que por detrás desta guerra fica a questão ainda não devidamente esclarecida de que Sarkozy pretendia desembaraçar-se de Qaddafi, que havia financiado secretamente a sua campanha eleitoral para a presidência da República, através de notas entregues a Claude Guéant pelo intermediário Ziad Takieddine. Ao contrário do Parlamento britânico, que publicou um inquérito em 2016, através da comissão de Negócios Estrangeiros, afirmando que esta guerra foi conduzida sobre "postulados errados", que a ameaça sobre Benghazi foi "sobre-avaliada", que "ela não assentou em qualquer elemento tangível" e que a França prosseguiu interesses particulares, a Assembleia Nacional francesa ainda não julgou útil debruçar-se sobre o assunto. O Qatar desempenhou um papel político essencial, neutralizando uma parte das críticas que faziam desta intervenção uma ingerência ocidental, "arabizando-a" não só pela sua presença activa na frente de combate mas também no plano mediático e diplomático. E a Liga Árabe, não opôs obstáculos, sendo mais passiva do que entusiasta.  Os anglo-americanos impuseram a NATO, o que não estava inicialmente previsto, mas que era militarmente indispensável. É interessante interrogarmo-nos sobre a evolução desta aliança militar em princípio defensiva e geograficamente limitada que se tornou ofensiva desde a guerra da Jugoslávia e viu nos últimos anos os seus teatros de intervenção alargarem-se para lá da Europa e do Atlântico, nomeadamente no Afeganistão e na Líbia. A morte de Qaddafi tornou-se necessária, não só pela questão do financiamento a Sarkozy mas pelo facto de que a prisão do Guia, acusado de crimes contra a humanidade, teria de ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, o que seria absolutamente inconveniente para o Ocidente pelos segredos de Estado que poderia revelar.

Os pormenores descritos pelo autor, que não cabem no espaço de um post, são suficientes para justificar a leitura do livro.

A guerra da Somália, em 1990, foi a primeira "guerra humanitária" do pós-guerra fria. Já estamos um pouco esquecidos dela. O país entrou em guerra civil no fim dos anos 1980 devido às reivindicações territoriais do presidente Siad Barre, que foi destituído em Janeiro de 1991. O problema da análise desta guerra é mais complexo, devido à existência de clans, apanágio das sociedades tradicionais e pré-estáticas. A visão clânica dos somalis ia a par com uma organização social muito pouco hierarquizada. O Estado, que nunca havia sido poderoso, desmoronou-se, mas a fome que ocorreu atingiu mais as populações deslocadas do que a população em geral. O envio de ajuda alimentar foi muito problemático. A fuga de milhares de pessoas para a Etiópia, em termos onusianos, podia considerar-se uma "ameaça contra a paz". Boutros-Ghali apelou para os Estados Unidos e em 9 de Dezembro de 1993 foi lançada a operação Restore Hope com grande difusão pelas cadeias televisivas norte-americanas. Mas a desorganização foi geral. Brauman chama-lhe "crime humanitário". O que aconteceu foi uma coligação de boas vontades, de um lado, e do outro uma Somália a ferro e fogo, entregue a gangs, um verdadeiro fiasco. A pouco e pouco as forças da ONU converteram-se num clan, a par dos demais e Clinton, desejoso de sair do vespeiro, procurou uma saída airosa, projectando a captura de Aïdid, que se tornara o principal opositor da presença norte-americana. Foi desencadeada uma verdadeira caça ao homem que se saldou por uma operação desastrosa conduzida contra Aïdid. Morreram dezoito rangers e quinhentos somalis, um piloto foi feito prisioneiro e vários soldados linchados nas ruas. A cena horrível e humilhante deu a volta ao mundo e Clinton decidiu terminar o empenhamento americano e preparou a saída discreta do país. Esta guerra foi empreendida devido a simplificações enganadoras e a alegações mentirosas e a sociedade somali foi posta de parte, apesar de lhe ter sido confiada a missão grandiosa de "pacificação" e de reconstrução do Estado.

A guerra do Kosovo foi desencadeada num clima de intensa propaganda com base em alegações de massacres e mesmo de genocídio. O Kosovo não fora sequer mencionado nos acordos de Dayton (21 de Novembro de 1995) que puseram fim à guerra da Bósnia-Herzegovina., o que contribuiu a deslegitimar o presidente Ibrahim Rugova, opositor de longa data a Belgrado. As coisas teriam evoluído noutro sentido se este tivesse recebido o apoio europeu, mas surgiu uma nova oposição, o Exército de Libertação do Kosovo (UCK), que começou a actuar em 1996 contra o governo de Milosevic e chegou ao poder no fim da guerra de 1999.

A Conferência de Rambouillet (6 de Fevereiro/19 de Março de 1999) foi para os Estados Unidos a fachada diplomática que ocultava o projecto de guerra que adquiria consistência, dadas as condições inaceitáveis que impunha a Milosevic, começando por uma série de princípios anunciados como "não negociáveis". Curiosamente, o presidente pacifista Rugova fora afastado da conferência, em proveito do criminoso Hashim Thaçi, líder do UCK. O próprio Henry Kissinger, outro criminoso de guerra, escreveu: «O texto de Rambouillet, que apelava à Sérvia para acolher as tropas da NATO em todo o território da Jugoslávia, era uma provocação, um pretexto para começar os bombardeamentos. Rambouillet não poderia ser aceite pelo mais pacífico dos sérvios. Era um documento diplomático espantoso que nunca poderia ter sido apresentado dessa forma.» Foi o lado americano, representado pela secretária de Estado Madeleine Albright, outra criminosa [curiosamente, e em minha opinião, a maior parte dos secretários de Estado norte-americanos são criminosos de guerra. Basta analisar as suas posições durante os respectivos mandatos], quem levou a questão aos extremos, enquanto a posição de Hubert Védrine, pelos franceses e de Robin Cook, pelos britânicos, era mais aberta às expectativas sérvias. Os americanos queriam esta guerra para testar armamento e para transformar o Kosovo numa base militar americana. Pouco antes o começo da conferência de Rambouillet, a NATO autorizara o seu secretário-gerl, Javier Solana, a empreender se necessário ataques aéreos à Sérvia. Tenha-se em conta que o ministro alemão da Defesa anunciara a existência de um plano denominado "Ferro a Cavalo", segundo o qual as forças sérvias de Milosevic tinham previsto desde os fins de 1998 pegar na população albanesa do Kosovo e expulsá-la da província. Esta informação não proveio exactamente da NATO mas do próprio governo alemão, para justificar à sua opinião pública, muito dividida, a sua participação na guerra. Os próprios oficiais alemães contestaram no "Der Speigel", a vontade genocidária dos sérvios. O plano "Ferro a Cavalo" foi uma pura criação dos serviços especiais, a pedido do ministro da Defesa Rudolf Scharping. É um facto que o êxodo maciço das populações se deveu fundamentalmente aos bombardeamentos "aliados" e não à acção organizada dos paramilitares sérvios, que também existiu.

Acrescente-se que o UCK é um reagrupamento de pequenos grupos ultranacionalistas à moda albanesa, financiados pelo "imposto revolucionário", pelo tráfico de droga (e parece que também de órgãos humanos), muito pouco recomendável, e o Estado do Kosovo só foi reconhecido a pouco e pouco devido a pressões norte-americanas. Por exemplo, a Espanha e Chipre, tal como a Rússia e a China, nunca o reconheceram. A seguir à guerra, o Kosovo transformou-se num protectorado onusiano, e a ONU designou um pro-cônsul, Bernard Kouchner, personagem eticamente controversa, que foi co-fundador de Médicos sem Fronteiras e ministros dos Negócios Estrangeiros de Sarkozy, que exerceu funções administrativas durante dezoito meses. Foi a seguir que o UCK tomou as rédeas do poder e proclamou a independência.

Esta guerra foi declarada pela NATO contra toda a legalidade internacional, tendo a ONU legalizado a intervenção a posteriori, com o fez, aliás, em relação ao Iraque, cuja invasão havia condenado em 2003...

O Kosovo é hoje controlado por máfias, não tem uma economia viável, tornou-se numa espécie de caserna da NATO e os sérvios foram expulsos ou relegados para os seus enclaves, tal como os ciganos, sob o olhar indiferente das tropas a Aliança Atlântica.

A concluir o capítulo dedicado ao Kosovo, o autor escreve: « L'amplification et la distorsions des faits sont les traits communs à ces trois guerres [Somália, Líbia e Kosovo], certes, mais on arguera que toutes les guerres donnent lieu à des assauts de propagande. De ce point de vue du rapport à la vérité en situation de guerre, démocraties et dictatures ne sont effectivement pas très différents, à ceci près peut-être que les démocraties convoquent plus volontiers la morale, quand les dictatures se réclament de la sécurité ou de la souveraineté. Je pense pour ces dernières à la Tchétchénie, à la Syrie, au Yémen notamment, mais aussi bien sûr à la "guerre contre le terrorisme" où se dévoile la face cachée de la démocratie américaine, à savoir le penchant dictatorial de l'Amérique impériale.» (p. 88)

Sobre a guerra do Afeganistão já muito se escreveu. O ataque dos Estados Unidos foi a resposta inevitável aos ataques de 11 de Setembro, porque era preciso fazer alguma coisa. E logo se misturaram dois objectivos: derrubar o regime taliban de Kabul e destruir as bases de treino da Al-Qaida. Os talibans afegãos, que não são um partido mas uma espécie de frente relativamente diversificada, são, em primeiro lugar, nacionalistas. Talvez islamo-nacionalistas mas não djihadistas internacionalistas. Praticaram indiscutivelmente o terrorismo mas dentro das suas fronteiras e contra um inimigo local identificado. A sua aliança com Al-Qaida data da guerra de resistência ao Exército vermelho dos anos 1980, época em que eram, se bem nos lembramos, apoiados pelos Estados Unidos, tal como o grupo de Bin Laden, quando este era recebido no Pentágono. Só quando as tropas americanas se instalaram em território saudita, no contexto da guerra do Golfo de 1991, é que elas se tornaram inimigas da Al-Qaida. Mas o poder taliban instalado em Kabul entre 1995 e 2001 depois da vitória sobre outras facções afegãs, nomeadamente a dirigida pelo comandante Massud, era muito bem aceite por Washington. Numa primeira fase, os americanos destruiram uma parte das estruturas da Al-Qaida mas falharam a captura de Bin Laden, embora esta se pudesse efectuar ulteriormente utilizando métodos policiais.  O estado-maior americano havia baptizado esta operação de "Justiça Infinita", antes de renomeá-la Enduring Freedom ("Liberdade Duradoura"). Com um tal começo, não estranha que se tenha convertido numa guerra em nome da civilização.

O regime taliban caiu cinco semanas depois do começo da ofensiva, e no fim de 2001 foi instalado um governo interino presidido por Hamid Karzaï. Teria sido a oportunidade para as tropas estrangeiras abandonarem o território deixando aos afegãos o cuidado de encontrarem a sua própria fórmula política, mas foi precisamente o contrário que aconteceu. Os contingentes de ocupação aumentaram, foi iniciada uma certa reconstrução do país, é certo, e ao longo de uma década esta situação permitiu a abertura de um mercado florescente para as companhias de segurança privadas. Tal não obstou, todavia, ao avanço inexorável dos talibans, com operações militares de que resultaram centenas de mortos. Igualmente, os comportamentos coloniais, a pesada tutela americana, o jogo duplo do Paquistão e da Arábia Saudita, a corrupção omnipresente, bem como a hostilidade que suscita, em qualquer parte, a presença duradoura de exércitos estrangeiros, são suficientes para explicar o sucesso da rebelião islamista.

Quanto às armas de destruição maciça do Iraque, tratou-se de uma gigantesca mentira difundida a nível planetário, mas refutada pelo mundo ocidental, mesmo por todo o mundo. Rony Brauman escreve: «Il faut se rappeler les manifestations dans le monde entier, en particulier dans l'Europe occidentale. Pas toujours pour des bonnes raisons, au demeurant, si l'on pense à des sondages internationaux selon lesquels plus de la moitié de la population mondiale pense que les attentats du 11 septembre seraient en réalité une manipulation de la CIA. Mais la propagande a fonctionné admirablement aux États-Unis, où 80% da la population a soutenu cette "guerre preventive" contre un "nouvel Hitler". Cela dit, cette guerre, dont nous vivons aujourd'hui encore les suites désastreuses, n'a été possible qu'en raison de la promesse faite à Bush par Tony Blair, alors Premier ministre, de le soutenir "quoi qu'il arrive". Et cela contre l'avis des Britanniques qui, comme les Français et autres Européens, y étaient opposés. [...] Cela n'a toutefois pas profondément ébranlé Blair, qui a réagi à ces critiques en défendant son choix: "Nous avons pris la bonne décision. Le monde est meilleur et plus sûr". Tout cela a suscité la naissance de mouvements violents, radicaux, et qui pour certains ont débordé des frontières, Al-Qaida et État islamique, d'autres restés à l'intérieur de leurs frontières tout en radicalisant leurs positions: l'Armée rouge en Afghanistan a provoqué la naissance des talibans et d'Al-Qaida, l'attaque irakienne de 1980 a radicalisé la "Révolution islamique" en Iran, l'invasion de l'Irak en 2003 a entrainé la création de l'État islamique...» (pp. 100-101)

O direito humanitário, que ainda não se chamava humanitário, nasceu com a primeira Convenção de Genève de 22 de Agosto de 1864. Tratava da "melhoria da sorte dos militares feridos nos exércitos em campanha". Os termos da Convenção evoluíram, estendendo o seu campo aos feridos e náufragos (1906), aos prisioneiros (1929) e finalmente às populações civis (1949). Em 1977 foram adoptados "protocolos adicionais" a fim de adaptar os textos aos conflitos implicando forças "irregulares" nos conflitos internos, a seguir às guerras de descolonização e à guerra do Vietnam. Dos dez artigos da primeira convenção estamos agora com 559 artigos na convenção em vigor. 

O suisso Henry Dunant, impressionado com os agonizantes do campo de batalha de Solferino, entre Napoleão III e Francisco José (1859), escreveu Un Souvenir de Solférino (1862), a que chamou "manifesto humanitário". O livro teve um extraordinário êxito na Europa e deu origem à criação, em 1863 a uma "Sociedade para o socorro dos feridos militares", que se tornaria, dez anos mais tarde, o Comité Internacional da Cruz Vermelha e suscitaria a criação de sociedades nacionais da Cruz Vermelha em todos os países do mundo (actualmente 194). A sua primeira iniciativa foi a realização de uma conferência diplomática em 1864, para a "melhoria da sorte dos militares feridos nos exércitos em campanha", exactamente como a primeira Convenção de Genève. O paradoxo desta convenção foi ter sido assinada no momento em que começava a tornar-se caduca. De facto, as evoluções técnicas e os movimentos políticos que começaram a verificar-se tornaram ultrapassada a noção de campo de batalha e a distinção entre combatentes e não combatentes (os irregulares). Sendo o final do século XIX o da aceleração das conquistas coloniais, estas foram "ipso facto, transformadas em guerras justas em nome do direito natural, do comércio, da circulação e da propriedade" (Enzo Traverso, Le XXe siècle  des guerres, 2004). Ser humanitário é por defenição, referir-se à espécie humana, só que, como escreveu Orwell, há humanos mais iguais do que outros. A distinção foi teorizada por Gustave Moynier, co-fundador e primeiro presidente da Cruz Vermelha (durante 36 anos!!!), que escreveu que os princípios que a fundavam eram o produto da moral evangélica e da civilização. Portanto, este progresso era "inacessível às tribos selvagens [...] que cediam sem pensamentos reservados aos seus instintos brutais enquanto as nações civilizadas procuravam humanizá-lo" (Les Causes du succès de la Croix-Rouge, 1888). 

O autor expende depois as suas ideias sobre os novos tipos de guerras, a utilização de drones, os chamados danos colaterais, as intervenções ditas cirúrgicas, etc., e escreve: «Pour des forces politiques en guerre, qu'il s'agisse d'États ou d'acteurs non-étatiques, les frontières de l'intolérable sont celles de leurs intérêts. Le crime de guerre, par exemple, désigne les cruautés excessives, que "ne justifient pas les exigences militaires". Mais qui définit ces exigences en dernier resort? Le vainquer, bien sûr. Plus largement, selon que le pouvoir sera ou non soucieux de s'attirer les bonnes grâces de la population, il se conduira avec plus ou moins d'aménité à son égard. Et selon le degré d'importance qu'il attache à son image internationale, il modulera son niveau de brutalité. L'armée américaine, encore elle, a mis au point un logiciel qu'emploient ses officiers de ciblage (targeting officers) pour anticiper, en fonction de toutes sortes de paramètres (densité de population, neure de la journée, types de constructions etc.), les dommages collatéraux de bombardements de quartiers urbains. Objectif: éviter des pertes civiles supérieures à vingt-neuf morts, car le chiffre trente est le seuil à partir duquel des signaux négatifs apparaissent dans la presse, selon les conseillers. C'est à ce genre de détail raffiné que l'on voit le formidable pragmatisme d'une république impériale. En tout cas, le droit humanitaire est soumis par sa nature même à la logique de la guerre et c'est pourquoi les ONG ne devraient pas tenter de s'en faire les championnes, comme c'est souvent le cas.» (pp. 122-3)

E o autor conclui: «Il y a sans doute des guerres justifiables, encore faut-il s'en expliquer et c'est précisement là que les critères de la "guerre juste" peuvent nous aider, comme j'ai tenté de le montrer. Mais il n'y a pas de "guerre juste", il n'y a que des faux prophètes. Et je m'inquiéte de la facilité avec laquelle l'histoire, réécrite pour les besoins de la cause, devient l'Histoire.» (p.126)