domingo, 29 de janeiro de 2023

TURGENIEV, UM RUSSO OCIDENTALIZADO

Foi o século XIX uma Idade de Ouro da Literatura Russa. Basta apontar seis escritores: Aleksandr Pushkin (1799-1837), Nikolai Gogol (1809-1852), Ivan Turgeniev (1818-1883), Fiodor Dostoievsky (1821-1881), Lev Tolstoi (1828-1910) e Anton Tchekhov (1860-1904).

São variados os temas, os estilos e as concepções políticas e religiosas destes autores que marcaram indelevelmente a sua época. Ivan Sergeievitch Turgeniev, de que nos ocupamos hoje, foi de todos o mais ocidentalizado. Com praticamente a mesma idade de Dostoievsky, as relações entre ambos conheceram períodos difíceis, devido a uma certa sedução de Turgeniev pelo Ocidente, onde passou a parte final da sua vida, e a que não terá sido alheia a recordação da atracção sentida por Pedro, o Grande e até por Catarina II, ainda que em graus diferentes. É que Turgeniev afastou-se mesmo  de valores caros ao património espiritual ortodoxo, atitude "herética" aos olhos de Dostoievsky, cujo pan-eslavismo está estampado nas suas obras, encerrando as contradições, as crises e as angústias do famoso escritor. Mas ambos reconheciam mutuamente o respectivo valor literário.

Nesta obra, Pais e Filhos (Отцы и дети) (1862), Ivan Turgeniev apresenta-nos o confronto de duas gerações russas da sua época, protagonizado por Evgeni Bazarov Vassilievitch, jovem nihilista e contestatário da ordem estabelecida e Arkadi Nikolaievitch Petrovitch, seu amigo e "discípulo" e os pais de ambos, acrescentando ao enredo outras personagens das respectivas famílias ou exteriores a elas, mas sempre num círculo de relações próximas.

Escreveu Vladimir Nabokov num posfácio à obra: «Pais e Filhos não é só o melhor romance de Turgeniev, mas também um dos maiores romances do século XIX. Turgeniev conseguiu fazer aquilo a que se propôs: criar um personagem masculino, um jovem russo, que afirmasse a sua - do personagem - ausência de introspecção e que, ao mesmo tempo, não fosse uma marioneta nas mãos de um repórter social. Bazarov é um homem forte, sem dúvida - e muito possivelmente, tivesse ele vivido além dos vinte anos (acaba de sair do liceu quando o conhecemos), ter-se-ia tornado um grande pensador social, um médico famoso ou um revolucionário activo, para lá dos limites do romance. Mas havia uma debilidade comum à natureza de Turgeniev e à arte: ele era incapaz de fazer triunfar os seus personagens masculinos nas vidas que para eles criava. Além disso, existe no carácter de Bazarov, por detrás da sua arrogância e ambição, e da violência da sua frieza, um rasgo de entusiasmo juvenil e natural que este tem dificuldade em conjugar com a inflexibilidade de um niilista em potência. [...] Notará também que Arkadi é de uma natureza bem mais gentil e simples que Bazarov. Debruçar-me-ei sobre uma série de passagens que são especialmente expressivas e significativas. De salientar, por exemplo, a seguinte situação: o velho Kirsanov, pai de Arkadi, tem aquela amante discreta, carinhosa e encantadora Fenitchka, uma rapariga do povo. Ela é um dos tipos passivos de jovens mulheres de Turgeniev, e à volta deste centro passivo giram três homens: Nikolai Kirsanov e também Pavel, o seu irmão, que por alguma reviravolta da memória e da imaginação vê nela certas parecenças com uma antiga paixão sua, uma paixão que iluminou toda a sua vida. E há ainda Bazarov, que nos é mostrado a seduzir Fenitchka, uma corte casual que vai provocar um duelo. No entanto, não Fenitchka mas a tifo será a causa da morte de Bazarov.»

É atribuída a Turgeniev a paternidade da palavra "nihilista", numa altura em que as preocupações sociais se começavam a revelar na Rússia. Terá sido mesmo um livro seu, Zapiski Okhotnika (Записки охотника) (Memórias de um Caçador) (1852) que levou o Tsar Alexandre II a proceder à emancipação dos servos (1861).

As convicções ocidentalizantes de Turgeniev e a falta de "religiosidade" da sua obra mantiveram-no afastado de Dostoievsky e de Tolstoi, mas o escritor manteve uma amizade com Flaubert com quem tinha afinidades sociais e estéticas.


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