sábado, 29 de maio de 2021

INFÂMIA

A revista "L'Obs" incluiu, no seu nº 2949, de 6 a 12 de Maio, um longo texto a propósito do recente livro Mon Dictionnaire du bullshit, do intelectual judeu-francês-americano Guy Sorman (n. 1944), onde este acusa Michel Foucault (1926-1984) de violar crianças sobre os túmulos num pequeno cemitério de Sidi Bou Saïd, no tempo em que o grande pensador francês foi professor da Université 9 Avril, de Tunis. Em 28 de Março passado, em entrevista ao "Sunday Times", Sorman reincide evocando uma visita que teria feito a Foucault nas férias de Páscoa de 1969, lamentando não se ter dirigido então à polícia para denunciar esses "actos ignóbeis e moralmente repugnantes". Isto, no momento em que foi publicada a tradução inglesa de Les Aveux de la chair, a obra que Foucault deixara inacabada. Desta vez, as afirmações de Sorman provocaram um sobressalto em França, na Tunísia e no mundo.

Mas há mais: «A "L'Obs", ce 31 Mars, Guy Sorman racconte: "Je m'en souviens très bien, c'était à Pâques 1970 [sic]. On était en vacances à Sidi Bou Saïd avec Pierre Bénichou, Gilles Châtelet, et Chantal Charpentier, la maîtresse d'Olivier Todd. On revenait du Café des Nattes. Des enfants de 8, 9 ou 10 ans couraient après Foucault, l'appelant par son nom. Ils le connaissaient tous. Lui leur jetait de l'argent et donnait rendez-vous à certains d'entre eux pour le soir, à 22 heures, au cimetière qui était un lieu de promenade. Le cimetière était connu pour ça, tout le monde le savait. C'était néocolonial.»

Ora a realidade desmente estas afirmações de Guy Sorman, desde logo pelas suas imprecisões. Este refere como datas ora 1969, ora 1970; Chantal Charpentier, a única testemunha viva, não era nessa altura amante de Olivier Todd (seria mais tarde), mas companheira do próprio Sorman, e das férias de Páscoa de 1970 só se recorda de um jovem muito belo, Mohamed, mas que teria já 17 ou 18 anos. Nenhuma das biografias de Michel Foucault regista qualquer episódio relacionado com rapazinhos. Toda a gente soube sempre que Michel Foucault era homossexual, o que naturalmente não impedia que a assistência às suas aulas no Collège de France transbordasse para fora do anfiteatro. Mas as suas inclinações não se dirigiam a crianças mas a rapazes já maduros, de preferência negros, atendendo a que estes são em geral sexualmente bem dotados, característica que o filósofo prezava. Isso explica em parte que tenha aceitado com frequência os convites que lhe eram endereçados por universidades americanas ou brasileiras para ministrar cursos, o que lhe permitia um contacto estreito com pessoas de origem africana.

O texto de seis páginas de "L'Obs" expõe detalhadamente o caso, frisando que tal atitude de Foucault, enquanto professor em Tunis de 1966 a 1968, teria sido obviamente objecto de condenação pelos tunisinos. Que o Mestre mantivesse relações com rapazes, incluindo com alunos seus da Université 9 Avril, era na altura perfeitamente aceite pela sociedade e até seria motivo de orgulho para os estudantes terem a honra de serem eleitos. Os costumes na Tunísia, no tempo de Burguiba, eram então muito livres e a prática da homossexualidade largamente admitida. Com a tomada do poder por Ben Ali, em 1987, foi imposta alguma reserva, o que não impediu que o país fosse assiduamente frequentado por turistas estrangeiros até à "primavera árabe" de 2011. A partir daqui, e por influência do partido político islâmico radical Ennahda, que tem o poder sequestrado na Tunísia, a vida sexual passou a ser objecto de rigoroso controlo, em contradição com os proclamados princípios das liberdades democráticas.

Como explicar a presente denúncia de Guy Sorman, cinquenta anos depois dos acontecimentos e quase quarenta anos depois da morte de Foucault? Estará Sorman demente? Terá inventado esta história para promover a venda do seu recentíssimo livro? Terá sido pressionado pelo lobby sionista, uma vez que o Mestre foi apoiante da causa palestiniana? Poderá ser um tributo à moda do politicamente correcto dos nossos dias? Será uma vingança póstuma de Sorman, então com 25 anos, por não ter sido eventualmente admitido à intimidade do Mestre? Em qualquer caso, Guy Sorman é um consumado canalha! 

A leitura do artigo da revista contribuirá para esclarecer, mas só parcialmente, o caso.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

DA PROSTITUIÇÃO

Parece, mas não li o documento, que uma deputada ex-PAN apresentou um projecto de lei visando criminalizar os clientes da prostituição. Eu sei que em alguns países europeus existe legislação semelhante, mas é uma insanidade. Por um lado, porque jamais alguém saberá se existe uma relação prostitucional se ambos os intervenientes o não revelarem, depois, porque sendo a prostituição o mais antigo ofício que a História regista, nada nem ninguém a fará desaparecer, sendo a penalização dos utentes um acto contra-natura.

Sabemos todos que o sexo e a morte são os temas que, em geral, obcecam o género humano. Não é em vão que, para nos restringirmos à cultura ocidental, Fausto e Dom João são os grandes mitos da nossa civilização. Pouco tempo antes de morrer, Jorge de Sena, a mais notável figura intelectual portuguesa da segunda metade do século XX, em entrevista suponho que ao EXPRESSO (não disponho agora do texto), louvava as grandes virtudes da prostituição, como factor de equilíbrio nas relações sociais e como a possibilidade de relação sexual que restava aos velhos, aos feios, aos aleijados, em suma, a todos os que não possuíssem capacidade de atracção do seu semelhante e se vissem excluídos do universo erótico. Como estou a citar de cor, não sei se as palavras eram exactamente as que refiro, mas o sentido é o mesmo.

Escreveram-se já sobre o tema, centenas de livros, a favor e contra a prostituição, embora nem todos coloquem objectivamente o problema. Agita-se muitas vezes o fantasma de "vender" o corpo, e reciprocamente de "comprá-lo", como se não tivéssemos de comprar todos os dias aquilo de que necessitamos, vendendo o trabalho do nosso corpo (incluindo a mente). Estou propositadamente a simplificar o enunciado, pois o assunto obrigaria a muitos milhares de linhas. Acrescentarei apenas que há quem se prostitua por gosto, não por necessidade vital (os inquéritos testemunham-no), e é ténue a fronteira entre o prazer consentido e o prazer remunerado. Não utilizo aqui uma linguagem técnica, que os especialistas da matéria conhecerão melhor do que eu.

Também existem diferenças entre prostituição masculina e feminina, prostituição permanente e conjuntural, prostituição meramente circunstancial e efectivamente assumida, etc., dependendo também dos lugares, dos universos culturais, das épocas. 

Nem sei como se pode criminalizar a prostituição nos dias que correm, com o arsenal tecnológico que se encontra mundialmente ao nosso dispor, à distância de um clique. 

A propósito do assunto, reli obliquamente Prostitution: les uns, les unes et les autres, de Daniel Welzer-Lang, publicado em 1994 e que aborda o assunto, a partir de uma investigação realizada na cidade de Lyon e arredores. Embora com 27 anos, e muitas coisas tenham mudado nas últimas décadas em todas as áreas, é verdade que este livro se mantém actual no fundo, ainda que na forma se possa fazer uma abordagem diferente, como acontece em obras mais recentes.

O autor (com a participação dos colaboradores) trata equanimemente a prostituição feminina e a masculina (que embora mais discreta não será inferior), discorre sobre travestis, transexuais e transgéneros (o estudo das identidades ainda era embrionário à data), menciona o proxenetismo (a nossa legislação condena o lenocínio), salienta o facto de publicações como jornais, guias, etc., mencionarem (já naquela data) os locais de "engate", o que desviou muitos praticantes dos sítios de referência, enfatiza a importância das fardas na atracção dos homossexuais masculinos, o que sempre determinou uma acentuada preferência destes por marinheiros ou soldados, que em todos os países atraíram habitualmente numerosa clientela. 

Também é referido o pânico provocado pela sida nos prostitutos de ambos os sexos e nos seus clientes, que levou todos à adopção de especiais precauções, que ainda hoje são aconselhadas. Se o livro fosse escrito agora teria de mencionar o susto, que ainda se mantém, em consequência do Covid-19, de contágio muito mais perigoso. Estas grandes epidemias são particularmente nocivas para os trabalhadores do sexo.

A propósito da transexualidade, o livro evoca ainda Gilles Lipovetsky e Jean Baudrillard, que nela vêem um avatar da antiga figura do andrógino (página 174 e seguintes).

Aqui deixo estas breves considerações sobre assunto inesgotável, com a exclusiva preocupação de relembrar que não se deve exacerbar a "cultura" contra a "natura".


terça-feira, 25 de maio de 2021

A FLAUTA MÁGICA

Recebi esta semana a gravação de Die Zauberflöte, de Mozart, espectáculo realizado em 21 de Setembro de 2016, no Teatro alla Scala, de Milão.

Encenação justa e perfeita de Peter Stein, concebida com sabedoria, força e beleza e traduzida num clima pleno de alegria e vivacidade.

A interpretação coube aos Solistas, Coro e Orquestra da Accademia Teatro alla Scala, na maioria gente jovem, o que conferiu à representação uma alegria contagiante. Excelente direcção musical de Ádám Fischer.

De realçar a óptima prestação, cénica e musical, de Martin Piskorski, em Tamino e também de Till von Orlowsky, em Papageno e de Yasmin Özkan, na Rainha da Noite.

Estreou-se A Flauta Mágica em 1791, no Freihaus-Theater auf der Wieden, de Viena, mas o imenso sucesso desta ópera revelou-se já depois da morte do compositor. Devido ao génio de Mozart e ao denodado empenho do seu libretista e director do teatro, Emanuel Schikaneder, ambos franco-maçons, o que seria à partida uma zauberoper transformou-se numa extraordinária utopia moral, política e social, de que alguns aspectos permanecem ainda ignorados.

Obra iniciática, inscrita na época do Iluminismo, apresenta-nos, e esta encenação enfatiza-o, uma rápida reversão das forças do bem e do mal, encarnadas pela Rainha da Noite e por Sarastro, tendo por conclusão o triunfo do amor. 

Esta encenação de Peter Stein, particularmente fiel ao libretto, foi considerada politicamente incorrecta, porque apresentou os escravos caracterizados como pretos, o que viola o pensamento único perfilhado por alguns loucos, em maior número que o desejável, do nosso tempo. Não me recordo de, há cinco anos, ter havido especiais protestos, mas estou certo que as aves "pretensamente anti-racistas" emitiriam hoje os seus gorjeios agoirentos, como se os negros tivessem deixado de existir. Felizmente, são cada vez mais numerosos. E não se pode/não se deve reescrever levianamente a História.

A gravação em LP desta ópera, com a Berliner Philharmoniker, dirigida por Herbert von Karajan,  é uma obra de referência.

 

segunda-feira, 24 de maio de 2021

CRIMES EM BOMBAIM, NOS SANITÁRIOS PÚBLICOS

Por sugestão de um amigo indiano residente em Chennai (a antiga Madras) encomendei Meurtres à Mahim, edição franco-indiana, publicada em Março deste ano, mas que inicialmente se encontrava indisponível na Amazon, só tendo recebido o livro esta semana.

Posteriormente à encomenda, e reflectindo sobre o uso da língua inglesa na Índia, pesquisei e encontrei afinal uma edição inglesa, aliás a original, Murder in Mahim, publicada em 2017. A indicação deste meu amigo, quanto à edição francesa, dever-se-á ao facto de ele ser francófono. A edição inglesa teve um extraordinário sucesso no país.

Trata-se de um livro do escritor indiano de ascendência goesa Jerry Pinto (n. 1966), autor de obra já relevante, e largamente premiada (obteve o equivalente indiano do Prémio Goncourt), também jornalista, poeta, tradutor, e ele mesmo natural de Mahim, uma zona da imensa metrópole que é a cidade de Bombaim, hoje conhecida como Mumbai, com mais de dez milhões de habitantes.

Podendo ser classificado como romance policial, o livro é muito mais do que isso. É verdade que o autor nos mantém em suspenso até às últimas páginas, mas trata-se especialmente de uma obra sobre relações humanas, decorrendo a intriga nos meios homossexuais subterrâneos de Bombaim, cuja existência é desconhecida da maioria dos indianos, incluindo da própria "comunidade" homossexual.

Começa a história pelo assassinato de um rapaz nos urinóis públicos (mal iluminados) da estação ferroviária de Mahim, frequentados especialmente por homossexuais e por prostitutos (homossexuais ou não) que atendem os seus clientes no local, dada a escassez de privacidade numa região onde uma parte dos habitantes dorme na rua. Insiste o autor que os mais generosamente dotados pela natureza conseguem obter razoáveis proventos e se convertem em utilizadores assíduos daquela edícula, tornando-os frágeis presas da polícia, que os utiliza como armadilha para prender e chantagear os respeitáveis chefes de família que passam à noite discretamente pelo local para consumar algumas fantasias.

A partir do primeiro crime, desenvolve-se uma inesperada teia de inter-relações e de assassinatos, envolvendo polícias e civis, que Jerry Pinto manuseia habilmente para nos dar a conhecer o submundo da cidade, as suas misérias mas também as suas grandezas, as cumplicidades, as afinidades electivas, a esperança e as promessas da juventude, a decadência da velhice e a fatalidade da morte.

As personagens principais são um jornalista reformado, Peter Fernandes, que resolve ajudar na investigação o seu amigo comissário de polícia de Mahim - e que, logo no início, descobre que o seu próprio filho, Sunil, é gay (não gosto da palavra inglesa mas por esta vez passa) - e o dito comissário, Jende Shiva, um homem sério mas cuja esquadra integra alguns polícias corruptos, dois dos quais, no final,  acabarão por morrer também, um assassinado e o outro suicidado.

O autor esclarece-nos que o Tribunal Superior de Delhi anulou em 2009 o artigo do Código Penal indiano "Secção 377" que criminalizava a homossexualidade, decisão invalidada quatro anos mais tarde pelo Supremo Tribunal de Justiça da Índia. Só em 6 de Setembro de 2018, o Supremo Tribunal viria a considerar a "Secção 377" como inconstitucional.

Também é referida no livro, en passant, a circunstância da homossexualidade ter sido muito bem aceite na Índia durante séculos e só começar a ser condenada, criminal e socialmente, depois da instalação dos ingleses no subcontinente, primeiro como Companhia das Índias e depois como Império das Índias. Os súbditos de sua majestade britânica foram sempre muito puritanos (pelo menos nas aparências), especialmente na época vitoriana e até há bem poucos anos. Recordem-se os casos emblemáticos de Oscar Wilde e de Alan Turing!

Constituindo este livro um notável documento sobre a condição humana, não admira que a sua publicação original se tenha revelado um êxito, e que a tradução francesa inicie agora o seu caminho em outras geografias.

 

sábado, 22 de maio de 2021

O ANJO DE FOGO

Devo ao Nuno Vieira de Almeida a referência à ópera O Anjo de Fogo, de Prokofiev, que nunca tinha ouvido. Optei pelo DVD da versão de 1993, do Teatro Maryinsky, de São Petersburgo, que adquiri já usado, mas em estado impecável, uma vez que não existem na Amazon exemplares novos. 

Este espectáculo, com a orquestra do Teatro, dirigida por Valery Gergiev, e encenado por David Freeman, tem por intérpretes principais Galina Gorchakova (em Renata) e Sergei Leiferkus (em Ruprecht), com desempenhos notáveis.

O argumento desta ópera for escrito pelo próprio Prokofiev, a partir do romance homónimo (1908) de Valery Bryusov (1873-1924), e conta a história de uma possessão diabólica na Alemanha, na época da Reforma. 

O compositor introduziu algumas modificações no texto original, para que o libretto (dez vezes menos longo do que o romance) satisfizesse as exigências da partitura que escrevia, embora conservando escrupulosamente o sentido, o lugar e os protagonistas. Renata pretende ter sido visitada na infância por um anjo de fogo, Madiel, por quem se apaixonou, e que lhe prometeu regressar mais tarde sob a forma humana, na pessoa do conde Heinrich. Quando Ruprecht, após uma longa viagem, a encontra num albergue, ela apresenta sinais de demência, pretendendo ter sido amante do conde. Vivendo mais tarde em Colónia, Renata acaba por reencontrar o conde e incita Ruprecht a desafiá-lo em duelo. Ferido por Heinrich, que tomou as formas do anjo, entra em delírio e pensa que Renata é o diabo. Considerando o seu amor pelo conde como um pecado, Renata entra num convento, enquanto Ruprecht, sozinho, encontra numa taberna Mefistófeles e o Doutor Fausto, também convocados pelo autor para o diabólico final. No convento, Renata tem visões demoníacas e também as outras freiras dão sinais de demência. A Abadessa e o Inquisidor constatam que Renata está possuída pelo diabo e que só um exorcismo a pode salvar, mas é tarde e acaba por ser condenada pela Inquisição.

Assim, em traços muito largos, o enredo da ópera, onde o grupo de acrobatas do Maryinsky interpreta as tentações dos espíritos malignos, responsáveis pelas grandes alucinações demoníacas.

A música de Prokofiev exprime notavelmente o clima fantástico mas também realista do tema e a encenação de Freeman confere ao espectáculo uma atmosfera que oscila entre a narração meticulosa e o caos histérico.


domingo, 9 de maio de 2021

MARTIN HEIDEIGGER

A propósito da publicação da tradução francesa de Réflexions XII-XV. Cahiers noirs (1939-1941), de Martin Heidegger, transcrevo a seguinte passagem da crítica inserida no nº 496 (Maio 2021) da revista "Lire-Magazine Littéraire" (p. 107):

«Tout semble ainsi pouvoir être ramené à ce trou noir de la fabrication, de l'idéologie de la race comme celle de la classe sociale. Le bolchevisme, qu'il dit étranger au monde russe, le fascisme ou le national-socialisme, qui sont des "variantes du socialisme autoritaire" et l'américanisme - "les Américains réduisant tout à rien sous l'apparence du bonheur" - sont autant de manifestations de ce nihilisme destructeur. Heidegger se risque même à une curieuse prophétie: "Autour de l'an 2300 au plus tôt, il y aura peut-être à nouveau histoire-destinée. L'américanisme, parvenu au point où il sera saturé par son propre vide, devra s'être épuisé. Jusque-là, l'être humain fera encore dans le rien des progrès dont on n'a pas l'idée."

quinta-feira, 6 de maio de 2021

A ESPANHA DE PÉREZ-REVERTE

Por insistência de um amigo, li um livro publicado recentemente, Uma História de Espanha, de Arturo Pérez-Reverte, o escritor espanhol hoje mais lido em todo o mundo.

Conheço alguns romances de Pérez-Reverte, onde a História tem normalmente lugar, mas desconhecia esta sua incursão em terreno histórico propriamente dito, ainda que interpretado de forma muito pessoal.

É ESTE UM LIVRO QUE DEVERIA SER LIDO POR TODOS OS ESPANHÓIS.

O olhar de Pérez-Reverte sobre o passado (e o presente) de Espanha é profundamente irónico, de um humor corrosivo, acutilante e por vezes feroz. O autor a ninguém poupa e é de extrema severidade o julgamento que faz dos seus compatriotas. Desde os tempos remotos até hoje, o escritor relata as sistemáticas desavenças entre os espanhóis, que verdadeiramente se comprazem em odiar-se mutuamente. Monárquicos ou republicanos, conservadores ou progressistas, católicos ou ateus, ricos ou pobres, analfabetos ou letrados, centralistas ou autonómicos, ninguém escapa ao juízo implacável de Pérez-Reverte.

Mas os seus "ódios de estimação" dirigem-se sobretudo à Igreja Católica, responsável pelo secular atraso cultural de Espanha, com o seu beatério, a moral retrógrada, a Inquisição, a aliança com o Poder mais conservador, e à Inglaterra, a pérfida Albion, inimiga tradicional (e, por extensão, à América) a quem acusa de combater a emergência de qualquer hegemonia continental e de ter querido ingressar na União Europeia para a fazer implodir.

Para Filipe II, o rei-funcionário, há uma palavra de relativo apreço, apesar da eterna aliança entre o Trono e o Altar (que Verdi tão bem explicitou no texto de Schiller) mas não para Fernando VII, «o maior filho da puta que cingiu a coroa em Espanha» (p. 123), um «absoluto filho da puta» (p. 124), que, na pena de um Shakespeare, faria parecer Ricardo III um vulgar travesso. É verdade que Reverte usa uma linguagem muito vernácula, na acepção vulgar do termo. Uma linguagem e umas imagens dignas de provocarem o rubor das faces mais pudicas.

De Isabel II, filha de Fernando VII, alude Reverte aos seus amantes e amigos civis e militares, que desfilavam pela alcova real. E também aos amantes do marido, Francisco de Assis de Bourbon, que ele critica «não por ele ser homossexual normal, como qualquer outro, mas sim porque era maricas de ostentação e de gerânios na janela» (p. 137).

Transcrevo um parágrafo sobre Isabel II: «E, para mais, porque a Isabelinha (que não era uma lânguida Sissi imperatriz, muito pelo contrário) foi muito dada aos intercâmbios carnais e acabou, ou melhor, começou cedo, a alternar a sua real bissectriz com diversos jovens de boa aparência; ao ponto de, dos onze filhos que pariu - e sobreviveram seis -, quase nunca ter tido dois seguidos do mesmo pai. Foi mesmo trabalhar no duro. O que, pormenor simpático, valeu à nossa rainha esta elegante definição do papa Pio Nono: É puta, mas piedosa. O que situa este assunto no seu contexto. Entre estes diversos pais contaram-se, assim por alto, gente de palácio, vários militares - a rainha adorava generais - e um secretário particular. Por certo, e como pormenor técnico de importância decisiva mais adiante, apontaremos que o futuro Afonso XII (o de dónde vas tu triste de ti e o resto do poema) era filho de um engenheiro militar muito bonito chamado Enrique Puigmoltó.» (p. 137)

Procede o autor a uma análise curiosa da queda da Monarquia e do convite a Amadeu de Saboia, duque de Aosta, para ocupar o trono, de que este se fartou, deixando escrito: «Se ao menos fossem estrangeiros os inimigos de Espanha, ainda vá que não vá. Mas não. Todos os que com a espada, com a pluma, com a palavra, agravam e perpetuam os males da Nação são espanhóis.» (p. 145) Ocorre dizer (Reverte não o menciona) que antes do convite a Amadeu de Aosta, os espanhóis haviam sondado D. Fernando II de Portugal, e depois o rei D. Luís I, que declinaram o convite. Regressado a Itália, Amadeu haveria de morrer em 1890, vítima da epidemia de gripe.

Segue-se a proclamação da I República, e todos os seus desvarios, a restauração monárquica, na pessoa de Afonso XII, a regência de Maria Cristina e o reinado de Afonso XIII. Até à expulsão do rei e proclamação da II República, que levou ao extremo a exacerbação de ódio entre espanhóis, que conduziria à Guerra Civil de 1936-1939. O século XX espanhol é tratado por Pérez-Reverte com algum detalhe, descrevendo os vários chefes políticos e militares, o estado do país, as influências estrangeiras.

Impiedoso crítico dos governantes, até aos dias de hoje, Reverte escreve: «E neste ponto convém destacar um facto decisivo: à frente dos dois principais partidos, cujo peso era enorme, estavam dois políticos de estatura e inteligência extraordinárias, para os quais Pedro Sánchez, Mariano Rajoy, José Luís Zapatero e José María Aznar, só para referir quatro chefes de governo muito recentes, não serviriam nem para lhes engraxar os sapatos. Cánovas e Sagasta, o primeiro, líder do partido conservador, e o segundo, do liberal ou progressista, eram dois equilibristas da cora bamba que estiveram de acordo em repartir o poder de forma pacífica e construtiva, na medida do possível, salvando os seus interesses  e os dos tipos que eles representavam. Foi a isto que se chamou período (longo) de alternância ou de governo alternantes.» (p. 156)

É também destacada a posição do País Basco e da Catalunha, regiões consideradas hoje muito progressistas mas que mantiveram ao longo dos últimos séculos atitudes especialmente conservadoras. Não dá para explicar aqui, mas Reverte encarrega-se disso no livro. Desfilam depois figuras como Miguel Primo de Rivera, Manuel Azaña, Largo Caballero, Gil Robles, José Antonio Primo de Rivera (fundador da Falange), Calvo Sotelo, Emilio Mola Vidal, José Sanjurjo, e, finalmente, Francisco Franco Bahamonde, Caudilho de Espanha. Curiosamente, os dois últimos, generais que com Franco se haviam rebelado e chefiavam a insurreição contra o governo republicano, morreram em acidentes de aviação, deixando a Franco o campo livre para assumir a chefia do Estado.

Escreve Reverte: «Quando um papa, neste caso Pio XII, se dirige a um país como nação eleita por Deus, baluarte inexpugnável da fé católica, é claro que quem governa esse país vai estar um tempo longo a governá-lo. Nunca alguém teve um olfacto mais fino do que o  Vaticano, mais ainda naquele 1939, com a Segunda Guerra Mundial em ponto de rebuçado. Quanto a Franco e a Espanha era claro. O general que menos se comprometera com o golpe contra a República e que no entanto acabou por conseguir o poder absoluto, o militar frio que dirigira com crueldade, sem complexos e sem pressas, a metódica carnificina da Guerra Civil, iria durar bastante tempo. Quem não vise isso era cego. O franquismo vitorioso não era um regime militar, pois não eram os militares a governar, nem era um regime fascista, pois também não eram os fascistas a governar. Era uma ditadura pessoal e autoritária, a de Francisco Franco Bahamonde: esse galego cauteloso, inteligente, manobreiro, sem outros escrúpulos além da sua consciência pessoalíssima de católico fervoroso, anticomunista e patriota radical. Marimbava-se para tudo o resto, militares, Falange, carlismo, espanhóis em geral. Eram simples instrumentos para executar a ideia que ele tinha de Espanha. E nessa ideia ele era Espanha.» (pp. 204-5)

O leit-motiv do autor é o quase permanente clima de confronto entre os espanhóis, nomeadamente desde a I República. A propósito, cita o prólogo do livro A Sangre y Fuego (1937), do jornalista Manuel Chaves Nogales, que diz dever constituir matéria de estudo em todas as escolas: «Idiotas e assassinos surgiram e agiram com profusão e intensidade idênticas nos dois lados que partiram a Espanha [...] Na minha deserção tanto pesava o sangue derramado pelas quadrilhas de assassinos que exerciam o terror vermelho em Madrid como pelos aviões de Franco, assassinando mulheres e crianças inocentes. E eu tenho tanto ou mais medo da barbárie dos mouros, dos bandidos do Tércio e dos assassinos da Falange, como dos anarquistas ou comunistas analfabetos [...] O resultado final desta luta não me preocupa muito. Não me interessa grande coisa saber se o futuro ditador de Espanha vai sair de um lado ou do outro das trincheiras [...] Terá custado a Espanha mais de meio milhão de mortos. Podia ter sido mais barato.» (p. 201)

São estas duas Espanhas, desde há séculos antagónicas, que Fidelino de Figueiredo evoca no seu livro As Duas Espanhas, a que já me referi mais do que uma vez neste blogue.

«Nacional-catolicismo, é a palavra. O que define o ambiente. A pedra angular de Pedro foi o outro pilar, Exército e Falange à parte, sobre o qual Franco edificou tudo. [...] Foram abolidos o divórcio e o casamento civil, penalizou-se duramente o aborto e ordenou-se a estrita separação dos sexos nas escolas. Sociedade, moral, costumes, espectáculos, educação escolar, tudo foi posto sob o olho vigilante do clero, que nos primeiros tempos incluía os bispos a saudarem o Caudilho de braço estendido à porta das igrejas. [...] Havia multas e prisões por condutas morais inadequadas; e a isso temos de acrescentar, é claro, a infame natureza da condição humana, sempre disposta a apontar o dedo, marginalizar e denunciar - esses piedosos vizinhos de então, de agora e de sempre - as mulheres marcadas pelo opróbrio e pelo escândalo (as que, para nos entendermos, não punham o hijab de então, metaforicamente falando). Para não mencionar, é claro, a sexualidade alternativa ou diferente. Nunca, desde dois ou três séculos antes, se perseguira os homossexuais como se fez durante aquele tempo obscuro do primeiro franquismo, e ainda durou bastante tempo. Nunca a palavra maricas fora pronunciada com tanto desprezo e com tanta sanha.» (pp. 216-7-8)

«Enquanto não chegamos à última etapa da ditadura franquista, impõe-se uma reflexão retrospectiva e útil: uns afirmam que Francisco Franco foi providencial para Espanha, e outros afirmam que foi o pior que podia acontecer. Na minha opinião, Franco foi uma desgraça; mas também acredito que na Espanha prostituída, violenta e infame de 1936-39 não havia qualquer possibilidade de surgir uma democracia real; e que, se tivesse ganhado o outro lado - ou os mais fortes e disciplinados do outro lado - , provavelmente o resultado teria sido também uma ditadura, mas comunista ou de esquerda e com intenção idêntica de exterminar o adversário e eliminar a democracia liberal, que naquela altura do rebuliço estava de facto encostada às cordas.» (p. 223)

«A verdade é que, voltando a 1975, uma vez apagada a luzinha d'El Pardo, Juan Carlos foi proclamado rei jurando manter intacta esta barraquita, e foi aí que os cálculos falharam ao franquismo mais empedernido, porque - felizmente para Espanha - o rapaz saiu um bocadinho perjuro. Tinha sido bem educado, com preceptores que eram pessoas formadas e inteligentes e que ainda se mantinham perto dele. A essas excelentes influências se deveram os bons conselhos. [...] Ignoro, na verdade, até que ponto D. Juan Carlos era inteligente; mas os seus conselheiros não eram nada parvos.» (pp. 229-230) 

Transcritas que foram algumas passagens do livro de Arturo Pérez-Reverte, importa registar, como faz o autor no fim da obra, que os textos (91) incluídos neste volume foram publicados entre 5 de Maio de 2013 e 28 de Agosto de 2017, alternando com outros assuntos, na sua página de XL Semanal, suplemento que aparece aos domingos juntamente com vinte e dois jornais espanhóis, fornecendo a sua visão muito pessoal da história de Espanha, sem de forma alguma pretender ultrapassar os historiadores profissionais, nem mesmo qualquer historiador, embora alguns se tenham ofendido com a sua suposta intrusão. «Nesses noventa e um episódios passeei pela nossa história, pela dos Espanhóis, pela minha, um olhar próprio, subjectivo, feito de leituras, de experiência, de bom senso na medida do possível. Afinal de contas, uma longa vida de livros e viagens que nos moldam o olhar não decorre em vão, e até o mais desatento pode extrair de tudo isso conclusões enriquecedoras. [...] Ninguém que conheça o nosso passado pode ter ilusões; ou pelo menos eu não as tenho. Creio que nós, os Espanhóis, estamos infectados por uma doença histórica, perigosa, quiçá mortal, cuja origem talvez tenha aflorado ao longo de todos estes artigos: séculos de guerra, violência e opressão sob reis incapazes, ministros corruptos e bispos fanáticos, a guerra civil contra o mouro, a Inquisição e o seu infame sistema de delação e suspeita, a insolidariedade, a inveja como indiscutível pecado nacional, a falta atroz de cultura que nos pôs sempre - e continua a pôr-nos - nas mãos de pregadores e charlatães de qualquer índole, fizeram-nos como somos; entre outras coisas, um dos poucos países do chamado Ocidente que se envergonham da sua glória e se comprazem na sua miséria, que insultam as suas gestas históricas, que maltratam e esquecem os seus grandes homens e mulheres, que apagam o testemunho do que é digno e só conservam como arma de arremesso contra o vizinho, a memória do agravo e esse fratricídio suicida que salta aos nossos olhos como um escarro ao virarmos cada página do nosso passado (a maior parte dos nossos jovens ignoram, porque lhes apagámos isso da memória, que nós, os Espanhóis, já nos odiávamos antes de Franco).» (pp. 236.7)

NOTA: O livro segue o sinistro Acordo 90, pelo que tive de proceder às indispensáveis correcções ortográficas.

terça-feira, 4 de maio de 2021

OS TROIANOS (OUTRA VEZ)

Recebi ontem o DVD de Les Troyens, direcção musical de Sylvain Cambreling, encenação de Herbert Wernicke, Orchestre de Paris, Festival de Salzburg 2000, que encomendara para substituir a gravação deste espectáculo que fizera em vídeocassete, há anos, quando foi transmitido pela televisão.

Trata-se de uma produção cénica e musicalmente inferior à que comentei aqui no mês passado, realizada em 2009, no Palau de les Arts, de Valência, com a Orquestra da Comunitat Valenciana, dirigida por Valery Gergiev, e encenação de La Fura dels Baus.

Esta encenação de Salzburg é baça e monótona, sem qualquer chama de criatividade, e a interpretação vocal também não é de molde a cativar-nos profundamente, nem mesmo a direcção de Cambreling. Já não me recordava do espectáculo, mas repugnava-me a ideia de desfazer-me da vídeocassete sem a conveniente substituição. Não valeu a pena.

Acresce dizer que considero uma má opção a escolha da mesma cantora, Deborah Polaski, para interpretar Cassandra na I Parte (Actos I e II) e Dido na II Parte (Actos III, IV e V). Sendo mulheres de personalidade muito diferente, deve recorrer-se, como é hábito, a duas cantoras.

A duração da ópera (quatro horas) aconselha também a um ritmo cénico semelhante ao adoptado para a criação do espectáculo em Valência, que não se verificou nesta produção de Salzburg.


sábado, 1 de maio de 2021

COMEÇOU AGORA E NÃO VAI ACABAR TÃO DEPRESSA!

Foi publicado há dias o livro de José Sócrates, prefaciado por Dilma Rousseff (antiga presidente do Brasil), Só Agora Começou. Presumo que a "Operação Marquês" não irá terminar tão depressa. 

Neste livro, José Sócrates descreve os 288 dias passados, em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora, desde 21 de Novembro de 2014, acompanhando a narrativa de considerações posteriores ao período de detenção.

Transcrevo o § 19:

«A prisão como prova:

A prisão preventiva foi utilizada para investigar; mas  também para aterrorizar; para despersonalizar e, neste caso em particular, para silenciar. Mas prendeu-se também para, em certo sentido, "provar". Quem quis esta prisão injusta sabe bem que a prisão funciona como prova aos olhos da opinião pública. A prisão substitui-se assim ao processo, à investigação, à instrução, aos indícios, às provas, ao contraditório, ao julgamento - e até à sentença. É, numa palavra, a prisão como prova. Afinal, se está preso, que mais é ainda preciso provar?» (p. 29)


UM ESCLARECIMENTO: 

Não conheço o Processo da Operação Marquês, não conheço o conteúdo da Acusação do Ministério Público, não conheço o Despacho de Pronúncia do Juiz Ivo Rosa, tendo apenas lido extractos do resumo que este apresentou publicamente.

Mas conheço as noticias difundidas durante anos pela comunicação social, cirurgicamente transmitidas pelo Ministério Público, a quem competia a investigação e a elaboração da acusação.

Logo, não sou completamente ignorante do caso.

O livro de José Sócrates é um pouco repetitivo, ele mesmo o reconhece. Relata o que considera ser o abuso da sua detenção, episódios da prisão, a falta de equilíbrio num tribunal entre os procuradores do Ministério Público e os advogados de defesa, que deveriam situar-se ao mesmo nível, quando os procuradores se sentam ao nível do juiz, etc. E sustenta que a sua prisão teve por objectivo impedi-lo de se candidatar à presidência da República.

Contesta os casos em de que a Justiça o acusa: apartamento em Paris, PT, Parque Escolar, TGV, proximidade com Ricardo Salgado e muito mais. E lamenta a atitude da direcção do Partido Socialista. Não que desejasse a intervenção desta no processo, mas porque nunca teve uma palavra para condenar as prepotências a que foi sujeito, permitindo que se instalasse uma espécie de condenação pública sem julgamento, contrária ao direito à presunção de inocência. Essa a razão por que pediu a sua desfiliação do Partido. 

Uma das queixas de José Sócrates é que a de que todos os prazos de conclusão do inquérito foram ultrapassados, mesmo considerando a "especial complexidade" e as "circunstâncias excepcionais". Ora isto é verdade e afigura-se claramente inconstitucional, embora a hermenêutica permita sempre leituras diversas para todas as coisas.

Refere-se depois José Sócrates a Mário Soares e ao apoio que dele sempre recebeu, exibindo cartas trocadas durante o período da sua prisão. E alude também à prisão de Lula da Silva, já depois do impeachment de Dilma Rousseff.

Segundo Sócrates, só no primeiro interrogatório soube como começara o processo: por causa de uma sociedade de transmissão de jogos de futebol da liga espanhola, propriedade de Carlos Santos Silva e de Rui Pedro Soares, cuja existência ele desconhecia em absoluto. E clama: «Dêem-me o homem, encontrarei o crime», era preciso encontrar um crime para o condenar!

José Sócrates nega que alguma vez tivesse sido proprietário do apartamento de Paris, que pertencia, de facto, ao seu amigo Carlos Santos Silva. Aliás, quando se iniciaram as obras nesse apartamento, Sócrates alugou um outro na capital francesa, onde viveu até ao fim da sua estada em Paris.

Protesta também o autor pelo facto de ter aguardado trinta e seis meses para que o Estado tivesse deduzido qualquer acusação, depois de o prender e o difamar, quando ministros e deputados, em 2015, protestaram contra o facto de um cidadão português ter estado preso preventivamente e sem acuação, durante cinco meses, em Timor-Leste.

O livro contém numerosas citações de escritores e filósofos e está escrito num estilo que corresponde à personalidade do antigo primeiro-ministro. Não adianta muito sobre o que é do conhecimento público, embora permita salientar o facto de a sua detenção, em 21 de Novembro de 2014, filmada por uma cadeia de televisão convidada para o efeito, quando regressava de avião a Portugal, recorde outro espectáculo televisivo proporcionado pela Justiça: a detenção na Assembleia da República, em 21 de Maio de 2003, do deputado Paulo Pedroso, indiciado por pedofilia, e posteriormente absolvido por um tribunal comum. Penso eu de que a indicação às televisões de que uma pessoa vai ser detida constitui não só uma violação (entre muitas) do segredo de justiça como um profundo desprestígio para a própria Justiça. 

Não refere José Sócrates, no seu livro, a questão do recebimento de numerosas quantias em numerário que constitui, julgo, uma das coisas que mais intriga o cidadão comum. Tratando-se de importâncias avultadas, porque não utilizar os mecanismos de transferência bancária ou emissão de cheque? Até porque não é natural transportar em mão tanto dinheiro. Esta foi uma das questões a que José Sócrates não respondeu na entrevista que concedeu à TVI depois do despacho de pronúncia, e que teria constituído uma oportunidade de esclarecimento. Confesso que, assistindo à entrevista, me impressionou a agressividade de José Sócrates para com o jornalista, que também não conduziu da melhor forma a conversa.

O despacho de pronúncia do juiz Ivo Rosa provocou um sobressalto cívico, e pessoas desvairadas subscreveram uma petição a pedir a remoção do juiz. Até o inefável Marques Mendes disse no seu comentário habitual na SIC que o juiz era um perigo público ou um perigo à solta, já não me recordo exactamente dos termos, talvez fossem mesmo os dois. Essas pessoas ignoram, ou fingem ignorar, que os juízes são juridicamente irresponsáveis e inamovíveis, e que existe um órgão chamado Conselho Superior da Magistratura, presidido pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, para apreciar o comportamento dos juízes.

Não sou jurista mas presumo que Ivo Rosa aplicou a lei segundo as melhores interpretações. E se assim não foi, o recurso para o Tribunal da Relação, de imediato anunciado pelo Ministério Público, permitirá decidir da bondade das decisões. Aliás, também José Sócrates recorreu para a Relação do respectivo despacho de pronúncia.

A questão da corrupção, que agora regressou em força às páginas dos jornais, às ondas da rádio e aos ecrans de televisão é velha como o mundo. Suponho que existe já legislação suficiente, ou até talvez excessiva, para tentar prevenir a corrupção. Talvez não existam os meios adequados e talvez haja alguma corrupção que seja, por natureza, indetectável. Depende também da dimensão da mesma. Há países onde a corrupção é endémica, e em que é praticada desde o pedinte de rua até ao magistrado supremo, cada um na sua escala. Nestes casos, nunca poderá ser eliminada.

Mas é necessário evitar que a Respublica seja minada por aquele tipo de corrupção que extravasa do que poderíamos chamar a "esfera doméstica", que integra o quotidiano dos cidadãos e que por esse facto nem mesmo se chama corrupção. O que não pode acontecer é os agentes do Estado receberem favores em troca de decisões parciais.

Regressando agora ao livro de José Sócrates e à "Operação Marquês". Com tantos "cancelamentos" de actos acusatórios, alguns deles por se encontrarem prescritos, outros por infundamentação da acusação, parece que a investigação do Ministério Público não se encontrará suficientemente concretizada, apreciação que caberá naturalmente ao Tribunal da Relação. Embora mesmo assim José Sócrates discorde da pronúncia do juiz Ivo Rosa.

Presumo que este processo ou mega-processo (uma deficiência já reconhecida pelo presidente do Supremo) de muitos milhares de páginas e de horas de escutas não conhecerá um desfecho nos próximos tempos. Dos recursos do despacho de pronúncia para a Relação, da apreciação e decisão da Relação, do envio do processo para o tribunal de 1ª Instância, dos eventuais recursos para a Relação da decisão da 1ª Instância, ou mesmo de recursos para o Supremo, vão decorrer anos. 

Por isso há quem pergunte se não seria melhor haver processos de dimensão razoável para poderem ser apreciados num razoável período de tempo. O que leva muita gente a interrogar-se se estes processos não terão um carácter político, como já se disse acerca do processo da Casa Pia. 

Aguardemos...