sexta-feira, 25 de setembro de 2020

OS IRMÃOS GONCOURT

Foram publicados recentemente dois livros sobre os famosos irmãos Goncourt: Les Infréquentables Frères Goncourt, de Pierre Ménard (400 páginas) e Les Frères Goncourt, de Jean Louis Cabanès e Pierre Dufief (800 páginas). Optei por comprar o primeiro, que agora comento, já que se me esgota o tempo para ler livros de 800 páginas, salvo em casos excepcionais. Tanto mais que aquele beneficiava de uma crítica bastante favorável e que o autor, que conta apenas 27 anos, obtivera grande sucesso com a sua anterior obra Le Français qui possédait l'Amérique. La vie extraordinaire d'Antoine Crozat, milliardaire sous Louis XIV (2019). Sem ignorar, todavia, que o segundo, cujos autores são professores eméritos da Universidade de Paris, deverá ser uma biografia mais conforme ao padrão a que estamos habituados.

Os irmãos Goncourt, Edmond de Goncourt (1822-1896) e Jules de Goncourt (1830-1870), ficaram célebres não tanto pela sua obra literária, que é irrelevante, mas pela sua excentricidade e, principalmente, pelo facto do testamento hológrafo do primeiro instituir a Academia Goncourt, que concede anualmente, desde 1903, o Prémio Goncourt, o mais importante galardão literário francês. Sem esquecer, evidentemente, o Journal, que cobre o vasto período de 1851 a 1896, verdadeira crónica da vida artística e mundana francesa da época, que proporcionou a Marcel Proust um pastiche, em À la recherche du temps perdu (Le temps retrouvé). Aliás, o próprio Proust receberia, em 1919, o Prémio Goncourt, pelo seu livro À l'ombre des jeunes filles en fleurs.                   

O livro ora em apreço é realmente uma manta de retalhos, ainda que respeitando, de certo modo, uma ordem cronológica. O autor intercala sucessivamente fragmentos de textos dos próprios Goncourt com considerações acerca deles mesmos, acerca de terceiros, opiniões pessoais, referências históricas, tornando difícil uma apreensão sequencial dos factos. É evidente que Pierre Ménard não pretendeu escrever propriamente uma biografia, mas este patchwork, de interesse irregular, não é de molde a fornecer uma visão clara (e organizada) da vida dos irmãos e da sua presença nos meios literários e sociais de Paris dos anos Oitocentos.

O historiador Michel Winock, que assina o Prefácio, dá-nos, em quatro páginas, um retrato relâmpago dos Goncourt, a quem Gustave Flaubert, que era amigo da casa, chamava "mes bichons". Considerando-os misantropos, misóginos, misoneístas e anti-semitas, Winock recorda que a sua obra, mesmo a que teve algum sucesso na época, foi eclipsada pelo Journal, que começaram a escrever em 2 de Dezembro de 1851, aquando do golpe de Estado de Luís-Napoleão Bonaparte, e que foi concluído em 1896, pouco tempo antes da morte de Edmond. E sublinha que o Journal é um documento insubstituível sobre a República das letras ao longo da segunda metade do século XIX. 

A propósito da credibilidade dos factos e das palavras consignadas no Journal, Winock evoca uma afirmação de André Gide, quanto às dúvidas do pintor Jacques-Émile Blanche relativamente a uma cena descrita por Edmond de Goncourt e do qual aquele fora testemunha: «Mais les paroles qu'il prête aux uns et aux autres, si fausses qu'elles soient d'après vous, ne sont presque jamais inintéressantes. Faites attention que, plus vous le diminuez comme sténographe, plus vous le grandissez comme littérateur, comme créateur...». 

Edmond e Jules de Goncourt sempre detestaram o seu tempo, o que não os impediu de escreverem romances que inspiraram o naturalismo de Zola e Huysmans. E foram amigos de Flaubert, Gautier, Taine, Renan, Turgueniev e Zola. Nos últimos anos da sua vida, Edmond foi consagrado "chef des armées littéraires" ou "Maréchal des lettres", e recebia amigos e admiradores no seu Grenier d'Auteuil, tornado um dos lugares de memória da história literária francesa.

Ao contrário dos irmãos fratricidas Caim e Abel ou Rómulo e Remo, os irmãos Goncourt, que não eram parecidos fisicamente, foram uma só alma habitando dois corpos. Sainte.Beuve classificou-os de "deux frères jumeaux à huit ans de distance" e os seus correspondentes dirigiam-se-lhes como "Chers Gémeaux" (Émile Forgues), "Chers siamois" (Xavier Aubryet), ou utilizaram um tratamento colectivo "Chers amis, tu peux venir tous les deux quand tu voudras..." (Mario Uchard).

Como tinham optado por não trabalhar, os dois irmãos viviam dos rendimentos, porventura insuficientes para manter duas casas. Habitavam assim o mesmo apartamento, possuíam uma só empregada doméstica, Rose, e partilhavam a mesma cama e, inclusive, a mesma amante, Maria, para a "higiene semanal", (apesar de detestarem verdadeiramente as mulheres). Coleccionavam arte e Jules empenhou-se até na pintura e na gravura, mas a principal actividade de ambos era a escrita, que só muito tarde obteve algum, e relativo, êxito. Eram artistas sem galeristas, escritores sem editor, dramaturgos sem teatro. 

Quando Jules morreu aos 40 anos, vítima de sífilis, Edmond assumiu a qualidade de viúvo ("La veuve", como era conhecido nos salões parisienses). Eternos celibatários, eram os dois de tal forma inseparáveis que Michel Larivière se interroga se não teriam sido mesmo amantes. Já para o fim da vida, Edmond escreve no seu Journal: «Voilà déjà longtemps que j'ai perdu le goût de jouir. Mais je me sens de si intimes affinités avec le tempérament féminin, que si je redevenais jeune et si je refaisais l'amour, je redeviendrais pédéraste, ma parole d'honneur.» 

Escreve Pierre Ménard : «Misogynes, Edmond et Jules le sont par conviction, par vocation, par nécessité et même par devoir. Chex eux, les mystères de l'amour se résument à une tâche mécanique au même titre que l'on mange pour satisfaire sa faim ou que l'on boit pour étacher sa soif.» (p. 112) Ou: «Pourquoi s'embarrasseraient-ils d'une femme qui ne pourrait que briser leur paisible union? Leur amour-propre leur rend difficile l'amour d'autres qu'eux mêmes, aussi chacun se satisfait-il de la prolongation de sa propre personne trouvée dans son frère. En privé comme en public, Edmond et Jules se définissent donc comme un couple fraternel et se font adresser leur courrier à "Messieurs de Goncourt, rue Saint-Georges", ainsi que l'on écrirait à "Monsieur et Madame de Goncourt"» (p. 114-5)

O livro fala-nos dos salões da princesa Mathilde (filha de Jérôme Bonaparte, que foi rei da Vestfália), sobrinha de Napoleão I e prima direita e ex-noiva do próprio Napoleão III. E também dos frequentadores habituais dessas recepções e de como os Goncourt começaram a ser convidados, muito críticos ao princípio, entusiasmados mais tarde. Eles, que eram realistas e anti-imperiais. E foi por isso que muito se indignaram com as demolições no centro da capital, levadas a cabo pelo Barão Haussmann, a quem se deve a remodelação urbanística de Paris. Que, diga-se de passagem, transformou a capital francesa na cidade ainda hoje existente e que nada tem a ver com algumas transformações preconizadas agora por Anne Hidalgo ou com as obras pífias de Medina em Lisboa.

Ainda antes da queda do II Império e da Comuna de Paris, os irmãos tinham-se mudado para Auteuil, continuando com intensa actividade social e estabelecendo uma forte amizade com Alphonse Daudet e com os filhos deste. Se alguns se entusiasmam com o novo estilo, Gide gaba-se de ter lido Les hommes de lettres «pour apprendre comment il faut ne pas écrire.» (p. 203)

A sífilis progressiva de Jules vai transformando o seu corpo e o seu espírito. Perante a ruína física do irmão, Edmond não suporta assistir ao espectáculo de tão profunda decadência e decide tomar uma atitude radical. Empunhando uma pistola, resolve matar Jules e suicidar-se. Mas arrepende-se no último momento, incapaz de consumar o acto. Este episódio manteve-se secreto, sendo do exclusivo conhecimento de Flaubert. Quando Jules morre, de encefalite, Edmond assume a "viuvez" até ao fim a vida.

Com a passagem dos anos, o sucesso relativo de algumas obras publicadas e a convivência com os vultos ilustres das letras, Edmond de Goncourt foi adquirindo um progressivo prestígio e, para o fim da vida, era já uma personalidade de referência na literatura francesa. 

Profundamente conservador, o mais velho dos Goncourt protestou contra todas as transformações da sociedade. Em 1893, publicou À bas le progrès!, denunciando as transformações que considerava nocivas à vida e à arte. Em consonância com o anti-semitismo da época, Edmond é autor de muitas afirmações contra os judeus, a quem acusa de todos os males que afligem a França. Julga-se que foi influenciado por Edouard Drumont, autor de La France juive, embora outros sustentem que ele mesmo teria influenciado Drumont. Escreveu: «Si la famille Rothschild n'est pas habillée en jaune nous serons prochainement, nous chrétiens, domestiqués, ilotisés, réduits en servitude.» (p. 337) Apesar disso, aquando do caso Dreyfus, tendo sido inicialmente contrário ao capitão, afirmou mais tarde que não o considerava um traidor.

Todavia, a sua saúde foi-se debilitando e Edmond de Goncourt virá a falecer, em casa de Alphonse Daudet, em 16 de Julho de 1896. O seu funeral em Auteuil foi discreto, embora com a presença dos homens de letras mais proeminentes. Zola pronunciou a oração fúnebre. De acordo com o testamento, os seus móveis, tapeçarias, curiosidades da China e do Japão, desenhos do século XVIII, livros e gravuras foram vendidos em leilão no Hôtel Drouot, e renderam 1.400.000 francos, talvez 50 milhões de euros dos nossos dias (o autor refere que a importância equivalia ao salário anual de 4.500 cozinheiras).

O testamento foi contudo contestado por familiares e a sua confirmação só foi obtida em tribunal graças ao talento de Raymond Poincaré, em 1897 e 1900. Em 1903, o Conselho de Estado reconheceu a jovem Academia de utilidade pública.

A ideia de um júri premiar um romance era uma novidade que rapidamente seduziu a França. Assim nasceram os prémios Renaudot, Femina, Interallié e mesmo, em 1915, o grande prémio do romance da Academia Francesa. 

As reuniões dos membros do júri instituído inicialmente por Edmond (Alphonse Daudet foi substituído por seu filho Léon) foram saltando de restaurante em restaurante, até se fixarem definitivamente no Drouant em 1914. E entretanto, com a desvalorização sucessiva do franco, os recursos financeiros da Academia foram emagrecendo até hoje, ainda que o prémio tenha aumentado em prestígio.

Problema maior para os membros da Academia foi a publicação do Journal, que segundo Edmond de Goncourt deveria permanecer selado durante vinte anos, ao fim dos quais seria remetido ao departamento de manuscritos da Biblioteca Nacional. A sua grande perplexidade devia-se ao facto de recearem que a divulgação do seu conteúdo os expusesse ao opróbrio, já que não ignoravam o género de considerações que os irmãos teciam a propósito de toda a gente.

Em consequência, a publicação foi sucessivamente adiada e só veria a luz em 1956 (sessenta anos depois da morte do último dos irmãos) e mesmo assim com reservas, já que o ministério encarregado do dossier ordenou certas restrições "por necessidades legais".

Existe hoje uma edição, presumivelmente integral, em três volumes, organizada por Robert Kopp, Journal - Mémoires de la vie littéraire (1851-1896).


Algumas citações do Journal:

«Il est difficile d'avoir des illusions sur quelque chose à Paris. Il y a des impôts sur tout, on y vend tout, on y fabrique tout, même le succès.»

«Dire mal des autres [...] et encore la plus grande récréation que l'homme social ait trouvée.»

«Vendre des hommes, ça déshonore un peu - des femmes, tout à fait.»

«Ce qui entend le plus des bêtises dans le monde est peut-être un tableau de musés.»

«Le mariage est la croix d'honneur des putains.»

«Quelle ironie! Les gens de génie et d'esprit se tuant toute leur vie pour cette grande bête du public, tout en méprisant, au fond de leur coeur, chaque imbécile qui le compose.»

«Plus de jouissance dans la vie que la jouissance de voir mon nom imprimé. Est-ce assez bête!... Mais, après tout, c'est la petite monnaie de la gloire!»

«Rien ne lie deux personnes comme de dire du mal d'une troisième.»

«La littérature, c'est ma sainte maîtresse, les bibelots, c'est ma putain: pour entretenir cette dernière, jamais la sainte maîtresse n'en souffrira.»

«Au fond, chacun veut la vérité sur les autres et ne consent pas à la lire dite sur lui.»

«Ah! les pauvres révolutionnaires dans les sciences, dans les arts, dans les lettres, quand ils ne sont pas méprisés par leurs femmes, ils le sont par leur bonnes!»

«La médisance est encore le plus grand lien des sociétés.»

«L'homme qui s'enfonce et s'abîme dans la création littéraire n'a pas besoin d'affection de femme, d'enfants. Son coeur n'existe plus, il n'est plus qu'une cervelle.»

«Je crois vraiment, quand je serai mort, que mes confrères viendront chier sur ma tombe.»

(Citações extraídas da obra em apreço)

 

Sobre os Irmãos Goncourt, aliás sobre o Prémio Goncourt, publiquei este post em 2014: https://www.blogger.com/blog/post/edit/2298776560388969480/5932078988760079442

 

 

2 comentários:

Anónimo disse...

Não percebi bem. Considera que o "Temps Retrouvé",última parte da "Recherche", é um pastiche do Journal dos Goncourt, ou que contem o tal pastiche? Fico curioso.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Do site da Académie Goncourt: «Le pastiche du Journal des Goncourt par Marcel Proust dans La Recherche du Temps Perdu est sans doute le plus bel hommage rendu aux deux frères.»

Em outro sítio, que agora não me lembro, indica-se expressamente que é no volume "Le temps retrouvé".