sábado, 22 de setembro de 2018

MAPPLETHORPE REVISITADO




A exposição inaugurada no passado dia 20, na Fundação de Serralves, no seu Museu de Arte Contemporânea, sobre a obra do famoso fotógrafo Robert Mapplethorpe, e comissariada por João Ribas, director do Museu, tornou-se no centro de uma polémica, devido ao carácter demasiado "ousado" de algumas fotos captadas pelo notável artista. 

Transcrevo, do site da Fundação, a notícia sobre a exposição:


ROBERT MAPPLETHORPE: PICTURES
de 20 SET 2018 a 06 JAN 2019
 
 
Robert Mapplethorpe (Nova Iorque, 1946–1989, Boston) criou algumas das imagens mais icónicas, polémicas e surpreendentes da fotografia contemporânea. Robert Mapplethorpe: Pictures, exposição organizada em estreita colaboração com a Robert Mapplethorpe Foundation, reúne 159 obras de toda a sua carreira, desde as primeiras colagens e polaroides até às fotografias de flores, nus, retratos e imagens de cariz sexual que fizeram de Mapplethorpe um dos fotógrafos mais notáveis do século XX.

Antes de escolher a fotografia como meio, Mapplethorpe estudou pintura e escultura em Nova Iorque e foi influenciado pela arte de Joseph Cornell e Marcel Duchamp, mas também pela fotografia do século XIX de Julia Margaret Cameron e outros, de que se tornaria um ávido colecionador. As suas primeiras colagens, assemblagens e fotografias (estas inicialmente realizadas com uma câmara Polaroid) revelam o interesse crescente na sexualidade e na composição — ângulos retos, formas geométricas de luz — que viria a definir a sua obra matura. Trabalhando a partir de 1975 com uma câmara Hasselblad totalmente manual, cujo visor enquadrava o mundo num quadrado, Mapplethorpe começa a recorrer a exposições longas e composições metodicamente dispostas e ordenadas no seu estúdio para criar retratos, nus e naturezas-mortas, cujos equilíbrio, ordem e conteúdo redefiniram a fotografia como forma artística. 

Mapplethorpe tratou todos os seus temas com igual atenção e precisão, desde órgãos sexuais ou arranjos de flores até aos retratos de amigos, amantes, celebridades e colaboradores, transformando a fotografia numa performance controlada entre o artista e o seu sujeito. Controverso e classicista, o interesse pioneiro de Mapplethorpe por sexo, género e raça reflete-se em imagens de corpos, prazer e desejo homossexuais e não heteronormativo e em fotografias suspensas na tensão — como acontece na totalidade da obra do artista — entre a intensidade emotiva e política dos seus conteúdos e a clareza da sua composição. 

Todas as obras de arte expostas são propriedade da Robert Mapplethorpe Foundation, Nova Iorque.

Exposição organizada pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves e comissariada por João Ribas, diretor do Museu, com coordenação de Paula Fernandes.

AVISO: Algumas obras da exposição contêm imagens de natureza explicitamente sexual. A admissão de menores de 18 anos está condicionada à companhia de um adulto.
 
 * * * * *
 
 
Acontece que a Administração da Fundação resolveu entretanto retirar algumas das fotografias expostas e reservar o acesso a outras apenas a maiores de 18 anos, atitude que levou à demissão do director do Museu. Esta atitude censória revela os preconceitos ainda existentes no espírito de muitas pessoas que, pelas funções que ocupam, deveriam cuidar mais da Arte e menos da Moral. Talvez importasse publicar outra vez um "Aviso por causa da moral", como fez em 1923 Fernando Pessoa, a propósito das Canções de António Botto. Há quase cem anos!


Sobre a grande exposição de Mapplethorpe no Grand Palais, de Paris, em 2014, publicámos aqui este post. Já lhe tínhamos feito uma referência também aqui
 
 
 
Lamenta-se que em Portugal se esteja a acrescentar à polícia do corpo a não menos perigosa polícia do espírito. Parafraseando José Régio, temos a obrigação de dizer que "não vamos por aí".

 

sábado, 8 de setembro de 2018

ANTÓNIO BOTTO REVISITADO





Arrancam-me as penas
E eu sofro sem dizer nada: 
- Sou ave
Bem educada.

Botto, "Palavras dum avestruz todo gris" (1922)




Acabou de ser publicado o livro O Mundo Gay de António Botto, de Anna M. Klobucka, licenciada em Estudos Ibéricos pela Universidade de Varsóvia, doutorada em Línguas e Literaturas Românicas pela Universidade de Harvard e professora do Departamento de Português da Universidade de Massachusetts Dartmouth, sendo também especialista em estudos do género e investigadora da obra de Fernando Pessoa.

Antes de comentar o livro, quero manifestar duas reservas. Em primeiro lugar, o facto de a edição respeitar a grafia do miserável Acordo Ortográfico 90; não havia necessidade. Em segundo lugar, a utilização da palavra gay no título. Eu sei que, devido ao predomínio universal da língua inglesa, facto que profundamente lastimo, gay passou a ser sinónimo de homossexual, embora o seu conceito possa ser mais vasto. O significado de gay em inglês é alegre, ou equivalente, e foi e continua a ser usado como apelido (por exemplo, o célebre dramaturgo do século XVIII, John Gay), o que se torna incómodo para os usuários que sendo Gay podem não ser gays. A palavra, proveniente do francês gai (igualmente qualificando as coisas alegres), começou a ser utilizada como sinónimo de homossexual masculino (e às vezes feminino, em alternativa a lésbica) nos Estados Unidos (só podia ser) nos finais dos anos trinta do século passado. Compreendo, contudo, a opção de Klobucka ao utilizá-la; é que a autora pretende analisar não só a figura de Botto, e a sua obra, como todo o universo em que se inseriu a sua vida. É portanto mais abrangente do que seria "o mundo homossexual de António Botto". Depois, confessa-nos Klobucka, também se inspirou no título do livro do famoso investigador irlandês de García Lorca, Lorca y el mundo gay (2009). Mas nunca me esqueço que a bomba atómica que os americanos lançaram sobre Hiroshima, em 1945, chamava-se "Enola Gay"!


Não me proponho, evidentemente, discorrer aqui sobre toda a matéria constante desta brilhante investigação da intelectual polaca mas apenas referir algumas notas, cuja pertinência importa registar, ou assinalar alguns aspectos menos conhecidos do grande público. Aliás, este livro, organizado numa perspectiva dos estudos do género, não é propriamente uma biografia do poeta "maldito" mas uma contribuição para o enquadramento da sua obra no período da sua vida.


António Thomaz Botto, nasceu em Concavada (Abrantes) em 17 de Agosto de 1897 e morreu no Rio de Janeiro, em consequência de um atropelamento, em 16 de Março de 1959. Poeta, ficcionista e dramaturgo, celebrizou-se pelas suas Canções (1921), em que se exaltava o amor homossexual e que provocaram, à altura, o escândalo na cidade e a ostracização do autor.


Segundo Klobucka, António Botto foi, a nível mundial, o primeiro poeta a assumir claramente na sua obra uma identidade homossexual, como Gide o faria em 1926 com Si le grain ne meurt, ignorando o conselho de Oscar Wilde de nunca empregar o "Je"!


Megalómano e mitómano, António Botto, de reduzida cultura e nada fazendo para aperfeiçoar os seus conhecimentos, é contudo um homem inteligente, de inegável talento e de especial sensibilidade, particularmente atento ao meio em que nasceu e viveu. Não pretendo envolver-me na peregrina questão de saber se Botto é um poeta maior ou menor, e menos ainda se é um grande ou pequeno poeta, porque esta tendência de hierarquizar os poetas numa escala valorativa levar-nos-ia ao estabelecimento de uma grelha em que um grande poeta menor poderia equivaler algebricamente a um pequeno poeta maior, se lhe fossem atribuídos valores numéricos. Logo, tarefa inútil.


Não sendo propriamente este livro, como se disse acima, uma biografia de António Botto, não seria todavia possível que ignorasse vários aspectos da vida do poeta. E são alguns desses aspectos que me apraz citar.

A vida de Botto foi sempre materialmente difícil, e foi mesmo muito difícil no período em que viveu no Rio de Janeiro. Funcionário público (escriturário de 1ª classe do Arquivo Geral de Identificação), foi despedido do cargo que ocupava, então no Governo Civil, em 1942, por  causa de um comportamento que foi conotado com a homossexualidade. A sua demissão consta do Diário do Governo nº 262 - II Série, de 9 de Novembro de 1942, pp. 5794-96


«a) ter desacatado uma ordem verbal de transferência dada pelo primeiro oficial investido ao tempo em funções de director, por impedimento do efectivo;
b) não manter na repartição a devida compostura e aprumo, dirigindo galanteios e frases de sentido equívoco a um seu colega, denunciando tendências condenadas pela moral social;
c) fazer versos e recitá-los durante as horas regulamentares do funcionamento da repartição, prejudicando assim não só o rendimento dos serviços mas a sua própria disciplina interna.»

Diz-se que António Botto costumava referir esta circunstância afirmando que havia muitos pederastas mas que ele era o único reconhecido oficialmente pelo Estado.


A divulgação da obra de António Botto deve muito à amizade e interesse de Fernando Pessoa, que o apoiou e defendeu literária e pessoalmente. Aliás, conta-nos Anna Klobucka que foi através de Pessoa que chegou ao conhecimento de António Botto. Também José Régio manifestou o seu apoio ao poeta (António Botto e o Amor) e Pessoa escreveu "António Botto e o Ideal Estético Criador", incluído em Canções e "Aviso por Causa da Moral", manifesto distribuído nas ruas de Lisboa. Foram menos simpáticas para Botto as críticas de Georg Rudolf Lind (Teoria Poética de Fernando Pessoa) e de Óscar Lopes (Entre Fialho e Nemésio). 


A megalomania de António Botto levou-o a considerar-se amigo e conhecido de muita gente célebre e a criar uma vida virtual que acabou por assumir tão convictamente que, julgo, a certa altura ela se confundiria com a sua própria vida real. Mas nem todas as suas fantásticas amizades são falsas. Está provado que manteve uma relação com o infante D. Luis Fernando de Orleans y Borbón, primo direito do rei Alfonso XIII de Espanha, e que acompanhou aquele numa digressão a Roma. O infante tinha uma habitual companhia portuguesa, um jovem do Porto, António de Vasconcelos, que considerava como seu secretário e com quem partilhava a vida. O comportamento do infante e do seu secretário eram considerados atentatórios da moral pública, e ambos acabaram por ser expulsos de França quando pretendiam obter a ajuda da Embaixada de Espanha em Paris para se desfazer do corpo de um jovem marinheiro que morrera em sua casa na sequência de um acidente.Por causa deste caso, adicionado a anteriores proezas, o rei Alfonso XIII retirou ao primo todos os títulos e privilégios decorrentes do seu estatuto como membro da família real. Expulsos de França, Espanha e Bélgica, o infante e o seu inseparável Vasconcelos também viveram algum tempo em Portugal.

 

As grandes amizades virtuais de Botto foram o bailarino russo Vaslav Nijinsky e o poeta espanhol García Lorca, que, por razões cronológicas e geográficas nunca terá conhecido. Mas para o imaginário de Botto, estas duas famosas figuras da cultura universal, homossexuais conhecidos, emprestavam-lhe uma aura apetecível. Mas muitos outros vultos eram apontados como seus correspondentes e autores de textos em seu louvor, como Pirandello, Unamuno, Virginia Woolf, James Joyce, André Gide, Laurence Olivier, Gabriel Mistral, etc. Já no exílio no Brasil, afirmou mesmo que convivera com Bernard Shaw, Mussolini, Mistinguette, Kipling e os reis Afonso XIII de Espanha, Vítor Manuel de Itália e Eduardo VIII de Inglaterra. 


A recepção de António Botto em Portugal foi conturbada e deu lugar à polémica da "Literatura de Sodoma", que denunciava o desvio da heteronormatividade e a perversão dos espíritos (e dos corpos) por causa de obras como as Canções, ou Sodoma Divinizada, de Raul Leal, ou Poemas, de Judith Teixeira. Um artigo de "A Capital", denunciara já, pela pena do jornalista Armando Ferreira, o livro de Botto, que, na sua opinião, justificaria uma intervenção da polícia, devido a uma fotografia provocante do poeta exibida na capa. Na altura, fora publicado como Canções do Sul. A violência homofóbica tornou-se depois mais claramente assumida pela Liga de Acção dos Estudantes de Lisboa, dirigida por Pedro Theotonio Pereira, pelo governador civil de Lisboa, major Viriato Lobo, e pelo jornalista Álvaro Maia.



Contextualizando as Canções de 1921, Anna Klobucka escreve: «A primeira constatação a registar sobre as edições iniciais das Canções é a mais óbvia, mas nem por isso menos importante. Muitos dos poemas do conjunto reunido por Botto nos livros lançados nos finais de 1920 e no início de 1921 transmitem um discurso homoerótico cuja limpidez e naturalidade afirmativas não encontram paralelo, naquela época, em nenhuma literatura moderna europeia ou ocidental (pelo menos no que diz respeito a obras publicadas e divulgadas em circulação aberta)» (p. 96) 


Mais adiante: «...Se insisto em falar, a este propósito, nos discursos em circulação no foro público da literatura portuguesa, é para reconhecer e salientar a mais que provável transmissão no foro privado da expressão homoafectiva e homoerótica, em forma de prosa e porventura também poesia. Um exemplar confirmado, embora não preservado, de tal discurso seria uma parte da correspondência trocada entre António Nobre e Alberto de Oliveira entre 1890 e 1892 (altura em que Nobre esteve a estudar em Paris). Uma proporção substancial desta - "cerca de duas centenas de postais" só da parte de Nobre -, e que era referida pelos correspondentes como o seu "diário" partilhado, décadas mais tarde veio a ser destruída por Oliveira, tendo sido declarada "impublicável pela natureza pessoal e íntima do seu conteúdo". Segundo comenta Guilherme de Castilho [Correspondência, de António Nobre], "As razões que levaram o destinatário à sua destruição... conjugadas com o tom também já tão 'pessoal e íntimo' de muitas e muitas passagens das cartas (que no entanto Alberto de Oliveira não teve dúvidas em deixar tornar públicas) são indício da atmosfera em que esses documentos teriam sido gerados."» (pp. 97-98)

 

[Permita-se-me um apontamento de natureza pessoal. Tal como António Nobre, também Cesário Verde, um dos grandes poetas portugueses contemporâneos, morreu precocemente devido a tuberculose. E parece que, como Nobre, teria também Cesário inclinações homoeróticas. O escritor Augusto Abelaira, de quem tive o privilégio de ser amigo, contou-me, há muitos anos, no ex-Café Ribamar (em Algés), não tendo eu, na altura, registado os pormenores, que Cesário, encontrando-se a apanhar bons ares na Malveira, teria sido surpreendido no campo na prática de actos sexuais com um rapaz saloio habitante da região. O caso foi abafado e não consigo recordar-me de que forma Abelaira obtivera aquela informação.]


A primeira edição de Canções, ainda com o título Canções do Sul, teve lugar em fins de 1920, em tiragem e divulgação muito limitada, tal como a primeira edição do Corydon, de André Gide, em 1911, anónima e de doze exemplares, e a de 1920, ainda anónima e apenas de vinte e um exemplares, só sendo o livro editado para o público em 1924. Era o padrão da época. Também a "Oda a Walt Whitman", de Lorca, que, segundo John K. Walsh é «possivelmente o mais significativo - certamente o mais completo - poema moderno sobre as homossexualidades», foi publicado uma única vez, antes da morte de Lorca em 1936, numa impressão de cinquenta exemplares patrocinada por intelectuais mexicanos e editada na Cidade do México, em 1933. 


O episódio da "Literatura de Sodoma", que referimos acima, tem lugar em 1923, na sequência dos livros mencionados, dos textos publicados na revista "Contemporânea" e dos artigos de alguns plumitivos. Em Fevereiro de 1923, num domingo de Carnaval, a polícia interveio num baile de travestis na escola da Graça, resultando na detenção, julgamento e condenação de dezasseis "homens que se vestiram de mulher". Uma semana depois constituiu-se um "movimento de acção moralizadora", composto por alunos universitários de Lisboa, liderados por Pedro Theotonio Pereira,
que prometia "meter na ordem" indiscriminadamente, os travestis da Graça, e "esses equívocos senhores que andam por aí, nas ruas e nos cafés, ... com maneiras femininas e elegâncias ridiculamente exageradas", juntamente com "os artistas decadentes, os poetas de Sodoma, os editores, autores e vendedores de livros imorais". O governador civil de Lisboa, que na sua tomada de posse, um ano antes, prometera proceder ao "saneamento moral da cidade", mandou apreender os livros de António Botto, Raul Leal e Judith Teixeira. A mais mediática figura que se opôs a estas acções, protestando contra a apreensão na Livraria Portugal-Brasil, contra a apreensão de um "livro pornográfico" (não identificado), foi Júlio Dantas, presidente da Academia das Ciências de Lisboa.



[Aproveito para introduzir uma nota pessoal. É um facto que a I República, em muitos aspectos, seguiu uma orientação mais puritana do que o Estado Novo. Recordo que, nesse mesmo ano, o governador civil proibira a peça Mar Alto, de António Ferro, que se estreara no Teatro de São Carlos. E a propósito de Júlio Dantas, respeitabilíssima personalidade, escreve o historiador Rui Ramos no VI Volume da História  de Portugal, dirigida por José Mattoso (p. 661): «Outros escritores gozavam de sólida reputação de pederastas, e não era por isso que sentiam necessidade de elocubrações sobre o tema ou de se exporem. Estavam nesse caso João Chagas, jornalista republicano e embaixador em Paris, Júlio Dantas, o presidente da Academia de (sic) Ciências, e Manuel Teixeira Gomes, o presidente da República - todos publicamente tidos por homossexuais convictos». Devo acrescentar que para Salazar a homossexualidade não constituía qualquer problema desde que fosse discreta. Muitos membros dos seus Governos e muitos amigos pessoais foram indiscutivelmente homossexuais. O que importava ao presidente do Conselho era a manutenção das aparências e a tranquilidade da ordem pública, sem sobressaltos "morais" que pudessem ser interpretados como tibieza do regime.] 


Ainda sobre o tema, escreve Anna Klobucka em nota de rodapé (p. 113): «Uma leitura mais abrangente dos textos em diálogo nas páginas da Contemporânea entre 1922 e 23, que o espaço restrito deste capítulo não me permite realizar, atenderia também à publicação no número 6 (dezembro de 1922) do "Soneto já antigo" de Álvaro de Campos, cuja forma dialogada e teor memorialista e confissional  [sic] à volta do "rapazito" que o poeta "tanto julg[ou] amar" aproximam-no irresistivelmente da "canção" de Botto sobre o "adolescente loiro" (no número 3), comentada acima. Tal leitura consideraria também o lançamento da separata do número 7 (janeiro de 1923) com uma versão parcial de "A Cena do Ódio" de Almada Negreiros, que muito curiosamente exclui os três versos que abrem o poema na sua versão original, impressa nas provas de página do Orpheu 3 ("Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis,/ Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado,/ e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!"), assim como outros textos publicados na revista e implicitamente relacionáveis com o debate que a Contemporânea e a Olisipo conjuntamente iam avançando. Note-se apenas que publicando o poema com os três primeiros versos cortados, Almada ao mesmo tempo se inscreve na vertente contracultural da Contemporânea e se autoexclui do sentido específico que ela assume desde o ensaio de Pessoa sobre Botto e o poema deste, ambos publicados em julho de 1922.»


No capítulo III - Homem, português, homossexual (atrever-me-ia a dizer que Anna Klobucka se inspirou no título da peça de Bernardo Santareno Português, Escritor, 45 Anos de Idade), a autora analisa a vida e a obra de Botto numa perspectiva queer que transcende os limites deste post. Refira-se a inclusão de muitos poemas inéditos, constantes do espólio existente na Biblioteca Nacional de Portugal, que permitem sustentar a tese da "inversão sexual" que dominava o entendimento da atracção pelo mesmo sexo na época de Botto, representando o homem homossexual como possuidor de uma alma feminina no corpo masculino.

Transcrevo um poema do espólio, incluído em "Poesias dispersas II" (E 12/104):

«Não sei porque não me dizes
O dia do teu embarque
Se vais aqui ao meu lado
E vestido de soldado?
Escusas de mentir ou iludir 
- Creio que vais, logo mais, de manhã cedo?
Não somos nós dois verdadeiros amigos,
mais do que amigos - tens medo?
(...)
Habituei-me, contigo,
A todo o prazer que o corpo tem,
E o teu sendo aquele onde ninguém
Mais pode ter senão eu
Porque me deu os infinitos de um prazer que vem do além,
E quando se gosta como eu gosto
- Sou infeliz porque me vou
Eu que te quero tanto bem?

- Mas eu não quis ofender-te,
Nem por sombra pensaria, meu amor.
Vai descansado.
A Pátria não te demora. Serei sempre dedicado,
E andarei na tua alma, dentro daquela certeza
De te ver chegar, mais homem
Nessa onda reprimida
Que tens no coração e na expressão do olhar
Feita de sonho para encher a minha vida.
Adeus!

Mas quero-te beijar.»

[Este poema poderia muito bem enquadrar-se no contexto da guerra colonial, mas é naturalmente muito anterior. A referência à farda como fetiche da masculinidade e a alusão às virtudes viris do serviço militar obrigatório fizeram sempre parte do imaginário da homossexualidade masculina. Em Portugal como no Mundo. Genet, por exemplo, exemplificou genialmente essa atracção em Querelle de Brest]


O universo de Botto é povoado de marinheiros, soldados, operários e campinos, evocando a sua filiação regional com o Ribatejo e a sua vivência em Alfama [Também Pedro Homem de Mello tocaria a mesma tecla]. Em O Livro do Povo, Botto convoca o folclore, também numa dimensão nacionalista cara a António Ferro, que fora, por alguma razão, o editor de "Orpheu".


«Em contextos literários e performativos como o da peça Alfama (e outros considerados mais acima) as manifestações mais ou menos veladas do afeto homoerótico e desejo homossocial são descodificáveis num processo de leitura intencional e estrategicamente enviesado, desproporcionalmente atento a meias palavras, alusões e efeitos que comportam o seu sentido queer. Em outros textos de Botto, nomeadamente os que o celebrizaram - os poemas das Canções -, mas também na epistolografia amorosa das Cartas que me foram devolvidas (1932), o homoerotismo e a sensibilidade queer surgem claros e manifestos sem véus e sem o filtro do autoquestionamento torturado que tendia a infletir a expressão (ou a não expressão) dos seus pares contemporâneos.» (pp. 171-2)

 


«Como o autor empírico cuja experiência biográfica sustenta o discurso do epistológrafo amoroso das Cartas, Botto conhecia tanto a condição da obscuridade pessoal e a relativa despreocupação do aparelho judicial português com a prática da homossexualidade masculina (pelo menos nos anos da sua juventude) como a condição de existir na sociedade na pele de uma figura pública facilmente reconhecível - no caso, não apenas como "artista célebre" mas, concretamente, como homossexual.» (p. 173-4)

A amizade e a estreita ligação de Fernando Pessoa a António Botto, a forma como sempre o defendeu e a maneira como o incentivou na prossecução da sua obra, levam Anna Klobucka a referir que Jorge de Sena considerou poder afirmar-se que António Botto foi, de algum modo, mais um "heterónimo" de Fernando Pessoa. Cito: «Num ensaio importante por vários motivos, publicado originalmente como introdução à edição dos Poemas ingleses de Fernando Pessoa pela Ática (1974), Jorge de Sena formulou uma quase-proposta ("quase se seria tentado a considerar"), sugerindo que "de certo modo, Botto foi também um heterónimo de Fernando Pessoa - e que este se 'realizou' também na poesia daquele, e na vida a que ela correspondia" (1984, 328)» (p. 182)



 [A autora não refere em que página da Introdução àquela edição dos Poemas Ingleses da edição da Ática (1974) figura a afirmação de Jorge de Sena. Procurei no meu exemplar ao longo das páginas da Introdução (13 a 87) mas não consegui encontrá-la. Exigiria certamente uma leitura atenta. Também não consegui identificar a referência à segunda parte da citação (1984, 328), que interpretei como constando da única obra de Sena mencionada na Bibliografia (Líricas Portuguesas, vol. I, 1983 {aliás 1984}, António Botto, 65-68). Nem na apresentação do poeta, nem nos prefácios, nem na página 328]


É, todavia, pertinente a sugestão de Jorge de Sena. Através de António Botto, Fernando Pessoa pôde ir  homofilamente mais além do que aquilo que se encontra traduzido no ortónimo, nos heterónimos, no semi-heterónimo e nos pseudónimos. Porque estes eram todos Pessoa, e Botto era realmente uma outra pessoa, o que libertava Pessoa de compromissos eventualmente indesejáveis.

Também um poema de Fernando Pessoa, datado de 1919 e revelado pela primeira vez em 2002, sendo atribuído então por Richard Zenith a um "heterónimo gay anónimo", verbaliza o desejo sexual na comunicação entre homens:

«Ah, se soubesses com que mágoa eu uso
Este terror de amar-te, sem poder
Nem dizer-te que te amo, de confuso
De tão senti-lo, nem o amor perder.
Se soubesses com que ódio a não saber
Falar-te do que quero, a mim me escuso,
Se soubesses? E se o soubesses? Quê?
Que gesto teu para mim melhoraria
Este mal-estar de mim comigo e o amor?»

("Fernando Pessoa's Gay Heteronym?", Richard Zenith, in Lusosex: Gender and Sexuality in the Portuguese-Speaking World, orgs. Susan Canty Quinlan e Fernando Arenas, Minneapolis: University of Minnesota Press, 2002, 35-56)

Não cabe aqui desenvolver a "apropriação" de Botto por Pessoa, mas o livro que aqui comento fá-lo exemplarmente. O poeta de Mensagem vive uma vida homossexual por interposta pessoa (Botto) , através da qual também se exprime literariamente.  



Anna Klobucka discorre depois brilhantemente sobre a possível comparação da relação Pessoa/Botto com a relação Wilde/Gide, recorrendo à introdução do livro já clássico de Jonathan Dollimore, Sexual Dissidence: Augustine to Wilde, Freud to Foucault (1991), matéria vasta e apaixonante com a qual os interessados se deleitarão lendo a prosa desta autora polaca que escreve um português mais correcto, preciso e elegante do que o de muitos escritores portugueses.


Não tendo este post quaisquer pretensões biográficas, importa todavia salientar que Botto deixou o solo pátrio em Agosto de 1947, com destino ao Brasil, acompanhado pela sua mulher Carminda Silva Rodrigues, que se manteve uma presença constante e dedicada até ao fim da sua vida. A vida em Portugal tornara-se-lhe mais difícil com a exoneração da função pública, mas esta deslocação não se revelou o êxito que as expectativas prometiam. Prossegue, contudo, a sua actividade, como salienta a autora: «Este trabalho de invenção e comunicação continua no Brasil, durante a última década da vida de Botto, e a análise da sua documentação oferecem - entre outros benefícios epistemológicos possíveis - um contraponto sugestivo às ainda recentes iniciativas de recuperação e construção de uma história da homossexualidade masculina no Brasil no século vinte, particularmente através dos estudos de Richard Parker (Abaixo do Equador. Culturas do Desejo, Homossexualidade Masculina e Comunidade Gay no Brasil) e James Green (Além do Carnaval. A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século XX). O objetivo central deste capítulo não será, portanto, uma descrição completa (ou tão completa quanto possível) da vivência brasileira de Botto, mas antes uma reflexão documentada sobre a intersecção entre o seu "mundo gay" português e europeu e as "homopaisagens" (neologismo de Parker a que regressarei) brasileiras, principalmente cariocas, mas também mais amplamente novomundistas na sua projeção simbólica, segundo veremos.» (p. 223)




Há um livro fundamental sobre a homossexualidade no Brasil, porém não referido no livro de Anna Klobucka, mas que consta da minha biblioteca:  Devassos no Paraíso - A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade, de João Silvério Trevisan (1986), obra ilustrada de quase 600 páginas, uma referência obrigatória para o estudo da matéria.



A chegada de Botto ao Rio de Janeiro foi entusiasticamente saudada pela imprensa local, à qual o poeta facultou toda a sua autobiografia imaginária. Procurou integrar-se no meio literário do Rio e estabeleceu uma relação de amizade com o escritor homossexual brasileiro Lúcio Cardoso, um nome prestigiado no Brasil. Na antiga capital do país, Botto escreve, engata nas ruas e na praia, vive com acrescidas dificuldades e acaba por morrer em consequência de um atropelamento na avenida de Nossa Senhora de Copacabana.

Os seus restos mortais seriam trasladados para Portugal em 1965 e depositados num gavetão no Cemitério do Alto de São João, em 11 de Novembro de 1966, estando presentes na cerimónia, entre outros, José Régio, Ferreira de Castro, David Mourão-Ferreira e Natália Correia.  A viúva, Carminda Rodrigues, enviaria mais tarde para Portugal o espólio do poeta, que se encontra na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP).



Já vai longo este post, e importa terminar. Não pretende, como se disse, ser um resumo, pálido que seja, do livro de Anna Klobucka, cuja leitura vivamente se recomenda, nem tão pouco uma súmula da biografia do poeta. Encontrando-se a sua obra dispersa por vários livros, empreendeu a editora Quasi a publicação da Obra Completa, em nove volumes, organizada por Eduardo Pitta, mas de que, dado o desaparecimento daquela casa, apenas foi publicado o primeiro volume: Canções e Outros Poemas (2008). Está agora previsto que seja a editora Assírio & Alvim a retomar a tarefa da publicação da opera omnia. Encontrado-se vasto material inédito na BNP, seria do maior interesse que essa importante parte do espólio fosse integrada na projectada nova edição, pois certamente traria notável contributo para o conhecimento  da vida e obra do poeta. Tudo isto suscita uma última questão: para quando a publicação de uma biografia de António Botto? É A HORA!