domingo, 27 de maio de 2018

A FRANÇA CONTRA MACRON




Emmanuel Macron foi eleito presidente da República Francesa, em 2017, por falta de comparência de um candidato verdadeiramente credível.

Na lª volta das Presidenciais, os candidatos dos dois grandes partidos obtiveram resultados que não lhes permitiram sequer passar à 2ª volta. Os mais votados foram os seguintes:

- Emmanuel Macron (En Marche) - 24,01 %
- Marine Le Pen (Front National) - 21,30%
- François Fillon (Les Républicains) - 20,01 %
- Jean-Luc Mélenchon (France Insoumise) - 19,58%
- Benoît Hamon (Parti Socialiste) - 6,36%

Tais resultados significaram que a França se encontrou dividida em cinco partes praticamente iguais, uma das quais aglutinando os 6,36% de Benoît Hamon e os votos despiciendos de todos os outros candidatos.

A votação de François Fillon, "herdeiro" de Sarkozy, representando o partido que fora de Charles de Gaulle e de Jacques Chirac, é explicada não só pelos escândalos em que Fillon se viu envolvido mas pelo seu programa político, indesejado pela maioria dos franceses.

Benoît Hamon, que vencera nas primárias socialistas o inqualificável Manuel Valls (uma criatura hedionda), obteve um resultado irrisório para um candidato do PSF, devido não só à decadência que vem afectando os diversos partidos socialistas e sociais-democratas europeus, mas também pela política errática e estúpida prosseguida por François Hollande, que de socialista nada tinha e foi altamente prejudicial para a França e para os franceses no plano interno e internacional.

Sendo Marine Le Pen classificada de extrema-direita e Jean-Luc Mélenchon de extrema-esquerda, o que parece ainda provocar uma certa alergia à maioria dos franceses, estes, por exclusão de partes, elegeram Emmanuel Macron, ainda que Marine Le Pen lograsse passar à 2ª volta:

- Emmanuel Macron - 66,10%
- Marine Le Pen - 33,90%


Refere "L'Obs" (nº 2793, 17 a 23 Maio 2018) que na 1ª volta 30% dos eleitores dos 18 aos 25 anos votaram assim:

- Mélenchon - 30%
- Le Pen - 21%
- Macron - 18%

Isto demonstra a desafecção dos jovens em relação ao presidente eleito, que declarou não querer ser Júpiter, como se alguém pudesse alguma vez compará-lo ao pai dos deuses da mitologia romana.

Emmanuel Macron é suposto ter sido colaborador de Paul Ricoeur, mas afigura-se que o seu pensamento está mais próximo de Jürgen Habermas, que terá sido seu precursor mental, na medida em que este considera que as antigas clivagens direita-esquerda estão mais ou menos apagadas e que os tempos vão no sentido de uma aproximação desapaixonada, "instrumental", da gestão (e da reforma) das nossas sociedades. Esta maneira de ver as coisas tem a vantagem de ser construtiva e racional mas padece de dois tipos de objecções. Em primeiro lugar, diminui a conflitualidade de base, intrínseca, das nossas sociedades, embora um dos obstáculos com que Macron se depara seja exactamente o desprezo pelo conflito de classes, porque gerir uma sociedade, sobretudo quando se pretende reformá-la de alto a baixo, não é propriamente um jogo de Meccano racional mas uma acção política, com a "arte" que ela implica. Em segundo lugar, vem a noção subjacente da "era pós-metafísica", que supõe o o fim das ideologias, o que não está provado, e que coloca a questão do rearmamento actual das religiões, com uma dimensão suplementar, geopolítica, como a reacção a uma globalização que se encontra centrada muito "ocidentalmente". Seguindo Habermas, Macron sonha com o "patriotismo constitucional" (ideia apresentada pelo filósofo em 1986), o que garantiria o respeito dos particularismos, a República e a Pátria, mas esta síntese é tudo menos estável. Que fazer dos particularismos não liberais, ou de um liberalismo diferente? Tudo matéria complexa que Macron teorizou, pretende aplicar de cima do seu pedestal, mas não se compadece com a realidade nacional que lhe incumbe administrar em nome de todos os franceses.

Num livro recente, Un ministre ne devrait pas dire ça..., Christian Eckert, que foi secretário de Estado do Orçamento, quando Macron era ministro da Economia de François Hollande, conta como Macron preparou meticulosamente e em segredo a sua candidatura ao Eliseu, utilizando o Hotel de Bercy (Ministério da Economia e Finanças) como plataforma aglutinadora de influências que seriam determinantes na constituição do partido "La République en Marche". Na realidade, em marcha atrás!
Através de um mecanismo implacável, Macron preparou a atomização do que chama o Mundo Antigo, num governo do Partido Socialista, e procedeu à "uberização" da vida económica, reprivatizando autoestradas, tentando a venda da Française des Jeux, privatizando estádios de futebol, aeroportos e preparando a vinda dos auto-empreendedores,  tudo discretamente realizado na sombra dos corredores governamentais onde sempre exerceu a sua influência liberal. Escreve Christian Eckert: «Recuando alguns meses, compreendo ter assistido ao nascimento do primeiro presidente cujo coração é um "algoritmo". Por trás de um sorriso lisonjeiro, sob aparente improvisação, há um cálculo frio e metódico: aproveitar todas as ocasiões para considerar obsoleta a esquerda - sem atacar frontalmente François Hollande - e acarinhar a direita, cujos próprios votos foram transferidos para a extrema-direita mais os negócios.»

Todavia, a tranquilidade não reina no Eliseu. E a contestação do "macronismo" invadiu a França, pela esquerda e pela direita. Não me refiro já aos partidos que se inserem institucionalmente na República, nas suas extremidades, o Front National e a France Insoumise, mas às franjas mais radicais que crescem diariamente e perturbam a paz social que Macron supunha adquirida para que o país, em sossego, continuasse "em marcha".

Nas últimas semanas, sem que a imprensa portuguesa escrita e falada dê conta da dimensão dos acontecimentos, têm-se repetido sucessivamente graves incidentes, que Macron procura disfarçar, distraindo os franceses com as suas visitas ao estrangeiro e outros fait-divers para o povo se entreter.

Centenas de jovens da "Génération Identitaire" promoveram, em Abril, uma excursão anti-imigrantes e bloquearam a fronteira franco-italiana no Col de L'Échelle (Alpes), a que se seguiu outra incursão de militantes antifascistas para "libertar a fronteira". Nas ruas de Nantes, os membros da ZAD (Zone à Défendre), os zadistas, que se opõem à construção do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes, confrontaram as forças da ordem, encarregadas de os obrigar a dispersar, o que criou grande tensão na cidade. Ainda em Abril, militantes e simpatizantes da Action Française foram detidos para evitar uma batalha com os "antifas", em Saint-Étienne, por causa da abertura de uma delegação daquele movimento, comemorando o 150º aniversário do nascimento de Charles Maurras. Em Maio, os estudantes ocuparam a Universidade de Nanterre e manifestantes encapuçados (Black Blocs e anarquistas) do "Cortège de Tête" atacaram 31 estabelecimentos e incendiaram 6 veículos.

Estes acontecimentos (prelúdio de uma repetição do Maio de 68?) têm como denominador comum a contestação das políticas de Emmanuel Macron, decididas apenas por ele, numa postura olímpica que não se coaduna com a pluralidade da República.

Segundo o politólogo Jean-Yves Camus, estamos a assistir a um regresso da chama do radicalismo, em que se distinguem fundamentalmente seis movimentos, três de esquerda e três de direita. Verdade se diga que em alguns aspectos os extremos se tocam. Não é em vão que muitos elementos considerados antes de extrema-esquerda passaram a integrar o Front National. Porque há causas comuns e muitos, mas mesmo muitos franceses não se revêem nem na direita nem na esquerda clássicas, como o demonstraram os resultados das eleições presidenciais.

Aquele politólogo considera os seguintes movimentos de ultra-esquerda:

- Indigènes de la République - Contra o racismo e a homofobia; anti-colonialistas e anti-sionistas. Consideram a França um Estado colonial, criticaram as manifestações de apoio ao "Charlie Hebdo" e criaram o Parti des Indigenes de la République, que se insurge contra o tratamento racista aplicado ao islamólogo Tariq Ramadan.

- Comité Invisible - Colectivo anónimo que defende o comunismo utópico e insurreccional. Publicou em 2007 L'insurrection qui vient, best-seller da revolta anti-capitalista, atribuído a Julien Coupat, e em 2017 Maintenant, onde se criticava o movimento Nuit Debout.

- Cortège de Tête - Colectivo efémero defendendo o anarquismo amotinador. Esteve na primeira fila das manifestações contra a Lei El Khomri. Tem por objectivo atacar os símbolos do capitalismo. Como se escreveu acima, os seus mais de 14.000 "simpatizantes" participaram nas manifestações do 1º de Maio 2018, que atacaram estabelecimentos e veículos.

Na ultra-direita consideram-se:

- Bastion Social - De tendência neo-fascista. Em 2017 ocuparam um edifício em Lyon, para aí alojar os sem-abrigo "franceses 'de souche'", inspirando-se no movimento neo-fascista italiano CasaPound. Estão implantados em Paris, Lyon, Chambéry, Estrasburgo e Marselha.

- Action Française - Realista ultra-reaccionário. Participaram na "Manif pour tous, provocaram actos de violência em Marselha na manifestação contra a Lei El Khomri e foram detidos em Saint-Étienne, como se disse, por causa da celebração do 150º aniversário do nascimento do fundador da Action Française.

- Génération Identitaire - Racista anti-imigrantes. Em 2012 ocuparam o local de construção da mesquita de Poitiers, em 2017 organizaram-se para ajudar os sem-abrigo europeus e em 2018 pretenderam encerrar uma fronteira nos Alpes. A sua conta no Facebook foi suspensa em 3 de Maio, por "incitamento ao ódio".

Esta radicalização não nasceu com a eleição de Macron (veja-se os resultados de Mélenchon e de Marine Le Pen nas presidenciais) mas é um sinal de que grassa um profundo descontentamento na sociedade francesa. O discurso de Emmanuel Macron, explicando que não existe outro caminho possível que não seja a sua política, e que no campo político é apenas contestado por Le Pen e Mélenchon, provoca consideráveis danos. Tanto mais que os corpos intermédios estão enfraquecidos. Ao afirmar que pretende provocar um electrochoque para que o país saia do imobilismo, o presidente pode desencadear a adesão de alguns, é certo, mas origina principalmente uma enorme indignação e uma grande cólera.

Muito mais haveria a dizer, mas fiquemos por aqui. As oposições a Macron, à direita e à esquerda, demonstram que o caldo político centrista e europeísta que o presidente defende, aderindo aos postulados neoliberais, e uma disfarçada subserviência ao decadente imperialismo norte-americano, não são do agrado da maioria dos cidadãos. A "marcha" forçada a que Macron pretende obrigar os franceses poderá traduzir-se num recuo a breve trecho, correndo-se o risco de o país mergulhar num caos, para onde aliás se encaminha desde a eleição de Nicolas Sarkozy.

Macron está muito cheio de si-mesmo, mas talvez tenha de abandonar apressadamente o Olimpo para não deixar a França afundar-se irremediavelmente num pântano. Antes que seja demasiado tarde.


domingo, 20 de maio de 2018

AINDA A EUROPA




O nº 5 (Maio 2018) do "Nouveau Magazine Littéraire" é parcialmente dedicado à Europa. Além do texto que transcrevemos em parte no post anterior, publicamos agora, em tradução minha, para facilitar a leitura de quem não domina perfeitamente o francês, o artigo "Notre Katrina", do escritor e filósofo espanhol Paul B. Preciado.

NOTRE KATRINA

«Vivi em Atenas os dois últimos anos, sem o que ficaria provavelmente como a maioria dos meus concidadãos europeus, indiferente à brutalidade das políticas implementadas pela União Europeia no país helénico. Contudo, se quisermos compreender o futuro deste monstro humanista e bem-pensante que é a Europa, é preciso prestar atenção ao que se passa na Grécia. Foi aqui que a partir de 2015 foi conduzida, com toda a impunidade, a primeira experiência de "repressão democrática" em grande escala no seio da União.

Da mesma forma que depois da guerra fria o Chile serviu de laboratório aos "Chicago boys" para experimentar a implantação do neoliberalismo, a Grécia é hoje o campo de jogos dos que se poderiam chamar os "deutsche Jungs", em que se testam as modalidades de uma segunda volta do neoliberalismo, num contexto geopolítico pós-colonial inédito, no seio do qual os limites dos blocos de Leste e de Oeste são baralhados, em benefício de uma nova repartição opondo o Ocidente ao islão. Esta experiência, inicialmente circunscrita à Grécia, mas de âmbito europeu, tinha por missão estratégica verificar em que medida os cidadãos e as instituições podiam tolerar uma nova democracia neoliberal autoritária. Enquanto que até ao presente tínhamos pensado que as estratégias neoliberais conduziam sempre a um enfraquecimento do aparelho Estado-nação, uma ética multicultural em que as identidades locais são confundidas pelo mercado e em que a liberdade - entendida como liberdade de mercado - continua em expansão, a nova democracia neoliberal autoritária mostra um rosto que combina o desmantelamento dos vestígios dos mecanismos de redistribuição das riquezas bem como das instituições de apoio social (introduzido na Grécia nos anos 1980) com a repressão nacionalista e a promoção de uma ideologia fascista inspirada por uma biopolítica da raça branca (tarefa absurda numa Grécia que, situada na charneira do Oriente, nunca foi branca).

A primeira medida deste teste em grande escala foi a supressão da soberania democrática do povo grego em seguida ao referendo do Oxi ("não"). Depois de ter anulado o referendo, a Europa exigiu e fez aplicar sem remorsos as mais frenéticas reformas neoliberais do mercado de trabalho, a diminuição das reformas, a privatização dos serviços públicos, o desmantelamento da cultura pública... De facto, isso implicava a pauperização da classe média grega e a precarização dos dois extremos mais frágeis da população: os reformados e os jovens. Com mais de 30% de desemprego, a juventude grega recomeçou um processo de migração económica - paradoxalmente, a Alemanha tornou-se o primeiro destino desse exílio. 

O prisma do "capitalismo do desastre" que Naomi Klein propôs para compreender a aplicação das reformas neoliberais permite ler a situação grega com precisão. A Grécia é o nosso Haiti e o nosso Katrina. A chave da nova democracia autoritária europeia encontra-se na sobreposição no solo grego das medidas extremas de gestão de duas "crises" provocadas e geradas pelos centros hegemónicos financeiros: a crise económica e a crise dos refugiados. Na Grécia, a extensão do neoliberalismo foi acompanhada, pela primeira vez, não de um movimento de liberalização social, mas de uma gestão militar da "crise" da fronteira. A militarização das costas gregas, a transformação de certas ilhas estratégicas em prisões a céu aberto e a utilização do solo peninsular como membrana de contenção da migração para a Europa tornam obsoleto, senão absurdo, o discurso da "hospitalidade" que Merkel articula em 2016. Como se pode falar de hospitalidade quando o procedimento político europeu consiste em criminalizar os refugiados e os migrantes?

Como sublinharam Éric Alliez e Maurizio Lazzarato em Guerres et capital, implementaram-se na Grécia as condições para conduzir uma nova "guerra capitalista" na qual todos os dispositivos democráticos são investidos e transformados em instrumentos de controlo e de repressão social. Passou-se assim do Estado-mãe, que prometia (mesmo se nem sempre mantinha a sua promessa) redistribuição, bem-estar e justiça, a um Estado-pai, que apenas pode oferecer violência, segurança e purificação racial. Esta combinação de ultra-neoliberalismo e de ultra-nacionalismo conduziu a uma situação inédita desde os anos 1970, que se estende desde então a outros países da Europa, Espanha, Polónia, Hungria, Itália, mas também Alemanha ou França. As decisões da UE serviram para destruir toda a legitimidade política da esquerda, abrindo o caminho dos populismos de extrema-direita. O efeito colateral mais importante destes sucessivos golpes de Estado "democráticos" na Grécia foi a destruição de qualquer esperança de democracia radical, não só na Grécia mas também na Europa. Depois de 2015, o Syriza é um partido morto. Como o é o Partido Socialista em França ou em Espanha.

A extrema-direita come não só uma parte do bolo eleitoral, mas determina também, a partir da margem, o contexto discursivo no qual se desenrola o novo debate democrático autoritário. Mas não esqueçamos que é também desde a Grécia que se pensam hoje as condições de uma rebelião social e de uma alternativa crítica contra este processo que Franco Berardi chama com estupefacção "a destruição da Europa".»

sábado, 19 de maio de 2018

AS TRÊS EUROPAS




O escritor judéo-francês Camille de Toledo escreve no nº 5 (Maio 2018) de "Le Nouveau Magazine Littéraire" um estimulante artigo com o título "Le conte des trois Europe".

Não sendo possível reproduzir aqui o texto integral,  transcrevo, pelo seu interesse, a descrição a que o autor procede das três visões do Velho Continente:

«Il y a trois Europe qu'il importe - je le comprenais alors - de séparer dans l'espoir qu'elles deviennent des forces politiques autonomes, structurant dans l'avenir le combat politique à l'echelle du continent. Afin que nous puissons y voir clair et réellement choisir. Une "Europe delorienne", une "Europe huntingtonienne" et une "Europe benjaminienne".

La première, delorienne - delorsienne -, nous ne la connaissons que trop, et elle est essoufflée, corrompue et compromise. C'est celle des "pères fondateurs", celle qui depuis le traité de Rome a cru, sans jamais l'expliquer, à la "théorie fonctionnaliste": l'Europe se consoliderait par la seule force de sa technostructure, de ses réglementations... Cette Europe a brodé idéologiquement une fable où la paix et la prosperité convolent. Elle poursuit l'image inatteignable d'un marché où chaque entité de capital et de travail sera finalement mise en concurrence avec toutes les autres. Cette Europe - du nom de son public servant le plus zélé, Jacques Delors -, protestante, systémique, est devenue pour des millions d'individus celle de la douleur. C'est en son nom que l'Espagne, la Grèce, la France... sacrifient leurs dépenses en matière de santé, d'éducation. C'est en son nom qu'un "capitalisme à l'européenne" se soumet à la messe américaine qui allie, depuis Woodrow Wilson, paix, libre-échange et nations. La critique de cette Europe a coïncidé avec une vue, disons, de gauche, et, en ce sens, elle n'est que trop bien documentée. Je n'y ajouterai qu'un éclair de profond désenchantement: la faillite de la promesse, lorsque la prosperité attendue se renverse en misère imposée et que l'Europe politique n'avance plus vers la démocratie, mais vers la confiscation...

La deuxième, l'Europe huntingtonienne, à la différence de la première avec laquelle elle entretient des rapports incestueux par l'alliage de plus en plus étroit du libéralisme et du nationalisme, est en pleine expansion. C'est le modèle de Huntington - le clash des civilisations - qui la soustend. Dans certaines de ses dérives, l'Europe huntingtonienne devient "breivkienne", du nom du militant d'extrême droite Anders Behring Breivik, auteur du massacre d'Utoya, dont la rhétorique est celle d'une croisade pour la défense des fondaments chrétiens de l'Europe, contre "l'islamisation" et le "multiculturalisme". Il n'y a qu'à lire le manifeste d'Anders Breivik - "Déclaration d'indépendance européenne, 2083" - pour voir que ses arguments coïncident avec les programmes de l'extrême droite européenne, de Jobik en Hongrie à l'AfD en Allemagne au Front national de France, au FPÖ en Autriche... À l'égard de cette Europe huntingtonienne, la delorienne fait preuve d'un douloureux aveuglement, quand il ne s'agit pas d'une franche et sourde complicité. Car c'est bien cette dérive identitaire, cette version civilisationelle qui est en voie, désormais, d'institutionnalisation: 1) l'hystérie d'une identité blanche qui assume de plus en plus ouvertement ses droits à la revanche; 2) la politique migratoire - Schengen, Frontex - qui est l'accomplissement, par le déni et une tactique du "laisser mourir" aux frontières, de ses voeux; 3) la définition d'une "Europe culturelle" dans les termes d'une "civilisation à défendre". Cet alliage entre nationalisme et libéralisme s'est récemment concrétisé en Autriche et se cherche, en France, par la voix d'un Laurent Wauquiez ou, en Allemagne, par la collusion entre le parti libéral et l'AfD. Au lieu d'un national-socialisme, une unité européenne qui se ferait sous la bannière cauchemardesque d'un national-libéralisme.

Face à cette recupération du projet européen par les forces nationalistes - cette synthèse du libéralisme et du nationalisme -, j'en viens à la troisiéme Europe - mon espoir. Celle-là, hélas! peine à se constituer comme force politique autonome tant elle a été, jusque-là, docilement solidaire de l'Europe delorienne. C'est celle que je nomme "benjaminienne" - sur les traces du philosophe juif allemand Walter Benjamin, et notamment de ce qu'il nous légua de l'esprit de traduction. Dans cette perspective, le "sujet européen" ne se pose plus comme un sujet culturel ou un héritier d'une certaine histoire. Il se comprend comme "passe-frontière" animé par l'esprit de la traduction. Cette Europe benjaminienne, ce fut celle des républicains espagnols fuyant l'Europe franquiste, celle des Juifs, des Tsiganes, des homosexuels, pourchassés par le Reich, celle des minorités migrants, des diasporas postcoloniales, des travailleurs déplacés, des exilés de toutes les nations... Cette Europe benjaminienne existait avant le traité de Rome, avant que les pères fondateurs ne lancent cette curieuse croyance: que l'économie suffirait à produire le politique. Cette Europe, c'est celle des mouvements féministes qui tentèrent de s'opposer aux passions des nations avant la Première Guerre, celle qui traça des routes de l'exil pour survivre.»

* * * * *

Este texto, ainda que passível de críticas, deveria ser meditado por todos os políticos europeus. A União Europeia, tal como conhecemos, encontra-se mergulhada num oceano de contradições e está próxima a hora da sua implosão. A falta de visão dos "pais fundadores", como o artigo aponta, consistiu em pensarem que através do económico resolveriam o político, o social, o cultural... Trágica ilusão! Acresce a esta falência "anunciada" a mediocridade dos dirigentes europeus das últimas décadas, incapazes de vislumbrarem um passo à frente do nariz, imergidos na corrupção, venais até ao âmago, ignorantes e incultos, pretensiosos e convencidos do valimento das suas políticas. Um verdadeiro desastre.

QUEM PUDER, APROVEITARÁ COM A LEITURA INTEGRAL DO ARTIGO.


quarta-feira, 16 de maio de 2018

SOB O SIGNO DE MARTE




Claude Michel Cluny nasceu em 2 de Julho de 1930 e morreu em 11 de Janeiro de 2015, com 84 anos. Poeta, crítico literário e romancista, é hoje uma figura praticamente desconhecida no meio literário internacional, mesmo no seu país. Nem sempre foi assim.

Autor de cerca de 50 livros, viajou pelos cinco continentes, de que testemunhou na sua obra. Colaborou em muitas publicações, entre as quais a "Nouvelle Revue Française", "Le Nouvel Observateur", o "Magazine Littéraire", "L'Express", "Le Figaro Littéraire, etc. Em 1989, recebeu o Grande Prémio de Poesia da Academia Francesa pelo conjunto da sua obra poética; em 2002, o Premio Renaudot (Ensaio) por Le Silence de Delphes (primeiro volume do seu Diário); e em 2012, o Prémio Europeu de Poesia Léopold Sédar Senghor pelo conjunto da sua obra.

Vem isto a propósito da recente aquisição de um seu livro que se encontrava há muito esgotado, e do qual consegui um exemplar já usado: Sous le signe de Mars.

Neste récit, o autor começa por nos informar que se trata da sua única obra autobiográfica, já que o seu Diário não está vocacionado para o exibicionismo, ainda que não exclua algumas notas íntimas.

Numa prosa de excepcional qualidade, Cluny conta-nos a sua adolescência numa pequena cidade da província, durante a Segunda Guerra Mundial. E apesar do seu interesse pela literatura, cedo revelado, o que mais o impressionava, e preocupava, eram as notícias da guerra, a invasão da França, o horror de Hitler e da Alemanha. E no meio de tudo, a devoção ao Marechal, que durante muito tempo mereceu a admiração da maioria dos franceses. Com os seus doze ou treze anos, sentiu-se pela primeira vez atraído por um condiscípulo mais jovem, recém-chegado ao liceu, a quem beijou furtivamente numa rua tranquila. Foi a sua primeira paixão, aquele que para ele se tornou o "Aimé". 

A chegada das tropas alemãs à pacata localidade onde vivia com os pais foi motivo de alvoroço. Os invasores, ao princípio, procuravam captar a simpatia das populações, ainda que o autor continuasse a ver neles o odiado inimigo. Mas com o andar da guerra, os soldados alemães passaram a ser cada vez mais jovens, e belos nos seus impecáveis uniformes. E o inevitável aconteceu. Uma tarde, Cluny, então com catorze anos,  sentiu que desejava "l'Ennemi". E num recanto de um campo de trigo, o soldado, que teria dezasseis ou dezassete anos, e lhe lembrava os efebos de Esparta ou Atenas, iniciou-o nos mistérios do sexo e do amor. A narração deste episódio, que só relata os pormenores indispensáveis, constitui uma página excepcional de literatura, pelo que conta e pelo que omite, pela sensibilidade que o autor revela ao confiar-nos este momento inédito da sua vida passada, pela evocação do conflito íntimo que significa amar o inimigo, ainda que o inimigo possa vestir a pele de um rapaz praticamente da sua idade.

Este livro é um hino à Beleza, uma denúncia das contradições da guerra, um esconjurar dos conflitos íntimos. E também um relembrar das questões subsequentes à Libertação. «Les résistants, vrais ou faux, apparurent avec un brassard révélant leur obédience politique: jamais les Français n'hésitent à saisir l'opportunité de se désunir.» (p. 91). 

É ainda um conjunto de reflexões do autor sobre a própria vida, a dele e as dos outros. Por aquilo que escrevi, que pouco foi, e por o que o leitor terá intuído, merece ser lido, sem pressas, atentamente, até porque tudo está contido num centena de páginas. 


segunda-feira, 14 de maio de 2018

MANIFESTO PARA MODIFICAR O CORÃO





O nº 2792 de "L'Obs" desta semana (10 a 16 de Maio), insere um dossier a propósito do "Manifeste contre le nouvel antisémitisme", publicado em "Le Parisien" e subscrito por cerca de 300 personalidades, entre as quais o antigo presidente da República, Nicolas Sarkozy (a quem carece autoridade moral para subscrever seja o que for), o antigo primeiro-ministro Manuel Valls (de quem tudo se espera), o inevitável Bernard-Henri Lévy, o antigo presidente da Câmara Municipal de Paris, Bertrand Delanoë, etc., etc.

Publicamos abaixo a lista dos signatários.

La liste des signataires

Eliette ABECASSIS ; Richard ABITBOL ; Ruth ABOULKHEIR ; André ABOULKHEIR ; Laure ADLER ; Paul AIDANE ; Waleed AL-HUSSEINI ; Mohamed ALI KACIM ; Michèle ANAHORY ; François ARDEVEN ; Pierre ARDITI ; Janine ATLOUNIAN ; Muriel ATTAL ; Charles AZNAVOUR ; Elisabeth BADINTER ; Patrick BANTMAN ; Laurence BANTMAN ; Adrien BARROT ; Stephane BARSACQ ; Maurice BARTELEMY ; Stéphane BEAUDET ; Patrick BEAUDOUIN ; Annette BECKER ; Florence BEN SADOUN ; Georges BENSOUSSAN ; Gérard BENSUSSAN ; Alain BENTOLILA ; André BERCOFF ; Aurore BERGE ; François BERLEAND ; Françoise BERNARD ; Florence BERTHOUD ; Naem BESTANDJI ; Muriel BEYER ; Jean BIRENBAUM ; Claude BIRMAN ; Joelle BLUMBERG ; Marion BLUMEN ; Lise BOËLL ; Jeannette BOUGRAB ; Céline BOULAY-ESPERONNIER ; Michel BOULEAU ; Laurent BOUVET ; Lise BOUVET ; Fatiha BOYER ; Anne BRANDY ; Caroline BRAY-GOYON ; Zabou BREITMAN ; Claire BRIERE-BLANCHET ; Jean-Paul BRIGHELLI ; Pascal BRUCKNER ; Laura BRUHL ; Daniel BRUN ; Carla BRUNI ; François CAHEN ; Séverine CAMUS ; Jean-Claude CASANOVA ; Bernard CAZENEUVE ; Hassen CHALGHOUMI ; Catherine CHALIER ; Elsa CHAUDUN ; Evelyne CHAUVET ; Ilana CICUREL ; Eric CIOTTI ; Gilles CLAVREUL ; Brigitte-Fanny COHEN ; Marc COHEN ; Jonathan COHEN ; Danielle COHEN-LEVINAS ; Antoine COMPAGNON ; Jacqueline COSTA-LASCOUX ; Brice COUTURIER ; Fabrice D’ALMEIDA ; Eliane DAGANE ; Gérard DARMON ; Marielle DAVID ; William DE CARVALHO ; Elisabeth DE FONTENAY ; Xavier DE GAULLE ; Bernard DE LA VILLARDIERE ; Bertrand DELANOË ; Richard DELL’AGNOLA ; Chantal DELSOL ; Gérard DEPARDIEU ; Guillaume DERVIEUX ; Patrick DESBOIS PERE ; Alexandre DEVECCHIO ; Bouna DIAKHABY ; Marie-Laure DIMON ; Joseph DORE MGR ; Daniel DRAÏ ; Michel DRUCKER ; Richard DUCOUSSET ; Stéphane DUGOWSON ; Martine DUGOWSON ; Frédéric DUMOULIN ; David DUQUESNE ; Frédéric ENCEL ; Raphaël ENTHOVEN ; Francis ESMENARD ; Christian ESTROSI ; Elise FAGJELES ; Roger FAJNZYLBERG ; Luc FERRY ; Alain FINKIELKRAUT ; Pascal FIORETTO ; Marc-Olivier FOGIEL ; Renée FREGOSI ; Michel GAD WOLKOWICZ ; Aliou GASSAMAL ; Lucile GELLMAN ; Jasmine GETZ ; Sammy GHOZLAN ; Jean GLAVANY ; Bernard GOLSE ; Roland GORI ; Marine GOZLAN ; Olivia GREGOIRE ; Mohamed GUERROUMI ; Ghislaine GUERRY ; Olivier GUEZ ; Lydia GUIROUS ; Talila GUTEVILLE ; Patrick GUYOMARD ; Noémie HALIOUA ; Françoise HARDY ; Frédéric HAZIZA ; Jean-Luc HEES ; Serge HEFEZ ; François HEILBRONN ; Marie IBN ARABI-BLONDEL ; Aliza JOBES ; Arthur JOFFE ; Michel JONASZ ; Christine JORDIS ; Dany JUCAUD ; Liliane KANDEL KARIM ; David KHAYAT ; Catherine KINTZLER ; Alain KLEINMANN ; Marc KNOBEL ; Haïm KORSIA ; Julia KRISTEVA ; Rivon KRYGIER ; Estelle KULICH ; Philippe LABRO ; Alexandra LAIGNEL-LAVASTINE ; Lilianne LAMANTOWICZ ; Jack LANG ; Joseph LAROCHE ; Damien LE GUAY ; Daniel LECONTE ; Barbara LEFEBVRE ; Yoann LEMAIRE ; Pierre LESCURE ; Bernard-Henri LEVY ; Maurice LEVY ; Stéphane LEVY ; Michèle LEVY-SOUSSAN ; Marceline LORIDAN-IVENS ; Christine LOTERMAN ; Patrick LOTERMAN ; Enrico MACIAS ; Richard MALKA ; Wladi MAMANE ; Yves MAMOU ; Juliette MEADEL ; Sylvie MEHAUDEL ; Yael MELLUL ; Françoise-Anne MENAGER ; Daniel MESGUICH ; Richard METZ ; Habib MEYER ; Radu MIHAILEANU ; Yann MOIX ; Antoine MOLLERON ; Thibault MOREAU ; Jean-Jacques MOSCOVITZ ; Slim MOUSSA ; Laurent MUNNICH ; Lionel NACCACHE ; Marc NACHT ; Aldo NAOURI ; Xavier NIEL ; Sophie NIZARD ; Anne-Sophie NOGARET ; Karina OBADIA ; Jean-Pierre OBIN ; Edith OCHS ; Christine ORBAN ; Olivier ORBAN ; Marc-Alain OUAKNIN ; Yann PADOVA ; Brigitte PASZT ; Dominique PERBEN ; André PERRIN ; Serge PERROT ; Laurence PICARD ; Céline PINA ; François PINAULT ; Jean-Robert PITTE ; Nidra POLLER ; Richard PRASQUIER ; Michael PRAZAN ; Nadège PULJAK ; Jean-François RABAIN ; Marianne RABAIN-LEBOVICI ; Ruben RABINOVITCH ; Jean-Pierre RAFFARIN ; Christiane RANCE ; Jean-Jacques RASSIAL ; Renaud RENAUD ; Jean-Louis REPELSKI ; Solange REPLESKI ; Ivan RIOUFOL ; Jacob ROGOZINSKI ; Olivier ROLIN ; Marie-Helène ROUTISSEAU ; Catherine ROZENBERG ; Philippe RUSZNIEWSKI ; Boualem SANSAL ; Georges-Elia SARFAT ; Nicolas SARKOZY ; Josiane SBERRO ; Jean-Paul SCARPITTA ; Eric-Emmanuel SCHMITT ; Dominique SCHNAPPER ; André SENIK ; Joann SFAR ; Vadim SHER ; Stéphane SIMON ; Patricia SITRUK ; Jean-François SOLAL ; Paule STEINER ; Jean-Benjamin STORA ; Francis SZPINER ; Anne SZULMAJSTER ; Pierre-André TAGUIEFF ; Maud TANACHNIK ; Jacques TARNERO ; Michel TAUBER ; Daniel TECHNIO ; Julien TROKINER ; Cosimo TRONO ; Monette VACQUIN ; Henri VACQUIN ; Philippe VAL ; Caroline VALENTIN ; Manuel VALLS ; Sibyle VEIL ; Jacques VENDROUX ; Natacha VITRAT ; Sabrina VOLCOT-FREEMAN ; Régine WAINTRATER ; Laurent WAUQUIEZ ; Aude WEILL-RAYNAL ; Simone WIENER ; Annette WIEVIORKA ; Jean-Pierre WINTER ; Jacques WROBEL ; André ZAGURY ; Alain ZAKSAS ; Paul ZAWADZKIv Marc ZERBIB ; Céline ZINS ; Jean-Claude ZYLBERSTEIN.

Consideram os subscritores do Manifesto, redigido por Philippe Val, antigo director do "Charlie Hebdo", que o texto do Corão é parcialmente responsável pelo ódio existente em certos muçulmanos e pedem que os versículos "appelant au meurtre et au châtiment des juifs, des chrétiens et des incroyants soient frappés d'obsolescence" pelas autoridades teológicas.

Ao pedirem para que o Corão seja re-escrito, os signatários, que não são todos estúpidos ou ignorantes, agem de má-fé. Mesmo quando invocam que as incoerências da Bíblia foram abolidas pelo Concílio do Vaticano II. Ora o texto da Bíblia, fixado pelo Concílio de Trento, permanece intocável, tendo sido eliminadas, de facto, algumas expressões da liturgia, como a alusão aos "pérfidos judeus".

Sendo a Bíblia e o Corão, para os respectivos crentes, a palavra de Deus, é evidente que nenhuma instância religiosa se atreveria a censurar a Palavra Divina. Com particular relevo para os muçulmanos, já que no islão não existe (nem mesmo nos tempos do Califado) uma "igreja" centralizada com poderes espirituais sobre todos os fiéis, sendo cada um livre de interpretar pessoalmente os textos sagrados.

Aliás, os trágicos acontecimentos verificados nos últimos anos, e cujos protagonistas foram, na sua maioria, indivíduos árabes ou de ascendência árabe, e por isso presumivelmente muçulmanos, não constituem um precedente de confrontação religiosa, ainda que tais atitudes sejam liminarmente condenáveis.

Foi a Europa, durante séculos, palco de perseguições e de guerras intermináveis motivadas por causas religiosas e que levaram a desolação a centenas de milhares de pessoas. Os cristãos europeus atacaram durante séculos judeus e muçulmanos (as Cruzadas, a expulsão da Península Ibérica, etc.) e, mais tarde, depois do Cisma do Ocidente e do advento do Protestantismo, ocorreram sangrentas guerras entre os próprios cristãos, de que é exemplo paradigmático a Guerra dos Trinta Anos (ainda que o factor político se ocultasse amiúde por detrás da máscara religiosa), que só terminou com a Paz de Vestefália.

É curioso que foi principalmente nos países muçulmanos que os judeus procuraram abrigo quando expulsos da Europa. Durante séculos, o anti-semitismo foi especialmente cristão; iniciou-se com Paulo de Tarso (São Paulo), que verberou os judeus nos seus escritos, ainda que ele mesmo, tal como Jesus Cristo e os primeiros cristãos fossem todos judeus, e teria expressão oficial até ao Vaticano II.

A actual vaga de anti-semitismo, que efectivamente existe, é de expressão muçulmana. E tem fundamentalmente a ver com a criação do Estado de Israel, há precisamente 70 anos, em território palestiniano, depois da inconcebível Declaração de Lord Balfour endereçada a Lord Rothschild. Verdadeiramente, o anti-semitismo islâmico é muito mais político do que religioso, é muito mais anti-sionismo do que anti-semitismo, até porque semitas também os árabes o são.

A ideia peregrina de re-escrever o Corão só pode ter aflorado em mentes obcecadas pela rapidez das transformações, numa França "en Marche", pilotada por um jupiteriano deslumbrado com a coroa de louros dos césares, o inimaginável Emmanuel Macron.

O Corão e a Bíblia não se rasuram nem se corrigem. Os seus textos devem ser lidos e interpretados de acordo com o tempo presente. A sua escrita teve lugar numa determinada época, há muitos séculos, face aos desafios desse tempo, e algumas passagens já eram então de carácter mais simbólico do que real. Cabe aos imames, no caso do Corão, esclarecer os muçulmanos do verdadeiro sentido da palavra escrita, já que não existe uma "igreja" islâmica (nem mesmo Al-Azhar) com competência para interpretar os textos. Sendo as religiões monoteístas as religiões de um Livro, que para sempre aprisionou a Palavra Divina, o texto terá de ser entendido no contexto, para não se tornar disfuncional.

Mas deve compreender-se que aquilo que hoje se designa por terrorismo islâmico tem muito mais a ver com circunstâncias políticas e sociais do que propriamente religiosas, até porque os autores dos ataques registados na Europa, embora possam gritar "Allah u'Akbar", pouco ou nada conhecem da religião muçulmana ou das suas escrituras, alguns serão mesmo descrentes.

A Religião tornou-se o novo álibi de uma certa luta política, de uma certa contestação social em que, para os seus autores, os fins justificam os meios.

Pode a França, pode a Europa transformar-se num Estado policial, sujeitar os cidadãos a extraordinárias medidas de segurança, controlar o mais íntimo da vida privada dos seus habitantes, que não logrará obter qualquer êxito. O segredo do sucesso reside numa alteração de políticas a nível nacional e global, mas pela amostra dos últimos dias, o caminho é mais de regressão, isto é, "en marche, en arrière"!


terça-feira, 8 de maio de 2018

A TUNÍSIA REVISITADA




Voltei à velha cidade de Túnis, ao fim de quase dez anos de ausência, para rever, pela 30º vez, a metrópole que viu nascer Ibn Khaldun, em 1332.

Muitas coisas terão mudado nesta ausência de uma década, ponteadas pela Revolução de 2011, que introduziu substanciais modificações no quotidiano da população da cidade e do país.

Obviamente, com o meu olhar de estrangeiro, ainda que alguém tenha dito, há já longos anos, que eu era "o mais tunisino dos portugueses", observação prontamente corrigida pelo então embaixador da Tunísia em Lisboa, que considerava ser eu "o mais português dos tunisinos"! Posso, por isso, testemunhar mas apenas sobre o que vi, uma vez que a quase totalidade dos meus amigos autóctones abandonou o país no período revolucionário. Assim, serão poucas as informações fidedignas que obtive, colhidas no terreno um pouco aleatoriamente. Todavia, registei, como impressão geral, que, além do desmantelamento do sistema repressivo do regime de Zine El Abidine Ben Ali e da introdução de uma vivência digamos que "democrática", a vida dos tunisinos, em geral, piorou.

Estou a escrever no Café de Paris, em 6 de Maio, véspera das primeiras eleições municipais no país. Presume-se que, das dezenas de partidos concorrentes,  os vencedores destas eleições serão os grandes partidos, Nidaa Tounes e Ennahdha, o primeiro, de tendência laica e socializante, do presidente da República Béji Caïd Essebsi, e o segundo, de orientação islamista, de Rachid Ghannuchi. Os outros deverão obter resultados despiciendos, ainda que alguns se apresentem em coligações. Todavia, a grande apreensão que paira sobre este escrutínio é a taxa de abstenção dos cidadãos eleitores.

Logo que sejam conhecidos os resultados, ainda que provisórios, do escrutínio, deles aqui darei conta.

As impressões negativas surgiram logo à chegada ao aeroporto. Dos diversos tapetes que recolhem as bagagens, apenas dois funcionavam, acumulando malas provenientes de diversos voos. E, existindo no aeroporto diversas agências bancárias, além da Caixa Postal, além desta, só uma dependência se encontrava aberta, seriam umas onze horas da noite, o que obrigou a uma longa espera os passageiros que necessitavam de cambiar moeda.

Suponho que os edifícios, dado o estado de degradação em que se encontram, não devem ter sofrido obras de manutenção nos últimos anos. Os passeios têm mais buracos do que nunca e o lixo, à excepção da avenida Bourguiba, amontoa-se nas ruas.

Até o serviço de táxis, que era eficiente, passou agora a ser discricionário. Os táxis passam muitas vezes vazios e não param quando para isso alertados. Aconteceu-me uma vez ter de sair de um táxi por o motorista invocar falta de "carburante", depois de saber qual era o destino pretendido. Outros há que recusam tomar passageiros, se consideram que existem engarrafamentos no percurso para a direcção indicada. E fiquei com a suspeição, talvez estúpida, de que preferem embarcar nacionais a estrangeiros. Encontrar um táxi livre tornou-se, assim, por estes dias, um verdadeiro acaso da sorte. Verdade se diga que a circulação automóvel, que sempre foi um problema em Túnis, é hoje verdadeiramente caótica.



Constatei que a Praça 7 de Novembro, data do "Changement", isto é, da tomada do poder por Ben Ali, em substituição do velho presidente Habib Bourguiba, já senil, se havia passado a chamar Praça 14 de Janeiro, data da fuga de Ben Ali para a Arábia Saudita. E que uma estátua equestre de Bourguiba havia sido trasladada do seu local original, em La Goulette, para o topo da Avenida Bourguiba, com a parte traseira virada para o célebre Relógio e a parte lateral para o Ministério do Interior, de visão inacessível, já que as barreiras de segurança do Ministério impedem qualquer cidadão de a observar desse lado. Não pude deixar de sorrir ao lembrar-me que a Ponte Salazar, depois da Revolução de 1974, se passou a chamar Ponte 25 de Abril.

Uma ida a Sidi Bou-Saïd, essa célebre pérola do Mediterrâneo que conquistou tantos intelectuais estrangeiros (basta recordar Gide e Foucault, que aí habitaram), recordou-me, uma vez mais, que as carruagens da Linha do TGM (Très Grand Metro), que liga Tunis-Marine a Marsa, uma espécie de combóio da Linha do Estoril, entre Cais do Sodré e Cascais, continuam a ser as mesmas da época colonial (nem Ben Ali as substituiu) e continuam a cumprir tant bien que mal, o seu serviço, o que só comprova a qualidade da sua construção.


O atendimento solícito em hotéis, restaurantes e cafés também já teve melhores dias, e até a proverbial afabilidade dos tunisinos em relação aos estrangeiros, que fazia deles um caso singular entre os povos árabes, parece que, em larga medida, se desvaneceu.

É verdade que se mantêm algumas das boas livrarias: a Claire Fontaine (Rue d'Alger), a Al-Kitab (Avenue Bourguiba), a Bouslama (Avenue de France) e a Diwan (Rue Sidi Ben Arous, na Medina), onde o infatigável Sofian continua a atender, diligentemente e com a experiência dos anos, os seus exigentes clientes, na maioria estrangeiros, que procuram na casa livros editados há muito tempo e já fora do circuito normal.


Livraria Al-Kitab


Livraria Diwan

Livraria Bouslama

Também o Museu do Bardo (ao lado do Parlamento) continua a albergar a melhor colecção de mosaicos  cartagineses e romanos de todo o mundo, além de estátuas e estatuetas, de mármore e de bronze, dignas de admiração. À entrada do Museu, um Memorial recorda os cidadãos tunisino e estrangeiros mortos aquando do atentado terrorista de 18 de Março de 2015. A segurança do Museu está naturalmente reforçada, bem como nos pontos sensíveis da cidade. Por causa dos ataques com viaturas, foram erguidas barreiras, nas faixas laterais, ao longo de toda a avenida Bourguiba, frente às esplanadas e aos hotéis, o que, apesar de inestético e pouco funcional, constitui elemento dissuasor de perturbados fundamentalistas ou de outros agentes do caos internacional.








A Embaixada de França, antiga habitação do Residente Geral francês nos tempos do Protectorado, está rodeada de barricadas, rolos de arame farpado e sacos de areia, sob a vigilância de polícias e soldados, com a protecção de jeeps e carros de assalto. O mesmo se diga do Ministério do Interior, que já beneficiava de protecção especial em tempos idos, e cujo perímetro de segurança se alarga agora à sua frente, invadindo metade da avenida Bourguiba.

 
Embaixada de França (à distância)

Em frente à estátua de Ibn Khaldun, uma construção em plástico vermelho «I 💓LOVE TUNIS», sobre a qual brincam crianças (e que certamente agradaria ao dr. Medina) constitui uma ofensa à memória do criador da filosofia da história.



No regresso pensei, vagamente, que no free-shop do aeroporto se pudesse agora efectuar compras em moeda local. Mas não, tudo como dantes, os dinares continuam a ser rejeitados e as aquisições têm de ser feitas em euros.

Lendo "La Presse", na 2ª feira, verifico, que a taxa de abstenção se estima em cerca de 70%, resultando nomeadamente da não participação da população jovem. O que levou a que um partido como Ennahdha (que certamente não concita a adesão da maioria dos tunisinos) preveja globalmente 27,5% dos votos, acima de Nidaa Tounes, com uma estimativa de 22,5%. No dia da votação, passei por uma assembleia de voto, situada num liceu da rua de Marseille (as secções de voto funcionaram nas escolas). Não pude aproximar-me nem fotografar devido às barreiras de segurança que fechavam o troço da rua, mas durante o período que permaneci em observação apenas vi seis ou sete pessoas, todas de avançada idade, a dirigir-se para a porta do edifício.


Propaganda eleitoral na avenida Bourguiba

No domingo, um rapaz universitário com quem ocasionalmente conversei, disse-me, compungido: «La Tunisie, c'est finie".  A situação económica do país é muito grave, a taxa de desemprego (oficial) aproxima-se dos 20%, o turismo (principal fonte de receita) caiu abruptamente com os atentados do Bardo (já referido) e de Sousse, as promessas dos políticos não são cumpridas e a corrupção é endémica. No que ao turismo respeita, acresce que a qualidade do serviço se deteriorou de forma notável, nem outra coisa seria de esperar, o que é de molde a desencorajar os potenciais visitantes.

As ilusões que saudaram a Revolução do Jasmim, por analogia à portuguesa revolução dos Cravos, esfumaram-se. O advento das democracias é sempre problemático. E mesmo as democracias consolidadas sofrem do incumprimento dos programas eleitorais e da corrupção exponencial que actualmente se verifica. Pelo que conheço do povo tunisino, antevi à partida quanto seria difícil pôr a funcionar um sistema democrático eficaz que respondesse às necessidades da população. É justo registar aqui que, independentemente do carácter repressivo do seu regime, a Tunísia deve a Ben Ali uma não negligenciável parte do progresso dos últimos anos que precederam a sua queda. Sempre ouvi atribuir à ex-cabeleireira Leila Trabelsi, e à sua inumerável família, muitos dos problemas que se registaram no país e em relação aos quais o seu marido, ao que dizem por ela manobrado, não actuou, nos últimos anos do seu consulado, com a determinação, a clarividência e a oportunidade que a situação exigia e a inteligência impunha.

Mas a situação europeia, e mundial, também não é brilhante. Portugal é disso um exemplo. E a Espanha, a França, a Itália, a Alemanha, o Reino Unido, e por aí fora, não passam de pseudo-democracias, dirigidas muitas vezes por verdadeiros criminosos de guerra e manobradas por poderes mais ou menos ocultos, que propiciam ganhos astronómicos para quem nunca pensa que não vai levar para a cova o dinheiro obtido. Isto para não falar nos Estados Unidos, no Brasil, etc. E nem vale a pena evocar o grande negócio do terrorismo internacional, pretensamente de raiz religiosa mas porventura a soldo dos mais obscuros interesses geoestratégicos internacionais.

Ligam-me à Tunísia velhos e inolvidáveis laços de amizade. A Tunísia é, aliás, o país estrangeiro que mais vezes visitei na minha vida. Por isso, só posso desejar que a precária situação que hoje se vive no país regresse ao que chamaria uma razoável "normalidade", para bem dos seus cidadãos e também dos visitantes estrangeiros.


MUITO MAIS HAVERIA A ESCREVER. FICARÁ PARA OUTRA OCASIÃO.