Voltei à velha cidade de Túnis, ao fim de quase dez anos de ausência, para rever, pela 30º vez, a metrópole que viu nascer Ibn Khaldun, em 1332.
Muitas coisas terão mudado nesta ausência de uma década, ponteadas pela Revolução de 2011, que introduziu substanciais modificações no quotidiano da população da cidade e do país.
Obviamente, com o meu olhar de estrangeiro, ainda que alguém tenha dito, há já longos anos, que eu era "o mais tunisino dos portugueses", observação prontamente corrigida pelo então embaixador da Tunísia em Lisboa, que considerava ser eu "o mais português dos tunisinos"! Posso, por isso, testemunhar mas apenas sobre o que vi, uma vez que a quase totalidade dos meus amigos autóctones abandonou o país no período revolucionário. Assim, serão poucas as informações fidedignas que obtive, colhidas no terreno um pouco aleatoriamente. Todavia, registei, como impressão geral, que, além do desmantelamento do sistema repressivo do regime de Zine El Abidine Ben Ali e da introdução de uma vivência digamos que "democrática", a vida dos tunisinos, em geral, piorou.
Estou a escrever no Café de Paris, em 6 de Maio, véspera das primeiras eleições municipais no país. Presume-se que, das dezenas de partidos concorrentes, os vencedores destas eleições serão os grandes partidos, Nidaa Tounes e Ennahdha, o primeiro, de tendência laica e socializante, do presidente da República Béji Caïd Essebsi, e o segundo, de orientação islamista, de Rachid Ghannuchi. Os outros deverão obter resultados despiciendos, ainda que alguns se apresentem em coligações. Todavia, a grande apreensão que paira sobre este escrutínio é a taxa de abstenção dos cidadãos eleitores.
Logo que sejam conhecidos os resultados, ainda que provisórios, do escrutínio, deles aqui darei conta.
As impressões negativas surgiram logo à chegada ao aeroporto. Dos diversos tapetes que recolhem as bagagens, apenas dois funcionavam, acumulando malas provenientes de diversos voos. E, existindo no aeroporto diversas agências bancárias, além da Caixa Postal, além desta, só uma dependência se encontrava aberta, seriam umas onze horas da noite, o que obrigou a uma longa espera os passageiros que necessitavam de cambiar moeda.
Suponho que os edifícios, dado o estado de degradação em que se encontram, não devem ter sofrido obras de manutenção nos últimos anos. Os passeios têm mais buracos do que nunca e o lixo, à excepção da avenida Bourguiba, amontoa-se nas ruas.
Até o serviço de táxis, que era eficiente, passou agora a ser discricionário. Os táxis passam muitas vezes vazios e não param quando para isso alertados. Aconteceu-me uma vez ter de sair de um táxi por o motorista invocar falta de "carburante", depois de saber qual era o destino pretendido. Outros há que recusam tomar passageiros, se consideram que existem engarrafamentos no percurso para a direcção indicada. E fiquei com a suspeição, talvez estúpida, de que preferem embarcar nacionais a estrangeiros. Encontrar um táxi livre tornou-se, assim, por estes dias, um verdadeiro acaso da sorte. Verdade se diga que a circulação automóvel, que sempre foi um problema em Túnis, é hoje verdadeiramente caótica.
Constatei que a Praça 7 de Novembro, data do "Changement", isto é, da tomada do poder por Ben Ali, em substituição do velho presidente Habib Bourguiba, já senil, se havia passado a chamar Praça 14 de Janeiro, data da fuga de Ben Ali para a Arábia Saudita. E que uma estátua equestre de Bourguiba havia sido trasladada do seu local original, em La Goulette, para o topo da Avenida Bourguiba, com a parte traseira virada para o célebre Relógio e a parte lateral para o Ministério do Interior, de visão inacessível, já que as barreiras de segurança do Ministério impedem qualquer cidadão de a observar desse lado. Não pude deixar de sorrir ao lembrar-me que a Ponte Salazar, depois da Revolução de 1974, se passou a chamar Ponte 25 de Abril.
Uma ida a Sidi Bou-Saïd, essa célebre pérola do Mediterrâneo que conquistou tantos intelectuais estrangeiros (basta recordar Gide e Foucault, que aí habitaram), recordou-me, uma vez mais, que as carruagens da Linha do TGM (Très Grand Metro), que liga Tunis-Marine a Marsa, uma espécie de combóio da Linha do Estoril, entre Cais do Sodré e Cascais, continuam a ser as mesmas da época colonial (nem Ben Ali as substituiu) e continuam a cumprir tant bien que mal, o seu serviço, o que só comprova a qualidade da sua construção.
O atendimento solícito em hotéis, restaurantes e cafés também já teve melhores dias, e até a proverbial afabilidade dos tunisinos em relação aos estrangeiros, que fazia deles um caso singular entre os povos árabes, parece que, em larga medida, se desvaneceu.
É verdade que se mantêm algumas das boas livrarias: a Claire Fontaine (Rue d'Alger), a Al-Kitab (Avenue Bourguiba), a Bouslama (Avenue de France) e a Diwan (Rue Sidi Ben Arous, na Medina), onde o infatigável Sofian continua a atender, diligentemente e com a experiência dos anos, os seus exigentes clientes, na maioria estrangeiros, que procuram na casa livros editados há muito tempo e já fora do circuito normal.
Livraria Al-Kitab |
Livraria Diwan |
Livraria Bouslama |
Também o Museu do Bardo (ao lado do Parlamento) continua a albergar a melhor colecção de mosaicos cartagineses e romanos de todo o mundo, além de estátuas e estatuetas, de mármore e de bronze, dignas de admiração. À entrada do Museu, um Memorial recorda os cidadãos tunisino e estrangeiros mortos aquando do atentado terrorista de 18 de Março de 2015. A segurança do Museu está naturalmente reforçada, bem como nos pontos sensíveis da cidade. Por causa dos ataques com viaturas, foram erguidas barreiras, nas faixas laterais, ao longo de toda a avenida Bourguiba, frente às esplanadas e aos hotéis, o que, apesar de inestético e pouco funcional, constitui elemento dissuasor de perturbados fundamentalistas ou de outros agentes do caos internacional.
A Embaixada de França, antiga habitação do Residente Geral francês nos tempos do Protectorado, está rodeada de barricadas, rolos de arame farpado e sacos de areia, sob a vigilância de polícias e soldados, com a protecção de jeeps e carros de assalto. O mesmo se diga do Ministério do Interior, que já beneficiava de protecção especial em tempos idos, e cujo perímetro de segurança se alarga agora à sua frente, invadindo metade da avenida Bourguiba.
Embaixada de França (à distância) |
Em frente à estátua de Ibn Khaldun, uma construção em plástico vermelho «I 💓LOVE TUNIS», sobre a qual brincam crianças (e que certamente agradaria ao dr. Medina) constitui uma ofensa à memória do criador da filosofia da história.
No regresso pensei, vagamente, que no free-shop do aeroporto se pudesse agora efectuar compras em moeda local. Mas não, tudo como dantes, os dinares continuam a ser rejeitados e as aquisições têm de ser feitas em euros.
Lendo "La Presse", na 2ª feira, verifico, que a taxa de abstenção se estima em cerca de 70%, resultando nomeadamente da não participação da população jovem. O que levou a que um partido como Ennahdha (que certamente não concita a adesão da maioria dos tunisinos) preveja globalmente 27,5% dos votos, acima de Nidaa Tounes, com uma estimativa de 22,5%. No dia da votação, passei por uma assembleia de voto, situada num liceu da rua de Marseille (as secções de voto funcionaram nas escolas). Não pude aproximar-me nem fotografar devido às barreiras de segurança que fechavam o troço da rua, mas durante o período que permaneci em observação apenas vi seis ou sete pessoas, todas de avançada idade, a dirigir-se para a porta do edifício.
Propaganda eleitoral na avenida Bourguiba |
No domingo, um rapaz universitário com quem ocasionalmente conversei, disse-me, compungido: «La Tunisie, c'est finie". A situação económica do país é muito grave, a taxa de desemprego (oficial) aproxima-se dos 20%, o turismo (principal fonte de receita) caiu abruptamente com os atentados do Bardo (já referido) e de Sousse, as promessas dos políticos não são cumpridas e a corrupção é endémica. No que ao turismo respeita, acresce que a qualidade do serviço se deteriorou de forma notável, nem outra coisa seria de esperar, o que é de molde a desencorajar os potenciais visitantes.
As ilusões que saudaram a Revolução do Jasmim, por analogia à portuguesa revolução dos Cravos, esfumaram-se. O advento das democracias é sempre problemático. E mesmo as democracias consolidadas sofrem do incumprimento dos programas eleitorais e da corrupção exponencial que actualmente se verifica. Pelo que conheço do povo tunisino, antevi à partida quanto seria difícil pôr a funcionar um sistema democrático eficaz que respondesse às necessidades da população. É justo registar aqui que, independentemente do carácter repressivo do seu regime, a Tunísia deve a Ben Ali uma não negligenciável parte do progresso dos últimos anos que precederam a sua queda. Sempre ouvi atribuir à ex-cabeleireira Leila Trabelsi, e à sua inumerável família, muitos dos problemas que se registaram no país e em relação aos quais o seu marido, ao que dizem por ela manobrado, não actuou, nos últimos anos do seu consulado, com a determinação, a clarividência e a oportunidade que a situação exigia e a inteligência impunha.
Mas a situação europeia, e mundial, também não é brilhante. Portugal é disso um exemplo. E a Espanha, a França, a Itália, a Alemanha, o Reino Unido, e por aí fora, não passam de pseudo-democracias, dirigidas muitas vezes por verdadeiros criminosos de guerra e manobradas por poderes mais ou menos ocultos, que propiciam ganhos astronómicos para quem nunca pensa que não vai levar para a cova o dinheiro obtido. Isto para não falar nos Estados Unidos, no Brasil, etc. E nem vale a pena evocar o grande negócio do terrorismo internacional, pretensamente de raiz religiosa mas porventura a soldo dos mais obscuros interesses geoestratégicos internacionais.
Ligam-me à Tunísia velhos e inolvidáveis laços de amizade. A Tunísia é, aliás, o país estrangeiro que mais vezes visitei na minha vida. Por isso, só posso desejar que a precária situação que hoje se vive no país regresse ao que chamaria uma razoável "normalidade", para bem dos seus cidadãos e também dos visitantes estrangeiros.
MUITO MAIS HAVERIA A ESCREVER. FICARÁ PARA OUTRA OCASIÃO.
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