segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

OS MANUSCRITOS PERDIDOS DE CÉLINE

Sete décadas depois da morte de Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), apareceram finalmente os manuscritos de duas obras que o escritor sempre reivindicou, afirmando que lhe haviam sido roubadas quando teve de abandonar a França (1944). A reaparição em circunstâncias extraordinárias das obras fez correr muita tinta e comentei o caso na altura (2021). Trata-se de Guerre, romance situado na Flandres durante a Grande Guerra, com uma parte autobiográfica encastrada na ficção e de Londres, continuação do anterior, quando o herói, Ferdinand, alter ego de Céline, deixa França e vai para Inglaterra. O texto de Guerre, duzentas e cinquenta folhas manuscritas, foi escrito de um jacto, possivelmente dois anos depois da publicação de Voyage au bout de la nuit (1932).

Em Guerre (2022), Céline conta-nos como foi gravemente ferido no braço direito, na Bélgica, evoca-nos o traumatismo da frente de batalha, a sua convalescença, a sua partida para Londres. Pelos seus actos de bravura, Céline foi condecorado com a medalha militar e depois com a cruz de guerra.

A guerra, da qual ficou a sofrer de sequelas durante toda a vida, está omnipresente na vida, e na obra, de Céline. Nunca esquecerá o grave ferimento ocorrido em 27 de Outubro de 1914. Como escreveu, em 1934, na última frase da primeira folha do manuscrito de Guerre: «J'ai attrapé la guerre dans ma tête».

A partida para Inglaterra, em Guerre, é pura invenção. Céline partiu posteriormente para Londres, onde trabalhou no Consulado-Geral de França de Maio a Dezembro de 1915. Saiu de Inglaterra em Maio de 1916, com destino aos Camarões. 

Não é possível estabelecer uma concordância exacta entre os acontecimentos vividos por Céline e as evocações dos romances. Voluntariamente, ou por acaso, o escritor baralha as pistas. Tal como as personagens, que ora nos surgem com um nome ou com outro, e transitam de uns romances para outros. Por exemplo, neste romance Bébert aparece também como Cascade, e também se chama Julien Boisson. Ocorre que Bébert era também o nome do gato predilecto de Céline, que o acompanhou no exílio e ao qual Frédéric Vitoux dedicou um livro.

Sendo verdade que Céline é um dos maiores escritores franceses do século XX, quer pelo conteúdo, quer pela forma, também é verdade que esta lhe vai retirando progressivamente leitores. Céline utiliza nas suas obras uma linguagem vigorosa, mesmo violenta, empregando um vocabulário popular e do mais vernáculo calão. Acontece que, com o passar dos anos, muitos dos termos empregados pelo escritor não só caíram em desuso como se tornaram ininteligíveis. Não falando já dos estrangeiros, mesmo os franceses, especialmente os jovens, são incapazes de compreender hoje a prosa céliniana sem auxílio de um apropriado dicionário. Esta a razão por que os editores incluíram em apêndice ao livro não só um "Repertório das Personagens Recorrentes" como um "Léxico da Língua Popular, de Calão, Médica e Militar". E também um motivo por que é muito difícil traduzir Céline e a tradução dos seus livros resulta sempre imperfeita, carecendo sistematicamente de notas. São poucos os seus livros traduzidos em português. De repente, recordo-me de Viagem ao fim da noite e de Morte a crédito

Oportunamente, e depois de ler Londres, deixarei algumas notas neste blogue.


domingo, 29 de janeiro de 2023

TURGENIEV, UM RUSSO OCIDENTALIZADO

Foi o século XIX uma Idade de Ouro da Literatura Russa. Basta apontar seis escritores: Aleksandr Pushkin (1799-1837), Nikolai Gogol (1809-1852), Ivan Turgeniev (1818-1883), Fiodor Dostoievsky (1821-1881), Lev Tolstoi (1828-1910) e Anton Tchekhov (1860-1904).

São variados os temas, os estilos e as concepções políticas e religiosas destes autores que marcaram indelevelmente a sua época. Ivan Sergeievitch Turgeniev, de que nos ocupamos hoje, foi de todos o mais ocidentalizado. Com praticamente a mesma idade de Dostoievsky, as relações entre ambos conheceram períodos difíceis, devido a uma certa sedução de Turgeniev pelo Ocidente, onde passou a parte final da sua vida, e a que não terá sido alheia a recordação da atracção sentida por Pedro, o Grande e até por Catarina II, ainda que em graus diferentes. É que Turgeniev afastou-se mesmo  de valores caros ao património espiritual ortodoxo, atitude "herética" aos olhos de Dostoievsky, cujo pan-eslavismo está estampado nas suas obras, encerrando as contradições, as crises e as angústias do famoso escritor. Mas ambos reconheciam mutuamente o respectivo valor literário.

Nesta obra, Pais e Filhos (Отцы и дети) (1862), Ivan Turgeniev apresenta-nos o confronto de duas gerações russas da sua época, protagonizado por Evgeni Bazarov Vassilievitch, jovem nihilista e contestatário da ordem estabelecida e Arkadi Nikolaievitch Petrovitch, seu amigo e "discípulo" e os pais de ambos, acrescentando ao enredo outras personagens das respectivas famílias ou exteriores a elas, mas sempre num círculo de relações próximas.

Escreveu Vladimir Nabokov num posfácio à obra: «Pais e Filhos não é só o melhor romance de Turgeniev, mas também um dos maiores romances do século XIX. Turgeniev conseguiu fazer aquilo a que se propôs: criar um personagem masculino, um jovem russo, que afirmasse a sua - do personagem - ausência de introspecção e que, ao mesmo tempo, não fosse uma marioneta nas mãos de um repórter social. Bazarov é um homem forte, sem dúvida - e muito possivelmente, tivesse ele vivido além dos vinte anos (acaba de sair do liceu quando o conhecemos), ter-se-ia tornado um grande pensador social, um médico famoso ou um revolucionário activo, para lá dos limites do romance. Mas havia uma debilidade comum à natureza de Turgeniev e à arte: ele era incapaz de fazer triunfar os seus personagens masculinos nas vidas que para eles criava. Além disso, existe no carácter de Bazarov, por detrás da sua arrogância e ambição, e da violência da sua frieza, um rasgo de entusiasmo juvenil e natural que este tem dificuldade em conjugar com a inflexibilidade de um niilista em potência. [...] Notará também que Arkadi é de uma natureza bem mais gentil e simples que Bazarov. Debruçar-me-ei sobre uma série de passagens que são especialmente expressivas e significativas. De salientar, por exemplo, a seguinte situação: o velho Kirsanov, pai de Arkadi, tem aquela amante discreta, carinhosa e encantadora Fenitchka, uma rapariga do povo. Ela é um dos tipos passivos de jovens mulheres de Turgeniev, e à volta deste centro passivo giram três homens: Nikolai Kirsanov e também Pavel, o seu irmão, que por alguma reviravolta da memória e da imaginação vê nela certas parecenças com uma antiga paixão sua, uma paixão que iluminou toda a sua vida. E há ainda Bazarov, que nos é mostrado a seduzir Fenitchka, uma corte casual que vai provocar um duelo. No entanto, não Fenitchka mas a tifo será a causa da morte de Bazarov.»

É atribuída a Turgeniev a paternidade da palavra "nihilista", numa altura em que as preocupações sociais se começavam a revelar na Rússia. Terá sido mesmo um livro seu, Zapiski Okhotnika (Записки охотника) (Memórias de um Caçador) (1852) que levou o Tsar Alexandre II a proceder à emancipação dos servos (1861).

As convicções ocidentalizantes de Turgeniev e a falta de "religiosidade" da sua obra mantiveram-no afastado de Dostoievsky e de Tolstoi, mas o escritor manteve uma amizade com Flaubert com quem tinha afinidades sociais e estéticas.


sábado, 21 de janeiro de 2023

A AURORA DE AMARNA

Leio agora Amarna Sunrise - Egypt from Golden Age to Age of Heresy (2014, 2016), de Aidan Dodson (n. 1962), egiptólogo britânico de renome e professor da American University in Cairo.

Começa o autor por abordar a aurora da Idade de Ouro do Império Novo, iniciada com Ahmés I (ou Ahmosis), fundador da XVIII Dinastia, que desencadeou acções militares que expandiriam o país até às margens do Eufrates e à Núbia e que seriam consolidadas por Tutmés I. O esplendor deste período, mantido pelos seus sucessores, conduziria à "revolução" de Akhenaton e ao episódio de Amarna, que representou algo de completamente novo no Egipto. O reinado de Tutmés III e de sua "madrasta" Hatchepsut é um ponto culminante, durante o qual foi construída grande parte do templo de Amon, em Karnak. 

Apresso-me a dizer que neste livro o autor considera Smenkhkare como irmão de Akhenaton, quando em outra obra sua, anterior, escrita de parceria com Dyan Hilton (The Complete Royal Families of Ancient Egypt - 2004), o considerara como filho e, por isso, como irmão de Tut-Ankh-Amun. A questão das genealogias reais da XVIII Dinastia, apesar dos sucessivos exames de ADN das múmias, permanece um enigma de difícil solução. Assim não é (ainda) possível estabelecer o parentesco exacto dos membros da Família Real desta Dinastia, nomeadamente no tempo de Amenhotep III, Akhenaton e Tut-Ankh-Amun. 

Trata-se de uma obra de elevado nível científico, em que a matéria é desenvolvida com grande pormenor, Acessível a todos os apaixonados pelo Antigo Egipto, é certo que ela aproveitará mais a quem possua uma razoável cultura egiptológica e, especialmente, a quem saiba interpretar a escrita hieroglífica, já que o autor recorre por vezes a textos da época. Inclusive, são feitas em letras latinas algumas transcrições de textos hieroglíficos, o que exige um suficiente conhecimento dessa escrita.

O livro é profusamente ilustrado mas a preto e branco, e as imagens são muitas vezes pouco nítidas. São incluídos numerosos mapas e muitas plantas de templos e túmulos, e mesmo de cidades. E é apresentada a alteração dos planos dos túmulos dos faraós da XVIII Dinastia.

Depois de um resumo dos feitos militares e dos acontecimentos políticos dos reinados dos primeiros faraós desta Dinastia, Dodson aborda a questão da introdução do culto do disco solar, Aton. «However, the question remains wheter the Aten is here yet a 'god' (in the sense and form in which it is later worshiped in Karnak and Amarna), or merely the divine personification of the globe of the sun - a subtly different thing, as already noted (cf. pp 34-35). The ambiguity remains in the vast majority of mentions of the Aten during the reign of Amenhotep III, which can all be referred to the divine physical globe of the sun just as well as some 'god'. A key issue remains wheter a number of individuals holding sacerdotal or administrative titles citing an estate of the Aten shoul be dated to the reign of Amenhotep III or to that of Amenhotep IV. On the other hand, references to the Aten greatly multiply during the reign and, however it is to be defined, the Aten becomes a very significant divine entity as the reign progresses.» (p. 51)

Assim, é provável que o culto de Aton tivesse já começado, ainda que de forma subliminar, no reinado de Amenhotep III, embora só viesse a assumir a sua plenitude nos primeiros anos de Amenhotep IV (Akhenaton). Durante o reinado de Akhenaton, o culto dos antigos deuses não foi completamente interditado em todo o país [Ptah continuou a ser adorado em Mênfis] mas houve sérias tentativas de dissuasão. Todavia, em Akhetaton (Amarna) não há vestígios de outro culto além do de Aton. Especialmente proscrito foi o deus Amon, mesmo no seu grande templo de Tebas. 

O autor transcreve, das paredes do túmulo de Ay, o Hino a Aton, que não reproduzo por ser muito extenso. Nesta celebração de Aton, como criador universal e suporte da vida, é interessante notar que, na secção final, Akhenaton é considerado como o único interlocutor de deus e o único com conhecimento dos planos divinos.

No livro, Aidan Dodson menciona as datas (o que é muito correcto) com referência aos anos de reinado, como faziam os antigos egípcios. Todavia, para o leitor de hoje é mais confortável a menção segundo a nossa cronologia, o que hoje é possível, ainda que algumas datas possam não ser tidas como definitivas.

Também é objecto de análise o tipo de relações exteriores do Egipto nesta época, através da correspondência trocada com outros soberanos. Amenhotep III manteve especiais contactos com Micenas, com a Assíria, com Mittani, com Babilónia e om os estados vassalos da Síria e Palestina. Uma das suas últimas esposas foi Tadukhipa, filha do rei Tushratta, de Mittani, que poderá ter sido conhecida como Kiya, uma das esposas de Akhenaton.

O autor preocupa-se igualmente com os baixos-relevos dos templos e dos túmulos, através dos quais consegue estabelecer as decorações da época e as ligações familiares de muitas personagens históricas.

Uma questão permanece em aberto. Quais as razões que levaram Amenhotep IV a mudar o seu nome para Akhenaton (o que é útil pra Aton) e a fundar em Amarna uma nova capital, Akhetaton (horizonte de Aton). E porque estabeleceu a quase exclusividade do culto do disco solar (Aton)? E quando?

Segundo Dodson, Akhenaton terá reinado de 1337 a 1321  A.C., tendo associado seu irmão (?) Smenkhkare como co-regente de 1325 a 1323 A.C., havendo também uma co-regência de Neferneferuaten (Nefertiti ?) de 1322 a 1319 A.C. A construção de Akhetaton terá tido início nos primeiros anos do reinado de Akhenaton, na margem oriental do Nilo e as escavações mais recentes demonstram que foi uma importante cidade, habitada não só pela corte, que se transferira de Tebas, mas por numerosa população, albergando numerosos palácios, templos, entrepostos comerciais e uma vasta necrópole. 

O Ano 12 do reinado de Akhenaton foi o culminar do triunfo da nova ordem, com as grandes celebrações do Durbar, a grande recepção real. Mas estas festividades trouxeram desgraça ao Egipto, incluindo uma peste que matou vários membros da família real. Cinco anos mais tarde, o faraó e parte da sua família estavam mortos. Por morte de Akhenaton sucedeu-lhe seu jovem filho Tut-Ankh-Aton, ainda em Amarna. Mas ao fim de três (ou quatro) anos, e já com o nome mudado para Tut-Ankh-Amon, o novo faraó regressou a Tebas com a corte e restabeleceu o antigo culto de Amon. Ainda permaneceu muita gente em Amarna, incluindo Nefertiti, mas a população foi abandonando progressivamente a cidade, que acabou por ficar deserta. Só nas décadas mais recentes foi possível avaliar da importância de Amarna e mesmo da receptividade que o culto de Aton teve em grande parte da população egípcia.

A reconstituição histórica dos acontecimentos tem sido difícil dado o hábito, especialmente nesta XVIII Dinastia, de apagar as inscrições hieroglíficas e substitui-las por outras mais conformes com o momento. Assim, muitos monumentos têm o nome do construtor trocado pelo faraó seu sucessor. Por exemplo, as referências a Hatchepsut, filha de Tutmés I, casada com seu meu irmão Tutmés II, e sogra e madrasta de Tutmés III, a grande mulher-faraó que governou o Egipto durante 15 anos foram apagadas na generalidade dos monumentos.

As inscrições visíveis dos nomes de Akhenaton, Smenkhkare e Tut-Ankh-Amun foram apagadas pelos seus sucessores mas permaneceram as indispensáveis para se poder reconstituir, ainda que parcialmente, a sua história.

Não dispomos ainda de informação definitiva sobre as razões que levaram Amenhotep IV a adoptar o nome de Akhenaton e a construir uma nova capital em Amarna. Como se referiu, o culto do disco solar começara já no reinado do seu antecessor. Também é verdade que Akhenaton detestava os sacerdotes de Amon, que constituíam uma casta especial, detinham grandes poderes e especialmente grandes riquezas. A eliminação, pelo menos parcial do culto de Amon era para o faraó um desígnio não só religioso mas político.

Com o ocaso do novo culto, também a mulher (e irmã) de Tut-Ankh-Amun, Ankhesenpaaton, passou a chamar-se Ankhesenamun.

Encontraram-se no Wadi Real de Amarna dois túmulos inacabados (TA 29 e 27), que seriam destinados a Tut-Ankh-Amun e à mulher, se o poder continuasse a ser exercido na cidade.

O período de Amarna caracterizou-se também por uma nova forma de Arte, como é evidenciado pelas esculturas da época, e até por uma nova forma de vida.

Continuaremos com o crepúsculo de Amarna, em próximo post.

NOTA: Usámos indistintamente os nomes de Amon ou Amun, que também se escreve Amen. Tal como Aton, Atun ou Aten. Cada autor utiliza a grafia que considera mais correcta, não havendo vogais na escrita hieroglífica.


terça-feira, 17 de janeiro de 2023

O CARDEAL NACIONAL

A propósito de uma referência que ontem fiz ao livro Le Cardinal d'Espagne (1960), de Henry de Montherlant, no caso Francisco Ximenez de Cisneros, que Carlos-Quinto considerava o Cardeal de Espanha, lembrei-me do livro O Cardial Nacional (1943), do Padre José de Castro.

Passo a transcrever alguns parágrafos da Introdução:

«Cardial Nacional se chama o livro; e com este título se indica o privilégio de Portugal a ter no Sacro Colégio mais um purpurado que o Patriarca de Lisboa, e também todos os portugueses que, mercê desse direito, fizeram parte do Senado mais alto do Mundo, a coroa das Eminências que cercam e servem o Sumo Pontífice. E partiu-se do Cardial Dom Veríssimo de Lencastre (1686) por ter sido a sua promoção a primeira feita a Portugal como potência católica de primeira ordem, ao lado da Espanha, da França e da Áustria, e por ser aquela que abriu caminho às outras a reboque das nomeações que os nossos caluniados Reis fizeram "pela justiça que lhes assistia, e pela graça de Sua Santidade".

Isto não quere dizer que antes os Pontífices não tivessem escolhido alguns portugueses para os agraciar com a dignidade cardinalícia. Escolheram-nos e até em condições de engalanar a nossa vaidade nacional, pois foram preferidos pela iniciativa pessoal dos Sumos Pontífices e num tempo em que o Sacro Colégio não contava mais de 20 cardiais. Era preciso que o valor dos escolhidos fosse imenso para que D. Pedro Julião, arcebispo de Frascati (antes arcebispo de Braga e depois Papa João XXI) e o arcebispo de Braga D. António Alurtz fossem criados cardiais por Gregório X (1271-1276).

Porque depois, com Celestino V (1294) no sólio pontifício até ao Papa João XXIII (1410-1415) alguns purpurados passaram a ser nomeados a pedido dos seus Príncipes, como Celestino V fez a Carlos II, rei de Nápoles e da Sicília, e como fez João XXIII ao rei de Portugal, D. João I, criando a seu pedido, em 1411, o arcebispo de Lisboa, D. João Afonso Esteves.

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Com Paulo IV (1555-1559) o número dos cardiais foi reduzido a 40. E, no pontificado de Júlio III, Carlos V renovou ao Pontífice instância igual à do Rei de França, Luís XI: não escolher Cardiais nos seus domínios sem consulta prévia. Depois que Xisto V (1585-1590) pela célebre Bula "Postquam", publicada no primeiro ano do seu governo, estabeleceu que o número dos Cardiais fosse de 70, a exemplo dos 70 velhos, dados por Deus a Moisés para melhor governo do seu povo, - 6 bispos suburbanos, 50 presbíteros e 14 diáconos - as Nações católicas passaram a pedir o chapéu cardinalício para súbditos seus, e deste pedido se passou à nomeação, tendo cada uma direito a ter no Sacro Colégio um Cardial, chamado Cardial da Coroa ou Cardeal Nacional. Este direito não impedia o Sumo Pontífice de promover por sua iniciativa pessoal súbditos das nações católicas, como sucedeu em 1697 ao arcebispo de Lisboa, Dom Luís de Sousa, ou determinar, por direito escrito ou consuetudinário, que este ou aquele prelado diocesano tivesse inerente à sua diocese a dignidade cardinalícia no primeiro consistório a realizar após a sua preconização episcopal, como respectivamente sucede com o Patriarca de Lisboa e com o arcebispo de Toledo e outros bispos da cristandade.

Quando Xisto V publicou a Bula a fixar em 70 o número dos Cardiais, nós, os portugueses, tínhamos perdido a independência; e, depois de recuperada, só entrámos em relações de boa amizade com a Santa Sé feita a paz com a Espanha e em condições de termos, como as outras nações, o nosso Cardial Nacional, primeiro pedido, como fez D. Pedro II, e mais tarde nomeado, como fizeram D. João V e os Reis seus sucessores.»

ALGUMAS NOTAS MINHAS.

1) Frascati é um bispado e não arcebispado;

2) O Papa João XXIII, a que é feita referência, ainda era considerado papa na altura em que foi escrito o livro. Posteriormente, passou a ser considerado antipapa (não sei porquê dado que outros em idênticas circunstâncias o não foram) razão pela qual o cardeal Angelo Roncalli, quando foi eleito papa em 1958, assumiu o nome de João XXIII. O antipapa João XXIII está sepultado no Baptistério de Florença e tive ocasião de fazer uma fotografia do seu túmulo;

3) Mário Soares, apesar de agnóstico, depois da sua eleição como presidente da República tentou recuperar a figura do Cardeal Nacional. Recordo-me da discussão havida na altura, mas a pretensão não teve consequências, nem sei mesmo se chegou a ser efectuada alguma diligência formal;

4) O Papa Francisco quebrou a tradição (ignoro se existe disposição escrita) de nomear cardeal o Patriarca de Lisboa no primeiro consistório a seguir à respectiva nomeação. O Patriarca D. Manuel Clemente só foi elevado a Cardeal no segundo consistório convocado pelo Papa Francisco.

 * * *

No presente livro, de cerca de 500 páginas, são apresentadas as biografias de treze cardeais nacionais, de Dom Veríssimo de Lencastre (1615-1692) a Dom Américo Ferreira dos Santos Silva (1830-1899).


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

TUT-ANKH-AMUN (3)

Prosseguindo na (re)visitação de obras sobre o Egipto Antigo, li agora O Caso Tutankhamon (1995), no original L'Affaire Toutankhamon (1992), de Christian Jacq (n. 1947).

O autor é um conhecido escritor francês, autor de uma cinquentena de livros, dedicados especialmente ao Egipto, situados entre a história e a ficção, uma parte dos quais a Bertrand editou nos anos noventa do século passado.

Retoma esta obra a descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, no Vale dos Reis, fazendo todavia recuar a narrativa à infância de Howard Carter, o descobridor, e de Lord Carnarvon, que subsidiou durante anos as pesquisas que conduziram ao achado. 

Importa referir desde já que a tradução é medíocre e mesmo muito má no que toca aos nomes próprios. Em matéria de nomes próprios, quer hieroglíficos, quer árabes, as melhores transliterações são, inegavelmente, as inglesas. Em relação à língua árabe, as traduções francesas são um desastre.

Neste livro, Christian Jacq recria o percurso familiar e afectivo de Carter e Carnarvon até ao encontro destes, e debruça-se depois sobre as nem sempre fáceis relações entre ambos (os dois tinham mau feitio), que não impediram contudo uma colaboração activa que se saldaria pela descoberta do único túmulo faraónico encontrado (quase) intacto até aos nossos dias.

Tem a obra mais de 500 páginas e a parte não respeitante ao encontro da tumba (que todos conhecemos através das muitas centenas de livros já publicados) é predominantemente ficcional, embora alguns aspectos tenham carácter biográfico. A parte propriamente histórica não traz novidades, embora haja algumas imprecisões e até alguns disparates. 

Não pude naturalmente confirmar se Carter durante a permanência no Egipto, teve uma amante local  muçulmana, nem se teve uma paixão pela filha de Lord Carnarvon, e algumas das personagens que aqui circulam em terras do Nilo são obviamente fictícias. Outras são realmente históricas, embora nem todas as verdadeiras figurem no texto, mas como o livro original foi publicado em 1992 (há 30 anos) poderá dar-se o caso das mais recentes investigações na matéria não serem do conhecimento de Christian Jacq.

Também é interessante que o autor mencione, coisa menos bem conhecida, os contactos havidos entre Calouste Gulbenkian e Howard Carter, mencionados no catálogo da recente exposição "Faraós Superstars". De facto, Gulbenkian consultou Carter antes de alguma aquisições de obras egípcias, e até adquiriu outras por seu intermédio. 

As muitas repetições de situações ao longo do texto tornam o livro demasiado extenso. Parece que o autor pretendeu escrever um tão grande número de páginas apenas para editar uma obra volumosa. Uma leitura que se revelara interessante no início torna-se fastidiosa à medida que nos aproximamos do fim.

Termino, notando que os episódios finais relativos à descoberta do sarcófago, dos caixões interiores e da múmia são confusos e não se encontram descritos de acordo com as obras de egiptologia que relatam o acontecimento, a começar pelas próprias "memórias" de Howard Carter.


quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

AKHENATON, O RENEGADO

A propósito dos posts que tenho publicado sobre o Egipto faraónico e o centenário da descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, recordei-me de um livro que possuo, e que nunca tinha lido, Akhénaton, le renégat (1985), em árabe العائش فى الحقيقة,  Al'ayish fa alhaqiqa, "A vida de facto", traduzindo à letra, de Naguib Mahfuz. Li-o agora. Trata-se de um texto breve, mas interessante, sobre a figura do herético faraó Akhenaton, que é hoje praticamente aceite como sendo o pai de Tut-Ankh-Amun. Aliás, o próprio Mahfuz também não foi um escritor ortodoxo. Alguns dos seus escritos valeram-lhe dissabores, como, por exemplo, o livro : أولاد حارتنا, Awlad haratina, literalmente "As crianças da vizinhança", (em francês, Les fils de la médina, em inglês, Children of Gebelawi), onde estabelece ligações entre as três religiões monoteístas (o judaísmo, o cristianismo e o islão). Este livro, que foi proibido, valeu-lhe ameaças de morte e, apesar de protecção policial, o escritor foi apunhalado na cara em 1994, quando tinha 82 anos e se encontrava fora da sua residência no Cairo. Desde então, Mahfuz ficou fisicamente impossibilitado de escrever várias horas por dia e passou a dispor de guarda-costas em permanência. Essa obra pôde ser finalmente publicada no Egipto, já postumamente, em 2006. Mas a produção literária do escritor diminuiu consideravelmente depois do atentado.

Foi Naguib Mahfuz (1911-2002) um imenso romancista e também o primeiro (e até hoje o único) árabe a receber o Prémio Nobel da Literatura. Autor de vastíssima obra - mais de 50 títulos - o Nobel nada lhe acrescentou, foi o nome dele que honrou o tão desprestigiado Nobel. Diga-se que Mahfuz não se deslocou a Estocolmo para receber o galardão. As viagens desagradavam-lhe e a única capital estrangeira onde se deslocou foi Belgrado, devido ao grande amor que dedicava à Servia. Os seus romances sobre a vida no seu país pintam um quadro realista da miséria física e moral dos seus compatriotas, que ele tão bem conhecia, nomeadamente nos romances que constituem a Trilogia do Cairo, obra-prima da literatura e que foram passados ao cinema com um êxito incomensurável.

Em Akhénaton, le renégat, Mahfuz debruça-se sobre o episódio de Amarna, o tempo em que foi venerado no Egipto o deus Sol, Aton, um culto introduzido pelo faraó Akhenaton (Amenhotep ou Amenófis IV), que transferiu a capital do país de Tebas para Amarna, que passou a ser designada Akhetaton (Horizonte de Aton).

Considerado herético, Akhenaton foi renegado pelas elites e por uma parte do povo, mas especialmente pela classe dos sacerdotes de Amon, que, com a nova "religião", se viram desapossados das suas riquezas e de muito dos seus rendimentos.

No livro, Mahfuz põe em cena o jovem Méri Moun que, viajando com o pai de Saïs para Panopolis, avista as ruínas de Amarna, a cidade ímpia e maldita, onde ainda habitava a rainha Nefertiti. Inquirindo sobre um passado que desconhece, e que lhe suscita o interesse, Méri Moun obtém do pai cartas de apresentação para aqueles que foram testemunhas dos acontecimentos desse tempo "revolucionário" e que sobreviveram, ao contrário do próprio Akhenaton, à queda do culto solar. Isto, porque Méri Moun quer saber a exacta verdade e argumenta que nunca se pode julgar uma causa sem ouvir as duas partes.

No livro, Naguib Mahfuz considera Akhenaton como irmão de Semenkhkare e de Tut-Ankh-Amun, o que não é verdade. Está hoje (quase) confirmado que Semenkhkare e Tut eram filhos de Akhenaton. Desconheceria Mahfuz este grau de parentesco na altura em que escreveu (as investigações mais aprofundadas são recentes) ou estabeleceu intencionalmente tal afinidade? Não sabemos.

Começa Moun por visitar o Grande Sacerdote de Amon, no templo de Tebas, o principal inimigo de Akhenaton, por óbvias razões. O faraó retirara a maior parte dos proventos do culto de Amon, cujos sacerdotes ficaram privados das sua fontes de rendimento. O Grande Sacerdote insiste em descrever Akhenaton como feminino e lascivo, embora inteligente e instruído. Mas considera que o seu reinado foi uma tragédia para o Egipto.

Depois, Moun visita o velho Ay, o sábio conselheiro de Akhenaton, pai de Nefertiti e que viria a suceder no trono a Tut-Ankh-Amun. O velho mestre converteu-se à nova religião mais pelas circunstâncias do que pela convicção.

A  seguir, o jovem visita Horemheb, que foi Chefe da Guarda Real e companheiro de juventude do faraó, ao qual estava ligado por sólidos laços de amizade, embora tivessem feitios muito diferentes. Horemheb viria a suceder a Ay no trono e conta ao rapaz a influência de Nefertiti sobre Akhenaton e também a da Grande Esposa Real, a rainha Tiÿ. Mas a inflexibilidade religiosa de Akhenaton leva Horemheb a abandoná-lo, apesar daquele ter nomeado Semenkhkare como co-regente. Akhenaton fica sozinho em Amarna, Nefertiti foge para um palácio fora do centro da cidade, e as altas figuras do reino proclamam Tut-Ankh-Amun como sucessor. Entretanto, Akhenaton adoece e acaba por morrer. 

Interrompo a digressão de Méri Moun para dizer que, como é natural, este livro é também uma meditação, e uma mensagem, de Naguib Mahfuz sobre o poder, a religião, as (in)conveniências políticas, o amor, a lealdade, a coragem

Prosseguindo, Moun visita Bek, o escultor, que vive retirado no sul de Tebas e que era filho do grande escultor do tempo de Amenhotep III. Bek , que era da mesma idade de Akhenaton, conheceu este em jovem, e ambos se ligaram de profunda amizade, dir-se-ia mesmo amor. Adorou convictamente o novo deus Aton e foi o responsável pela construção de Akhetaton, no sítio de Amarna, à frente de numerosa equipa de arquitectos e operários. Teria sido mesmo Bek o autor do célebre busto de Nefertiti, hoje em Berlim. Ele acusa a rainha de ter abandonado Akhenaton e, por vingança, ter-lhe-á mutilado o olho esquerdo!

Continuando o périplo, Méri Moun avista-se com Tadoukhépa, filha de Dushratta, rei de Mitanni, que Amenhotep III desposou no fim da vida e que ficou a fazer parte do harém real; Tutu, sacerdote e antigo vizir; Tiï, a segunda esposa de Ay (não confundir com Tiÿ) e mãe de Mut Nédjémet; a própria Mut Nédjémet, que considerava Akhenaton e Nefertiti autênticos heréticos; Méri-Rá, ex-Grande Sacerdote de Aton, que fora um verdadeiro crente no novo deus, talvez um amante do faraó, e agora vivia modestamente sem companhia ou criados; May, comandante do exército; Mahu, chefe da polícia, que fora um simples soldado com quem Akhenaton se cruzou uma vez nos jardins do palácio, de quem gostou, e  que mais tarde promoveu para chefiar a polícia, e que foi constrangido por Horemheb a abandonar o faraó no momento final; Nakht, que fora vizir de Akhenaton e se encontrava agora afastado do novo poder; Bantu, o médico pessoal, que continuou a exercer funções no reinado seguinte de Tut-Ankh-Amun, que não conseguiu salvar Tutmés, o irmão mais velho de Akhenaton, nem Mikétaton, a filha de Akhenaton e de Nefertiti.

Finalmente, e graças a uma autorização de Horemheb, Méri Moun consegue visitar Nefertiti, a filha de Ay, que sucedeu a Tut-Ankh-Amun, em cujo reinado é suposto decorrer a acção descrita no livro. A rainha, reclusa no seu palácio, descreve os últimos dias do império de Amarna. Confessa-lhe que a morte de sua filha Mikétaton se terá devido a um sortilégio dos sacerdotes de Amon. E evoca a visita da rainha Tiÿ, que a previne da rebelião iminente se o faraó não arrepiar caminho na sua obsessão por Aton e no seu desinteresse pelas coisas públicas. Mas diz a Tiÿ que o deus não os abandonará. Parece que a sua adoração terá sido sincera e não movida pelo interesse. Recorda também a sucessiva visita de Ay, Nacht e Horemheb, mas nada demoveria Akhenaton. Por isso, Nefertiti afirma que ao abandonar Akhenaton, mudando-se para outro palácio mais isolado em Akhetaton, o fez para tentar que, vendo-se sozinho, Akhenaton cedesse às pressões da corte. Mas nada convenceria o faraó que seria deposto e morreria pouco depois. Tut-Ankh-Amun seria proclamado como novo faraó.

Todas as entrevistas de Méri Moun têm por objectivo a procura da verdade, no meio das mais variadas considerações que as personagens visitadas tecem sobre Akhenaton, umas favoráveis, outras desfavoráveis, mas que apenas a leitura do livro permite elucidar. Foi o faraó um político poderoso ou um verdadeiro crente? Todos enfatizam, todavia, a "religião do amor", que ele não se cansava de proclamar. 

Ao regressar a Saïs, Méri Moun conta longamente ao pai o seu périplo. Conta-lhe tudo excepto dois segredos, que o livro regista:

«Ma passion grandissante pour les chants sacrés; et mon admiration profonde pour la belle recluse.»

Como já escrevi, este livro é também um manifesto político e social (e religioso) de Naguib Mahfuz, e este texto sobre acontecimentos no século XIV A.C. do Egipto tem algo a ver com o Egipto do século XX, quando o escritor o concebeu. A XVIII Dinastia (e depois a XIX) foi um período dos mais interessantes da história do Egipto.


BENTO XVI

Realizaram-se hoje, na Praça de São Pedro, as cerimónias fúnebres do sepultamento do Papa Emérito.

Bento XVI foi uma figura controversa. Considerado como teólogo progressista aquando do Concílio Ecuménico Vaticano II, foi, depois de elevado ao sólio pontifício, acusado de ser integrista, reaccionário e até nazi. Nem uma coisa, nem outra.

Não tenho eu competência para me pronunciar sobre o magistério de Bento XVI, mas penso que tinha uma certa ideia do seu múnus não compatível com o materialismo contemporâneo. 

A Igreja Católica Apostólica Romana sofreu grandes modificações com o Concílio Vaticano II, as maiores desde o Concílio de Trento. A própria designação do Concílio foi objecto de polémica. Como é conhecido, decorria em Roma o I Concílio do Vaticano, convocado por Pio IX, quando, em 1870, Roma foi tomada pelo exército de Vítor Manuel II, já então intitulado rei de Itália. O Concílio foi então suspenso mas não encerrado. Quando, em 1962, o papa João XXIII convocou um novo concílio ecuménico, colocou-se a questão se saber se era um segundo concílio do Vaticano ou a segunda parte do I Concílio do Vaticano. Os peritos, sempre hábeis em encontrar fórmulas, entenderam denominá-lo Concílio Ecuménico Vaticano II, o que satisfez ambas as opiniões.

Com o Concílio Vaticano II, João XXIII pretendia um certo aggiornamento da Igreja. Houve prolongadas discussões sobre os mais variados aspectos eclesiais, no sentido mais amplo. Tão longas, que o Concílio só seria encerrado pelo papa Paulo VI. Desde então, muita coisa mudou na Igreja, na Igreja e no mundo. João XXIII e Paulo VI eram homens de bem, mas talvez não tenham sabido, ou podido, encontrar a justa medida das transformações da Igreja. O pontificado seguinte, de João Paulo I, foi tão breve que não permitiu qualquer intervenção no seio da comunidade. E o pontificado posterior, de João Paulo II, muito comprometido com um certo "ocidentalismo" que haveria de produzir as mais trágicas consequências, não foi de molde a resgatar a Igreja de alguns "erros" do passado recente.

Coube a Bento XVI a tarefa de re-orientar, num mundo globalizado, para o bem e para o mal, a presença da Igreja, enquanto organização multissecular e comunidade de fiéis. A História julgará o seu pontificado.


domingo, 1 de janeiro de 2023

FARAÓS NA GULBENKIAN

Visitei, há dias, a exposição "Faraós Superstars", na Fundação Calouste Gulbenkian. O título da exposição mereceu-me, desde o início, as maiores reservas e por isso ainda hesitei em deslocar-me. Mas faraós são faraós e não resisti. É certo que a civilização do Antigo Egipto, depois da expedição napoleónica, e especialmente após a descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amun, tem servido para os fins mais diversos, nomeadamente de natureza comercial. E, no tempo presente, em que tudo se confunde, nada melhor do que evocá-la para atrair o interesse das massas.

Estava seguro de não encontrar significativas peças originais da época faraónica mas o que vi foi ainda inferior ao esperado. Pretendem os organizadores da mostra que a sua intenção foi revelar a projecção na vida quotidiana dos esplendores do Antigo Egipto e, nesse aspecto, a exposição preenche, ainda que modestamente, o objectivo. Mas creio que o grande público aguardava, ingenuamente, uma exposição mais em consonância com as que foram apresentados, há anos, em Paris, Londres ou outras capitais. Infelizmente, Lisboa não pode aspirar a tanto. Devo à Providência ter visitado os acervos egípcios do Cairo, Paris, Londres, Berlim, Viena, Roma, São Petersburgo, etc. Falhei Turim, mas não se pode ter tudo.

Ocorre que as peças da presente exposição se apresentam, em minha opinião, segundo um critério que, não sendo museologista, me parece desordenado. E pior: mal iluminadas, como vem sendo hábito nas últimas exposições, e com as legendas colocadas nos expositores a uma altura que obriga as pessoas a curvarem-se ou mesmo a ajoelharem-se para conseguirem ler o que está escrito.

A exposição foi concebida pelo egiptólogo Frédéric Mougenot e apresentada precedentemente no MUCEM - Musée des civilisations de l'Europe et de la Méditerranée, em Marselha, sendo igualmente curador, nesta mostra da Gulbenkian, o director-adjunto do Museu Gulbenkian, João Carvalho Dias. Emprestaram obras museus da Bélgica, França, Itália e Reino Unido, e também Portugal (Fundação Gulbenkian, Biblioteca Nacional, Cinemateca Portuguesa, Sociedade de Geografia, Museu Nacional de Arte Antiga, etc.). Além de coleccionadores particulares nacionais e estrangeiros.

A exposição evoca também a ligação que existiu entre Calouste Gulbenkian e Howard Carter, que descobriu o túmulo de Tut-Ankh-Amon. Sendo o senhor Gulbenkian um apaixonado coleccionador de Arte, de todas as épocas, algumas das peças egípcias da sua Colecção foram obtidas graças ao conselho avisado de Howard Carter.

Segundo a Introdução do Catálogo, de Frédéric Mougenot, a ideia da exposição (a projecção no mundo actual do Egipto faraónico), deveu-se à sua descoberta, em 2003, de um preservativo de látex com a marca Ramses, alusão ao célebre Ramsés II, que governou o Egipto de 1279 a 1213 A.C., e às repercussões no mundo de hoje dos nomes e imagens dos tempos faraónicos.

Importa dizer que o Catálogo desta exposição está esteticamente em harmonia com os de outras exposições realizadas naquela Galeria e inclui alguns textos interessantes, bem escritos e que se afiguram cientificamente correctos, considerando que a Egiptologia é ainda um livro aberto sempre pronto a receber aditamentos e rectificações. Desde 1822, data em que Jean-François Champollion conseguiu decifrar a escrita hieroglífica, e especialmente desde 1922, data em que Howard Carter descobriu o túmulo de Tut-Ankh-Amon, o Antigo Egipto não pára de revelar-nos surpresas e, por isso, não são ainda muitas as coisas que hoje se podem considerar como definitivamente aceites.

Em grande parte das imagens reproduzidas no Catálogo (que é magnificamente ilustrado) não é indicada na legendagem (na página respectiva) a proveniência das obras.

Os textos didácticos do Catálogo, para lá de nos informarem do que imediatamente sabemos, relembram-nos coisas porventura esquecidas e outras quiçá mesmo ignoradas. Por exemplo: os reis do Antigo Egipto só começaram a ser chamados faraós a partir da XVIII Dinastia; a mulher oficial do rei não tinha o título de rainha mas de Grande Esposa Real; os faraós foram sempre homens (com excepção da célebre Hatchepsut, que até é representada com barba para o cumprimento do ritual masculino), salvo na última Dinastia (Ptolemaica) em que existiram algumas Cleópatras; o faraó Pepi II manteve uma relação homossexual com o general Sasenet, comandante do Exército; o cumprimento do princípio da damnatio memoriae, que levava a mutilar estátuas e rasurar inscrições hieroglíficas de faraós que se tinham tornado malditos ou inconvenientes, e tinham sido proscritos, como a "mulher-faraó" Hatchepsut ou os renegados Akhenaton e sua mulher Nefertiti, que não tinham respeitado o maet, o princípio da ordem cósmica.

Paralelamente à Egiptologia, ciência que se dedica a estudar o Antigo Egipto, nasceu a Egiptomania, isto é, a paixão por tudo o que é proveniente do Antigo Egipto e a introdução na vida quotidiana ocidental de imagens, nomes, usos e costumes da antiquíssima civilização. Prática iniciada no começo do século XIX, após a expedição ao Egipto de Napoleão Bonaparte.

Os nomes de muitos reis, e especialmente rainhas, têm sido marcas de produtos, como o já citado preservativo "Ramsés". Mas também cremes de beleza, tintas, roupas, refrigerantes, etc. E o mundo egípcio passou a ser tema de filmes, óperas, bailados ou romances.

O Catálogo assinala de forma particular as diligências de Calouste Gulbenkian para constituir a sua colecção de antiguidades egípcias, iniciada em 1907 com a aquisição de uma tigela preta mesclada de branco proveniente da dinastia ptolemaica. Um ponto de viragem na carreira de coleccionador de Gulbenkian teve lugar com a venda em leilão da Colecção MacGregor, em 1922, onde ele adquiriu muitas obras, e em que Howard Carter foi seu consultor e intermediário.

A valorização do passado do Egipto, e em especial a descoberta do túmulo de Tut-Ankh-Amon, contribuiu poderosamente para expulsar os ingleses que governavam o Egipto (à moda do imperialismo britânico) quase directamente, por intermédio do khediva e do rei, para uma autonomia da República Egípcia, a partir de Gamal Abdel Nasser, ainda que não existam no mundo países absolutamente autónomos [alguns julgam-se independentes, como é o caso do Estados membros da União Europeia, mas é uma fantasia]. Nasser deu o nome de Ramsés ao primeiro automóvel e de Nefertiti à primeira máquina de costura produzidos pela indústria nacional.

A influência do Egipto Antigo reflectiu-se largamente na arte e na literatura, egípcia e europeia. O próprio Naguib Mahfuz, o grande escritor egípcio do século XX, até hoje o único árabe que recebeu o Prémio Nobel da Literatura, escreveu um romance com o título Akhénaton, le renégat. [Mas Mahfuz é um espantoso romancista e nada deve ao Prémio Nobel, que está hoje absolutamente prostituído, além de ter galardoado nas últimas décadas absolutas nulidades e ignorado famosos escritores.]

É também realçada no texto do Catálogo a dualidade da pessoa do faraó. Já num comentário que fiz anteriormente sobre esta Exposição lembrara a célebre obra Les Deux Corps du Roi, de Ernst Kantorowicz, a propósito  da pessoa humana, mortal, e da pessoa sagrada, imortal, do rei. Este conceito foi, aliás, adoptado pelas monarquias absolutas da Europa.

O Catálogo também evoca o cisma de Akhenaton e a criação de uma nova capital em Amarna, e tece considerações sobre a família de Tut-Ankh-Amon, cuja genealogia não está, ainda hoje, absolutamente estabelecida. Outra curiosidade são os parágrafos que dedica aos Colossos de Mémnon, duas estátuas gigantes, hoje muito danificadas, em frente ao templo funerário de Amenhotep III, que já não existe.

Transcrevo das páginas 182-183: «A partir do momento em que, no século VII a.C., as populações helénicas estabelecem contactos duradouros com o Egito, e mais ainda quando o vale do Nilo é integrado no reino helenístico dos Ptolemeus e depois no Império Romano, os conhecimentos dos europeus sobre a civilização dos faraós multiplicam-se e aprofundam-se. Contudo, o encerramento dos templos politeístas do Egito no século IV da nossa era e a progressiva cristianização do país assinalam o fim da civilização faraónica, cuja história antiga cai a pouco e pouco no esquecimento. Entre a Idade Média e o século XIX, a Europa e o mundo arabizado conservam apenas a memória dos faraós citados pelos historiadores gregos ou latinos: Heródoto (século V a.C.), Maneton (século III a.C.), Diodoro da Sicília (século I a.C.), Estrabão (século I a.C.- século I), Plutarco (séculos I-II), Eliano (séculos II-III), entre outros. Estes autores, assim como as tradições bíblicas e corânicas, recolhem no Egito e na literatura mediterrânica uma memória deformada dos reis antigos, que se convertem assim em personagens meio históricas, meio lendárias.»

Recordemos que por deficiência de tradução Heródoto chamou Sesóstris a Ramsés II, nome pelo qual foi conhecido durante séculos.

Transcrevo da página 194: «"Pois a maioria engana-se quando afirma que ele [Alexandre] é filho do rei Filipe. Isto não é verdade. Com efeito, não é deste último que ele era filho, mas sim, no dizer dos mais sábios egípcios, filho de Nectanebo, depois de este ter abandonado a função real". Assim começa, com uma contraverdade histórica, o Romance de Alexandre, uma biografia romanceada que glorifica o herói macedónio. Originalmente composta em grego entre finais do século II e inícios do século III, no meio cosmopolita dos letrados de Alexandria, esta obra, cujas últimas versões datam do século XVI, foi objeto de múltiplas cópias e adaptações nas mais diversas línguas: latim, arménio, copta, árabe, hebraico, assim como, por via do persa, tailandês e mongol. Os dodecassílabos em que foi versificada na sua tradução francesa do século XII passaram desde então a ser designados entre nós como "alexandrinos".» O faraó em questão é Nectanebo II, último rei da XXX Dinastia.

No túmulo de Tut-Ankh-Amun foram encontradas 5 398 obras-primas intactas, revestidas de ouro e pedras semipreciosas.
 
Muito mais haveria a dizer, desta exposição e do seu catálogo, especialmente deste, mas o espaço e o tempo não são, aqui, ilimitados.