domingo, 16 de março de 2014

A SECESSÃO DA CRIMEIA







Como previsto, o resultado do referendo de hoje na Crimeia, realizado com o objectivo de consultar a população sobre a sua vontade de integrar a Rússia, obteve, segundo sondagem à boca das urnas, uma percentagem favorável de 93%.

Enquanto se aguarda a contagem dos votos, recordem-se, sumariamente, alguns factos:

1) Durante a Idade Moderna a Crimeia fazia parte do Império Otomano. Em 1777 foi conquistada pela Rússia, passando a constituir um protectorado do Império Russo. Em 1783, reinava Catarina II, a Crimeia foi anexada à Rússia. Durante a Guerra Civil Russa (1918-1922), na sequência da queda dos Romanov e da instauração do regime comunista, o poder na Crimeia foi instável,  mas em 1922, a  então baptizada República Autónoma Socialista da Crimeia aderiu à União Soviética, ficando a integrar a República Socialista Federada Soviética da Rússia, onde se manteve até à surpreendente decisão de Khrushchov,  secretário-geral do PCUS, tomada em 1954, de a oferecer como presente à Ucrânia, comemorando os 300 anos de boas relações entre os dois países.

Com o desmembramento da União Soviética, em 1991, e a obtenção de autonomia política por parte da Ucrânia, a Crimeia obteve o estatuto de República Autónoma dentro daquele país e em 1992 aprovou uma nova Constituição e proclamou a independência, embora aceitando permanecer integrada na Ucrânia.

2) A independência de facto da Ucrânia em 1992, com a desintegração da União Soviética, não trouxe uma vida melhor ao povo ucraniano que tem estado, desde então, a ser governado por elites corruptas, sejam pró-europeias ou pró-russas. O agravamento da situação levou à contestação do presidente Yanukovytch em Kiev e noutras cidades. Aproveitando-se do clima anti-regime, grupos de extrema-direita, claramente apoiados pela União Europeia e pelos Estados Unidos, decidiram apoiar a contestação e promoveram um golpe de estado, instalando no poder um regime anti-russo e favorável à integração na União Europeia, e mesmo na NATO. As profissões de fé do novo regime foram amplamente estimuladas pelas declarações de Barroso, Rasmussen, Kerry, Hollande, Cameron, Merkel, etc., que proclamaram o seu inequívoco apoio à nova situação política na Ucrânia.

3) Como esperaria qualquer pessoa de bom senso, a Rússia, que dispõe na Crimeia da importante base naval de Sevastopol (aliás garantida por um tratado com a Ucrânia), entendeu reagir, resolvendo apoiar a auto-proclamada independência da Crimeia relativamente à Ucrânia, até porque a região é maioritariamente habitada por russófonos e russófilos e de história e cultura russas. Por outro lado, a instalação na Ucrânia de um poder hostil à Rússia alteraria os dados geoestratégicos até então vigentes. Ignoro se a reacção russa foi inesperada para o Ocidente, mas se o foi isso diz muito a respeito do pensamento americano e europeu. Entendendo apoiar os cidadãos russos da Crimeia, a Rússia enviou (aberta ou camufladamente) as suas forças para a Crimeia, que ocupou militarmente.

4) Na sequência do processo em curso, o novo governo da Crimeia marcou para hoje um referendo sobre a vontade de abandonar a Ucrânia e regressar à Rússia, que obteve, na sondagem acima indicada, 93% dos votos. Está, assim, consumada a secessão da Crimeia; falta resolver a situação dos militares ucranianos que se encontram naquela península.

5) A ameaça de sanções ocidentais à Rússia não parece assustar Moscovo. Elas assustaram os deputados ucranianos que retiraram o seu apoio a Yanukovytch e se passaram para as forças radicais oposicionistas quando foram informadas de que as suas contas bancárias seriam congeladas no Ocidente.

6) A secessão da Crimeia é um facto consumado. Resta saber, em relação ao leste da Ucrânia, maioritariamente russófilo, e onde se têm verificado algumas confrontações, o que fará a Rússia. Seguirá uma estratégia semelhante à desenvolvida na Crimeia ou procurará obter garantias especiais de um  novo governo em Kiev,  já que o actual governo provisório ucraniano não é reconhecido por Moscovo?

* * * * *

Os próximos dias, ou semanas, trarão a resposta a estas perguntas. Acresce assinalar a leviandade dos estímulos ocidentais à insurreição ucraniana e das falsas e incumpríveis promessas feitas por gente sem dignidade nem princípios. Nem se pode o Ocidente queixar de Putin , que está a fazer a mesma coisa que fez a NATO quando, a propósito do Kosovo, bombardeou a Sérvia. Dois pesos e duas medidas.

Todavia, e para lá destas considerações, existe um perigo real: o de Kiev e Moscovo se envolverem numa confrontação militar. Não é provável, e muito menos que a NATO se envolva em tão indesejado conflito. Mas devemos sempre recordar-nos que foi o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em Sarajevo, que desencadeou a Primeira Guerra Mundial, que começou por operações circunscritas e acabou numa tragédia europeia.

Aguardemos.



2 comentários:

Zephyrus disse...

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http://www.publico.pt/mundo/noticia/uma-nova-republica-de-veneza-independente-de-italia-1628646

Estive em Milão há dois anos e falei com muita gente sobre a questão da independência do Norte. De uma forma geral, a maioria dos italianos do Norte querem mais autonomia e menos transferência de recursos para Sul. Conheci dois irmãos da Sicília: migraram para Milão porque para abrirem o hotel no Sul teria de dar dinheiro à máfia e aos políticos locais.

Contudo, estes movimentos inserem-se numa estratégia mais ampla de enfraquecimento das grandes nações europeias. Sempre existiram, mas nunca tiveram tanto destaque mediático e tanto dinheiro como agora.

Para já, com o enfraquecimento da Espanha e quem sabe, de Itália, ah, e da França, ganhará sem dúvida a Alemanha, que se sedimenta como a grande potência europeia. Para já, a tendência do Reino Unido é para colocar-se cada vez mais à margem da UE; e as sondagens dão a vitória do «não» à independência da Escócia.

Neste contexto, talvez fosse desejável, por uma questão de equilíbrio geostratégico e económico, que toda a Península Ibérica pensasse o seu futuro... ainda mais agora que a imagem da Monarquia espanhola se degrada cada vez mais todos os dias...

Não é desejável uma Europa dominada pela Alemanha, nem sequer para os próprios alemães.

O Sul não pode continuar a cometer dois erros. Primeiro, permite o fortalecimento alemão. Depois, esquece o mundo árabe e apoia quem não deve (americanos e aqueles cujo nome não se diz). Que se veja o que sucedeu no Egipto, Líbia e Síria.

Blogue de Júlio de Magalhães disse...

Concordo absolutamente com o comentário de Zephyrus. Para lá de algumas (legítimas) aspirações separatistas, há a vontade (dissimulada) de retalhar a Europa para mais facilmente a controlar e dominar as populações. Inconfessáveis desígnios, mas que só enganam os incautos.