A recente série televisiva "Os Durrell" suscitou-me o interesse de ler os volumes que compõem o chamado "Quinteto de Avinhão", há largos anos publicados e que aguardavam na minha biblioteca a sua oportunidade.
De facto, e à parte o célebre "Quarteto de Alexandria", que li e reli na devida altura (e ainda hoje nele mergulho), não tenho visitado frequentemente os outros livros de Lawrence Durrell (1912-1990), um escritor irregular, e com uma vida ainda mais irregular para os padrões da época, e, em alguns aspectos, para os actuais.
Explicitemos o "Quinteto de Avinhão" (ou de Avignon, se preferirem):
- Monsieur: or, The Prince of Darkness (1974) - Monsieur ou O Príncipe das Trevas (1984)
- Livia: or, Buried Alive (1978) - Lívia ou O Enterrado Vivo (1984)
- Constance: or, Solitary Practices (1982) - Constance ou Práticas Solitárias (s/d)
- Sebastian: or, Rulling Passions (1983) - Sebastian ou Paixões Dominantes (s/d)
- Quinx: or, The Ripper's Tale (1985) - Quinx ou A História do Estripador (1987)
Não cabe traçar aqui um escorço, mesmo resumido, da vida de Durrell, que pode ser consultado na Wikipédia, existindo várias biografias publicadas. Mas convém registar que ele teve sempre uma vida sentimental agitada - quatro casamentos desfeitos, três por divórcio e um por viuvez - além das numerosas ligações extra-conjugais e aventuras homossexuais, para lá de um final de vida que levantou algumas interrogações, como o suicídio por enforcamento de sua filha Sappho (em 1985, com 33 anos), com quem manteria uma relação incestuosa e que terá servido de inspiração para algumas das suas personagens. Aliás, toda a sua obra ficcional está envolta num ambiente erótico, evoca as mais estranhas experiências, e leva-nos a perguntar se é a vida a imitar a arte ou o seu contrário.
Neste texto, comentaremos apenas Monsieur ou O Príncipe das Trevas, em que, como nos volumes seguintes do "Quinteto", Durrell utiliza a mesma técnica empregada no "Quarteto de Alexandria" com muito bons resultados, mas que aqui acusa algum cansaço. O desdobramento das personagens, no espaço e no tempo, que fora receita bem sucedida, torna-se agora um factor de confusão, tal a variedade das situações e as inexactas recorrências históricas, apesar de o autor ser indubitavelmente um homem cultivado. Ou talvez até por isso.
Um dos capítulos intermédios tem por cenário o Egipto, país onde passou alguns anos e que lhe deixou profundas recordações. E tem por objectivo introduzir-nos no Gnosticismo, mas a exposição de Durrell é confusa e pouco acessível para quem não tenha conhecimento dessa corrente herética. O início do livro acontece nos arredores de Avignon (zona onde Durrell viveu nos últimos anos da sua vida), no castelo dos protagonistas, pretensos descendentes de Guillaume de Nogaret, que foi chanceler de Filipe IV, o Belo, rei de França. Terá sido Nogaret o principal artífice da prisão dos Templários, e do seu julgamento, um processo sobre o qual ainda hoje pairam dúvidas, e que levou à destruição da Ordem do Templo (mais tarde extinta pelo Papa) e à condenação e morte de grande parte dos seus Cavaleiros, incluindo o Grão-Mestre Jacques de Molay, que foi queimado vivo. A luta entre os reis de França e o Papado acabaria por conduzir ao Cisma do Ocidente (1378-1417), com a existência de dois papas, um em Roma e outro em Avignon (e finalmente um terceiro em Pisa), que se excomungaram mutuamente, acusando o rival de antipapa. Gnosticismo, Templários e outras evocações históricas permitem a Durrell uma complicada efabulação, que nem sempre resulta por falta de verossimilhança.
Não conheço o original, mas a tradução portuguesa é irregular, às vezes inconsistente e contem numerosas gralhas tipográficas. Ocorre que a transliteração dos nomes árabes, no capítulo que decorre no Egipto, é manifestamente incorrecta. Como nos demais livros, a obsessão erótica está omnipresente e (com ou sem recorrência a Freud, muitas vezes citado) denota uma preocupação constante do autor, mesmo quando o desenvolvimento da intriga não carece de qualquer suporte envolvendo sexo. Não sendo propriamente homossexual, Lawrence Durrell teve experiências homossexuais na Índia, onde nasceu, e depois no colégio em Inglaterra, onde começou a sua educação, ainda que não chegasse a obter qualquer grau académico. Casou-se pela primeira vez em 1935, ano em que embarcou com a família para Corfu, e aí permaneceu até 1942, data da sua partida para o Egipto. As reminiscências desse passado, a memória de Cavafy, as recordações da estada alexandrina de E.M. Forster, o contacto com Henry Miller, o contributo literário de outros grandes escritores, como Gide, tiveram uma influência decisiva na escrita de Durrell: assim, perpassam pelos nossos olhos cenas de homossexualidade masculina, lesbianismo, travestismo, sado-masoquismo, prostituição, incesto, voyeurisme, ménage à trois, rituais iniciáticos e satânicos, sacrifícios macabros e toda uma panóplia de recursos eróticos manuseada com grande à-vontade pelo autor.
Segundo os seus biógrafos, Lawrence Durrell foi várias vezes proposto para o Prémio Nobel da Literatura, que nunca obteve, segundo os mesmos, devido ao obsessivo carácter sexual da sua obra.
Por curiosidade, publica-se uma fotografia de Lawrence Durrell em adulto e uma do actor Josh O'Connor, que interpretou o papel de Durrell em jovem ("Larry"), na recente série televisiva "Os Durrell", e se vê aqui numa cena homossexual no filme God's Own Country.
Lawrence Durrell |
Josh O'Connor (à direita) |
2 comentários:
Interessante texto,cumprindo uma função "pedagógica",de suscitar a apetência pela descoberta de novas áreas,neste caso outros livros do Durrell,e com efeitos para mim mesmo,que preguiçosamente tinha ficado "apenas" pelo Quarteto de Alexandria.E se é verdade que os Nobel recuaram no prémio pelo erotismo da escrita,foram parvos,pois na época já muitas barreiras literárias e outras tinham felizmente tombado. E não deram o prémio ao Gide do Corydon e do Si Le Grain Ne Meurt? Não ocupa o sexo boa parte da nossa vida física e mental? Alem disso a relação entre a Literatura e o erotismo é um tema que já deve ter sido seriamente tratado. Na sua vastíssima biblioteca não encontrará o erudito autor do blog algumas sugestões para os seus fieis leitores?
A academia Sueca aceitou, em 1947, a evocação da pederastia feita por André Gide (hoje, certamente, não aceitaria) mas recusou-se a premiar as excentricidades sexuais de Lawrence Durrell. Mesmo para os critérios dos jurados do Nobel era pedir demasiado.
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