domingo, 25 de outubro de 2020

MEMÓRIAS DE ADRIANO


 «Les dieux n'étant plus et le Christ n'étant pas encore, il y a eu de Cicéron à Marc Aurèle un moment unique où l'homme seul a été.» 

Gustave Flaubert

 

Em 1951, Marguerite Yourcenar (1903-1987) publicou Mémoires d'Hadrien, que se tornaria desde então um livro de culto para diversas gerações. Profundamente imbuída de cultura clássica, utilizando um estilo límpido como os céus da Grécia e sereno como as águas do Egeu, Yourcenar conta neste romance histórico a vida do imperador Adriano ou, mais propriamente, a vida que ela imaginou, ou gostaria que tivesse sido, a de Públio Élio Adriano (76-138), imperador de Roma de 117 a 138, célebre a muitos títulos, mas especialmente pela sua paixão pelo jovem favorito Antínos.

Esta obra de Marguerite Yourcenar foi traduzida pela primeira vez em português por Maria Lamas e publicada pela Editora Ulisseia, creio que nos anos 60, mas a data não consta do livro. Maria Lamas conhecera Yourcenar quando esteve exilada em Paris, e eu mesmo troquei rápidas palavras com a insigne escritora franco-belga, por ocasião da sua deslocação a Portugal para uma homenagem na Fundação Calouste Gulbenkian, em que intervieram, que me recorde, Agustina Bessa-Luís e David Mourão-Ferreira.

Refira-se que Marguerite Yourcenar foi a primeira mulher a ingressar na Academia Francesa, eleita em 1980 para ocupar a cadeira que pertencera a Roger Caillois.

O romance está escrito sob a forma de uma carta de Adriano dirigida ao jovem Marco (o futuro imperador Marco Aurélio), então com 17 anos, em que lhe descreve a sua vida e lhe prodigaliza conselhos sábios quanto à maneira como governar o Império.

Adriano e Eu (Museu do Vaticano)


Convém precisar aqui alguns aspectos da História de Roma.

Após o assassinato de Domiciano, em 96, o Senado proclamou imperador um ancião ilustre, Nerva, bom administrador mas cujo reinado duraria apenas até 98, quando morreu de morte natural. Nerva, que devido a algumas pressões da Guarda Pretoriana nomeara como sucessor o general Trajano, foi considerado por Edward Gibbon, no seu livro História do Declínio e Queda do Império Romano (1776-1788), juntamente com os seus quatro sucessores, como os "cinco bons imperadores de Roma".

Trajano distinguiu-se especialmente na carreira militar, como o atesta a famosa Coluna Trajana, em Roma, e manteve próximo de si o seu jovem primo Adriano, a quem encarregou de importantes missões. E embora lhe tenha ofertado o anel que recebera de Nerva, nunca o designou oficialmente como sucessor.  Quando regressava a Roma, já doente, depois de uma das muitas campanhas militares, Trajano morre no caminho, em 117. Surge então um documento, assinado pela imperatriz-viúva Plotina, declarando que Trajano adoptara Adriano, então com 40 anos. Alguns duvidaram da autenticidade da escolha, já que Trajano hesitara sempre quanto à designação de um sucessor, mas o Senado acabou por proclamar Adriano como imperador.

Adriano casou com Sabina, sobrinha-neta de Trajano, mas viveram sempre distantes e não tiveram filhos. Era aliás conhecido o pouco interesse de Adriano pelas mulheres e a sua permanente atracção pelos belos rapazes não só de Roma mas dos que povoavam as várias regiões do Império. Voltaremos aos favoritos mas regressemos agora à questão das adopções.

Não tendo filhos, Adriano resolvera nomear como sucessor Lúcio Élio Vero, que fora uma das suas paixões e o qual adoptara como filho. Porém, a morte prematura deste, pouco antes da própria morte de Adriano, obrigou o imperador a alterar os seus planos. Assim, designou em 138 como sucessor, meses antes de morrer, Antonino Pio, que também fora seu favorito, mas com a obrigação dele adoptar como sucessores Marco Ânio Vero (o futuro Marco Aurélio), seu parente próximo, e Lúcio Vero, o filho de Lúcio Élio Vero. Assim sucedeu e os dois vieram a reinar.

Antonino Pio foi imperador de 138 a 161. Depois, Marco Aurélio, de 161 a 180, e Lúcio Vero, de 161 a 169 (quando morreu vítima da peste). Tinham feito a primeira partição do Império, mais tarde oficializada por Diocleciano.

As principais fontes a que Marguerite Yourcenar recorreu para a composição do seu romance foram a História Romana, de Dion Cassius (155?-235?), e a Historia Augusta, de seis autores que adiante referiremos.

A História Romana, de Dion Cassius (Cassius Dio Cocceianus), historiador romano de expressão grega, começa com a fundação de Roma e termina no reinado de Alexandre Severo, isto é, abrangendo quase mil anos da história de Roma. Compunha-se de 80 livros de que chegaram aos nossos dias apenas os livros XXXVII a LX, ou seja de 68 AC até à morte de Cláudio em 54 DC. A obra integral foi utilizada no Império Bizantino até ao século XII, tendo uma parte dos volumes desaparecido depois com diversas pilhagens e o saque de Constantinopla. Conservaram-se alguns fragmentos e existem duas epítomes de autores bizantinos: a de Xiphilin, que abrange os livros XXXVI a LXXX (com a lacuna dos reinados de Antonino e de Marco Aurélio); e a de Zonaras, que abrange os livros I a XX e XLIV a LXVII, estando já perdidos no seu tempo os livros XXII a XXXV. A obra terá sido iniciada em 207 (ou 217, segundo outras fontes) e terminada cerca de 219, e poderá ter sido utilizada pelo autor da Historia Augusta, pelo menos em alguns episódios.

Existem algumas edições com os livros ou fragmentos dos livros da História Romana. O exemplar que possuo (edição bilingue, grego e francês, organizada por Étienne Gros, Paris, 1845) abrange fragmentos dos livros I a XXXVI, isto é, desde a fundação de Roma até às Guerras Púnicas. Não se encontrando editado nesta colecção o livro LXIX (a vida de Adriano), obtive o mesma num opúsculo (Hadrien) das edições Paleo, que inclui também a vida do imperador constante da Historia Augusta, redigida por Aelius Spartianus.

A Historia Augusta é uma das obras mais enigmáticas da Antiguidade. Trata-se de uma recolha de biografias dos imperadores romanos, mas com um tratamento diferente de outras obras do género, como a de Suetónio. E constitui a mais extensa fonte de informação relativa ao período considerado, isto é, de 117 a 285, com uma lacuna de dezasseis anos (244-260). Começa com a "Vida de Adriano" e acaba com a morte de Carus. Inclui trinta Vidas, sendo as primeiras individuais, depois, incluindo mais do que um imperador, voltando a ser individuais e acabando por voltar a ser colectivas. A obra é devida a seis escritores (scriptores), que sem terem trabalhado em equipa repartiram a tarefa entre si. Sabemos os seus nomes: Aelius Spartianus, Julius Capitolinus, Vulcacius Gallicanus, Aelius Lampridius, e após a interrupção, Trebellius Pollion e Flavius Vopiscus. O título da colectânea (Historia Augusta) é arbitrário. Foi-lhe atribuído pelo humanista protestante Isaac Casaubon, bibliotecário de Henrique IV, em 1603, numa das primeiras edições impressas. Ignora-se qual o verdadeiro título da obra quando foi "publicada" pela primeira vez, mas existem, todavia, outras designações utilizadas ao longo dos tempos. Não cabe no espaço deste post descrever as investigações sobre a sua génese, um debate que tem apaixonado os especialistas, especialmente nos últimos cem anos. Segundo as mais recentes pesquisas, a Historia Augusta terá sido escrita entre 390 e 400. O seu autor (há quem sustente, opinião hoje largamente partilhada, que os seis nomes serão o pseudónimo de uma única pessoa), conheceria já a História (Res Gestae), de Ammianus Marcellinus, pelo que este período é perfeitamente admissível.

Uma outra questão se coloca relativamente à Historia Augusta: porquê começar por Adriano? Tendo o autor declarado que tomou Suetónio por modelo, seria lógico continuar a obra deste, que termina com o reinado de Domiciano. Então, a obra deveria ter-se iniciado com Nerva e Trajano e só a seguir Adriano. Há quem afirme que existiria um primeiro fascículo desaparecido com as Vidas de Nerva e de Trajano, mas esta hipótese é pouco plausível. Para esta pergunta não existe resposta.

O plano e o conteúdo de cada Vida obedece às regras gerais em matéria de composição e o seu modelo é Vidas dos Doze Césares, de Suetónio, com algumas flutuações quanto à utilização de arquivos públicos ou privados.

O tratamento das Vidas da Historia Augusta pode agrupar-se da seguinte forma:

1) Vidas principais (até Caracala):
- Adriano (Aelius Spartianus)
- Antonino Pio (Julius Capitolinus)
- Marco Aurélio (Julius Capitolinus)
- Vero (Julius Capitolinus)
- Cómodo (Aelius Lampridus)
- Pertinax (Julius Capitolinus)
- Dídio Juliano (Aelius Spartianus)
- Septimio Severo (Aelius Spartianus)
- Caracala (Aelius Spartinaus)

2) Vidas secundárias:
- Élio (Aelius Spartianus)
- Avídio Cássio (Vulcacius Gallicanus)
- Pescénio Níger (Aelius Spartianus)
- Clódio Albino (Julius Capitolinus)
- Geta (Aelius Spartianus)

Adriano (Antigo Museu Greco-Romano de Alexandria)

3) Vidas intermédias:
- Macrino (Julius Capitolinus)
- Diadumeniano (Aelius Lampridius)
- Heliogábalo (Aelius Lampridius)
- Alexandre Severo (Aelius Lampridius)
- Os dois Maximinos (Julius Capitolinus)
- Os três Gordianus (Julius Capitolinus)
- Máximo e Balbino (Julius Capitolinus)

4) O problema da lacuna
Entre 244 e 260 há uma lacuna em todos os manuscritos de que dispomos. Faltam as Vidas de Filipe, o Árabe e de seu filho homónimo (244 a 249), de Décio e de seu filho Hostiliano (249-251), de Treboniano Galo e Volusiano (251-253), de Emiliano (253) e do próprio Valeriano (253-260). Existem várias explicações, entre as quais a perda do caderno respectivo ou o facto de não terem sido escritas, mas é matéria que transcende os objectivos deste texto.

5) As últimas Vidas:
- Os dois Valerianos (Trebellius Pollion)
- Os dois Galianos (Trebellius Pollion)
- Os Trinta Tiranos (Trebellius Pollion)
- Cláudio, o Gótico (Trebellius Pollion)
- Aureliano (Flavius Vopiscus)
- Tácito (Flavius Vopiscus)
- Probo (Flavius Vopiscus)
- Quadriga dos Tiranos (Flavius Vopiscus)
- Caro, Carino e Numeriano (Flavius Vopiscus)

Adriano (Antigo Museu Greco-Romano de Alexandria)


Antonino Pio (Palácio Altemps, Roma)

A Historia Augusta que estou a consultar, estabelecida pelo professor André Chastagnol, um especialista da Antiguidade, é uma edição bilingue (latim e francês) de quase mil e quatrocentas páginas, dotada de um vasto aparato crítico. As referências anteriores pretenderam apenas dar uma ideia da organização do livro, pelo que passarei de imediato para a Vida de Adriano, que é, neste caso, o que verdadeiramente interessa.

Ao escrever a vida de Adriano, Yourcenar reconstrói aquilo que para ela foi, ou deveria ter sido, a vida do imperador Publius Aelius Hadrianus, desde o nascimento até próximo da morte, sob a forma de uma carta endereçada a Marc (Marco Aurélio), então com 17 anos, seu protegido e sobrinho de Antonino Pio, a quem sucederia depois da sua morte. Antonino, que sucedeu imediatamente a Adriano, era sobrinho deste, sendo filho de Rupilia Faustina, irmã de Vibia Sabina, a mulher de Adriano.

Adriano (Palácio Altemps, Roma)

A carta é um "testamento" de Adriano, em que este dá conselhos ao seu futuro sucessor e traça a sua biografia, os seus sucessos não isentos de revezes, as suas virtudes mas também as suas misérias, a efemeridade da glória. Como disse acima, Marguerite Yourcenar baseou-se na história real sem renunciar naturalmente à efabulação, sempre que tal convinha à economia do romance e também para suprir lacunas ou aspectos da vida do imperador historicamente menos bem documentados.

Marguerite Yourcenar concebeu e escreveu parcialmente Mémoires d'Hadrien entre 1924 e 1929. Recomeçou-o em 1934, com sucessivas interrupções até 1937. Nova pausa entre 1937 e 1939. Projecto abandonado de 1939 a 1948. Quando em 1948 recebe nos Estados Unidos, onde passara a viver, uma mala com papéis que deixara na Europa, antes da Guerra, reencontra o manuscrito do futuro livro. Uma visita à Villa Adriana, nas proximidades de Roma, decide-a finalmente a concluir a obra, que será publicada em 1951 e traduzida depois em numerosas línguas.

Só a leitura do livro permite que nos apercebamos da grandeza da obra. Mas importa consignar algumas referências, nomeadamente à paixão de Adriano por Antínos, assunto predilecto de Yourcenar e que tem sido objecto do estudo dos maiores historiadores. Aliás, sobre Antínos e as suas relações com Adriano existe uma obra muito bem documentada, Beloved and God, de Royston Lambert, cuja apreciação reservaremos para uma outra oportunidade.

Antínos, (Palácio Altemps, Roma)

Segundo os dados de que dispomos, Antínos terá nascido na Bítinia no ano 110 (112 para alguns especialistas) e morreu no Egipto em Outubro de 130. No seu livro, Lambert descreve o encontro do imperador com o rapaz e de como este se tornou o mais importante dos seus favoritos, o seu amante predilecto, acompanhando-o em todas as expedições. Antínos morreu afogado no rio Nilo, durante uma das estadas de Adriano no Egipto, em condições não completamente esclarecidas. Não parecendo provável que tivesse sido assassinado, prevalece hoje a tese de que se tratou de um suicídio, talvez um suicídio ritual, já que ambos haviam sido iniciados nos mistérios de Elêusis. O jovem terá sacrificado a sua vida ao imperador, talvez para obter para este o favor dos deuses, ou, segundo outra tese (uma vez que atingira os vinte anos e começara a perder os seus encantos, segundo o modelo pederástico grego), teria entendido que a sua carreira como catamita terminara. O seu corpo foi encerrado num caixão de cedro, como era próprio dos faraós e, como escreve Yourcenar no seu livro (p. 237-8) «...les prêtres égyptiens avaient fait graver sur le cercueil d'Antinoüs: Il a obéi à l'ordre du ciel

Antínos (Museu Capitolino, Roma)

O desgosto de Adriano foi indescritível. Algumas semanas após a morte do rapaz, o imperador decretou a sua deificação, instituiu o seu culto e mandou construir uma cidade com o seu nome perto do lugar onde ele se afogara, Antinópolis, próximo de Hermópolis, na actual região de Minya. Ordenou também que se erguessem centenas de estátuas e dezenas de templos por todo o Império. Nas escavações das últimas décadas na Villa Adriana foram encontradas as ruínas de um templo dedicado a Antínos.

Panteão de Roma (Mandado construir por Marcus Agrippa, durante o reinado de Octávio César Augusto, e profundamente restaurado por Adriano)

Doente e fatigado, também devido à grande insurreição dos judeus na Palestina, a terceira guerra judaica-romana, desencadeada por Adriano se ter oposto à circuncisão dos jovens, o imperador decidiu por fim regressar à Itália, fundamentalmente por duas razões: «Je me disais que seules deux affaires importantes m'attendaient à Rome; l'une était le choix de mon successeur, qui intéressait tout l'empire; l'autre était ma mort, et ne concernait que moi.» (p. 270). Os seus amigos julgavam-no entretanto restabelecido, mas: «Mes amis s'émerveillaient d'un rétablissement en apparence si complet; ils s'efforçaient de croire que cette maladie n'était due qu'aux efforts excessifs de ces années de guerre, et ne recommencerait pas; j'en jugeaient autrement; je pensais aux grands pins de Bithynie, que le bûcheron marque en passant d'une entaille, et qu'il reviendra jeter bas à la prochaine saison. Vers la fin du printemps, je m'embarquais pour l'Italie sur un vaisseau de haut bord de la flotte; j'emmenais avec moi Céler, devenu indispensable, et Diotime de Gadara, jeune Grec de naissance servile, rencontré à Sidon, et qui était beau.»  (pp. 269-70). Céler e Diotime foram os últimos favoritos do imperador: «Je fis durant ce dernier séjour à l'armée une renconter inestimable: je pris pour aide de camp un jeune tribun nommé Céler, à qui je m'attachai. Tu le connais; il ne m'a pas quitté. J'admirais ce beau visage de Minerve casquée, mais les sens eurent somme toute aussi peu de part à cette affection qu'ils peuvent en avoir tant qu'on vit. Je te recommande Céler: il a toutes les qualités qu'on désire chez un officier placé au second rang; ses vertus mêmes l'empêcheront toujours de se pousser au premier. Une fois de plus, j'avais retrouvé, dans des circonstances un peu différentes de celles de naguère, un de ces êtres dont le destin est de se devouer, d'aimer, et de servir. Depuis que je le connais, Céler n'a pas eu une pensée qui ne soit pour mon confort  ou ma sécurité; je m'appuie encore à cette ferme épaule.» (p. 257)

Adriano e Eu  (Museu Capitolino, Roma)

As guerras com os judeus apoquentaram os últimos anos do reinado de Adriano. Yourcenar descreve os pretextos utilizados pelos zelotas para perturbar a Pax Romana: «Enfin, ce même Tinéus Rufus, homme par ailleurs fort sage, et qui n'était pas sans s'intéresser aux fables et aux traditions d'Israël, décida d'étendre à la circoncision, pratique juive, les pénalités sévères de la loi que j'avais récemment promulguée contre la castration, et qui visait surtout les sévices perpétrés sur de jeunes esclaves dans un but de lucre ou de débauche. Il espérait oblitérer ainsi l'un des signes par lesquels Israël prétend se distinguer du reste du genre humain. Je me rendis d'autant moins compte du danger de cette mesure, quand j'en reçus l'avis, que beaucoup des Juifs éclairés et riches qu'on rencontre à Alexandrie et à Rome ont cessé de soumettre leurs enfants à une pratique qui les rends ridicules aux bains publics et dans les gymnases, et s'arrangent pour en dissimuler sur eux-mêmes les marques. J'ignorais à quel point ces banquiers collectionneurs de vases myrrhins différaient du véritable Israël.» (p. 253)

Adriano (Museu Arqueológico, Roma)

«... En principe, le Judaïsme a sa place parmi les religions de l'empire; en fait, Israël se refuse depuis des siècles à n'être qu'un peuple parmi les peuples, possédant un dieu parmi les dieux. (...) Aucun peuple, sauf Israël, n'a l'arrogance d'enfermer la vérité toute entière dans les limites étroites d'une seule conception divine, insultant ainsi à la multiplicité du Dieu qui contient tout; aucun autre dieu n'a inspiré à ses adorateurs le mépris et la haine de ceux qui prient à de différents autels.» (pp. 253-4) «Un aventurier sorti de la lie du peuple, un nommé Simon, qui se faisait appeler Bar Kochba, le Fils de l'Étoile, joua dans cette révolte le rôle de brandon enduit de bitume ou de miroir ardent.» (p. 254) «Je ne le nie pas: cette guerre de Judée était un de mes échecs. Les crimes de Simon et la folie d'Akiba n'étaient pas mon oeuvre, mais je me reprochais d'avoir été aveugle à Jérusalem, distrait à Alexandrie, impatient à Rome.» (p. 258) «Le courrier du soir venait de m'apprendre que nous nous étions rétablis sur le tas de pierres éboulées que j'appelais Aelia Capitolina et que les Juifs nommaient encore Jérusalem; nous avions incendié Ascalon; il avait fallu exécuter en masse les rebelles de Gaza... Si seize ans du règne d'un prince passionnément pacifique aboutissaient à la campagne de Palestine, les chances de paix du monde s'avéraient médiocres dans l'avenir.» (p. 259) «La Judée fut rayée de la carte, et prit par mon ordre le nom de Palestine. (...) La remise en état du pays suivit immédiatemment les travaux de la guerre; Aelia Capitolina fut rebâtie, à une échelle d'ailleurs plus modeste; il faut toujours recommencer.» (p.269)

O actual Castel Sant'Angelo, mandado construir por Adriano para lhe servir de mausoléu




Castel Sant'Angelo (Local destinado à urna com os restos mortais de Adriano)

Nos seus "Carnets de notes" incluídos no fim do livro, Yourcenar escreve (pp. 342-3): «Le 26 décembre 1950, par un soir glacé, au bord de l'Atlantique, dans le silence presque polaire de l'Île des Monts Déserts, aux États-Unis, j'ai essayé de revivre la chaleur, la suffocation d'un jour de juillet 138 à Baïes, le poids du drap sur les jambes lourdes et lasses, le bruit presque imperceptible de cette mer sans marée arrivant ça et lá à un homme occupé des rumeurs de sa propre agonie. J'ai essayé d'aller jusqu'à la dernière gorgée d'eau, le dernier malaise, la derniére image. L'empereur n'a plus qu'à mourir.» E: «Ce livre n'est dédié à personne. Il aurait dû l'être à G. F..., [Grace Frick, a companheira de Marguerite Yourcenar] et l'eût été, s'il n'y avait une espèce d'indécence à mettre une dédicace personelle en tête d'un ouvrage d'où je tenais justement à m'effacer.»

Antínos (Museu de Pergamon, Berlim)

Antínos (Glyptothek, Munique)


Adriano (Glyptothek, Munique)

Antínos (Hermitage, São Petersburgo)

A vida de Adriano, como Marguerite Yourcenar bem o demonstra e a História regista, é um assunto inesgotável. Também a sua paixão por Antínos se revelou um tema universal. Não o permite o espaço, nam as minhas forças, prosseguir com mais considerações, já que a todos é acessível o livro de Yourcenar, e para os mais interessados a consulta de algumas fontes. Pretendi apenas chamar a atenção para este momento extraordinário da história da antiga Roma e consignar alguma iconografia, da imensa que existe sobre o Imperador e o seu bem-amado Favorito.

Antínos (Museu Arqueológico Nacional, Atenas)

Adriano (Museu Arqueológico Nacional, Atenas)

Adriano (Museu Arqueológico Nacional, Nápoles)

Antínos e Eu (Museu Arqueológico Nacional, Nápoles)

 Muita coisa fica por escrever, mas agora, já sem paciência para procurar fotos de outros museus por onde passei, me despeço deste post.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

O FAUSTO DE THOMAS MANN

 

O último grande livro publicado por Thomas Mann (1975-1955), depois do êxito de Os Budenbrooks, A Montanha Mágica e José e os seus Irmãos, foi o Doutor Fausto (1947), inspirado na lenda alemã de Fausto, o velho alquimista que vendeu a alma ao Diabo.

Segundo as escassas fontes, terá existido historicamente um Doutor Johann Gregor Faust (1480-1540, aproximadamente), que se dedicava às ciências ocultas e estudara em Cracóvia. Há o registo de um outro Fausto, talvez o mesmo, Georgius Sabellicus Faustus, homossexual, que ensinou na universidade de Heildelberg e foi expulso por assediar os seus alunos. Estamos num campo em que a história se mistura com a lenda.

Em 1587, foi publicada pela primeira vez em Frankfurt, por Johann Spies, a História do Doutor João Fausto, conhecida por Volksbuch (ou Faustbuch), embora haja testemunhos anteriores dos feitos praticados na Europa por um certo doutor Fausto. É a primeira obra escrita sobre o famoso homem que fez um pacto com diabo, trocando a alma pelos favores proporcionados pelo inferno.

Em 1592, foi publicada a versão inglesa do Volksbuch (The English Faust-Book), a partir da qual Marlowe escreveu a sua peça Doctor Faustus, provavelmente ainda nesse ano, já que foi assassinado, em circunstâncias nunca suficientemente esclarecidas, em 30 de Maio de 1593. É a última peça de Christopher Marlowe e revela indiscutivelmente o seu carácter autobiográfico. Marlowe é um homem do Renascimento (como Shakespeare, ambos nascidos em 1564) e o seu destino assemelha-se ao de Fausto e pode resumir-se na frase inspirada de R. M. Dawkins: «The story of a Renaissance man who had to pay the medieval price for being one». 

A primeira edição do Fausto de Marlowe data de 1604: The Tragical History of Doctor Faustus e é conhecida por versão A, dela existindo um único exemplar. Foi reimpressa em 1609 (Versão A2) e em 1611 (Versão A3). Em 1616, surgiu um texto algo diferente, The Tragical History of the Life and Death of Doctor Faustus (Versão B), de que existe também apenas um exemplar e que foi objecto de várias reimpressões no século XVII.

Existe alguma controvérsia sobre as datas das primeiras versões escritas da história de Fausto, quer em alemão, quer em inglês. Os eruditos na matéria prosseguem as suas investigações.

Ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX o tema de Fausto foi objecto das mais variadas abordagens quer na literatura, quer na música, quer, mais tarde, no cinema.

Referem-se as mais importantes. Em 1808, Goethe publica a 1ª Parte do seu poema dramático Faust. A 2ª Parte será publicada postumamente em 1832. Em 1836, Nikolaus Lenau publica Faust e em 1851, Heinrich Heine publica Der Doktor Faust. Ein Tanzpoem. Em 1925, Michel de Ghelderode publica La mort du Docteur Faust. Entre 1928 e 1940, Mikhail Bulgakov escreveu O Mestre e Margarida, cuja versão censurada foi publicada numa revista de Moscovo em 1966-1967 e foi editada em Paris em 1967. Em 1933, Klaus Mann escreve Mephisto. Em 1937, Stephen Vincent Benét publica The Devil and Daniel Webster, baseado em The Devil and Tom Walker, de Washington Irving (1824). Em 1946 surge Mon Faust, de Paul Valéry e em 1963 An Irish Faustus, de Lawrence Durrell. Além de vários outros que podem ser facilmente pesquisados.

Em 1910, aproximadamente, Fernando Pessoa começa a escrever o Fausto, Tragédia Subjectiva, cuja redacção se prolongará até à data da sua morte (1935), havendo uma primeira edição estabelecida em 1988. Júlio Dantas morre (1962), deixando apenas começada a sua peça A Tentação do Doutor Fausto.

Michel de Ghelderode/Lawrence Durrell

Em 1828, Gérard de Nerval traduziu, adaptando-o, o Faust, de Goethe.

Na música, pode referir-se Faust (abertura) (1840), de Wagner, La Damnation de Faust (1846), de Berlioz, Szenen aus Goethes Faust (1853), de Schumann, Faust (sinfonia) (1857), de Liszt, Faust (1865), de Gounod, Mefistofele (1868), de Arrigo Boito, Sinfonia nº 8 (1906), de Mahler, Doktor Faust (1925), de Ferruccio Busoni, entre outras obras.

No cinema, mencione-se Faust (1926), de Murnau, La Beauté du diable (1950), de René Clair, Phantom of the Paradise (1974), de Brian DePalma, Mephisto (1981), de István Szabó, Faust (2011), de Sokurov, etc.


Um assunto inesgotável!!!

Não pretendendo alongar-me sobre  o tema, regressemos a Thomas Mann. O escritor publicou Doktor Faustus em 1947, um ano crucial para o autor. A ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, a perseguição dos judeus (a mulher de Mann era judia, logo os filhos também), a censura cultural, levaram certamente à redacção desta obra e ao exílio do escritor. Já em Fevereiro de 1933, por ocasião de um ciclo de conferências sobre Richard Wagner, no 50º da sua morte, proferidas em Munique, Amesterdão e Bruxelas, e que desagradaram a Hitler, particularmente cioso do seu culto pelo compositor germânico, foi desencadeada uma campanha que afectou profundamente Mann, em especial porque o NSDAP conseguiu que fosse publicado um manifesto contra as suas opiniões, subscrito por 45 importantes individualidades das letras e das artes, entre as quais o famoso maestro Hans Knappertbusch e o compositor Richard Strauss, que professavam simpatias pelo nazismo, a exemplo do filósofo Martin Heidegger e do maestro Herbert von Karajan.

O Fausto de Thomas Mann é diferente da versão clássica. O escritor encena a vida do famoso compositor (fictício) Adrian Leverkühn narrada pelo seu amigo Serenus Zeitblom. O compositor seria o criador da música dodecafónica ou serial, tarefa aliás empreendida por Arnold Schönberg, ao qual, no fim do livro, Mann consagra uma nota de esclarecimento, como que a pedir desculpa por ter atribuído à sua personagem a paternidade do sistema atonal.

Tradução portuguesa de Luiza Neto Jorge

O livro conta o pacto satânico estabelecido numa casa de passe por Leverkühn, ao contrair voluntariamente a sífilis com a prostituta Esmeralda, e a quem o Diabo privilegiou com o génio, em troca de uma irremediável solidão - a impossibilidade de amar. Leverkühn, que lembra de certa forma Nietzsche, que nunca é citado no livro, e de cuja vida são retirados os episódios da casa de passe, da prostituta e da doença venérea. 

O Título original é мастер и маргарита (O Mestre e Margarita)

Grosso volume de mais de 500 páginas (em letra miudinha), o Doktor Faustus, de Thomas Mann, evoca simbolicamente o pacto de sangue da Alemanha nazi, na sua hubris guerreira de conquista do mundo.

Sobre esta obra de Thomas Mann, realizou Franz Seitz um filme homónimo (1982), em que condensa brilhantemente o romance, existindo duas versões, o filme propriamente dito (duas horas) e a série televisiva (três horas).

A vida e a obra de Thomas Mann (Prémio Nobel da Literatura em 1929) e da sua família e o mito de Fausto ao longo da História, de que aqui se registam meros apontamentos, são um inesgotável filão do conhecimento. Compete aos interessados fazer as suas próprias pesquisas.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

LAWRENCE DURRELL E O QUINTETO DE AVINHÃO

Com Lívia ou O Enterrado Vivo, prosseguimos a leitura do "Quinteto de Avinhão". Neste segundo romance, surgem personagens já referidas no último capítulo do volume anterior, como Blanford ou Sutcliffe. 

A preocupação de Durrell pelos comportamentos sexuais é constante ao longo do livro. Blanford é casado com Lívia, que é lésbica e mantém relações com o marido pensando em outras mulheres durante a consumação do acto. Constance é irmã de Lívia e Blanford nutre por ela uma especial paixão. Mas as duas irmãs também se envolvem sentimentalmente. Há, igualmente, uma negra Trash, objecto do desejo de Lívia.

O autor procede a minuciosas descrições da natureza e dos interiores, o que nos permite situar devidamente a acção, mas que se afiguram exageradas no contexto da obra. Não é necessário tanto pormenor para embrulhar os factos. 

O romance decorre na zona de Avinhão (Avignon), tal como acontecia numa parte do volume anterior, já que fora nesta região que Durrell finalmente se instalara, depois de uma vida passada em vários países.

O texto não é desprovido de humor e compraz-se em assinalar muitas cenas caricatas, além do que contém uma crítica acerba à sociedade da época.

Escrito nos anos setenta, em Lívia Durrell dá conta da preocupação existente relativamente às doenças venéreas  (ainda não entrara em cena o HIV). Por exemplo: «Por qualquer razão que a ciência desconhece, Sutcliffe tinha o hábito de trazer duas camisas-de-vénus nas dobras das suas largas calças. Essas coisas eram muito caras e ele reservava-as apenas para Effie; depois de usadas ele lavava-as e punha-as de pé a secar em cima da prateleira do fogão do seu minúsculo quarto durante uma hora» (p. 62) 

Também a cena no bordel é de certa forma gratuita. O príncipe Hassad, a quem o diplomata judeu britânico Lord Galen havia convidado para uma empresa de pesquisa do tesouro dos Templários, é levado a seu pedido a uma casa de passe, o bordel de Riquiqui. Aí, no meio de várias peripécias, o príncipe, em ceroulas e com um pequeno pénis de fora, entrega-se a actos libidinosos com uma anã gorda, duas pequerruchas com trajes da primeira comunhão e dois cães galgos afegãos, na presença de Quatrefages, o secretário de Galen, envergando apenas uma camisa, e sendo espiados por Blanford e Felix Chatto, o vice-cônsul, sobrinho de Galen. Este, antipatizando com a palavra "judeu" intitula-se "homem de Manchester" (p. 125)

Durrell escolhe para as suas personagens os nomes mais estranhos e que propiciam a confusão numa trama já assaz confusa. Dadas as simpatias de Lord Galen (apesar de judeu) por Hitler, aquele descreve uma frutuosa reunião com o Führer: «Não era possível deixar de acreditar nas promessas formais de um tal homem; a sua sinceridade era absolutamente convincente. Notem, ele não era um jovem exaltado mas um homem maduro que tinha passado toda a guerra como simples sargento.» (p. 126). Sendo do conhecimento geral que Hitler serviu na Primeira Guerra Mundial como cabo, nunca tendo sido promovido a sargento, trata-se ou de um engano de Durrell ou de um erro de tradução. Esta é de facto muito deficiente, tal como a do volume anterior, e certamente a dos próximos três volumes do "Quinteto" e encontra-se pejada de gralhas tipográficas. Não se compreende, portanto, como é que o tradutor, Daniel Gonçalves (que já traduzira, razoavelmente, o "Quarteto de Alexandria"), foi galardoado, precisamente por este livro, com o Grande Prémio de Tradução Literária, em 1986 (a primeira vez que o prémio foi concedido), ex-aequo com José Bento, prémio instituído pela Associação Portuguesa de Tradutores,  em associação com o PEN Clube Português e a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, e atribuído hoje com o patrocínio da Sociedade Portuguesa de Autores. Aparecem coisas como "Madame Batavsky" em vez de "Madame Blavatsky" (p. 160) ou «O futuro é mais visível da França do que de qualquer outro lugar porque os Franceses levam tudo aos extremos. Uma era audio-judaico-visual está a surgir - a época de Mouton Rotchild, onde a preeminência do pensamento judaico é visível em toda a parte, o que explica os ciúmes dos alemães.» (p. 172) Uma frase confusa, além do que "Franceses" em português é com "f" pequeno e "Rotchild" escreve-se "Rothschild". Também ajuda à confusão o facto de Durrell utilizar inúmeros trocadilhos em inglês, cujo efeito é nulo em qualquer outra língua.

Já no fim do livro, o príncipe Hassad oferece, no Pont du Gard, uma orgiástica festa nocturna para os seus novos e estranhos amigos, com a presença de dezenas de raparigas vindas propositadamente de vários locais de França, com a missão de serem prestáveis aos seus convidados. Menu principesco (incluído em apêndice), a condizer com o anfitrião, generosas bebidas, fogo de artifício. Uma conclusão absolutamente dispensável para a economia do livro.

A obra está recheada de referências culturais, a espelhar, muito ostensivamente, a erudição do autor, e também algumas das suas lacunas e precipitações. 

O livro termina com uma citação da Cidade de Deus, de Santo Agostinho: «Inter faesces et urinam nascimur» (Nascemos entre a merda e a urina). Uma conclusão adequada à obra.



domingo, 4 de outubro de 2020

LAWRENCE DURRELL OU A INQUIETAÇÃO ERÓTICA

A recente série televisiva "Os Durrell" suscitou-me o interesse de ler os volumes que compõem o chamado "Quinteto de Avinhão", há largos anos publicados e que aguardavam na minha biblioteca a sua oportunidade.

De facto, e à parte o célebre "Quarteto de Alexandria", que li e reli na devida altura (e ainda hoje nele mergulho), não tenho visitado frequentemente os outros livros de Lawrence Durrell (1912-1990), um escritor irregular, e com uma vida ainda mais irregular para os padrões da época, e, em alguns aspectos, para os actuais.

Explicitemos o "Quinteto de Avinhão" (ou de Avignon, se preferirem):

- Monsieur: or, The Prince of Darkness (1974) - Monsieur ou O Príncipe das Trevas (1984)

- Livia: or, Buried Alive (1978) - Lívia ou O Enterrado Vivo (1984)

- Constance: or, Solitary Practices (1982) - Constance ou Práticas Solitárias (s/d)

- Sebastian: or, Rulling Passions (1983) - Sebastian ou Paixões Dominantes (s/d)

- Quinx: or, The Ripper's Tale (1985) - Quinx ou A História do Estripador (1987)

Não cabe traçar aqui um escorço, mesmo resumido, da vida de Durrell, que pode ser consultado na Wikipédia, existindo várias biografias publicadas. Mas convém registar que ele teve sempre uma vida sentimental agitada - quatro casamentos desfeitos, três por divórcio e um por viuvez - além das numerosas ligações extra-conjugais e aventuras homossexuais, para lá de um final de vida que levantou algumas interrogações, como o suicídio por enforcamento de sua filha Sappho (em 1985, com 33 anos), com quem manteria uma relação incestuosa e que terá servido de inspiração para algumas das suas personagens. Aliás, toda a sua obra ficcional está envolta num ambiente erótico, evoca as mais estranhas experiências, e leva-nos a perguntar se é a vida a imitar a arte ou o seu contrário.

Neste texto, comentaremos apenas Monsieur ou O Príncipe das Trevas, em que, como nos volumes seguintes do "Quinteto", Durrell utiliza a mesma técnica empregada no "Quarteto de Alexandria" com muito bons resultados, mas que aqui acusa algum cansaço. O desdobramento das personagens, no espaço e no tempo, que fora receita bem sucedida, torna-se agora um factor de confusão, tal a variedade das situações e as inexactas recorrências históricas, apesar de o autor ser indubitavelmente um homem cultivado. Ou talvez até por isso. 

Um dos capítulos intermédios tem por cenário o Egipto, país onde passou alguns anos e que lhe deixou profundas recordações. E tem por objectivo introduzir-nos no Gnosticismo, mas a exposição de Durrell é confusa e pouco acessível para quem não tenha conhecimento dessa corrente herética. O início do livro acontece nos arredores de Avignon (zona onde Durrell viveu nos últimos anos da sua vida), no castelo dos protagonistas, pretensos descendentes de Guillaume de Nogaret, que foi chanceler de Filipe IV, o Belo, rei de França. Terá sido Nogaret o principal artífice da prisão dos Templários, e do seu julgamento, um processo sobre o qual ainda hoje pairam dúvidas, e que levou à destruição da Ordem do Templo (mais tarde extinta pelo Papa) e à condenação e morte de grande parte dos seus Cavaleiros, incluindo o Grão-Mestre Jacques de Molay, que foi queimado vivo. A luta entre os reis de França e o Papado acabaria por conduzir ao Cisma do Ocidente (1378-1417), com a existência de dois papas, um em Roma e outro em Avignon (e finalmente um terceiro em Pisa), que se excomungaram mutuamente, acusando o rival de antipapa. Gnosticismo, Templários e outras evocações históricas permitem a Durrell uma complicada efabulação, que nem sempre resulta por falta de verossimilhança.

Não conheço o original, mas a tradução portuguesa é irregular, às vezes inconsistente e contem numerosas gralhas tipográficas. Ocorre que a transliteração dos nomes árabes, no capítulo que decorre no Egipto, é manifestamente incorrecta. Como nos demais livros, a obsessão erótica está omnipresente e (com ou sem recorrência a Freud, muitas vezes citado) denota uma preocupação constante do autor, mesmo quando o desenvolvimento da intriga não carece de qualquer suporte envolvendo sexo. Não sendo propriamente homossexual, Lawrence Durrell teve experiências homossexuais na Índia, onde nasceu, e depois no colégio em Inglaterra, onde começou a sua educação, ainda que não chegasse a obter  qualquer grau académico. Casou-se pela primeira vez em 1935, ano em que embarcou com a família para Corfu, e aí permaneceu até 1942, data da sua partida para o Egipto. As reminiscências desse passado, a memória de Cavafy, as recordações da estada alexandrina de E.M. Forster, o contacto com Henry Miller, o contributo literário de outros grandes escritores, como Gide, tiveram uma influência decisiva na escrita de Durrell: assim, perpassam pelos nossos olhos cenas de homossexualidade masculina, lesbianismo, travestismo, sado-masoquismo, prostituição, incesto, voyeurisme, ménage à trois, rituais iniciáticos e satânicos, sacrifícios macabros e toda uma panóplia de recursos eróticos manuseada com grande à-vontade pelo autor.

Segundo os seus biógrafos, Lawrence Durrell foi várias vezes proposto para o Prémio Nobel da Literatura, que nunca obteve, segundo os mesmos, devido ao obsessivo carácter sexual da sua obra.

Por curiosidade, publica-se uma fotografia de Lawrence Durrell em adulto e uma do actor Josh  O'Connor, que interpretou o papel de Durrell em jovem ("Larry"), na recente série televisiva "Os Durrell", e se vê aqui numa cena homossexual no filme God's Own Country.

Lawrence Durrell

Josh O'Connor (à direita)