segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

O QUE CORREU MAL?

 


Li agora a tradução portuguesa de What Went Wrong? - The Clash Between Islam and Modernity in the Middle East (2002), que comprara aquando da publicação, do académico britânico de origem judaica Bernard Lewis (1916-2018), professor da Universidade de Princetown.

A edição portuguesa intitula-se O Médio Oriente e o Ocidente - O que correu mal?, foi publicada em 2003, e, ao contrário daquilo a que já nos vamos habituando, apresenta uma tradução quase sempre precisa (conferi várias vezes com o original), incluindo os nomes em árabe, em que o tradutor (Bruno Cardoso Reis) mantém a transliteração inglesa (que é a correcta), em vez de adoptar a transliteração francesa (que não respeita o alfabeto árabe, embora seja usual entre nós) o que mostra que este tem conhecimentos da língua árabe, chegando mesmo a incluir em notas de rodapé algumas explicações sobre as palavras.

A produção de Bernard Lewis, que se dedicou a estudar o Mundo Árabe, o Islão e as suas relações com o Ocidente, é vasta, e tendencialmente objectiva, mais nuns livros do que noutros, evidenciando que o autor, apesar de inglês, judeu e professor americano, não compartilha dos preconceitos anti-muçulmanos de muitos dos seus colegas. É certo que manteve uma polémica com o famoso académico palestiniano-americano Edward Saïd (1935-2003), professor na Universidade de Columbia, especialmente por causa das teses enunciadas por este no seu livro Orientalism (1978), mas a abordagem a que procedeu em What Went Wrong? é geralmente adequada. 

O livro aborda a civilização islâmica nos mundos árabe, turco e persa, o seu apogeu e o seu declínio. Durante séculos, a civilização islâmica foi proeminente em relação ao Ocidente, caído que fora o Império Romano, mas a partir dos finais da Idade Média europeia e o advento do Renascimento verificou-se uma decadência progressiva do Mundo Islâmico, não só no aspecto militar mas especialmente no universo cultural, devido em grande parte a preconceitos de ordem religiosa que impediam o acesso a conhecimentos dos "infiéis". O Islão, que chegara a ser um farol do conhecimento em muitos matérias e que divulgara a cultura grega [lembro-me eu da Bayt al-Hikma, de Baghdad]  e que produzira obras notáveis de filosofia e de história [Ibn Khaldun] e se distinguiu na astronomia, geometria, medicina, etc., entrou num lento processo de declínio onde só tentou equiparar-se ao Ocidente em termos militares, e mesmo assim com reduzido êxito.

O autor analisa em particular o Império Otomano, até porque foi este que exerceu maior preponderância, durante séculos, no Mundo Islâmico, já que absorvera a quase totalidade do Mundo Árabe, sendo o Mundo Persa era uma realidade relativamente à parte. Os turcos estiveram por duas vezes às portas de Viena, e se tivessem ganho as batalhas de então poderíamos ser hoje todos muçulmanos, ou não, porque no Islão as conversões não eram absolutamente obrigatórias, podendo os povos, com o estatuto de dhimmi, manter a sua religião. Recorde-se que, de forma geral, os muçulmanos foram mais tolerantes com as outras religiões (não digo com os ateus, isso era uma linha vermelha) do que os cristãos, que muitos judeus expulsos da Europa, maxime de Espanha e de Portugal, encontraram abrigo no Império Otomano, e que os muçulmanos nunca entenderam as Guerras de Religião na Europa. Mesmo muitos cristãos cismáticos acharam refúgio no mundo muçulmano e o Egipto, conquistado pelos árabes no século VII, possui ainda hoje uma população cristã (copta) que deve ser cerca de 15% da população total do país.

A Revolução dos Jovens Turcos, que pôs fim ao Império Otomano e acabou por conduzir à proclamação da República Turca sob a liderança de Kemal Atatürk, levou à introdução de profundas reformas no país, desde a adopção do alfabeto latino à instauração da laicidade. Os muçulmanos do Médio Oriente têm culpado sucessivamente o Ocidente pela situação de relativa inferioridade nos campos político, social, cultural, militar, etc., em que se encontram hoje em face desse mesmo Ocidente. E interrogam-se sobre o que lhes terá corrido mal. Essa é a perspectiva de Bernard Lewis. É claro que se trata de uma apreciação discutível, já que BL considera, naturalmente, o Ocidente no topo da modernidade. Mas somos obrigados a admitir, para sermos honestos, que os médio-orientais (se não todos, muitos deles) podem preferir a situação em que actualmente vivem do que uma outra copiando os modelos ocidentais. Uma hipótese que nunca seria compreendida por Lewis, para quem a vanguarda da civilização reside no Mundo Ocidental.


domingo, 24 de dezembro de 2023

PEDRO HOMEM DE MELLO


Consultei Poesias Escolhidas, de Pedro Homem de Mello (1904-1984), na edição da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (1983). 

Procurei o célebre poema, "O Rapaz da Camisola Verde", que foi imortalizado pelas vozes de Amália Rodrigues e de Hermano da Câmara. Não o encontrei!!!

O poema é este:

 

De mãos nos bolsos e de olhar distante,
Jeito de marinheiro ou de soldado,
Era um rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Perguntei-lhe quem era e ele me disse
“Sou do monte, Senhor, e um seu criado”.
Pobre rapaz de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Porque me assaltam turvos pensamentos?
Na minha frente estava um condenado.
Vai-te, rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ouvindo-me, quedou-se o bravo moço,
Indiferente à raiva do meu brado,
E ali ficou de camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Soube depois ali que se perdera
Esse que só eu pudera ter salvado.
Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.

Ai do rapaz da camisola verde,
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.
Negra madeixa ao vento,
Boina maruja ao lado.


Creio que foi incluído na obra Quadras ao Gosto Popular, de 1972. 

Na presente edição da IN-CM, chamada "poesias escolhidas" e não "obra completa", talvez intencionalmente, não figura este poema. A edição, lamentavelmente sem qualquer aparato crítico, integra 25 livros de PHM, entre os quais o livro O Rapaz da Camisola Verde (1954), que inclui um poema intitulado "O rapaz da camisola verde", mas que nada tem que ver com o poema que referimos (excepto o título), não mencionando qualquer rapaz de camisola verde. O assunto é totalmente diferente. E a edição não inclui a obra Quadras ao Gosto Popular!

Trata-se certamente de uma atitude censória da então administração da IN-CM, por causa dos costumes. 

UMA VERGONHA!!!

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

PUBLIUS AELIUS HADRIANUS

Foram publicados nos últimos anos muitos livros sobre o imperador Adriano, após um período de quase silenciamento durante séculos. Na Antiguidade, como referi em post publicado há três anos, foi especialmente mencionado na Romaika (História Romana), de Dion Cassius e na Historia Augusta, atribuída a seis historiadores, embora seja citado por outros autores, como Ammianus Marcellinus, Arrianus, Flavius Josephus, Plutarco, Tácito, etc. 

Os estudos modernos começaram mais propriamente no século XX, embora ainda no século XIX fosse publicada a monumental Römische Geschichte (História de Roma), de Theodor Mommsen (Prémio Nobel da Literatura em 1902), por sinal bastante antipática em relação à figura de Adriano, sem esquecer History of the Decline and Fall of the Roman Empire, de Edward Gibbon, ainda no século XVIII, obras de referência, se bem que não especificamente dedicadas ao imperador.

É verdade que os largos anos da época vitoriana e períodos conexos não foram propícios a estudos sobre a personagem Adriano, naturalmente por causa dos costumes. Mas o advento do século XX veio propiciar-nos eruditas e agradáveis biografias, em que se destacam Hadrian, the Restless Emperor (1997), de Anthony Birley, Beloved of God: The Story of Hadrian and Antinous, de Royston Lambert (1984), Hadrian - Empire and Conflict (catálogo de 2008, do British Museum), de Thorsten Opper e o livro agora em apreço, Hadrian and the Triumph of Rome (2009), de Anthony Everitt, uma das obras mais interessantes e cultas sobre o homem que mandou construir para seu mausoléu o edifício hoje designado por Castel Sant'Angelo, quase ao lado da futura Basílica de São Pedro do Vaticano.

Mas a verdadeira ressurreição tardia da figura do tão notável quanto enigmático imperador ficou a dever-se a um livro tornado famoso da escritora belga Marguerite Yourcenar (1903-1987), Mémoires d'Hadrien, publicado em 1951, que foi traduzido em inúmeras línguas e divulgado pelo mundo inteiro. Esta obra valeu a Marguerite Yourcenar a sua eleição para a Academia Francesa, sendo a primeira mulher a ingressar sob a cúpula desde a fundação da instituição pelo Cardeal de Richelieu.

Embora baseado nas fontes históricas disponíveis e redigido sob a forma de uma carta que Adriano dirige ao seu sucessor Marco Aurélio, o imperador (ou a Yourcenar) traça a biografia, abordando todos os aspectos da sua vida e prodigalizando-lhe conselhos. Sendo, realmente, uma obra de ficção, ainda que exaustivamente documentada, Mémoires d'Hadrien preencheu um incontestável vazio e durante cerca de meio século tornou-se uma autoridade académica, até surgirem posteriores trabalhos de verdadeira investigação histórica.

O presente livro de Anthony Everitt aborda com profundidade e muita perspicácia a vida de Publius Aelius Hadrianus, desde o seu nascimento, em Itálica (na Bética Hispânica), em 24 de Janeiro de 76 (embora a Historia Romana o dê como nascido em Roma) até à sua morte, em Baias (Itália), em 10 de Julho de 138. Reinou de 10 de Agosto de 117 a 10 de Julho de 138. E fá-lo, enquadrando o imperador na sociedade do seu tempo, que exaustivamente escalpeliza. Esta biografia é, também, uma história de Roma no tempo de Adriano.

Ele era filho do senador Publius Aelius Hadrianus Afer (primo do futuro imperador Trajano) e de Domitia Paulina, e casou com Vibia Sabina, sobrinha-neta de Trajano. Não teve filhos.

Tendo o pai falecido prematuramente, teve dois tutores, o mais importante o seu primo Trajano, que o tomou sob a sua protecção, embora não o tendo designado como sucessor. Trajano, casado com Pompeia Plotina, também não teve filhos. O outro tutor, e da maior influência junto de Trajano, foi Publius Acilius Attianus

Considerado como favorito de Trajano (com quem aliás as relações nem sempre foram fáceis) o imperador nunca proclamou Adriano como seu sucessor, mas a imperatriz-viúva Plotina declarou que Trajano o tinha adoptado e apresentou um documento nesse sentido assinado por si e datado de um dia depois da morte do marido, documento esse aceite pelo Senado e pelas legiões, maioritariamente favoráveis ao novo incumbente. Uma época feliz para Roma.

O reinado de Adriano caracterizou-se por duas óptimas ideias. A primeira, foi a de que o Império não poderia continuar a estender-se indefinidamente. Alargado da Espanha à Turquia e do Mar Negro ao Maghreb, havia que parar e construir muralhas onde não existissem fronteiras naturais. Na Bretanha, a muralha de Adriano ainda hoje existe. A segunda boa ideia de Adriano decorreu do seu amor à Grécia. A metade leste do Império falava grego e orgulhava-se da cultura de Homero. No Ocidente, Roma era o superpoder da bacia do Mediterrâneo e comandava exércitos temíveis. Adriano decidiu transformar o Império num projecto conjunto em que o cultural e o militar, a arte e o poder se encontrassem equitativamente. Colocou gregos no governo e, através de impressionantes construções, projectou Atenas como a capital espiritual do Império. Por estas duas vias, Adriano introduziu, como escreveu, um pouco exageradamente, Edward Gibbon na sua History of the Decline and Fall of the Roman Empire, "the fair prospect of universal peace".

Na sua vertiginosa expansão, muitos países aceitaram a supremacia de Roma e tornaram-se estados-vassalos, satisfeitos com muitas das reformas introduzidas. Mas nem todos.

«There was a terrible exception to this record of benevolent success. Hadrian's politics had a dark side. The one people that refused to be reconciled to the imperial system was the Jews. A great revolt against Rome broke out. The outcome was a catastrophe for the rebels; according to one estimate, many thousands of Jews were killed, and many others driven from the land. In an attempt to annihilate this thorny and yielding race from memory, Hadrian renamed Jerusalem and replaced Judaea with a new minted word, Palestine. All Jews were forbidden from entering their own capital city. It took two thousand years before they were able to return and resume their independence.» (p. xi)

É verdade que Trajano viveu grande parte da sua vida obcecado com a figura e as vitórias de Alexandre, que procurou imitar até as forças lhe faltarem. E, como Alexandre, não designou um sucessor, embora nos últimos anos fosse admitido que seria Adriano o escolhido. Nos últimos momentos, Alexandre entregou o anel real para ser usado pelo "melhor" dos seus companheiros. Também Augusto, julgando-se moribundo, chegou a entregar o seu anel a Marcus Agrippa, que acabaria por o preceder na morte. Mas Trajano hesitou até ao fim, restando o testemunho de Plotina. 

A célebre Coluna Trajana, no Forum Romano, onde estão inscritas as notáveis vitórias de Trajano, era encimada por uma estátua do imperador nu, mas foi substituída mais tarde pela estátua de São Pedro (???) que ainda hoje lá permanece.

A morte de Trajano permanece envolta em algum mistério. Sabemos que o imperador se encontrava doente mas o seu fim pode ter sido apressado com a finalidade de promover rapidamente a ascensão de Adriano e não é adquirido que a própria imperatriz Plotina, que dedicava grande afeição a Adriano, não estivesse envolvida nesse esquema, com a cumplicidade de Attianus. Não que existisse qualquer relação sexual entre Plotina e Adriano (Plotina era uma mulher de grande virtude e Adriano apreciava sobretudo rapazes) mas a imperatriz vislumbrava em Adriano a continuação das reformas e da estabilidade introduzida pelo seu próprio marido. A hipótese de homicídio tem várias sustentações, entre as quais a morte de Marcus Ulpius Phaedimus, um liberto que gozava de grande proximidade e amizade de Trajano, de quem fora amante, pois afirmam os testemunhos que, em jovem, fora um lindo rapaz. Ora Phaedimus morreu no próprio dia em que foi anunciada a morte de Trajano. E o seu corpo só foi transportado para Roma doze anos mais tarde. Parece que o liberto se encontrava então doente e que se terá suicidado. Mas também consta que Phaedimus sabia muitas coisas que poderiam afectar a credibilidade de Plotina. Por isso, tornava-se necessário eliminá-lo.

As cinzas de Trajano foram transportadas para Roma e finalmente depositadas na base da Coluna Trajana. 

A redução das fronteiras propriamente ditas do Império Romano foi uma das mais importantes decisões de Adriano, tomada logo nos primeiros tempos do seu reinado. A manutenção de um imenso exército espalhado por  milhares de quilómetros tinha um custo altamente elevado e a sua gestão tornava-se difícil, até pela morosidade das comunicações num território cujas dimensões abrangiam a Europa, a Ásia, a África. Já Augusto recomendara a Tibério para permanecer dentro das fronteiras existentes, como registou Tácito nos Anais. Por isso, Adriano ordenou o abandono das três novas províncias do seu antecessor - Arménia, Mesopotâmia e Assíria - e o seu reagrupamento permanente atrás da fronteira tradicional de Roma, o rio Eufrates. Também pensou abandonar a Dácia, cuja conquista custara milhares de vidas romanas, mas foi persuadido a reconsiderar. A população original tinha sido maioritariamente morta ou dispersa e o seu lugar preenchido por imigrantes oriundos do Império Romano. 

«Somewhere in Egypt - perhaps the border town of Pelusium or Heliopolis, at the southern head of the Nile delta - Hadrian presided over the trial, or at least some kind of official inquiry or hearing, of some hotheaded Alexandrian Greeks, led by a spokesman called Paul. A Jewish delegation was also present. From the report proceedings it is possible to suppose the following savage sequence of events. After the failure of the Jewish revolt, many Jews were imprisoned and the triumphant Greeks put on a satirical stage show lampooning the rebel "king" Lukuas [um dos chefes da rebelião]. Some of them sang songs criticizing the emperor for deciding to resettle Jewish survivors of the revolt in an area of the city from which they could easily launch new attacks on the native population. The irritated governor (Rammius'predecessor) ordered the Greeks to produce their "opera-bouffe monarch". Infortunately this "bringing forth" also brought many Greek rioters onto the streets. A Jewish witness asserted an unprovoked attack on a defetead community. "They dragged us out of prison and wounded us." Charges and coutercharges followed. The Jewish said the Greeks: "Sire, they lie". Hadrian was inclined to agree. He told the Greeks that the prefect was right to ban the carrying of weapons and thar he disapproved of the satire on Lukuas. He advise the Jews to restrict their hatred on their actual persecutors and not to loathe all Alexandrian Greeks indiscriminately. This evenhanded treatment came as a pleasant surprise to the defetead insurgents.» (pp. 175-176) Recorde-se que já nos mapas da antiga Alexandria Ptolemaica um dos quatro distritos da cidade se chamava o Distrito Judaico.

Adriano, que desde muito jovem se interessou pelo mundo helénico (chamavam-lhe em Roma Graeculus), conservou durante toda a sua vida um fascínio pela Antiga Grécia. E, seguindo um costume grego, foi o primeiro imperador romano a usar barba. A par da sua notável acção nos domínios político, militar, jurídico, económico, financeiro, social, religioso, preocupou-se com a actividade cultural, privilegiando os gregos. À imitação de Augusto, que foi em muitos aspectos o seu modelo, desenvolveu o mecenato e, ainda a exemplo do primeiro imperador, que fora amigo de Horácio, manteve amizade com Juvenal. 

Devem-se a Adriano grandes construções públicas em todo o território do Império. Introduziu grandes melhoramentos no Panteão de Agrippa (construído no tempo de Augusto) e restaurou também, em Roma, o Templo de Neptuno, devido igualmente a Agrippa. Encomendou o templo dedicado à mais recente "deusa", Augusta Matidia, sobrinha de Trajano e mãe de Vibia Sabina, que casou com o próprio Adriano. Consta que este tinha uma mais profunda dedicação à sogra do que à própria mulher. O monumento foi edificado na zona nobre onde se encontravam o Mausoléu de Augusto e o Ara Pacis. Deve-se-lhe também o famoso complexo palaciano Villa Hadriana, situado em Tivoli, a 30 quilómetros de Roma.

Contudo, apesar das belezas de Roma, de algo mais carecia Adriano. Tendo passado parte da sua vida no Oriente, nomeadamente na Grécia, essa nostalgia permanecia-lhe. Por isso, em 119 viaja para a Câmpania, a região de Itália com mais semelhanças com a Grécia. E permanece um tempo em Nápoles, Neapolis (a cidade nova), onde foi distinguido com o título de demarch (governante do povo).

Para provar a sua indefectível devoção, a sua pietas, a mais tradicional das virtudes, tomou duas decisões. Primeiro, projectou um templo dedicado à deusa Vénus, mãe de Aeneas, que renovou a arruinada Troia nos campos do Latium, e proclamou Roma, a cidade do espírito divino. Em segundo lugar, entendeu que Roma merecia uma festa de aniversário. Segundo a lenda, Roma foi fundada por Rómulo em 21 de Abril de 753 AC, no Monte Palatino. Com esse fim, anunciou a celebração anual, nesse dia, de Natalis Urbis Romae, comemorado com grandes festividades.

Tendo passado uma larga parte da vida nos campos de batalha, Adriano procurou sempre identificar-se com a vida da tropa, recusando quaisquer privilégios devidos ao seu cargo. Dormia e comia em condições idênticas às dos seus soldados e oficiais, por cuja vida privada e bem-estar se interessava pessoalmente. Aliviou certas regras demasiado severas do serviço militar e permitiu o casamento dos soldados. Até então, não era concedido aos soldados casarem-se durante o período de recrutamento, embora muitos mantivessem relações informais com mulheres (e naturalmente também com os camaradas) e delas tivessem filhos. Com esta decisão esse relacionamento (com as mulheres) foi legalizado, com todas as devidas consequências jurídicas. Segundo uma carta descoberta no deserto egípcio, esse assunto foi objecto de debate com o Prefeito do Egipto, passando as crianças a serem legitimadas.

«The Roman had a different idea of a frontier than we do today. It was not a line demarcating the edge of a national or political territory, on the far side of which another power owned the freehold. Rather, he saw it as the edge of land that the state, the Senatus Popolusque Romanus, directly administered. (p. 210)

Quando chegou à Alta Germânia, Adriano interessou-se especialmente pelo limes erigido por Domiciano, e depois por Trajano. «Originally a limes was a pathway between two fields, but here it means a road lined with about one thousand watchtowers and two hundred or so forts and fortlets, running from the Rhine above Mainz southeast to the Danube above Regensburg. The limes bridged an awkward gap between the two great rivers that otherwise constituted Rome's natural borders between the North and Black seas. When the emperor visited the limes, he made an important and innovative decision. On the "enemy" side of the road he ordered his soldiers to build an unbroken wooden palisade perhaps ten feet high, consisting of large oak posts, split in two with the flat sides facing out, and strengthened by crossbeams. This was a tremendous entreprise, for the limes was about 350 miles long. Wide swaths of German forest were harvested.» (p. 211)

«But the sheer ambition of the projects suggests another, overriding motive. The wall was a visible confirmation of Hadrian's policy of imperial stasis. It was a spectacular symbol both of the power of Rome and of its determination not to grow any further. This interpretation is supported by an observation in the Historia Augusta that Hadrian used artificial barriers to shut off or set apart barbarians "during this period [his first provincial tour] and on many other occasions." In other words, the German palisade was not a one-off project to meet a particular threat, but an example of an empire-wide policy that was bound to have a demonstrative as well as a practical effect. The policy may well have been unpopular with his generals and with the Senate, but he emperor never wavered in his determination to implement it. With the passage of time, the benefits of defensive imperialism became widely accepted, at least in the provinces. Later in century a comentator remarked approvingly: "An encamped army, like a rampart, encloses the civilized world in a ring." Having introduced his new training regime and commissioned his palisade, the emperor was ready to move on. His next major destination was the island of Britannia, perched on the outer boundary of the known world.» (pp. 211-212)

A Muralha de Adriano (ou o que dela resta) ainda hoje existe localizada sensivelmente na linha de fronteira entre a Inglaterra e a Escócia. «The most famous Roman monument in the British Isles is Hadrian's Wall, the Vallum Aelium. Despite its celebrity today, there is only one literary reference to it in antiquity linking it to Hadrian. The Historia Augusta observes that he was "the first to construct a wall, eighty [Roman] miles long, which was to separate the barbarians from the Romans".» (p. 222)

As deambulações de Adriano pelo Império levaram-no à Bitínia, no Ponto. Em 123 encontrava-se em Claudiópolis. Foi nessa altura que conheceu Antínoo, que se presume tivesse 15 anos, cujo aniversário se celebrava a 27 de Novembro e que era natural dessa cidade. Julga-se que Antínoo, possivelmente originário de famílias modestas, tenha sido visto pelo imperador por ocasião de jogos em que houvesse participado. O encontro com Adriano poderá ter acontecido também em Nicomédia, a capital da província. A verdade é que o rapaz fascinou Adriano como nenhum outro dos milhares que terão passado anteriormente pelo leito imperial. Em 123, Adriano tinha 47 anos, isto é, mais 32 anos do que Antínoo.

Nada se sabe da família do rapaz, mas embora modesta deveria ter algum prestígio, atendendo ao facto de Antínoo participar em cerimónias públicas. O relacionamento que estabeleceu com o imperador iluminou o resto das suas vidas.

No Império Romano, às relações entre pessoas do mesmo sexo não lhes era atribuído qualquer sentimento de pecado ou de culpa, como viria a acontecer com o triunfo do Cristianismo. Tratava-se de actos absolutamente normais, embora existissem alguns limites. O sexo com escravos ou estrangeiros era completamente normal, e até desejável. Mas estavam excluídos do leque os cidadãos romanos. Se Antínoo fosse cidadão de Roma, Adriano estaria quebrando as regras estabelecidas. Também havia a questão da penetração. O cidadão deveria exercer sempre o papel de "activo". Qualquer romano podia introduzir o pénis em quem lhe apetecesse mas nunca deveria ser penetrado. É claro que estas regras eram quebradas com a maior frequência, mas constituíam sempre actos à margem da lei. Os romanos não praticavam fellatio, mas permitiam que lho fizessem.

O conceito das relações sexuais em Roma entre pessoas do mesmo sexo era diferentes do da Grécia. Na Grécia, a paederestia (pederastia) fazia parte da educação. Os jovens eram educados por adultos em várias disciplinas, incluindo o sexo. Os rapazes eram eromenos até lhes crescer a barba. Depois disso, os erastas deviam deixá-los e arranjar outros mais novos. Ou seja, o contrário do que determina a nossa "civilização" actual. Mas, mesmo na Grécia, a situação não era idêntica em todas as cidades-estado. Ao contrário de Atenas, Esparta e Tebas incluíam a educação militar e os "amantes" iam para a guerra aos pares. Recordemos a célebre Legião Tebana. Ao contrário de Roma, na Grécia o acto não abrangia, por norma, a sodomização. Quando muito, os erastas poderiam ter com os eromenos uma relação intercrural. Na prática, estas limitações também não eram respeitadas, como se imagina, mas eram as regras vigentes. O sistema ateniense é muito bem descrito no Symposium (O Banquete), de Platão.

No que respeita à homossexualidade feminina, é interessante realçar um aspecto. Havia na corte de Trajano um trio de mulheres, não necessariamente lésbicas, mas que assumiu uma importância política notável. E que viviam rodeadas de mulheres. Eram elas Plotina, mulher de Trajano, com quem o imperador nunca terá mantido elações sexuais (Trajano só gostava de rapazes); Salonia Matidia, sobrinha de Trajano; Vibia Sabina, filha de Salonia Matidia e mulher de Adriano (com quem este só muito raramente e no início do casamento terá mantido relações sexuais; há uma alusão dela afirmando evitar ficar grávida). Seria interessante termos mais conhecimentos deste poderoso círculo feminino, que exerceu a sua influência durante meio século, e que poderá ter contribuído para um incentivar da homossexualidade feminina em Roma. O comportamento sexual de Trajano e de Adriano teve forte repercussão na vida social e cultural da época. Juvenal e Estratão abordaram abertamente nos seus poemas os novos (já eram antigos mas agora mais explícios) gostos sexuais.

Depois do seu encontro, Antínoo passou a viver com o imperador. Mas a relação permaneceu discreta, só assumindo visibilidade aquando da viagem ao Egipto. É possível que nos primeiros anos Adriano tenha enviado Antínoo para o Paedagogium, em Roma, um colégio de elite onde eram educados os filhos das melhores famílias romanas. É que o imperador pretendia um amante não só belo mas com um mínimo de cultura e de educação que o pudesse acompanhar ao longo da vida. O que nos primeiros momentos tinha sido uma aventura, transformou-se, por desconhecidos e imperscrutáveis motivos,  numa ligação duradoura.

Entretanto, Adriano prosseguia o seu périplo político-militar- cultural-turístico. Esteve em Granicus, evocando Alexandre Magno. Depois em Troia, em Hadrianópolis, em Pérgamo e em Rhodes. 

Em 124, foi iniciado nos mistérios de Elêusis. E visitou Mantineia, que para ele tinha um significado especial, sendo suposto que dela eram originários os gregos que colonizaram Claudiópolis, a cidade de Antínoo. Em Atenas, apaixonou-se por Lucius Vibullius Hiparchos Tiberius Claudius Atticus Herodes Marathonios, de 24 anos, conhecido simplesmente por Herodes Atticus, aristocrata ateniense fabulosamente rico, cujo avô passava por ser o homem mais rico de todo o mundo grego. Ele e o seu filho eram generosos patronos das artes e da arquitectura e colaboraram com o imperador no embelezamento de Atenas. 

Desde a República que se verificava, como notou Plutarco, uma subserviência da Grécia em relação a Roma. Adriano respeitou as convenções, não "libertando" a Grécia mas tornando-a "igual" a Roma dentro do Império. Roma continuou a ser o centro do governo mas Atenas tornou-se a capital espiritual do Império. E a cidade acolheu novas e belas construções.

Naturalmente que Adriano manteve, como os seus antecessores, a ficção de que Roma era uma República, e ele apenas o princeps. Assim, cumpriu todas as formalidades republicanas, mas o centro do poder estava verdadeiramente em Tibur (actualmente Tivoli) local da célebre Villa Hadriana, um notável complexo de edificações que mais do que um palácio era uma verdadeira cidade.

Por esta altura uma parte da família mais próxima de Adriano já tinha morrido. A irmã mais velha de Adriano, Paulina, casara com Servianus, bastante mais velho, que se julgou pudesse vir a ser o sucessor. Mas estando aquele agora com cerca de 90 anos, Adriano inclinou-se para o neto deste, Lucius (ou Gnaeus) Pedanius Fuscus Salinator. Todavia, em 136 mudou de ideias e decidiu adoptar Lucius Ceionius Commodus, dando-lhe o nome de Lucius Aelius Caesar, mais por uma questão de aspecto do que de qualidades para governar. Todavia, sofrendo de tuberculose, o rapaz morreu pouco tempo depois. Interessou-se depois pelo jovem Marcus Annius Verus, descendente de uma família ilustre. Como era muito novo, Adriano encarregou-se da sua educação, lembrando o cuidado de Augusto ao educar os prematuramente falecidos filhos de Marcus Agrippa, Gaius e Lucius Caesar.

Entre 125 e 127 o imperador permaneceu em Tibur; em 11 de Agosto de 127 esteve em Roma, nas comemorações da sua acessão ao Império. A seguir iniciou uma viagem pelo norte de África, mandando realizar grandes obras nas regiões hoje correspondentes à Argélia e Tunísia. Depois regressou à Grécia, visitando várias cidades, Continuou para a Judeia, onde mandou edificar um templo dedicado a Júpiter Capitolino sobre as ruínas do templo de Herodes e rebaptizando Jerusalém com o nome de Aelia Capitolina. Neste itinerário seguiu-se o Egipto, que era uma propriedade pessoal dos imperadores, desde Augusto, e que Adriano desejava vistar demoradamente, até por se interessar pelo culto dos antigos deuses e pelo passado ptolemaico de Alexandria. Nesta cidade, reuniu-se diversas vezes com os sábios do Mouseion e apreciou o que ainda restava da Biblioteca inicial, embora as suas relações com os intelectuais da época não tenham sido fáceis, devido à vontade do imperador de impor as suas opiniões.

Viajando com Antínoo no Nilo, navegou no Canal Canópico e visitou o Templo de Serápis. É nesta altura que ocorre a morte do seu bem-amado, em circunstâncias nunca completamente esclarecidas. Para respeitar fielmente o texto, passo a transcrever o original:  

«A few miles south of Heliopolis, Hadrian, Antinous, and their entourage toured Memphis, founded more than three thousands years previously and the original capital of the old kingdom of Egypt. They inspected the pyramids and the Sphinx. Then the imperial party sailed on upriver and moored at Hermopolis (Egyptian Khemennu). Situated on the border between Upper (or southern) and Lower Egypt, this was a populous and opulent city, with a famous sanctuary of Thoth, god of magic, heart and tongue of Ra, arbiter of good and evil and judge of dead.»

«On October 22 the festival of the Nile was celebrated - usually a happy celebration of the renewed fertility that the river's annual inundation brought about, but on this occasion a glum affair, one suspects, for it was the second year when there had been a disastrously poor flood. Then two days later came the anniversary of the death of Osiris and worshippers chanted for his yearly rebirth, analogous with the rise fall of the river.»

«Opposite Hermopolis the riverbank curved and the current strengthened. A small, impoverished settlement of mud huts lay along the shore and close by stood a modest temple of Ramses the Great, Egypt's most famous pharaoh (1298-1235 B.C.). One day during the last week of the month, here or hereabouts, the lifeless body of Antinous was recovered from the river. He had drowned.»

«Hadrian broke down. The Historia Augusta noted, disapprovingly, that he "wept for the youth like a woman." He declared that he had seen a new star in the sky, which he took to be that of Antinous. Courtiers assured him that the star was new and had indeed come from Antinous' spirit as it left his body and rose up into the heavens. The emperor decided that Antinous was to be deified. Dead, he was to be reborn as a god.»

«From the point of view of Roman convention, such a thing was unheard of. Emperors, and wives or close relatives, received divine honors by approval of the Senate - but not boyfriends of no political or social significance. Hadrian did not even trouble the Senate with the matter, for "the Greeks deified him at Hadrian's request." What precisely this means is unclear, but what there was a long-standing tradition in the eastern Mediterranean of potentates declaring themselves gods, and in the popular mind the boundary between the human and the divine was porous.»

«As it happened, there was a local precedent for the conferral of divine honors. A drowning in the Nile had magical properties. When Pachrates' spell called for a mouse and beetles to be drowned in the Nile, the actual word he used was "deified". This was because many believed that the Nile conferred immortality on anyone it took to itself by drowning. (Importantly, suicides were excepted.) Only the priests could touch the corpses and these were buried at the public expense. Two brothers, Petesi and Paher, who drowned in Roman times even had a temple devoted to them. In the second-century tomb of a girl, Isidora, who drowned in the river, a funerary poem has her father say: "O my saughter, no longer will I bring you offerings with lamentations, now that I know that you have become a god."»

«So Antinous joined the immortals - but how did he come to die in the first place? This is difficult to ascertain, for nothing is known about the exact circumstances. In his memoirs Hadrian asserted that the death was an accident, but the ancient sources were not so sure. Three texts give accounts of what happened - Dio Cassius, the Historia Augusta , and Aurelius Victor. They were written long after the event, are not altogether reliable, and (some say) betray signs of malice. According to Dio, the best of the bunch,

Antinous... had been a favorite of the emperor and had died in Egypt, either by falling into the Nile, as Hadrian writes, or, as the truth is, by being offered in sacrifice. For Hadrian, as I have stated, was always very curious and employed divinations and incantations of all kinds.

Aurelius Victor agrees, reporting that

when Hadrian wanted to prolong his life and magicians had demanded a volunteer in his  place, they report that although everyone else refused, Antinous offered himself and for this reason the honors mentioned above were accorded him. We shall leave the matter unresolved, although with someone of a self-indulgent nature we are suspicious of a relationship between men far apart age.

The Historia Augusta takes a similar line, but with less certainty.

Concerning this incident there are varying rumors; for some claim that he had devoted himself to death for Hadrian, and others - what both his beauty and Hadrian's excessive sensuality indicate.

What is intended by this insinuation is unclear; presumably the reader is to infer that Antinous killed himself in order to escape the emperor's sexual advances.»

«The first and most ordinary of explanations is that the emperor's favorite was drowned by accident, just as Hadrian claimed. A youth, high spirits, unpredictable currents or underwater plants trapping an unwary diver or swimmer - this is a familiar and plausible concatenation of circumstances. But a personage of Antinoo's importance would seldom be alone, and if he went for a swim help would surely have been close at hand.»

«A second possibility is that he committed suicide, evading notice and slipping silently into the river, perhaps under cover of darkness. It is not too hard to guess at motives. He was now about twenty, and no longer the pretty lad who had first caught the emperor's eye. If Hadrian fancied only smooth-cheeked teenagers, then indeed Antinous faced an uncertain future. What use would his patron and lover have for him once he had graduated from puer, boy, to iuvenis, young man?»

«There is evidence, though, that Hadrian had catholic tastes. Aurelius Victor claims that "malicious rumors spread that he debauched adult males (puberibus)." While no necessary blame attached to a youthful eromenos for having sex with his erastes and even privately allowing himself to be buggered, it was, as we have seen, shameful for an adult to accept the receptive role. Antinous, having reached manhood, may have been unwilling to go on sleeping with the emperor. In his eyes, if he allowed things to continue as before, he would be little better than a male prostitute. All too credibly, he could imagine himself aging into the superannuated gigolo of Juvenal's satire.»

«Even if there was something to these fears, that one member of the pair was losing interest or that the other was feeling shame, the evidence of Hadrian's behavior after the drowning points to the passionate sincerity of his love, and so surely mitigates them. That is to say, Antinous could count on the emperor's continuing affection even if for one reason or another the love affair itself were to end. He had no grounds for anticipating that he would either be discarded or abused.» (pp. 286, 287, 288, 289)

«Although Hadrian and Antinous are hardly a perfect match for the Greek couple, >rrian was surely linking two doomed eromenoi who, in different ways, put yheir lives on the line for their lovers. It was a delicate allusion, well judged to touch and comfort his desolate correspondent.» (p. 290)

Na semana seguinte à morte de Antínoo, o imperador decidiu fundar uma nova cidade no lado oposto a Hermópolis, onde ele se tinha afogado e que se chamou Antinópolis. Foi povoada por descendentes de gregos e veteranos do exército, atraídos pelas generosas taxas de concessão. Quase nada resta hoje dessa cidade, graças às depredações da população local, mas ainda há trezentos anos muitos edifícios encontravam-se intactos. Um vistante do século XVIII anotou: "This town was a perpetual peristyle." (p. 291) Ariano pensou sepultar Antínoo na nova cidade, mas rapidamente mudou de ideias, sendo o corpo enviado para Tibur, onde foi sepultado num mausoléu na Villa Hadriana. O rapaz passou à categoria de deus, sendo-lhe prestado culto como Antínoo-Osíris, um culto que se espalhou por todo o Império. Como um deus que morre e ressuscita, ele tornou-se, durante um tempo, um rival do cristianismo. À volta do Mediterrâneo foram criados templos, altares, sacerdócios, oráculos, inscrições e jogos em seu nome. Estima-se que, por ordem de Adriano, foram esculpidos cerca de 2 000 bustos e estátuas de Antínoo, de que ainda subsistem mais de 115, e sendo admissível que mais surjam com o passar do tempo, à medida que escavações diversas prosseguem em vários locais.

Apesar do profundo desgosto, Adriano continuou o seu périplo no Egipto. Visitou os Colossos de Memnon, em Tebas e regressou a Alexandria onde fez a planificação de Antinópolis. Deixou o Egipto na Primavera de 131, passou pela Síria e no Inverno encontrava-se de novo em Atenas, revisitando Elêusis.

Encontrando-se em Atenas, Adriano tomou conhecimento de mais uma revolta judaica, acora liderada por Bar Kokhba, que se proclamava o Messias. O imperador organizou a expedição militar (ele mesmo terá nela participado) que esmagou os revoltosos, tendo o auto-proclamado Messias, que declarara a independência face a Roma, sido morto. Os insurrectos tinham escavado uma notável rede de túneis na Judeia a partir dos quais atacavam as guarnições romanas, mas, segundo o autor, não chegaram a tomar Jerusalém (a nova Aelia Capitolina), o que contradiz outras versões desta terceira revolta.

«The building of Aelia Capitolina proceeded apace and an equestrian statue of Hadrian, still in plac more than a century later, was erected on the site of the Holy of Holy. Pagan shrines were built over Jewish places of worship. By the city gate for the Bethlehem road, a marble sow was erected, insultingly offensive to Jews and denoting their subjection to Roman power. Judaea was abolhised as a territorial entity. It was added to Galilee and the enlarged and purified province was known as Syria Palaestina, the first time the term Palestine was ever employed. It was to be as if the chosen people had never existed.

Hadrian was acclaimed imperator for the first time in his reign, a title adopetd by an emperor only after a signal victory, and his three chief generals, Severus and the governors of Syria nad Arabia, were granted triumphal honors, ornamenta triumphalia, the hghest military honor to which theu could aspire. The emperor was unusually parsimonious with such titles, and his generosity on this occasion signals the shock that had rocked the empire. It had taken a huge effort to put down the revolt.

For Hadrian, his victory was in part a defeat. His policy was to attract the fullest possible consent to Roman rule, to entice provincial elites to join him in government, to recast the empire as a commonwealth of equals. There is no reason to doubt the sincerity of this approach, but, for all that, the revolt had exposed its falsity. The final guarantee of the pax Romana was the brute force of the legions. This, in turn, was a reminder of the implicit fragility of the imperial system. If the army were ever to fail, what would then preserve Rome's dominion?

When the rabbinical authors mention the name of Hadrian they often add the phrase "May his bones rot!" No wonder, for it was now clear that, after recurrent revolts at the end of Nero's reign and then at the end of Trajan's, the Jews would never again give Rome any trouble.» (pp. 304-305)

Na Primavera de 134 Adriano regressou a Roma. Começava a ser a altura de designar um sucessor. Como vimos anteriormente, em dado momento o imperador, falhadas outras hipóteses, interessou-se pelo muito jovem Marcus Annius Verus, neto do senador Annius Verus, personagem distinta em Roma e que foi cônsul por três vezes. Adriano encarregou-se da educação de Marcus, que começou a distinguir-se no domínio do latim e do grego e na filosofia. Parece que o rapaz, que além do mais era muito bonito, o que também agradava ao imperador, se tornou pretensioso mas as suas qualidades fazia crer a Adriano que ele poderia ser um óptimo governante.

Durante a ausência de Roma do imperador, as grandes construções prosseguiram. Em 135 foi dedicado o templo de Vénus. Continuou a construção de um grande mausoléu imperial em Roma (o actual Castel Sant'Angelo), uma vez que o mausoléu de Augusto estava totalmente preenchido, tendo Nerva lá sido sepultado já com dificuldade. As cinzas de Trajano foram depositadas no sopé da sua Coluna. 

A partir do seu regresso a Roma, Adriano passou a maior parte do tempo na sua Villa, em Tibur, superintendendo a construção do templo dedicado a Antínoo. Mas a sua saúde começou a deteriorar-se sofrendo recorrentemente de hemorragias nasais. Em 24 de Janeiro de 136 completou 60 anos mas a crença que a morte do bem-amado poderia ter contribuído para prolongar a sua boa saúde foi obviamente uma esperança vã. E começou a dar mostras de inexplicáveis irritações e a afastar até antigos e grandes amigos. Após uma grave hemorragia, o imperador percebeu que o seu fim estava próximo e resolveu oficializar a sucessão. O seu cunhado Servianus, com quem durante muito tempo tivera divergências, estava na casa dos noventa anos e por isso fora de questão. A hipótese do neto deste, Pedanius Fusco, acabou por ser descartada. Na segunda metade de 136, Adriano decidiu nomear como sucessor Lucius Ceionius Commodus, que baptizou como Lucius Aelius Caesar, então com 34 anos, que tinha sido senador mas não tinha experiência governativa. Fora, também ele, em tempos, amante de Adriano, tavez um antecessor de Antínoo. Encontrava-se já doente (tuberculoso) e acabou por morrer em 1 de Janeiro de 138, ainda antes do imperador.

Também entre fins de 136 e começos de 137 morreu a imperatriz Vibia Sabina, tendo-se falado de suicídio, o que não está provado. Apesar da sua indiferença sexual, Adriano tratou sempre bem a mulher, concedendo-lhe todas as honras inerentes à sua posição.

Nos últimas anos da sua vida, Adriano, ao contrário do que lhe era habitual, procedeu a diversas purgas eliminou ou afastou velhos amigos e tornou-se facilmente irritável, talvez consequência da deterioração do seu estado de saúde. Também passou a suspeitar de várias conspirações contra a sua pessoa. Não se lhe conhecem anteriormente especiais actos de violência, excepto a morte de alguns cônsules no início do seu reinado.

Em 136, Marcus Annius Verus tinha 15 anos e tornara-se a menina dos olhos de Adriano (como refere expressamente o autor) e trocou a toga praetexta pel toga virilis. Os cônsules noemaram-no para o posto honorífico mas altamente honroso de prefeito da cidade, praefectus urbi (não confundir com o funcionário com o mesmo título que tinha a cargo a administração da cidade). Marcus (o futuro Marco Aurélio) não terá provavelmente tido intimidade sexual com o imperador, mas não era alheio a esses relacionamentos. Segundo Anthony Everitt «It is relevant to note that two or three years later, young Marcus Annius Verus and his tutor Marcus Cornelius Fronto exchanged letters about their love for each other. Fronto, holding back, says, "so far as I am concerned you shall be called καλδς ['beautiful', usually applied to victorious atheletes] and not ερωμένος [eromenos, or 'beloved']." Marcus objects: "You shall never drive me, your lover, away." There is something artificial about the correspondence, but even if Marcus and Fronto were only playing at having an affair it does strongly suggest that Greek love was a respectable and accepted convention at court.» (p. 311)

Finalmente, em 25 de Fevereiro de 138, Adriano adoptou como sucessor Titus Aurelius Fulvius Boionius Arrius Antoninus, senador de meia-idade, homem muito rico e de impecáveis antecedentes, que ficou conhecido como Antonino Pio. Com a indicação de que este deveria adoptar como sucessor Marco Aurélio.

O estado de saúde de Adriano agravou-se progressivamente e o imperador procurou quem pudesse matá-lo mas todos os convidados recusaram à excepção de um cativo da tribo de Iazyges. O acto foi evitado no último momento devido á rápida intervenção de Antonino. 

Nos meses finais da sua vida, Adriano encontrou energia para escrever uma autobiografia na forma de uma carta a Antonino, da qual foi encontrado um fragmento, em papiro, em Fayum, no Egipto. 

«He also wrote a poem, a short address to his soul as it quits its body and sets out for the unknown. It is a fine piece of work, allusive, adroitly opaque - and owing more to Adrian's favorite, Ennius, than to fluent, smooth Virgil.

 

animula vagula blandula

hospes comesque corporis

quae nunc abibis? In loca

pallidula rigida nudula

nec ut soles dabis iocos

 

Little soul, you charming little wanderer,

my body’s guest and partner,

where are you off to know? Somewhere

without colour, savage and bare;

you’crack no more of your jokes once you’re there

 

The failing emperor retreated from Rome to an imperial villa at the seaside resort of Baiae. He abandoned his medical regimen and ate and drank whatever he liked. This precipitated a final crisis and he lost consciousness after shooting out loud: "Many doctors killed a king." On July 10, 138, the man who entered life as Publius Aelius Hadrianus left it as Imperator Caesar Divi Traiani filius Traianus Hadrianus Augustus. His next name was due to be Divus Hadrianus, Hadrian the God. But is very nearly failed to make the grade.» (pp. 319-320)


Recorde-se que foi sob a forma de uma carta dirigida a Marco Aurélio, e não a Antonino, que Marguerite Yourcenar escreveu Mémoires d'Hadrien.

Apesar da excelência do seu reinado, Adriano não foi, segundo Dion Cassius, muito apreciado pelos romanos, talvez devido ao episódio da morte dos cônsules no início da sua governação. Foi sepultado nos jardins de Domitia, próximo do seu mausoléu, que só ficou concluído no ano seguinte e para onde as suas cinzas foram então trasladadas. O Senado, atendendo às relações difíceis com Adriano, não desejou deificá-lo, mas devido à insistência de Antonino (talvez por isso chamado Pio) prestou-lhe honras triunfais. 

Por morte de Antonino, sucedeu-lhe, como previsto, Marco Aurélio (161-180) que reinou inicialmente em conjunto com seu irmão adoptivo Lucius Verus (161-169), filho de Lucius Aelius Caesar, que Adriano adoptara anteriormente mas que morreu antes do falecimento deste. Foi a primeira vez que o Império foi governado por dois imperadores simultaneamente.

«In his reflections, many years later, in which he reviewed those to whom he owed gratitude, Marcus Aurelius surprisingly makes no affectionate mention of his adoptive grandfather. "Do not be upset", he wrote, addressing himself as a good Stoic. "In a little while you will be no one and nowhere, as is true now even of Hadrian and Augustus." His friend and mentor, Fronto, found it hard to warm to Hadrian, whom he compared unfavorably to his successor.» (p. 323)

Concluindo, que o texto já vai longo, reafirmemos que Adriano foi um dos mais notáveis imperadores romanos, quer política ou militarmente, quer nos campos administrativo, jurídico, económico, cultural, religioso.

E muito se deve a Marguerite Yourcenar pela ressurreição do interesse por Adriano que teve lugar no passado século XX.

* * *

Não tendo agora incluído imagens, remeto o leitor para o texto que sobre Adriano publiquei em 25 de Outubro de 2020, no seguinte post: http://domedioorienteeafins.blogspot.com/2020/08/memorias-de-adriano.html

 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

MANUEL PINTO DA FONSECA, GRÃO-MESTRE DA ORDEM DE MALTA

Conferência do Embaixador Fernando Ramos Machado, na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 17 de Novembro passado, sobre a notável figura de Manuel Pinto da Fonseca, Grão-Mestre da Ordem de Malta, um dos mais prestigiados soberanos da augusta instituição.


Publica-se por especial deferência e com a permissão do autor.

 

                                            MANUEL PINTO DA FONSECA

                         GRÃO-MESTRE DA ORDEM DE MALTA (1741-1773)

                                                                        I

Foram, até agora, quatro os Grão-Mestres portugueses da Ordem de S. João de Jerusalém, mais conhecida, a partir do Séc. XVI, como Ordem de Malta:

 

- Afonso de Portugal (1202-1206)

- Luís Mendes de Vasconcelos (1622-1623)

- António Manoel de Vilhena (1722-1736)

- Manuel Pinto da Fonseca (1741-1773)

Em 2022, assinalou-se a passagem de 400 anos sobre a eleição de Vasconcelos e de 300 sobre a de Vilhena. Em 2023, registou-se, novamente, uma dupla efeméride – os 400 anos da morte de Vasconcelos e os 250 da de Fonseca.

A Vasconcelos (e a Vilhena) dediquei um trabalho, no ano passado; o presente será sobre Pinto da Fonseca.

                                                                             II

Podemos afirmar, sinteticamente, que dos três portugueses que governaram em Malta (Afonso de Portugal foi Grão-Mestre ainda na Terra Santa) Vasconcelos foi um Cavaleiro exemplar, Vilhena um ilustre Grão-Mestre, Pinto um Soberano europeu. Respeitamos o primeiro, admiramos o segundo , o terceiro  fascina-nos.

                                                                            III

Manuel Pinto da Fonseca nasceu, em Lamego, a 24 de Maio de 1681, filho de Miguel  Álvaro Pinto da Fonseca, Alcaide-Mor de Ranhados, e de sua mulher, Ana Pinto Teixeira. Pertencia, evidentemente, à Aristocracia, e referem-se ligações da sua Família à Casa das Brolhas, considerada o Solar mais imponente de Lamego (na sua configuração actual, porém, data de 1777, posterior já à morte de Pinto).

Entrou na Ordem de Malta, tendo dela sido Juiz Ordinário e Conservador, no Porto.

Foi Comendador de Oleiros, Fontes e Sernancelhe.

O Grão-Mestre Perellós ( 1697-1720) fê-lo Balio de S. João de Acre, em 1719.

Vice-Chanceler, vários anos, durante o Magistério de Vilhena (1722-1736). Não terá fundamento, porém, a afirmação, por vezes avançada, de um parentesco próximo (primos direitos) entre Pinto e Vilhena.

Eleito, por unanimidade, Grão-Mestre, em 18 de Janeiro de 1741, com 60 anos contados, o seu Magistério, que durou 32 anos, foi o mais longo da História da Ordem.

Numa “História de Malta” do Séc XIX, da autoria de Miège (Bruxelas, 1841) lê-se que Pinto, “logo na infância, tinha vindo para Malta, onde foi admitido entre os pajens do Grão-Mestre, e nunca mais saíra de lá. A sua eleição foi acolhida com satisfação pelos malteses, que viam nele mais um compatriota do que um estrangeiro”.

Aquela afirmação é fantasiosa, mas interpreto-a como significando que a sua vida anterior à ida para Malta não é particularmente relevante. E acrescento que, tivesse ficado em Portugal, Pinto da Fonseca teria sido apenas um fidalgo de província português, mais ou menos empertigado; em Malta, sem perder a ligação ao seu País de origem, foi muito mais, tornando-se a personagem que admiramos.

                                                                               IV

O cargo de Grão-Mestre dos Hospitalários era de grande complexidade. Eleito vitaliciamente pelos seus pares, chefiava uma Ordem religiosa, com uma vertente assistencial e vocacionada para o apoio aos peregrinos e o tratamento dos doentes, mas que era, sobretudo, militar, forte Potência naval no Mediterrâneo, com papel de relevo, durante Séculos, na defesa da Europa contra o expansionismo otomano e no combate aos piratas berberescos. O Grão-Mestre devia obediência ao Papa, no plano espiritual, sem que a Ordem, em termos práticos, deixasse de ser reconhecida como Soberana. Tal estatuto não decorria, aliás, nem decorre do exercício de Poder sobre um território, embora, historicamente, remontasse à conquista de Rodes pelos Hospitalários, no início do Séc.XIV; perdida aquela Ilha, fora-lhes cedido, por Carlos V, o Arquipélago Maltês, como feudo, sendo devido o tributo anual simbólico de um falcão, a entregar, ao Vice-Rei da Sicília. Como Príncipe de Malta, cabia ao Grão-Mestre administrar e defender a Ilha, base territorial e baluarte da Ordem. Além dos Cavaleiros, seus subordinados, eram também seus súbditos os autóctones malteses. A Ordem, transnacional, era internacional, pela sua composição, agrupando-se os Cavaleiros por Línguas, em número de 8. Nos vários Países do Mundo Católico, a Ordem estava implantada, com Comendas, que constituíam a sua principal fonte de rendimentos.

Mas muito mudara, entre os tempos de Vasconcelos e os de Pinto. O Império Otomano já não representava uma ameaça tão grave para a segurança da Europa cristã, além de que a França, que se tornara o principal suporte da Ordem, procurava manter bom relacionamento com o Sultão, a bem do seu comércio com o Levante, desencorajando as hostilidades para com os turcos.  

Assim, a actividade militar dos Hospitalários concentrava-se no combate aos piratas berberescos , utilíssimo mas, mesmo assim, levantando interrogações; o contra-corso, legitimo na sua origem, aparecia, cada vez mais, como uma actividade visando, simplesmente, significativos proventos.

A austeridade do modo de vida dos Cavaleiros fora sendo, gradualmente, substituída pelo gosto do conforto e do luxo. E a castidade nunca havia sido o seu ponto forte..

A própria Fé fora perdendo o seu vigor, com as novas ideias a seduzirem os espíritos de muitos Hospitalários, em particular dos franceses (de longe, de resto, os mais numerosos).

Perante este panorama, muitos questionavam-se sobre a utilidade e a relevância da Ordem de Malta.

                                                                              V

Assumindo o Magistério nessas circunstâncias, de decadência certa, ainda que não evidente, Pinto conseguiu proporcionar, à Ordem de Malta, um longo período de notável brilho.

 O seu Magistério (1741-1773) foi contemporâneo dos últimos 9 anos do Reinado de D. João V e dos 23 primeiros da governação do Marquês de Pombal; com ambos, terá partilhado não só traços de carácter, como modalidades de actuação. Admito haja alguma superficialidade nesta observação, mas os três, cada um à sua maneira, foram destacados representantes do Despotismo Esclarecido, o sistema ideológico e político então vigente na Europa.

Tal como o Monarca português, Pinto viveu no esplendor (ainda que os Cavaleiros de S. João fizessem voto de pobreza...) e na sua Corte seguia-se o mesmo aparato que nas grandes Capitais europeias. As formas espelhavam o Poder e eram, também, instrumento de Poder.

Veja-se a questão da fórmula de tratamento. Em 1607, o Imperador Rodolfo II fizera de Alof de Wignacourt Príncipe do Império e, em 1620, Fernando II tornara esse estatuto permanente, para os Grão-Mestres de Malta; a fórmula de tratamento correspondente era Alteza Sereníssima. Além de Wignacourt, também foi assim chamado o seu sucessor, Vasconcelos, e o sucessor deste, Antoine de Paule nos seus primeiros anos, ao fim dos quais, como escreve, com alguma ironia, António Pereira de Lima, “resolveu a Santidade do Papa Urbano VIII que aos Grão-Mestres de S. João se lhes falasse por Eminência, como aos Cardeais do Sacro Colégio em Roma, e aos Arcebispos Eleitores de Mogúncia, Tréveres e Colónia, com que se acomodaram os Grão-Mestres, por serem pessoas Eclesiásticas e filhos muito obedientes à Igreja Romana”. (A capa da tradução portuguesa, de 1731, da biografia de Vasconcelos, que Pereira de Lima escrevera, em espanhol, ilustra a disparidade: “Vida e Acções de Sua Alteza Sereníssima Fr. Luís Mendes de Vasconcelos, Grão-Mestre da Sagrada Religião de Malta (…) agora novamente traduzida do Castelhano em Português e oferecida ao Eminentíssimo Senhor D. António Manoel de Vilhena, Grão Mestre etc”).

Pinto exigiu ser tratado por Alteza Eminentíssima, fórmula correspondente ao seu duplo estatuto, equiparado tanto a Príncipe como a Cardeal, e os Grão-Mestres assim são chamados, desde 1741 até aos dias de hoje. (Vi, com estranheza, na correspondência dos Czares e Imperatrizes da Rússia, eles se dirigirem aos Grão-Mestres anteriores a Pinto, utilizando já a fórmula Alteza Eminentíssima; como explicar este, pelo menos aparente, anacronismo?). 

D. João V

Pela mesma altura (1748) D. João V recebeu, da Santa Sé, o título de Rei Fidelíssimo.

Mas um símbolo havia que, mais claramente, afirmava o Poder do Grão-Mestre e a Soberania da Ordem.

Em 1581, no termo de uma grave crise que abalara a Ordem, o Papa determinou que os Grão-Mestres passassem a encimar as suas armas com uma coroa ducal.

No quadro do processo, que alguns autores referem como a monarquização da Ordem, foi pensado, durante o Magistério de António Manoel de Vilhena, procurar obter, do Papa e dos Príncipes cristãos, a autorização de o Grão-Mestre usar um boné escarlate, fechado com dois círculos de ouro, enriquecidos de pedrarias e pérolas, formando uma Cruz de Malta; seria algo parecido com o gorro do Doge de Veneza? Não vi nenhuma representação e, de qualquer modo, a morte de Vilhena pôs termo a esse projecto.

Pinto não se absteve de subir a um patamar superior e passou a fazer-se representar, designadamente no célebre retrato por Favray, com a Coroa fechada, como as dos Reis, não com ela na cabeça, mas ao lado, apontando para ela ostensivamente ou, mesmo, com a mão sobre ela pousada.

A Coroa simbolizava a Soberania, isto é, a independência no plano internacional e o Poder supremo no plano interno. A busca do Poder, e o seu exercício com firme autoridade, foi preocupação de Pinto, durante todo o seu Magistério.

Tendo-lhe sido sugerido que convocasse um Capítulo Geral, já que o último tivera lugar em 1631, durante o Magistério de Antoine de Paule, ficou célebre a  resposta que se lhe atribui: “que se fosse Rei de França, jamais reuniria os Estados Gerais, se fosse Papa, não suportaria Concílios e, Chefe dos Hospitalários de S. João de Jerusalém, não desejava Capítulos Gerais, porque sabia que essas assembleias terminavam quase sempre por prejudicar os direitos daqueles que permitiam a sua reunião”.

                                                                    VI

Cioso do seu Poder absoluto, Pinto tinha, simultaneamente, plena consciência dos deveres que o seu alto cargo lhe impunha e aproveitou a quase trégua, não declarada, com os Otomanos, para reforçar a segurança do Arquipélago, reparar e construir, com magnificência, diversos edifícios públicos, promover a economia e as condições de vida da população.

Assim, ordenou notáveis melhoramentos nas fortificações, tanto em Malta como em Gozo (completando o Forte Chambray); junto ao Forte de Sant’Elmo, criou um local, onde as mulheres se pudessem abrigar, em caso de cerco ou de ataque pelos Turcos; armou, à sua custa, três grandes galés e uma fragata; começou a construção de uma doca, para reparação das embarcações da Ordem.

Na Década de 1740, fez importantes obras no Palácio dos Grão-Mestres, dando-lhe a sua configuração actual; ali se encontra instalada a Presidência da República de Malta. Concluiu o Albergue de Castela, em cuja fachada figuram o seu busto e as suas armas, e as de Portugal, e que, actualmente, acolhe o Gabinete do Primeiro Ministro. Erigiu o Palácio de Justiça, para alojar o Tribunal e a prisão, substituindo uma construção do Séc. XVI.

Encomendou os icónicos edifícios à beira-mar, ainda hoje conhecidos como “Pinto’s Stores”, 19 espaçosos armazéns, que se juntaram aos 2 devidos a Vilhena, destinados a incrementar a actividade portuária.

Ainda no domínio da Economia, fez plantar amoreiras, em várias partes da Ilha, com vista a encorajar a produção de seda, como o Marquês de Pombal, em Portugal, em ambos os casos parece que sem grande sucesso.

 (Não se acrescenta, porém, à sua glória, atribuir-se-lhe a construção de edifícios que, na verdade, não lhe são devidos, como o do Almirantado, o da Alfândega e o da Biblioteca).

                                                                                VII

Como outros Soberanos católicos de então, Pinto entrou em conflito com os Jesuítas, mas só dez anos após Pombal ter iniciado esse movimento, muito depois de Países como França e Espanha e apenas alinhou em 1768, cedendo às fortes pressões de Nápoles. 

Quaisquer que fossem as suas simpatias pessoais neste domínio, era certamente embaraçoso, para Pinto, Chefe de uma Ordem religiosa, adoptar medidas hostis para com uma outra. Pediu autorização ao Papa Clemente XIII que, relutantemente, a concedeu, desde que tudo fosse feito com "toda a devida decência”.

Os Jesuítas foram expulsos, sendo-lhes, porém, concedidas indemnizações – eram 13 Padres, 5 Irmãos e 2 estudantes, além de três, idosos, dos quais 2 malteses, que foram autorizados a permanecer. Os haveres da Companhia foram confiscados e, não surpreendentemente, destinados a financiar a Universidade (Pubblica Università di Studi Generali) instituída pelo Grão-Mestre, no ano seguinte.

Deve-se, também, a Pinto a introdução definitiva de uma oficina de impressão em Malta. Esforços nesse domínio haviam sido feitos, em meados do Séc. XVII, mas haviam-se gorado, dadas as disputas entre Bispo, Inquisidor e Grão-Mestre, relativamente ao direito de censura das publicações. Foi o Embaixador da Ordem em Roma, Balio Guérin de Tencin, que, em 1746, conseguiu fosse alcançada uma solução. Acordou-se em que o Imprimatur deveria conter as assinaturas, alinhadas à mesma altura, do Bispo, do Inquisidor e do Grão-Mestre. A tipografia foi instalada no Palácio Magistral (Stamperia del Palazzo), sob estrito controle da Ordem, pois. Começou a funcionar em 1756, a única em Malta, até aos anos 1820.

Foi, igualmente, durante o Magistério de Pinto que se deram passos decisivos, no tocante a um relevante projecto cultural, a Biblioteca Pública.

Um Decreto do Grão-Mestre, de 1555, reiterado em 1612, ordenara que os livros dos Cavaleiros fossem legados ao Tesouro da Ordem, mas essa disposição terá ficado, em larga medida, letra morta. De qualquer modo, o acesso à denominada Biblioteca de S. João estava limitado aos Cavaleiros. Agora, em conformidade com o espírito do Século das Luzes, o já referido Balio Tencin concebeu o plano de criar uma grande Biblioteca, aberta ao público em geral. Com vista àquele fim, juntou, à sua importante colecção pessoal de livros, a notável biblioteca que o Cardeal Portocarrero legara à Ordem de Malta, e também a própria Biblioteca de S. João, cuja guarda e conservação lhe foram confiadas.

Em 1761, Tencin alugou uma casa, onde os livros foram instalados e se tornou, assim, a primeira Biblioteca aberta ao público, em Malta, da qual ele se ocupou até à sua morte, em 1766, e que, em sua honra, foi chamada Biblioteca Tanseana. Mas foi já  durante o Magistério de Rohan, em 1776, que o Capítulo Geral decretou solenemente a fundação da Biblioteca Pública. As actuais instalações datam de 1796.  

Mas Pinto da Fonseca não deixava de ser um dirigente religioso e um Soberano católico. Datam do seu Magistério a reconstrução da Igreja de Santo Agostinho, em Valeta, e o termo da construção da de S. Públio. Foi particularmente generoso para com a Igreja Conventual de S. João, à qual doou dois enormes lampadários de prata, bem como dois sinos, idênticos aos mais fortes que, então, havia em Itália, tendo, para o efeito, mandado fundir dois basiliscos, abandonados pelos Otomanos, aquando do Grande Cerco de 1565; estão ainda hoje em uso.

                                                                                  VIII

Durante o Magistério de Pinto, não se registaram feitos de armas, contra os Otomanos. Houve, porém, alguns incidentes dignos de nota.

O primeiro, em 1748-49, revestiu-se de extrema gravidade, e pôs em risco a própria existência da Ordem. Impressionou vivamente os contemporâneos, tendo-nos chegado extensos relatos, nem sempre concordantes. Como escreve um autor inglês do Séc.XIX, “the story is a strange one, bordering closely on the romantic”.

Os escravos cristãos (malteses e gregos) em serviço numa embarcação turca, assenhorearam-se dela e trouxeram-na para Malta, onde foram recebidos como heróis. A bordo, vinha, sob prisão, Mustafá, Governador de Rodes. Inicialmente detido no Forte Sant’Elmo, foi autorizado, pela intercessão do Embaixador francês, a beneficiar de residência própria, com total liberdade de movimentos, que ele aproveitou, para organizar uma conspiração, entre os cerca de 1500 escravos muçulmanos presentes na Ilha. O objectivo era assassinar o Grão-Mestre, levar a cabo o massacre dos Cavaleiros e da população cristã em geral, conseguir dominar Malta e abri-la à invasão e ocupação por forças muçulmanas.      

A revolta, que contava com o apoio de Constantinopla, deveria eclodir a 29 de Junho, Festa  de S. Pedro e S. Paulo.

Por mero acaso, uma rixa num café, alguns dias antes, fez descarrilar o plano. Dois conjurados tentaram aliciar um jovem maltês, soldado da Guarda. Perante a sua recusa, preparavam-se para o assassinar, quando foram surpreendidos pelo proprietário do estabelecimento, que se apressou a prevenir, pessoalmente, o próprio Grão-Mestre. Dos 153 implicados na conspiração, rapidamente detidos e julgados, 3 salvaram a vida, 4 pereceram sob as torturas, 34 foram executados com grande crueldade (como os Távoras, em Portugal, alguns anos depois). Mas o Paxá Mustafá escapou a qualquer punição, mais uma vez graças às autoridades francesas, que enviaram uma embarcação, na qual, de noite, foi retirado da Ilha.                     

O jovem soldado, de nome Qassar, foi promovido e assumiu o comando da Guarda, agora designada Guardia Urbana, que passou a ser composta, exclusivamente, por malteses.

O dono do Café, José Cohen, chegado, poucos anos antes de Esmirna e convertido ao Catolicismo, foi generosamente premiado; não deixa de ser irónico que um provável descendente de sefarditas, obrigados, no Séc. XVI, a deixar Portugal, tenha salvado um Grão-Mestre português, e uma Ordem não particularmente generosa para com os judeus).

Cito ainda um disparate que li e cujo único interesse é ser um exemplo do muito de lendário que envolve este Grão-Mestre. Em 1743, a povoação de Qurmi foi denominada Cittá Pinto. Adoptou, no seu brasão, cinco crescentes, armas tradicionais dos Pinto mas que aqui, afirma-se, evocariam cinco otomanos que, durante a revolta, ele teria vencido, com a sua própria espada, de uma só vez…

A descoberta da conspiração passou a ser celebrada, a 29 de Junho, com um ofício na Igreja Conventual.

Em 1760, teve lugar outro episódio, com algumas parecenças. Os 71 escravos cristãos, tripulantes do navio-almirante da esquadra turca, que cobrava o tributo anual no Arquipélago, apoderaram-se dele, quando estava ancorado em Stancio, fizeram prisioneiros os oficiais e conduziram-no para Malta, onde o ofereceram à Ordem. Furioso, o Sultão preparava-se para tirar vingança da perda de um dos seus melhores navios, o que foi evitado, por a embarcação ter sido adquirida por Luís XV e levada para Constantinopla.

 De carácter mais propriamente bélico, teve lugar uma ocorrência, quase no final do Magistério de Pinto, em 1770.

O Bei de Tunis recusava libertar os escravos corsos, capturados antes da então recente aquisição da Córsega pela França. Uma frota, comandada pelo Conde de Broves, bombardeou Tunis e outras Cidades daquela Regência, tendo recebido o apoio da Ordem, aliada da França e inimiga dos Barbarescos, para mais estando em jogo a situação de cristãos.

Um visitante britânico descreve, como um espectáculo e sem dramatismo, a partida de Malta dos enormes navios, três galés, a maior das quais com 900 homens e as outras com 700 cada, três galeotas e três “scampavia” -  as naves movendo-se a remos e com grande regularidade, o mar repleto de embarcações, a assistência enchendo as muralhas e fortificações, o porto ressoando com as descargas de artilharia pesada, às quais respondiam as galés e galeotas, produzindo o eco um muito nobre efeito e, em cada galé, uns 30 Cavaleiros fazendo sinais, a todo o tempo, às amantes, que choravam nos bastiões…Muitas embarcações seguiram a esquadra e não voltaram antes do Sol posto. O viajante comenta: “ O espectáculo estava agora terminado e proporcionou-nos grande entretenimento”.

Aqueles já não eram os tempos heróicos da Ordem de Malta ...

                                                                                       IX

Embora Malta tivesse sido cedida aos Hospitalários como um Feudo, Pinto insistiu em que, aos seus Embaixadores em Cortes estrangeiras, fosse reconhecido o mesmo estatuto que aos representantes dos Monarcas. Conseguiu-o mesmo em Roma, em 1747, apesar de o Grão-Mestre, como chefe de uma Ordem Religiosa, dever obediência ao Sumo Pontífice (no plano espiritual). Aliás, as relações bilaterais com a Santa Sé foram boas, tendo Pinto da Fonseca recebido a raras vezes concedida distinção do Estoque (espada de prata) e do Casco ( barrete de veludo) benzidos solenemente pelo Papa ( Vilhena havia sido o primeiro Grão-Mestre  galardoado). 

As dificuldades vieram do lado de Nápoles. O Imperador Carlos V impusera aos Cavaleiros o tributo de um falcão, a ser entregue anualmente ao Vice-Rei da Sicília. Ora, em 1734, Carlos de Bourbon tornou-se Rei de Nápoles (como Carlos VII) e da Sicília (como Carlos V). Era o primeiro Soberano que ali residia, depois de Séculos de Vice-Reinados, e estaria desejoso de se impor, incluindo no que tocava aos direitos de Suserania da Sicília sobre Malta.

Assim, em 1753, pretendeu que se deslocasse a Malta um Visitador Apostólico, como sucedera até 1530, antes da Instalação dos Cavaleiros na Ilha. Pinto não o consentiu, mesmo tendo o Rei recorrido à arma tradicionalmente utilizada, i.e. o bloqueio à exportação de trigo para Malta. A questão foi levada ao Papa, a disputa acabou por ser resolvida a contento do Grão-Mestre e a Visitação Apostólica nunca teve lugar.

                                                                                        X

As ambições de Pinto foram mais longe.

A Córsega revoltou-se contra o domínio que a República de Génova exercia sobre a Ilha, desde finais do Séc. XIII. Emissários dos rebeldes terão sido recebidos pelo Grão-Mestre e sugerido a união da Córsega a Malta. Essa hipótese foi apresentada, em Versailles, em 1748, pelo representante da Ordem, Balio de Froulay. No ano seguinte, Pinto escrevia que “ seria vantajoso para Génova abandonar a Córsega, mediante uma boa indemnização em numerário, que eu pagaria, e assim se satisfaziam os gostos de todos”.

Em 1752, preparou um plano de união da Córsega ao Arquipélago Maltês, sob soberania da Ordem, mas Choiseul fez saber que Luís XV pretendia aquela Ilha para a França.

Outras ambições haviam surgido entretanto, como a do Papa Bento XIV, a favor do Pretendente Stuart no exílio, e a de Isabel Farnésio, para seu filho Filipe.

Sobretudo, a revolta dotara-se de um dirigente, o General Paoli, muito respeitado em largos sectores da opinião, na Europa e na América do Norte, que se opunha à união com Malta e fizera fracassar, em 1754, um projecto nesse sentido.

Não obstante, as relações entre as duas Ilhas mantiveram-se muito boas. Um dos primeiros navios da frota corsa, se não mesmo o primeiro, um xaveco , navegando sob bandeira corsa, conhecido como a “Galeotta”, teria sido oferecido por Pinto a Paoli.

Mas Pinto, em 1763, ainda não renunciara às suas ambições, alegando as vantagens que a união traria ao Catolicismo, nas duas Ilhas; em vão.

Em 1768, a França anexou a Córsega. No ano seguinte, nasceria lá Napoleão Bonaparte. Em 1798, em rota para o Egipto, o General Bonaparte ocupou Malta, expulsou os Cavaleiros e privou a Ordem da sua base territorial. Tem-se especulado sobre qual teria sido o curso da História, se a França não tivesse anexado a Córsega; e se as ambições de Pinto tivessem ido avante? Para começar, ter-se-ia Napoleão feito Cavaleiro, caso os corsos fossem admitidos na Ordem (o que não era o caso dos malteses) ele que, uma vez, terá descrito a Ordem como “ uma instituição para sustentar, na ociosidade, os filhos mais jovens das famílias privilegiadas”?

(Para concluir esta secção, tenha-se presente que a área da Sicília é de 25.711 km2, a de Chipre 9.251, a da Córsega 8.722, a de Rodes 1.401, a de Malta de, apenas, 316).

                                                                              XI

Com Frederico II, o círculo de interlocutores de Pinto alarga-se, para além dos Soberanos católicos. 

 

Frederico II

Recorde-se que a Prússia assentava os seus alicerces na Ordem Teutónica, e que esta surgira, na Terra Santa, como as do Hospital e do Templo, no Séc.XII. Com o fim dos Estados cruzados, estabelecera-se, não na região do Mediterrâneo, mas na do Báltico, onde criara um Estado de grandes dimensões. Não combatia os muçulmanos, mas povos ditos bárbaros e pagãos. Tanto Hospitalários como Teutónicos eram Ordens Religiosas e Militares, dotadas de poderes soberanos.

No Séc. XVI, a Ordem Teutónica foi tocada pelo movimento da Reforma, o Grão-Mestre Alberto de Brandeburgo, da Casa de Hohenzollern, converteu-se ao Luteranismo, passando a governar os territórios ocidentais da Ordem, como Ducado da Prússia; este, em 1701, ascendeu a Reino da Prússia. Terá sido a memória das afinidades, no passado, entre Teutónicos e Hospitalários, que predispôs Frederico II a  uma atitude positiva para com a Ordem de Malta?

De 1740 a 1763, Frederico II moveu três guerras contra Maria Teresa de Áustria, que terminaram com a anexação da Silésia, pela Prússia, que se tornou o principal Estado protestante germânico. Consentiu, contudo, que o Grão-Priorado da Boémia, da Língua Alemã da Ordem de Malta, conservasse as Comendas que detinha na Silésia.

A outra questão tem a ver com a Grão-Baliado de Brandeburgo, constituído em 1318, no Nordeste do Sacro-Império, agregando Comendas da Ordem de Malta. Gozava de grande autonomia e, no Séc. XIV, foi-lhe reconhecido o direito de eleger o seu próprio Balio, o Herrenmeister. A Reforma tocou também o Grão-Baliado, tendo 7 das suas 13 Comendas aderido ao Luteranismo. Com os Tratados de Vestefália de 1648, o Grão-Baliado luterano obteve plena independência, relativamente à Ordem de Malta, e foi colocado sob a protecção do Eleitor de Brandeburgo, da Casa de Hohenzollern, mais tarde Rei da Prússia. Adoptou a designação de Johanniter Orden, ou Ordem Evangélica de S. João.

Ao longo desse tempo, as eleições dos sucessivos Herrenmeister foram sendo comunicadas à Ordem de Malta, mas os responsões deixaram de ser remetidos, privando o Tesouro da Ordem de importantes rendimentos. Frederico II e o Grão-Mestre Pinto chegaram a um acordo, em 1764, com vista à reunificação, mas a oposição do Papa Clemente XIII impediu que fosse concretizado.  Segundo uma versão um pouco diferente (Desmond Seward) em 1763, o Balio, Príncipe Fernando da Prússia, tio de Frederico II, enviou responsões, que foram aceites por Pinto, acrescentando-se que, ainda que nunca reconhecidos como Cavaleiros de Malta, os Comendadores de Brandeburgo continuaram a remeter responsões e, em 1793, passaram a usar o uniforme vermelho da Ordem.

                                                                                    XII

Nada faria prever um relacionamento entre, por um lado, a Rússia, um dos maiores Impérios que o Mundo já conheceu, Potência ortodoxa euro-asiática, com uma janela sobre o Báltico, e, por outro, Malta, minúscula Ilha no Mediterrâneo, ou melhor, a Ordem Religiosa e Militar católica, que, nela, tinha a sua base territorial.

Foi Pedro o Grande quem, em 1697, fez a primeira aproximação, por carta ao Grão-Mestre Raymond Perellós, convidando a Ordem a juntar-se a uma aliança, com o Sacro Império, a Polónia/Lituânia e Veneza, contra os Otomanos.

Seguiu-se, durante Décadas, correspondência, essencialmente de natureza protocolar, entre os Czares e Imperatrizes da Rússia e os Grão-Mestres de Malta. Mas ambas as Partes viram vantagens no aprofundamento de tais relações.

Pinto compreendeu que a influência russa poderia revestir-se de grande utilidade, para a salvaguarda dos interesses da Ordem na Europa Central e Oriental. Aqui, assume papel de destaque a figura do Balio Michele Enrico Sagramoso, ilustre viajante e membro reconhecido e apreciado da “intelligentsia” europeia.

Já em 1748, por instruções de Pinto, Sagramoso procurara, em S. Petersburgo, obter que a Imperatriz Isabel apoiasse o pedido dirigido pela Ordem a Frederico II, no sentido de concessão de um tratamento fiscal favorável às Comendas situadas na Silésia, que passara para o domínio prussiano, como atrás se referiu.

 De uma relevância superior, no entanto, era a chamada “Questão de Ostrog”, que se arrastava desde o princípio do Séc. XVII. Ostrog era um gigantesco domínio na Polónia, hoje em território ucraniano, com cerca de 14 mil km2 (quase três vezes maior que o Algarve), que incluía, designadamente, 24 Cidades. Nos textos em francês, é designado, geralmente, por “Ordination”, por vezes como “Duché”, em inglês por “Ordination”, por “Entail” ou por “Duchy”; não vi nenhum texto em português sobre o assunto e, em vez que utilizar a palavra Ordenação, aqui não aplicável, preferirei “Ordination”, como o fazia ,aliás, Pinto, pois escrevia em francês.

O testamento do Duque de Ostrog, de 1609, estabelecia que, a extinguir-se toda a descendência masculina, as terras passariam para a Ordem de Malta, para ali instituir Comendas; porém, membros poderosos da Aristocracia polaca foram partilhando a “Ordination”, tornando vãs as pretensões da Ordem, que parecia ter-se acabado por resignar com tal situação.

O Grão-Mestre Pinto, porém, viria a reactivar a questão, passado já quase Século e meio, desde a redacção do testamento. Por carta de Agosto de 1767, pede a protecção da Imperatriz Catarina II para a reclamação e outros actos e instâncias que o Balio de Fleury, Embaixador da Ordem em França, pudesse ter de efectuar na Polónia, no tocante à ”Ordination” de Ostrog. A diligência do Grão-Mestre tinha razão de ser, dado o peso da Rússia, na política polaca. Ainda poucos anos antes, Estanislau Poniatowski, ex-amante de Catarina II, subira ao trono da Polónia, com o apoio russo. E a Czarina, efectivamente, ainda em 1767, escreveu ao seu Embaixador em Varsóvia, no sentido de recomendar a Ordem “ à justiça da Nação Polaca”.

Catarina II

Nos princípios de 1770, Pinto recorreu, uma vez mais, aos serviços de Sagramoso, que há muito estabelecera laços de amizade com Catarina II, instruindo-o, agora, no sentido de tentar recuperar as terras da “Ordination” ou, pelo menos, os rendimentos correspondentes. Também deveria procurar fossem liquidados os pagamentos, em atraso, de duas Comendas polacas.

Agravavam-se, então, as tensões que levariam à Primeira Partilha da Polónia, pela Rússia, Áustria e Prússia, formalizada no Verão de 1772.

Sagramoso foi manobrando, com notável habilidade, num quadro da maior complexidade. Como meio de pressão sobre os Deputados polacos, chegou a recorrer ao artifício de fazer constar que a Ordem o autorizara a ceder os  direitos sobre Ostrog ao Herrenmeister do Baliado de Brandeburgo, irmão de Frederico II, o que abriria a uma Potência protestante larga porção de território polaco e incluiria a “Ordination” nas negociações sobre a partilha da Polónia.

Contudo, a balança tinha outro prato.

Quando Pedro o Grande fizera o contacto inicial, a Rússia estava sobretudo interessada em obter apoio técnico, para a organização das suas forças navais e, com esse objectivo, foi enviado a Malta Boris Cheremetiev, confidente do Czar.

Mas, na perspectiva da Rússia, outro interesse surgiu, que se tornou bem mais destacado - os portos de águas profundas de Malta, que poderiam servir de base a uma frota russa, para atacar o Império Otomano, pelo Mediterrâneo.

Em 1764, ano em que fizera subir Estanislau Poniatowski ao Trono da Polónia,  Catarina II, preparando-se para a eventualidade de uma guerra , contra os Otomanos,  solicitou a Pinto, através de contactos diplomáticos em Viena, Roma e Paris, que fossem destacados dois Cavaleiros, para prestar serviço nas galeras russas; para não desagradar a Luís XV, o Grão-Mestre respondeu de forma dilatória.

A Czarina sonhava restaurar o Império Bizantino, a favor de seu segundo neto, Constantino, e via a importância de que os portos malteses se poderiam revestir nesse quadro. Em carta ao Grão-Mestre Pinto, de 18 de Julho de 1769, menciona a luta contra o inimigo perpétuo da Santa Cruz, anuncia o envio de uma das suas esquadras para os mares de Malta, dizendo esperar que os navios possam ter acesso livre aos portos malteses.

Pinto, que não aceitou o portador da carta, Marquês de Cavalcabo, na qualidade de Embaixador, mas, apenas, como Enviado, respondeu à Czarina, em 31 de Janeiro de 1770, invocando os constrangimentos a que estava sujeito pelas Potências Protectoras, que limitavam a quatro o número de navios russos que podiam ser recebidos em Malta.

Gerou-se alguma tensão e a Ordem receou a reacção russa. Três navios russos, velhos mas “recheados de gente”, surgiram em frente de Malta. Tendo recusado submeter-se à quarentena, foi-lhes impedida a entrada e afastaram-se.

Quase três anos mais tarde, o Grão-Mestre, em carta de Setembro de 1772, a Catarina, alude à presença de oficiais russos em navios da Ordem e sublinha que tem procurado conciliar os interesses da Rússia com os deveres absolutos para com os Príncipes, dos quais a Ordem de Malta depende. Insiste na necessidade de a Ordem observar a mais estrita neutralidade. Diz que, se a Imperatriz pudesse contribuir para a prosperidade da Ordem, os interesses da Rússia passariam a ser, para a Ordem, como se fossem interesses seus, como eram os de todos os seus outros benfeitores.

Assim, recorria novamente à poderosa protecção imperial, para a recuperação da “Ordination” de Ostrog, anunciava que o Cavaleiro Sagramoso fora nomeado Ministro Plenipotenciário para o efeito e pedia à Imperatriz que apoiasse a sua missão, junto do Rei da Polónia e dos seus aliados.

Finalmente, em Dezembro de 1774, um acordo foi alcançado – a Ordem de Malta renunciava à “Ordination” mas, em contrapartida, as autoridades polacas permitiam a fundação de oito Comendas e erigiam um Grão-Priorado , com o rendimento de 150 mil florins.

Pinto já não viu este sucesso para os interesses da Ordem, tendo morrido em Janeiro de 1773.

Entretanto, levantaram-se suspeitas de que o representante diplomático russo em Malta, Marquês de Cavalcabo, estaria a desenvolver actividades subversivas, com vista a levar a população maltesa a revoltar-se contra a Ordem e a favorecer a posição da Rússia. Foi ordenada a sua saída da Ilha, no início de 1775, já no tempo do sucessor de Pinto, Ximenes.

Com Pinto, as questões relativas à Europa Central e Oriental assumiram, para a Ordem, uma importância que não tinham tido anteriormente. Tal ir-se-ia acentuando, nas Décadas finais do Século, e culminar com a eleição, como Grão-Mestre, de Paulo I, filho de Catarina II, com a transferência episódica da Sede para S. Petersburgo, trocando-se, pela primeira e única vez, na História milenar da Ordem de Malta, as margens do Mediterrâneo, pelas do Báltico.

Por seu lado, Paulo I sempre tivera uma verdadeira paixão pela Ordem de Malta, o que não fora o caso de sua mãe, cujo interesse não era pela Ordem, mas pela posição estratégica de Malta. O “Episódio Russo” da Ordem de Malta terminou, pouco depois do assassinato de Paulo I, mas os russos nunca se haveriam de desinteressar do Mediterrâneo, até aos dias de hoje.

(É ao “Episódio Russo” que numerosas “ Ordens de fantasia”, auto-denominadas “de Malta”, pretendem remontar a sua origem. Abordei um dos casos mais extraordinários, em Conferência, a 10 de Abril de 2014, na Sociedade de Geografia de Lisboa, intitulada “A Ordem Ecuménica de Malta em S. Tomé e Príncipe”, podendo aceder-se ao respectivo texto neste Blog.  

                                                                     

                                                                      XIII

Segundo Martim de Albuquerque, ainda que Pinto cumprisse as suas obrigações religiosas meticulosamente, estava muito longe de ser um puritano. Quatro dias depois de ser eleito, assistiu no Teatro Manoel (fundado por Vilhena) à peça “L’Arminio”; a representação terminou às 20 H e foi seguida de um concerto, com copiosos refrescos nos intervalos, até perto da meia-noite. Pinto permaneceu até ao fim e, depois, voltou a pé para o Palácio; o seu predecessor imediato, Despuig , nunca fora ao Teatro. Uma semana depois, deu o seu primeiro banquete, após o que foi novamente ao Teatro, ver a ópera “La Salustre”.

Por seu lado, o viajante britânico Brydone,  anteriormente citado, faz-nos um pitoresco retrato de Pinto, em 1770, já com mais de 90 anos, mantendo toda a sua energia e lucidez. O Grão-Mestre, “mostrou grande satisfação, por saber que alguns de nós tínhamos estado em Portugal e mencionou as estreitas relações comerciais que se mantinham há tanto tempo entre as nossas Nações.”. Brydone sublinha que o estilo de vida de Pinto era muito principesco e que ele era mais absoluto e possuía mais poder que a maioria dos Príncipes Soberanos.

Pinto da Fonseca teve, pelo menos, um filho, José António Pinto da Fonseca e Vilhena, o que não terá sido motivo de escândalo, já que era muito habitual que Cavaleiros de Malta tivessem filhos, não obstante os votos de castidade.

Mais extraordinário é que Cagliostro, geralmente considerado o grande impostor do Séc. XVIII, tenha afirmado ser filho do Grão-Mestre e de uma Princesa de Trebizonda. Na verdade, é mesmo duvidoso que alguma vez tenha estado em Malta. É certo que o Grão-Mestre e Cagliostro tinham, em comum, o gosto pela alquimia, sendo voz corrente que Pinto fizera instalar, no Palácio, um laboratório, onde eram efectuadas experiências; largas somas teriam sido gastas, na busca da Pedra Filosofal.

Já quanto à Maçonaria, da qual Cagliostro foi um grande difusor, criador, mesmo, do Rito Egípcio, o mais provável é que Pinto não lhe tenha pertencido, o que não impede que figure, em certa literatura, como presidindo a misteriosas cerimónias de iniciação. O Grão-Mestre é também, por vezes, associado ao Conde de Saint-Germain, outra figura enigmática.

Esta matéria da ligação de Pinto ao Mundo do esoterismo mereceria ser estudada, mais detidamente.

                                                                             XIV

Manuel Pinto da Fonseca faleceu a 23 e Janeiro de 1773. O seu mausoléu é dos mais majestosos na Co-Catedral de S. João.