domingo, 30 de março de 2014

RECORDAÇÕES DE UM ENCONTRO


 


Foi em La Rochelle, onde passou grande parte da adolescência com a avó, que o escritor Philippe Mezescaze (n. 1952), então com 17 anos, conheceu o escritor Hervé Guibert, então com 14, ambos, mais tarde, amigos íntimos de  Michel Foucault.

No seu último livro, autobiográfico, Deux garçons, publicado o mês passado, Mezescaze, pela interposta personagem do Narrador, conta a sua passagem pela histórica cidade de La Rochelle, o abandono do liceu, o ingresso num grupo de teatro e, especialmente, a forma como conheceu Hervé Guibert, a atracção recíproca e a paixão que ambos alimentaram, até à ruptura definitiva, mais tarde, em Paris.




Neste romance, onde a vida é abordada sem ambiguidades, Mezescaze, que já publicou uma dezena de livros, evoca o seu quotidiano e o do seu grupo de teatro, não prescindindo de uma incursão culta na literatura dramática.

O encontro com Hervé Guibert (1955-1991), que se tornou famoso não só pelos seus escritos como pela sua morte prematura, devido a sida, anunciada no livro que o celebrizou, À l'ami qui ne m'a pas sauvé la vie, acontece como que programado, por causa da interpretação de uma cena do Caligula, de Albert Camus, no teatro local.

Esta evocação do encontro é tanto mais pertinente quanto Philippe Mezescaze terá sido a primeira relação masculina de Guibert, ainda que não faça parte dos três homens mais importantes da sua vida e obra: Thierry Jouno (director do Centro Sóciocultural dos Surdos, de Vincennes) , Michel Foucault (a quem conheceu aos 18 anos) e Vincent M. (um adolescente de 15 anos), entre os muitos que conheceu durante a sua breve existência.

De alguma forma, Deux garçons terá sido um livro que Mezescaze se impôs escrever, e que funciona, de certo modo, como uma câmara de eco a Mes parents, onde Hervé Guibert conta a sua infância e adolescência.

sábado, 29 de março de 2014

VÍTOR BENTO, UM HOMEM SEM QUALIDADES



Vítor Bento, em estilo Michel Foucault

Transcrevemos, do blogue "Da Literatura", o artigo de José Pacheco Pereira, hoje no PÚBLICO, sobre as inqualificáveis afirmações do conselheiro de Estado Vítor Bento:


«Falando num debate corporativo, Vítor Bento, economista, conselheiro de Estado, disse, no mesmo dia em que novos dados sobre a gravidade do empobrecimento dos portugueses vieram a público, que “o país empobreceu menos do que parece. O país já era pobre, vivia era com vida de rico” [...] Deixo de barato a questão do sujeito da frase, esse perverso “nós”, que nos iguala a todos diante do professor com a palmatória na mão, mas volto-me para o que, nesta tese, é revelador dos discursos situacionistas dos nossos dias. Para além do desprezo e da nonchalance de falar assim do “empobrecimento” dos outros, e que tem entranhada uma condenação moralista dos maus hábitos dos portugueses, estes homens virtuosos como Vítor Bento dizem-nos coisas reveladoras. [...]
 
Desde quando é que os portugueses foram “ricos”? Quantos portugueses fizeram, como ele diz, “vida de rico”? Quando é que se viveu uma “riqueza que era aparente”? Em 2005, quando Sócrates começou a cortar o défice, com um aplauso hoje esquecido? Em 2004, no rápido reino de Santana Lopes quando anunciou ao Frankfurter Allgemeine que vinha aí a “retoma”, o “fim da crise”, a “economia a recuperar”, “todos os sinais são bons” e “nova baixa de impostos”? Em 2002, quando estávamos de “tanga” e ou era ou estradas ou criancinhas? Nos anos de Guterres, onde se distribuiu o bodo (como aliás com Sócrates) aos mesmos empresários e banqueiros que louvaram esses governos com a mesma intensidade com que louvam o actual? No tempo de Cavaco Silva e dos milhões que chegavam todos os dias? Ou desde o 25 de Abril, em que se perdeu o respeito pelo ouro das caves do Banco de Portugal? Estamos a falar de Portugal?
 
Mas de que “riqueza” é que estamos a falar? Não é a dos ricos da Forbes. Eu sei o que é a “vida de rico” a que ele se refere, quer àquela que serve para ilustrar o moralismo do discurso, quer àquela que verdadeiramente o preocupa. [...] a “vida de rico” inclui também comprar o Expresso aos sábados, ter televisão por cabo, ser sócio do Benfica e ir aos jogos, ir ao restaurante de vez em quando, comer marisco, comprar livros do José Rodrigues dos Santos, ter expectativas europeias, de ser como os franceses que se vêem nos filmes, ter um carro, mandar os filhos à universidade e ser parte da muito escassa opinião pública.
 
Ou seja, fazer parte da primeira geração em Portugal que já não tem memória directa da enorme pobreza rural que os seus pais e avós ainda conheceram, que beneficiou do elevador social que foi a educação e o Estado (sim o Estado que, em todos os países democráticos, tem essa função de criar uma classe média... nem que seja para servir de tampão entre os proletários e os milionários. Perguntem ao Bismarck.) e que representa... a única, débil e, pelos vistos, precária modernização de Portugal. Ou, para quem abomina o termo modernização, a primeira geração que acedeu aos padrões de consumo, que a pequena burguesia europeia, a chamada “classe média baixa”, já tem há muitos anos. [...]
 
A legitimação do ataque a salários, pensões e reformas, do quase confisco administrativo e fiscal do rendimento das pessoas e das famílias, da facilitação do despedimento para criar um exército de mão-de-obra barata, enquadra-se na ideia de que é aí que está a “riqueza aparente” que uma sã economia não pode tolerar, primeiro porque as pessoas consomem mais do que o que devem, depois porque é preciso baixar os salários para o “custo” da mão-de-obra ser “competitivo”. Atacar essa “riqueza” inexistente para abrir caminho à absoluta necessidade da pobreza, é um instrumento político, e é uma ideia sobre Portugal e os portugueses.
 
Por isso, esperem por mais, porque se “o país empobreceu menos do que parece”, é porque ele ainda não empobreceu tudo o que podia e devia. E a receita que vem aí é óbvia, é tornar permanente os cortes de salários e pensões, para que o tempo actue todos os dias tornando as pessoas e as famílias insolventes, endividadas perante credores muito mais hostis, incapazes de gerir a sua situação e a sua vida, e os que não podem emigrar ficarem por aí aos caídos ou à porta de qualquer banco alimentar. Sem estes portugueses poderem viver aquilo a que Bento chama com desprezo “vida de ricos” ou aceder a ela, sem esses portugueses restaurarem uma escada social que permita a pobreza não se tornar num gueto, e haver uma classe média que puxe para cima, não há saída para Portugal.»


Nota: Os sublinhados são de Eduardo Pitta. 

quinta-feira, 27 de março de 2014

A PRETA FERNANDA


"A Preta Fernanda na Praça de Touros de Algés", aguarela de Alberto Souza, in Alfacinhas


Uma das mais notáveis figuras populares da Lisboa do século XIX e inícios do século XX, hoje lamentavelmente esquecida, foi a Preta Fernanda, de seu nome civil Andresa do Nascimento e de pseudónimo literário Fernanda do Vale.

Nasceu Andresa do Nascimento em Cabo Verde, na ilha de Santiago (entre Santa Catarina e o Tarrafal), em Maio de 1859.Não se dando muito bem com a família e desejando mudar de vida, Fernanda (chamemos-lhe assim)  abandonou a cubata natal e fugiu com um apaixonado, Jerónimo Antunes Martins, capitão do lugre-patacho Margarida II, que se encontrava atracado na ilha. Foi uma paixão impetuosa mas pouco duradoura. Tendo o navio feito escala em Dakar, instalou-se o casal no Hotel Universal. Entretanto, Martins apresentou-a a um amigo, o alemão Frederick Wilhelm von Kremps, negociante de cervejas, que por ela se tomou de amores. Aproveitando o idílio, o capitão zarpou para Lisboa, deixando-a à conta do novo apaixonado.



Ao fim de algum tempo, Frederick e Fernanda vieram também para Lisboa, fixando domicílio no Hotel de France, no bairro de S. Paulo. É por esta altura que ela dá à luz um par de gémeos, mulatinhos. Frederick, que tentava aperfeiçoar a cerveja Pilsener, e que mantinha contactos com a célebre Cervejaria Jansen, da Rua do Alecrim, nº 30 (um local que depois esteve muito tempo abandonado e onde hoje se erguem alguns edifícios da traça de Siza Vieira), para além das contínuas provas de cervejas começou a embriagar-se, o que motivou o abandono de Fernanda, que encontrara uma nova paixão num sargento de Cavalaria 5. Assim, e para estar à vontade, mudou-se, naturalmente sem os filhos, para um 2º andar da Rua dos Cordoeiros (por detrás da Rua de S. Paulo).

Neste período, Fernanda é convidada para servir de modelo à figura feminina que deveria adornar o pedestal da estátua do marquês de Sá da Bandeira, que ainda hoje existe na Praça D. Luís I, em Lisboa. Uma portaria régia de 3 de Março de 1880, assinada pelo Conde de São Marcelino e por Júlio Mário de Vilhegas, e publicada no Diário do Governo do dia 4, reza assim:

«Atendendo ao espírito patriótico e alevantado de que deu provas a indígena de Cabo Verde, Andresa do Nascimento, oferecendo-se para servir de modelo ao escultor encarregado de modelar as figuras episódicas que deverão ornamentar o pedestal básico da estátua do heróico marechal marquês de Sá da Bandeira;

Manda Sua Majestade El-Rei louvar a referida indígena, devendo ser-lhe abonado, a título de compensação, o subsídio diário de 560 réis, o qual deverá ser liquidado e pago pela verba das despesas eventuais.

O que, pelas Secretarias de Estado dos Negócios da Guerra e da  Marinha e Ultramar se comunica a todas as autoridades, a quem a observância desta competir, para seu conhecimento e fins convenientes.»


Estátua de Sá da Bandeira, na Praça Dom Luiz I, em Lisboa

A colocação de uma mulher negra na base da estátua tinha por objectivo representar o continente africano recordando o estadista que acabou com o tráfico de escravos.

O facto de Fernanda possuir joanetes indispô-la com o escultor que dizia: "A senhora não passa de um modelo sem pés". Além do facto de ele  obrigar a posar durante largas horas. Acabou por ser exonerada do serviço que exercia junto da Fundição de Canhões (responsável pela estátua), o que não impediu que o  modelo ficasse imortalizado no bronze e ainda hoje possa ser contemplado no local.

Do "serviço do Estado" passou Fernanda ao "serviço doméstico". Tendo D. Ernestina Cavalcanti, senhora de origem piemontesa, residindo na Rua do Poço dos Negros (a mesma onde habitou a Flor da Murta, a célebre amante de D. João V) necessidade de uma empregada doméstica, admitiu a preta ao seu serviço. Era uma casa abastada, com recepções frequentes, o que provocou em Fernanda o gosto das mundanidades e o desejo de poder, um dia, também ela abrir os seus salões. A família passava o Verão em Paço d'Arcos, onde a nova empregada contraiu novas amizades. Quando o patrão, há anos ausente na conquista do ouro na Califórnia, regressou a Lisboa, o agregado mudou-se para Bucelas, com a intenção de criar galináceos. O novo local não era do agrado de Fernanda que, por instigação da sua amiga Isabel Reco, se transferiu para a Rua Nova do Loureiro, uma casa de aspecto nobre pertencente a um capitão carlista, D. Juan Perez de Luñiga, alugada a Isabel e que lhe foi sublocada. Aqui iniciou uma vida social agitada, e dispendiosa, a que, assediada pelos credores, teve de pôr fim. Valeu-lhe o seu Josézinho, um alferes a quem se ligara de amores. Possuía este uma mansarda na Rua da Barroca, que lhe servia, e a  mais quatro colegas, de quarto recreativo. Ali jogavam todas as noites. Em desespero de causa, lá instalou Fernanda, que não se deu bem no novo poiso. Um dos colegas de José, o Manuelzinho, alferes de infantaria, implicava diariamente com ela, chamando-lhe escrava e preta do mexilhão. Por isso, resolveu, pela calada da  noite, apenas acompanhada por um baú de folha, rumar à Fonda Andaluza, de D. Lola, estabelecimento acreditado e concorrido pela nata do demi-monde liboeta, situada na esquina da Travessa do Poço da Cidade com a Rua das Gáveas. Era uma casa nobre mas à qual estavam associados factos tétricos: nada menos do que dois assassinatos. Devido a estes acontecimentos, a clientela, acostumada ao riso e avessa às miragens de sangue, começara todavia a declinar. Para distrair o espírito, Fernanda, acompanhada de uma antiga habitante da pousada, a Isabelinha Morrongo, frequentava, nas noites estivais, o terraço situado nos terrenos brigantinos da Rua do Alecrim, com entrada superior pela Rua do Tesouro Velho (hoje Rua António Maria Cardoso), onde estivera instalada a firma Jansen. Neste espaço, a que os donos tinham dado o nome pomposo de Recreio de Lisboa, actuava a banda da Marinha, chamando ao local o que de mais chique havia em Lisboa.

Aproximando-se o Carnaval, e reinando grande entusiasmo em casa de D. Lola, também Fernanda resolveu mascarar-se. Tendo conhecido D. Luísa Morales, que habitava no nº 61 da Rua do Mundo (hoje Rua da Misericórdia) e alugava fatos de máscaras, escolheu um, meio odalisca, meio pajem, e com ele foi ao baile da Trindade, provocando enorme sucesso. Por lá passavam o Silvério, frequentador dos cruzeiros do Clube Naval, o Augusto Chaves, o Carlos Lépes, o Silva Passarinho, o João Caldelas, o Brito Cacinha, o Emanuel des Champs, o Henrique Calvo, o Fernandes jornalista, o Mota procurador, o Edgardier, o Tété (grande ricaço), D. Pedro d'Ávila, o Salvinha da Aduana, de bigode louro, que era amante do Moreira Carvalhão, também da Alfândega, grande admirador de efebos, a Catalina, já decadente. a Montréssor, na decrepitude, a Ângela Damasceno, por alcunha a Macaca, a Branca Maluca, a Libânia, que serviu de modelo à Verdade, da estátua do Eça de Queiroz, a Daria e a Amadora (duas irmãs espanholas), D. Florinda (a Barbuda, que aproveitava a "embriaguês dos bailes para promover o recrutamento da sua escravatura de carne branca", a Bárbara dos Trapos, o Sereno, o Guilherme do Canto, o Brito (Cabeça de Vitela), a Dentinha d'Ébano, a Mercedes do Bastos, o José Riacho (um dos primeiros empregados bancários de Lisboa), o Gramont, et al.

Os nomes mencionados correspondem a figuras públicas da época que Fernanda disfarçou no seu livro, por razões óbvias.


Mapa Sinóptico dos amores de Fernanda (inserido no fim das Memórias)

Tendo-se esquecido de pagar em tempo o aluguer do fato de máscara, Fernanda acaba por concluir um comércio com D. Luísa Morales, consistindo o mesmo em ela lhe alugar três salas da sua residência do nº 61 da Rua do Mundo por um preço acessível. E assim pôde sair da casa da Rua das Gáveas e voltar a ter casa própria. Na sua nova residência, Fernanda volta a dar festas e passa a frequentar a pastelaria-restaurante Flor de São Roque, ainda hoje existente na Rua da Misericórdia nº 87, com o nome de Pastelaria Flor do Mundo, que era a casa então frequentada por todas as prostitutas do Bairro Alto, quando esta zona ainda não tinha sido transformada em atracção turística da cidade. Lá ceavam também os jornalistas (a maior parte dos jornais tinha instalações naquela zona) e os boémios. A essa casa encomenda Fernanda as ceias para as suas festas, aonde acorrem jornalistas como o Romano Roíz, o Hipócrates, o Luís Capeto, o Jorge Abel, o Carlos Claro, o Fidalgo Mártires, o Vidal, campeão atleta, o José Cordeiro, a lembrar Chamberlain, o Germano Novais, de tendências germanófilas, o Fernandes, o Mota procurador,  já citado, o Henriques, alcunhado do Velha-Guarda. Entre as damas, contavam-se a Lucinda tg tg, a Rosa Mentirosa, a Ermelinda, a Marianinha Pirralha, a Leonor corista, a Fátima, a Algramassa, a Laura Ouc, a Nazaré.

Apreciadora do Carnaval, foi uma vez convidada para o baile do clube Y, situado  na Rua da Barroca, e onde se festejava o Carnaval durante todo o ano. Cito, das Memórias: «A porta da entrada era mascarada por um guarda-vento vidrado, ao pé do qual, numa noite célebre, se colocara completamente nu um mulato, oficial do exército, que se alugara para fazer de estátua, empunhando um candelabro.» Por aqui se vê que estas coisas dos homens fardados se despirem nos bares, como ainda aconteceu recentemente com um guarda republicano, já vem de longe.

Nesse ambiente divertido, Fernanda cruza-se com o Filipe, o presidente do Clube, com o velho Anes, funcionário público, com o banqueiro Carvalhão, com o jornalista Mela, com o Raul S. Marinho, mais o Frederico Mealhada, o dr. Centeio, o Luís Ferreira, e tantos outros.

 Nos passeios que fazia de carruagem pela Avenida, Fernanda, acompanhada pela Fátima, uma das suas fraquezas, suscitava o murmúrio de todos os passeantes. E cruzava-se com um desfile de caras conhecidas: o Sebastião e a Sebastiôa, a Maria Luísa de Colares, o Tété galgado, o Romaríz, o Bregeiro, a Carlotinha, a Yvonne, a Palmira Boémia, o Laura, vendedor crónico de prédios, o Frazão, o Janelas, a Zulmira e a Vitória, coristas, a Edite Mercês, o Chaby, a Ângela Pinto, o Amando Encrespado, o José Cavalinho, o Virgílio Posta, o Ricardo Silvano, o Ferreira Ribaldeira, etc.


Teatro do Príncipe Real

 Um dos hábitos de Fernanda era assistir a todas as estreias teatrais. Recorda ela um espectáculo no Teatro do Príncipe Real (mais tarde Teatro Apolo, há muito infelizmente demolido), na esquina da Rua da Palma com a Rua da Mouraria. Começado o terceiro acto da revista, eis que surge no palco uma actriz que provoca na sala uma apoteose doida e convulsa. Todos gritam: "Olha a preta Fernanda, olha a preta, está tal e qual!". De facto, a intérprete, que granjeou intensos aplausos, fazia uma imitação perfeita. Fernanda sentiu-se lisonjeada, mas resolveu reclamar os seus direitos de autora, pelo que recorreu à autoridade administrativa, que ordenou esse pagamento.

Praça de Touros de Algés

Também Fernanda se interessou pela tauromaquia, o que a levou a aceitar o convite do seu amigo J.J Segurado, empresário da Praça de Touros de Algés para uma actuação a cavalo. No domingo aprazado, e apesar das dores de barriga, entrou na arena, mas o resultado foi desastroso e o apupo geral. Numa desesperada tentativa de cravar um ferro, o touro acabou por derrubar o cavalo e Fernanda foi parar ao chão, sendo conduzida à enfermaria. Julgou ter uma fractura mas apenas umas nódoas negras, que por ironia da cor, tratou com alvaiade branca.

A vida de Fernanda prosseguia na Rua do Mundo, mas o barulho das festas que dava nos seus salões, agravado pelas altercações que amiúde se sucediam, levaram a vizinhança a fazer uma queixa ao Governador Civil, na sequência da qual lhe foram dadas 48 horas para mudar de poiso. E é assim que vai parar outra vez à Rua das Gáveas, à casa que já habitara. Só que naquela pension onde já fora uma "modesta pupila" reentrava agora como "proprietária". Mas as suas distracções pelas ruas da cidade levaram-na a descurar o governo da casa e viu-se obrigada a entregar a mesma a uma sócia, indo parar, desta vez, à Rua dos Mouros (sempre no Bairro Alto), por intermédio do Luís das Camisas, indivíduo baixinho, raquítico e com fama de invertido, que vivia de expedientes. Nesta casa instalou-a o Luís num rés-do-chão e primeiro andar, vendendo-lhe a mobília. Deve acrescentar-se que Fernanda continuava a possuir as suas economias, o que lhe permitia algum desafogo financeiro.

O negócio foi rendendo e Fernanda, que em Cabo Verde era exímia na dança do rasga, pensou mesmo ir aprender a dançar para Paris. Mas a professora que contratou em Lisboa, para os primeiros passos, tirou-lhe as ilusões. Todavia, não desperdiçava o tempo, a  nossa Preta, e continuava as suas conquistas amorosas. Uma noite, tomando um refrigerante no Suisso, meteu conversa com um rapaz, bem apessoado, o João, que lhe disseram pertencer à Marinha e ter participado na Revolução. Foi amor à primeira vista. E Fernanda, que cultivava as fardas, não tinha ainda no seu activo um marinheiro. Mas, por essa altura andava ela envolvida com um cadete do Exército, acabando por se encontrar os dois em casa ao mesmo tempo, o que deu origem a violenta disputa e algazarra. Afinal, o suposto revolucionário oficial da Marinha não passava de um marinheiro sem galões e o barulho e a "inveja da vizinhança pela brilhante concorrência dos seus salões" acabou num abaixo assinado ao senhorio que lhe deu ordem de despejo.

Assim, voltou pela terceira vez ao prédio da Rua das Gáveas, com o problema de canalizar a clientela para a sua nova morada, o que a levou a mandar imprimir cartões de visita com a designação "artista de baile".


Esta é, em termos gerais, a descrição da sua vida, feita por Fernanda  nas Memórias.
 
*****

Teatro da República

Importa acrescentar, como se diz noutro local, que a Preta Fernanda foi a única mulher que não abandonou a sala quando Almada  Negreiros procedeu à leitura do "Ultimatum Futurista", no Teatro da República (ex-Teatro D. Amélia e hoje Teatro São Luiz), em Dezembro de 1917.

Nada se sabe sobre os últimos dias de Fernanda do Vale, nem quando morreu, nem onde foi sepultada. Informa-me António Valdemar que a última residência da Preta Fernanda foi na Rua do Alecrim, nº 25, esquina com a Travessa do Alecrim, onde está hoje instalado o Sindicato dos Estivadores, Trabalhadores do Tráfego e Conferentes Marítimos do Centro e Sul de Portugal, edifício actualmente propriedade da Fundação Cardeal Cerejeira.


*****



A Preta Fernanda, com o pseudónimo de Fernanda do Vale, registou as suas memórias num livro intitulado Recordações d'uma Colonial (Memórias da Preta Fernanda), publicado em Lisboa, em 1912, por A. Totta e F. Machado. Esgotada há muito a edição original, foi a mesmo reeditada em 1994, pela Teorema, mas também esta reedição não está já disponível no mercado.


Da primeira edição existe um exemplar na Biblioteca da Universidade de Toronto, que se encontra digitalizado e pode ser consultado no respectivo site. A partir do mesmo, várias editoras, entre as quais a HardPress Publishing, de Miami (Estados Unidos), procedem à publicação de cópias digitalizadas, encomendáveis pela Amazon, atendendo ao interesse que o livro despertou nos estudos coloniais de muitas universidades estrangeiras.



 *****

A propósito da Preta Fernanda, escreveu António Valdemar na sua coluna "Avenida da Liberdade", no Diário de Notícias:
  

«Uma das mais famosas casas de putas de Lisboa, no fim do século XIX princípios do século XX, era a da preta Fernanda. Para além do registo, com toda a evidência, nos anais da prostituição ficou associada à literatura, à arte e à alta e baixa política, envolvendo figuras da Monarquia e da I República. Mais tarde o lugar da preta Fernanda na vida marginal da cidade viria a ser, por exemplo, ocupado pela madame Calado, (que deixou os bens num testamento impressionante á Misericórdia do Fundão ) ; pela madame Vilas Boas ( a mais seleta e mais cara , no último andar  do 100 ,da rua da Misericórdia ) ou, então, pela Luísa   Miranda, na rua Eugénio dos Santos, quase defronte ao Coliseu.



 Há testemunhos notáveis na literatura portuguesa e universal sobre casas de putas. Desde Guy de Maupassant até Aquilino Ribeiro na Via Sinuosa. Mas são muito raros os casos em que uma dona de casa de putas deixa, em livro, as suas próprias memórias. A Preta Fernanda é uma delas. O livro intitula-se Recordações de Uma Colonial- Memórias da Preta Fernanda foi, todavia, assinado por A Totta e F Machado. Do primeiro, de seu nome completo Alberto António May Totta e de profissão oficial solicitador encartado, sabe-se que  desempenhou funções de secretário de diversos ministros, vereador das câmaras de Lisboa e Sintra e director dos Hospitais Civis de Lisboa e da Adega Regional de Colares.
     
Entre a realidade e a ficção existem obviamente assinaláveis diferenças. A começar pelo nome. Não se chamava Fernanda Vale mas Andressa do Nascimento. Era de Cabo Verde, da ilha de Santiago. Nasceu em Maio de 1859 e faleceu nos anos 30. Chegou a Lisboa com 19 anos e teve um casamento fugaz com Frederick Kremps que a conhecera no porto de São Vicente.



 Quando se decidiu, pela mais antiga profissão do mundo, e, além disto de ser proprietária de um célebre lupanar no Bairro Alto, possuía uma clientela bastante selecionada. As memórias indicam os frequentadores habituais. Alguns exemplares incluem, no final, uma página com a descodificação dos nomes supostos mencionados no texto. Mas não é exaustiva O volume que pertenceu a Mário Neves e que tive o privilégio de consultar, era, passo a passo, enriquecido com notas de seu pai, o jornalista Hermano Neves. Através dele ficávamos, então, a conhecer todas as personalidades os  clientes do lupanar.
    
A preta Fernanda que ia às estreias dos teatros, que atuou na Praça do Campo Pequeno vestida de toureira compareceu, também, na apresentação, em Abril de 1917, do Manifesto Futurista de Almada Negreiros, no Teatro República, hoje São Luís. Dessa mulher extravagante ficou, todavia, mais qualquer coisa do que o livro compilado por A Totta e F. Machado.

Está retratada pelo aguarelista e desenhador Alberto Souza.Também se encontra-se no pedestal do monumento de homenagem a Sá da Bandeira, na Praça D. Luís, ao pé do Mercado da Ribeira. É a figura feminina, simbolizando a Pátria agradecida.»


 *****


Também Otília Leitão, em 14 de Março do ano passado, escreveu aqui sobre a Preta Fernanda:

«Hoje quero lembrar aquela mulher de Cabo Verde, boémia e à frente do seu tempo, que não deixa de ser um “ícone” de espírito livre e carácter insubmisso, que emprestou ao regime político da monarquia constitucional portuguesa do século XIX, a sua beleza e ousadia à figura feminina em bronze alusiva ao fim da escravatura. Depois de ouvir e ler comentários jocosos, quis observar com minúcia a sua estátua no jardim junto ao mercado da Ribeira, aos Cais Sodré: O escultor deu-lhe forma estilizada de seios nús, lenço na cabeça, menino ao colo ao qual aponta o Marquês Sá da Bandeira como o propulsor do início de liberdade e, no tornozelo desnudado pela túnica enrolada que lhe cobre o corpo pende a grilheta quebrada, símbolo da abolição de um crime contra a humanidade. É uma figura bonita, sem exageros que lhe aviltem a forma e o género. Apesar de por ela passarem centenas de pessoas diariamente, poucos sabem que é Andrêsa Nascimento, que adotou ser Fernanda Vale e ficou conhecida como “A preta Fernanda”. Merece ser estudada e tratada como uma mulher especial na sua época. (V fascimile reprint at http://ia600302.us.archive.org/22/iteecordações d’uma colonial (memorias da preta Fernanda) [por] A. Totta & F. Machado (1912). Author: Vale, Fernanda do, 1859).

A Agenda Cultural do município de Lisboa, de Março, mês em que se celebrou o dia internacional da mulher (8) e se evoca em particular o dia da “mulher cabo-verdiana” a 27, recorda na última página (96) “A Preta Fernanda”, como uma figura da “Cidade Secreta” que “entrou nos variados círculos sociais graças ao seu exotismo e extravagância, onde fazia gala em provocar a má-lingua das damas da sociedade, com a cumplicidade do escritor e diplomata Eça de Queiroz, que a convidava para o seu camarote no Teatro da Trindade.

  
Teatro da Trindade


O seu espírito de provocação e excentricidade - usava o cabelo ruivo, achava-o “cor de manga brasileira”, vivo e “fora do vulgar” - de uma mentalidade esclavagista que um decreto não faria desaparecer por magia, dificilmente seria entendido na época. E mesmo hoje, os homens que dela falam, fazem-no num tom de tolerância ou omissão porque o seu “modus vivendi” de bordel, dito no seu escrito por “salões de luxo”, seria o que hoje se designa de “prostituta fina”, alimentada por idêntica hipocrisia e machismo.


Ambiciosa e egocêntrica por evidenciar a utilização dos seus atributos físicos como arma de sucesso, pressente-se, no fundo, que pretendia, como desde criança idealizara, o reconhecimento de pessoa “civilizada” como repete, às vezes com certo humor. Terá aprendido muito ao longo da sua vida, nomeadamente a ler e escrever, embora reconhecesse como dizia, a “forma errónea com que esprimia alguns vocábulos, infringindo regras elementares e abusando do calão. Ex. Vou dar ar à pluma” ou, o mesmo que “ vou sair”.


Havia a seu tempo outras mulheres, negras, livres, que viviam do aluguer de quartos para “encontros”, como a Violeta, livre e proprietária de uma pensão desde 1565 (arquivos de Lisboa), mas não possuíam o seu carisma.


Estou convicta de que Fernanda do Vale nunca foi escrava e a grilheta na perna serviu de apenas de simbolo ao objectivo político. Nasceu em 1859. O fim da escravatura foi decretado quando Andrêsa Nascimento tinha 10 anos e vivia em Cabo Verde, de onde saiu aos 18 anos.

Numa lei de 25 de Fevereiro de 1869 proclamou-se a abolição da escravatura em todo o Império Português, até ao termo definitivo de 1878. Diz :"Fica abolido o estado de escravidão em todos os territórios da monarquia portuguesa, desde o dia da publicação do presente decreto. Todos os indivíduos dos dois sexos, sem excepção alguma, que no mencionado dia se acharem na condição de escravos, passarão à de libertos e gozarão de todos os direitos e ficarão sujeitos a todos os deveres concedidos e impostos aos libertos pelo decreto de 19 de Dezembro de 1854. ("D. Luís, Diário do Governo, 27 de Fevereiro de 1869).


Não é crível que a elite que a amparava, bajulava e usava a beleza de uma mulher tão ousada e insubmissa, a mantivesse como escrava, num meio frequentado por políticos, escritores, advogados e jornalistas (v. Livro), ainda que de mau grado, tivessem pelo menos de aparentar cumprir o decreto anti-escravatura.


Ao longo dos seus depoimentos, revela-se uma mulher rebelde quando algum homem a oprimia, deixando o seu marido, industrial de cerveja , porque estava “sempre bêbado”, e recusando a gravidez dessa união, um casal de “mulatinhos” gêmeos que “foram derrotados” (talvez abortados). Mudou de patrão quando após vários anos como serviçal, se mudaram para uma quinta fora da capital e se dedicaram a tratar galinhas. Recusou propostas de trabalho, porque “a lei proíbia trabalho obrigatório para pretos”.


Inclusivamente Fernanda reivindicou, com sucesso, os “direitos de autoria” porque uma actriz de teatro a ousou imitar, com tal perfeição, levando a que o público na plateia em que se encontrava, tivesse exclamado: “Olha a preta Fernanda! Está tal qual ela!”

Símbolo da sua força interior e altivez é o facto de ter vestido o trajo de luces (toureira), na Praça de Touros de Algés, com "berrantes cartazes anunciando o debute artístico” e de ter-se submetido à violência da arte.


Porque era conhecida por uma determinada elite foi sugerida por amigos para servir de modelo ao escultor italiano Ciniselli Giovanni (1832-1883), especialista de Roma em figuras da antiguidade em mármore, com obra feita na Europa e Austrália e que fora contratado para conceber o monumento ao general estadista, mas devido à sua morte, o trabalho foi terminado na parte arquitectural pelo português Germano José de Salles.


A portaria régia de 3 de Março de 1880 que a nomeou para modelo, elogiava o “atento espirito patriótico e alevantado que deu provas a indígena de Cabo Verde”. Tinha 21 anos. Foi remunerada a 560 reis diariamente. Uma semana depois, a 10 de Março, foi exonerada por “conveniência de serviço” da função que exercia junto da Fundição de Canhões após várias queixas “confidenciais” a entidades oficiais sobre o escultor a alegadas ofensas por este a obrigar a horas de exposição e xingar com os seus enormes joanetes, aliás perceptíveis no bronze. O escultor chegou a dizer que “a senhora não passa de um modelo sem pés”.


Num artigo da Revista do Exercito, nº 581 de Fevereiro de 2009, do Tenente R.C. Joao Santos , sobre Monumentos com História Militar, lê-se a propósito do monumento ao General Sá da Bandeira, que as diferentes figuras femininas colocadas na base do pilar têm dois significados: De um lado simboliza a História, lendo os nomes importantes e do outro “ uma mulher representando o continente africano, recordando o estadista que terminou com o tráfico de escravos”.


“É notável a figura da mulher africana que aponta ao filho o homem que acabou com a escravatura. É curioso referir ainda que quem posou para figura de mulher africana foi uma conhecida mundana de Lisboa, escultural e célebre, conhecida como “preta Fernanda”, refere o artigo sobre o monumeno edificado por subscrição pública, tendo iniciativa partido do diplomata Luís Teixeira Homem de Brederode, e inaugurado em Julho de 1884 na presença de toda a família real (Rei D.Luís I) e de numerosa multidão .


xistem várias edições, que se podem pedir através da Amazon, algumas ligeiramente adaptadas de “memórias de uma colonial. A preta Fernanda” com várias capas, algumas com a sua foto, outras com desenhos modernos e apelativos, embora sem se saber, quando, quanto e quem terá ganho ou ainda lucra com os direitos de autor.


Da leitura da sua autobiografia escrita em 1911, através dos arquivos da Universidade de Toronto, cujo lugar remeto acima, verifica-se que o seu português era fluente, sendo desculpáveis os erros, ainda que tenha dois co-autores. Mas Fernanda confessa ter-lhe passado rapidamente a vontade de se educar por não ter “paciência para estudar” porque a vida dos centros a desafiava.


Ela descreve o despertar da sua sensualidade precoce, aos 5 anos, quando dançando ao ritmo de um instrumento de cana tocado por duas crianças, se sentiu admirada pelos demais, num crescendo que lhe aumentava vaidade e segurança. Fala da sua meninice, sobrevivendo dos parcos dividendos da apanha da purgueira com seus pais e de uma cultura de religiosidade diferente da católica do regime: “no meio dos negros fazia-se o culto ao Manitú (entidade demonicaca), um boneco fora da “ palhota” e a ele pedia que lhe desse um corpo de encantar. Ele tinha um prego no nariz achatado, e ela,criança, baseava-se na posição do prego mais ou menos caído, para imaginar, consoante a tendência, se o desejo seria ou não concedido.

Faz referência à cachupa, um prato que sabia fazer, com segredo, e prometia que um dia escreveria um “Manual do cosinheiro indígena”, pois era uma pessoa que apreciava a gastronomia.


Nasceu em Maio de 1859, junto a Santa Catarina do Tarrafal. Saiu de Cabo Verde enfeitiçada pelo capitão português, Jerónimo Martins, rumo a Dakar onde este depois de a mandar vestir como “uma branca” de com ela ter vivido vários meses, se encheu de ciúmes de um amigo alemão, e a deixou com este , só, partindo no navio Margarida II. Andrêsa Nascimento casou num hotel em Dakar, com aquele alemão, industrial de cerveja Pilsener, Frederick Wilhem Von Kemps ,que depois a trouxe para Lisboa. Mas o mal estar de Fernanda instalalou-se pela solidão e saturação dos excessos da bebida e partiu para um militar.


As referências sobre a figura de Fernanda Vale, surgem aqui e ali, com pequenas nuançes dignas de aprofundamento: Em “História Fantástica de António Portugal”, (Dicionário), citado pelo jornalista Artur Portela lê-se; :”Preta Fernanda - Figura típica da Lisboa dos anos dez/vinte. Personagem indubitavelmente mais futurista do que académica “. Num post na internet, em “The Ressabiator” com a foto de cavaleira, lê-se que Memórias da preta Fernanda, “ parece ter sido escrita, apesar da suposta fotografia da autora, pela parelha A. Totta e F. Machado – um daqueles típicos exemplos da projecção de um imaginário licencioso e erótico na mulher nativa, exercício inevitavelmente feito por homens. No final tem um “mapa sinoptico” dos amores da protagonista. Cliquem para aumentar, que vale a pena”.


Num outro no blogue “Cocó, ranheta e facada” de 2005, lê-se:Com grilhões nos pés e um criança nos braços esta Liberdade de bronze mostra um peito perfeito e uma boca com uns lábios carnudos que marcam bem a sua origem africana. Sempre que passo à frente da Preta Fernanda dou por mim a admirar-lhe o mamalhal..................”.


Na resenha "Ai, esta negra... [crítica a ’A Preta Fernanda’, de Fernanda do Vale]", a autora Fernanda Botelho refere da obra imprensa nas Officinas da Illustração Portuguesa em 1912, que Fernanda do Vale é “bem falante e bem escrevente” e diz que a caboverdiana “pontifica em Lisboa no campo das mundialidades, das camélias nos decotes e damas mal comportadas”, mas considera que o ato da perdição é descrito com a suspeita da impertinência de uma ironia, o mais retórica possível”.( In: Revista Colóquio/Letras. Livros sobre a Mesa, n.º 143/144, Jan. 1997, p. 261. Fundação Gulbenkian)


Em 1994, a editora Teorema, lança nova edição e diz que memórias da “ cabo-verdeana que foi uma das mais conhecidas cocottes lisboetas dos finais do século passado e do princípio deste (XX) são também um magnífico retrato da Lisboa elegante, galante e boémia da época. Janotas e rufias, fidalgos e toureiros, actrizes célebres e raparigas de vida airada, elegantes do Chiado, encontram-se nos bailes, nos teatros, em ceias pantagruélicas e verdadeiras orgias nos mais conhecidos salões ou casas de passe da época”.


No resumo lê-se que “Fernanda do Vale, já quase retirada, aos 58 anos, foi, ainda assim, em 1917, a única mulher que por ocasião da Conferência-Manifesto Futurista de Almada Negreiros não abandonou a a sala quando foi anunciado o Manifesto Futurista da Luxúria.”


Fernanda do Vale, nome escolhido, por sugestão de uma amiga, porque criava mais empatia nos cartões de visita, com que se anunciava, com o acrescento de “artista de baile”, expressa nas suas “recordações” aos 53 anos, a preocupação pelo que no futuro iram pensar dela. E justifica as suas memórias: “para que não me seja negado o logar, que de direito me pertence nas páginas imorredoiras da história”.»


*****


No Jornal da Noite de 2 de Julho de 2013, a  TCV (Televisão de Cabo Verde) dedicou alguns minutos à história da cabo-verdiana Preta Fernanda, considerada uma dama dos salões da aristocracia lisboeta.


*****

Este post constitui uma homenagem às mulheres e homens de Cabo Verde, que tão relevantes serviços sempre prestaram a Portugal e aos portugueses.

 
GLÓRIA À PRETA FERNANDA

quarta-feira, 26 de março de 2014

O MUNDO SEGUNDO MERKEL


,


"Cartilha da Grande-Alemanha", impressa em Berlim, pela Deutscher Verlag, durante a Segunda Guerra Mundial.

Um grande Império do Meio, que nos é apresentado neste opúsculo pelo seu autor, Michel Herbert Mann. Será este, novamente, o desígnio de Angela Merkel?

terça-feira, 25 de março de 2014

ROBERT MAPPLETHORPE




Será inaugurada amanhã em Paris, no Grand Palais, a primeira exposição retrospectiva em França do notável fotógrafo americano Robert Mapplethorpe (1946-1989), célebre pelos seus retratos a preto e branco muito estilizados, pelas sua fotos de flores e pelos seus nus masculinos, especialmente de homens negros.



Estarão expostas mais de 250 imagens, abrangendo temas diversos, incluindo erotismo soft e pornografia hard, sem qualquer limitação censória.



Esta mostra ficará patente ao público até ao próximo dia 13 de Julho.

quinta-feira, 20 de março de 2014

GASPAR, O IMPOSTOR





Teve lugar ontem, no ISCTE, a sessão do Fórum das Políticas Públicas 2014 dedicada à Política Orçamental, em que intervieram Manuela Ferreira Leite, António Bagão Félix, Fernando Teixeira dos Santos e Vítor Gaspar, todos ex-ministros das Finanças.

Inevitavelmente, teria de se discutir a questão da reestruturação da dívida e o Manifesto dos 70, aliás 74, já publicamente apoiados por 74 economistas estrangeiros de grande prestígio.

Questionado sobre o problema, Vítor Gaspar informou que não responderia às perguntas («Não posso, nem quero») mas afirmou que diria «umas coisas». Mas limitou-se a confirmar a sua posição quanto ao pagamento integral da dívida (contra o teor do Manifesto dos 70), reclamando-se da autoridade (?) de Alexander Hamilton, secretário do Tesouro dos Estados Unidos, sob a presidência de George Washington, de 1789 a 1795, data em que foi obrigado a demitir-se devido a um escândalo extra-conjugal, e que era um fervoroso adepto do cumprimento integral de todos os compromissos da dívida norte-americana.

Convenhamos que a argumentação utilizada por Hamilton, e invocada por Gaspar, tem mais de duzentos anos e que as circunstâncias actuais são bem diferentes. Também Vítor Gaspar, cuja intervenção se baseou largamente em citações, trouxe à conversa o diferendo verificado em 1892 entre o chefe do governo, José Dias Ferreira (bisavô de Manuela Ferreira Leite) e o seu ministro da Fazenda, Oliveira  Martins, sobre o processo de negociação da dívida externa.

Em resumo, Vítor Gaspar considera que a política que sustentou enquanto  ministro das Finanças é a adequada para Portugal, ignorando o que acontece às pessoas (como se interrogou Manuela Ferreira Leite). Não acredito que Vítor Gaspar acredite nas teses que defende. Por isso, considero que Vítor Gaspar é um impostor. A menos que esteja a gozar com os portugueses, o que seria ainda mais grave.


AS BRIGADAS DE DESAGRAVO





Transcrevemos o artigo hoje publicado por Fernando Dacosta no jornal  "i", sobre as brigadas de desagravo do actual Governo, integradas por políticos no activo e pseudo-comentadores económicos, a propósito do Manifesto dos 70:

Brigadas de desagravo

«Há 40 anos, Américo Thomaz e Marcello Caetano, não tolerando que dois generais contestassem a sua política ultramarina, fizeram que fossem demitidos – com os fiéis da situação a organizarem romagens de desagravo que a maledicência oposicionista apelidou de brigada do reumático. O resultado viu-se em Abril.

Agora, a um mês de outro Abril, dois assessores de Belém são afastados por discordarem da política seguida pelos sucessores de Américo Thomaz e Marcello Caetano. A sua discordância exprimiu--se pela simples subscrição de um documento de 74 notáveis, alarmados com o (fascizante) rumo em curso.

Pouco imaginativos, os fiéis desta situação reeditaram velhas romagens de desagravo através de 
arrogantes comentários contra os insubmissos, servindo-se de uma comunicação social a invejar a da ditadura – lembram-se do encantador “Diário da Manhã”?

Foi um texto escrito – em 1974 tratou-se de um livro sobre o domínio de Portugal em África, em 2014 de um manifesto sobre a subserviência de Portugal à Europa – a provocar a ira dos actuais dirigentes (e seus seguidores) que, de imediato, dispararam arremessos de surpreendente intolerância, apoiados em organismos de compadrio internacional.

Sem se enxergarem (historicamente, culturalmente, etc.), os senhoritos da presente governação atreveram-se, com os seus lambe-botas e lambe-interesses de serviço, a amesquinhar os autores do documento, figuras de destacado prestígio profissional e cívico, por “recusarem ser”, como escreveu Manuel Alegre, “colaboracionistas” da destruição do país – tal como quatro décadas atrás, os empenhados no 25 de Abril. A cereja que a história guarda para o bolo do “passismo” (e afins) está há muito envenenada.»

Com uma diferença: apesar de tudo, os "desagravados" do antes de Abril tinham, em geral, um perfil mais elevado do que os actuais incumbentes.


quarta-feira, 19 de março de 2014

NO BIMILENÁRIO DE AUGUSTO




É inaugurada hoje em Paris, no Grand Palais, uma exposição assinalando o bimilenário da morte do imperador Octávio César Augusto, reunindo estátuas , baixos-relevos, frescos, peças de mobiliário e de prata, bem como a reconstituição de uma villa nas encostas do Vesúvio ou de túmulos descobertos na Gália.

Esta mostra imperial, que se prevê obtenha grande sucesso e que estará patente ao público até ao dia 13 de Julho, foi previamente apresentada em Roma, no Quirinal, em Outubro passado.


terça-feira, 18 de março de 2014

JOSÉ MEDEIROS FERREIRA




Morreu esta manhã em Lisboa, vítima de doença prolongada, José Manuel de Medeiros Ferreira, de 72 anos, historiador, político e professor universitário, que foi ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Constitucional, chefiado por Mário Soares.

Tive oportunidade de conhecer pessoalmente Medeiros Ferreira e de apreciar a sua inteligência, a sua cultura, o seu civismo e o seu fino sentido de humor, que o tornavam uma pessoa superiormente interessante. 

Eximo-me a descrever o seu percurso biográfico, que poderá ser consultado com vantagem na notícia do falecimento no jornal "i".

Quando publicou, em Novembro passado, o seu último livro, Não Há Mapa Cor-de-Rosa - A História Mal(dita) da Integração Europeia, comentei a obra neste blogue, salientando o seu contributo para a história muito mal conhecida da União Europeia, que tem sido progressivamente constituída à revelia dos povos.

 Em 2012, concedeu ao EXPRESSO uma notável entrevista, que é, de alguma forma, um balanço da sua actividade política. Trata-se de um importante documento que importa ler e sobre o qual importa reflectir.

Medeiros Ferreira, que manteve até há semanas uma intensa actividade como docente, comentador, conferencista e interventor na vida política, escrevia também em dois blogues: o "Bicho Carpinteiro" (inactivo desde 2012) e o "Córtex Frontal", onde publicou, pela última vez, em Fevereiro passado.