Com Lívia ou O Enterrado Vivo, prosseguimos a leitura do "Quinteto de Avinhão". Neste segundo romance, surgem personagens já referidas no último capítulo do volume anterior, como Blanford ou Sutcliffe.
A preocupação de Durrell pelos comportamentos sexuais é constante ao longo do livro. Blanford é casado com Lívia, que é lésbica e mantém relações com o marido pensando em outras mulheres durante a consumação do acto. Constance é irmã de Lívia e Blanford nutre por ela uma especial paixão. Mas as duas irmãs também se envolvem sentimentalmente. Há, igualmente, uma negra Trash, objecto do desejo de Lívia.
O autor procede a minuciosas descrições da natureza e dos interiores, o que nos permite situar devidamente a acção, mas que se afiguram exageradas no contexto da obra. Não é necessário tanto pormenor para embrulhar os factos.
O romance decorre na zona de Avinhão (Avignon), tal como acontecia numa parte do volume anterior, já que fora nesta região que Durrell finalmente se instalara, depois de uma vida passada em vários países.
O texto não é desprovido de humor e compraz-se em assinalar muitas cenas caricatas, além do que contém uma crítica acerba à sociedade da época.
Escrito nos anos setenta, em Lívia Durrell dá conta da preocupação existente relativamente às doenças venéreas (ainda não entrara em cena o HIV). Por exemplo: «Por qualquer razão que a ciência desconhece, Sutcliffe tinha o hábito de trazer duas camisas-de-vénus nas dobras das suas largas calças. Essas coisas eram muito caras e ele reservava-as apenas para Effie; depois de usadas ele lavava-as e punha-as de pé a secar em cima da prateleira do fogão do seu minúsculo quarto durante uma hora» (p. 62)
Também a cena no bordel é de certa forma gratuita. O príncipe Hassad, a quem o diplomata judeu britânico Lord Galen havia convidado para uma empresa de pesquisa do tesouro dos Templários, é levado a seu pedido a uma casa de passe, o bordel de Riquiqui. Aí, no meio de várias peripécias, o príncipe, em ceroulas e com um pequeno pénis de fora, entrega-se a actos libidinosos com uma anã gorda, duas pequerruchas com trajes da primeira comunhão e dois cães galgos afegãos, na presença de Quatrefages, o secretário de Galen, envergando apenas uma camisa, e sendo espiados por Blanford e Felix Chatto, o vice-cônsul, sobrinho de Galen. Este, antipatizando com a palavra "judeu" intitula-se "homem de Manchester" (p. 125)
Durrell escolhe para as suas personagens os nomes mais estranhos e que propiciam a confusão numa trama já assaz confusa. Dadas as simpatias de Lord Galen (apesar de judeu) por Hitler, aquele descreve uma frutuosa reunião com o Führer: «Não era possível deixar de acreditar nas promessas formais de um tal homem; a sua sinceridade era absolutamente convincente. Notem, ele não era um jovem exaltado mas um homem maduro que tinha passado toda a guerra como simples sargento.» (p. 126). Sendo do conhecimento geral que Hitler serviu na Primeira Guerra Mundial como cabo, nunca tendo sido promovido a sargento, trata-se ou de um engano de Durrell ou de um erro de tradução. Esta é de facto muito deficiente, tal como a do volume anterior, e certamente a dos próximos três volumes do "Quinteto" e encontra-se pejada de gralhas tipográficas. Não se compreende, portanto, como é que o tradutor, Daniel Gonçalves (que já traduzira, razoavelmente, o "Quarteto de Alexandria"), foi galardoado, precisamente por este livro, com o Grande Prémio de Tradução Literária, em 1986 (a primeira vez que o prémio foi concedido), ex-aequo com José Bento, prémio instituído pela Associação Portuguesa de Tradutores, em associação com o PEN Clube Português e a Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, e atribuído hoje com o patrocínio da Sociedade Portuguesa de Autores. Aparecem coisas como "Madame Batavsky" em vez de "Madame Blavatsky" (p. 160) ou «O futuro é mais visível da França do que de qualquer outro lugar porque os Franceses levam tudo aos extremos. Uma era audio-judaico-visual está a surgir - a época de Mouton Rotchild, onde a preeminência do pensamento judaico é visível em toda a parte, o que explica os ciúmes dos alemães.» (p. 172) Uma frase confusa, além do que "Franceses" em português é com "f" pequeno e "Rotchild" escreve-se "Rothschild". Também ajuda à confusão o facto de Durrell utilizar inúmeros trocadilhos em inglês, cujo efeito é nulo em qualquer outra língua.
Já no fim do livro, o príncipe Hassad oferece, no Pont du Gard, uma orgiástica festa nocturna para os seus novos e estranhos amigos, com a presença de dezenas de raparigas vindas propositadamente de vários locais de França, com a missão de serem prestáveis aos seus convidados. Menu principesco (incluído em apêndice), a condizer com o anfitrião, generosas bebidas, fogo de artifício. Uma conclusão absolutamente dispensável para a economia do livro.
A obra está recheada de referências culturais, a espelhar, muito ostensivamente, a erudição do autor, e também algumas das suas lacunas e precipitações.
O livro termina com uma citação da Cidade de Deus, de Santo Agostinho: «Inter faesces et urinam nascimur» (Nascemos entre a merda e a urina). Uma conclusão adequada à obra.
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