sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

MAYERLING, O SUICÍDIO DA EUROPA




Na manhã do dia 30 de Janeiro de 1889, o arquiduque Rudolf de Habsburg, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi encontrado suicidado (embora existam versões não coincidentes) no Pavilhão de Caça de Mayerling, 25 km a sudoeste de Viena, na companhia de sua amante a baronesa Maria Vetsera.

Rudolf era o único filho varão do imperador Francisco José e de sua  mulher a imperatriz Elisabeth (da Casa de Wittelsbach, na Baviera, mundialmente conhecida por Sissi). O casal teve também três filhas: Sofia Frederica, que morreu em criança, Gisela e Maria Valéria.

As circunstâncias da tragédia que se desenrolou em Mayerling nunca foram devidamente esclarecidas. Existem testemunhos, inclusive dos membros da Família Imperial, de que Rudolf (que era casado com a princesa Stéphanie da Bélgica, um matrimónio politicamente imposto) e a jovem Maria Vetsera, que tinha então 17 anos, teriam sido assassinados. De resto, a Corte encarregou-se de mascarar imediatamente os factos, publicando no dia 31 um relatório médico em que se afirmava que o príncipe  morrera vítima de um aneurisma. De acordo com o protocolo da Casa de Áustria nenhum membro da Família Imperial se podia suicidar, até porque tal acto, condenado pela Igreja, impediria que fosse sepultado na Cripta Imperial da Igreja dos Capuchinhos, em Viena. Assim, Francisco José diligenciou rapidamente junto do Papa para que não houvesse impedimento aos funerais oficiais do arquiduque herdeiro. Quanto a Maria Vetsera, o corpo foi vestido e o rosto recomposto e, na madrugada seguinte, foi transportada morta numa carruagem, macabramente amparada por dois funcionários, e arrastada por eles para dentro de um caixão, ficando sepultada no cemitério de Heiligenkreuz, próximo de Mayerling.

As relações de Rudolf com Francisco José eram péssimas. Não só o arquiduque tinha ideias políticas muito diferentes das do pai, como nutria especial simpatia pelos (separatistas) húngaros e era partidário de profundas reformas no Império. Chegaram a atribuir-lhe uma tentativa de assassinar o imperador durante uma caçada. Possuía um carácter depressivo e padecia de uma grave doença venérea.

O suicídio de Rudolf em Mayerling, pelo modo como ocorreu e pelas consequências que dele resultaram, pode considerar-se, simbolicamente, como o primeiro suicídio da Europa. Morto Rudolf, e estando as mulheres afastadas da linha da sucessão devido à Lei Sálica, foi preciso designar um herdeiro. Francisco José tinha três irmãos mais novos: Fernando Maximiliano, que foi imperador do México e morreu fuzilado pelos republicanos em Queretaro, em 1867, Carlos Luís (que, devido a certa debilidade mental, renunciou a favor do filho, Francisco Fernando) e Luís Vítor (que nunca casou e que por causa da sua homossexualidade pública e ostensiva foi banido da Corte pelo irmão e morreu no Palácio de Klessheim, perto de Salzburg, com 76 anos).

Mas a fatalidade abatera-se sobre a Casa de Áustria. Depois da morte do filho, Elisabeth, que sempre detestara a rigidez da Corte e o feitio da sogra (a arquiduquesa Sofia), aumentou a frequência das suas viagens no Império e  no estrangeiro. Em 10 de Setembro de 1898, quando se dirigia do Hotel Beau-Rivage, em Génève (onde se encontrava pretensamente incógnita) para embarcar no vapor "Génève", a fim de atravessar o lago homónimo, foi assassinada pelo anarquista italiano Luigi Lucheni. Não se apercebeu imediatamente da gravidade do golpe que sofrera, ainda entrou a bordo, mas morreu pouco depois.

Viena chorou Sissi. Todavia, a maldição que parecia pesar sobre os Habsburg ainda não terminara. O novo herdeiro do trono, o arquiduque Francisco Fernando, tal como Rudolf, mantinha as mais tensas relações com o imperador, quer do ponto de vista político (opunha-se à linha de governação prosseguida pelo monarca), quer do ponto de vista pessoal (Francisco José tinha-se oposto ao seu casamento com a condessa checa Sofia Chotek e só a ameaça de o ver renunciar à sucessão levou o velho Francisco José a aceitar o casamento, mas Sofia, entretanto promovida a duquesa de Hohenberg, nunca foi admitida no círculo mais restrito dos arquiduques e Francisco José obrigou o sobrinho, no Palácio Imperial de Hofburg, em 28 de Junho de 1900, perante si, toda a família imperial e o governo, o cardeal-arcebispo de Viena e o arcebispo de Budapeste e Primaz da Hungria, a comprometer-se de que Sofia jamais usaria o título de imperatriz, rainha ou arquiduquesa. Foi também obrigado a renunciar em nome dos seus descendentes a todos e quaisquer direitos dinásticos). Precaução inútil.

Em 28 de Junho de 1914, quando Francisco Fernando e Sofia visitavam Sarajevo, foram assassinados pelo anarquista sérvio Gavrilo Princip, um jovem de 19 anos. Os corpos foram transportados de comboio, de barco e novamente de comboio até Viena, onde o cortejo chegou propositadamente à noite para evitar manifestações públicas de pesar, apenas se encontrando para o receber o arquiduque Carlos, filho do arquiduque Otto Francisco, irmão de Francisco Fernando, e por isso, sobrinho neto de Francisco José, e que era agora o primeiro na linha de sucessão, mortos que estavam os herdeiros presuntivos da Coroa. O governo austríaco dissuadiu os chefes de Estado estrangeiros de assistirem aos funerais (com o pretexto da debilitada saúde de Francisco José) e as cerimónias fúnebres foram reduzidas ao estritamente indispensável. A título excepcional, o imperador autorizou que o caixão de Sofia fosse colocado na capela imperial ao lado do  caixão do marido, mas num plano 20 cm mais baixo. Como Francisco Fernando manifestara o desejo de ser sepultado ao lado da mulher, e esta não poderia ser inumada na Cripta Imperial, os dois caixões acabaram por ser depositados na Cripta do castelo de Artstetten, em  Klein-Pöchlarn.

Toda a gente sabe que o atentado de Sarajevo desencadeou a Primeira Guerra Mundial. A Europa iria entrar numa espiral de violência que, com alguns hiatos, dura até aos nossos dias. Francisco José (1830-1916), que subira ao trono com 18 anos e reinara 68 anos, um dos reinados mais longos da história, foi, pela sua rigidez de raciocínio e pelo seu apego indefectível às mais obsoletas tradições,  um dos soberanos responsáveis pela primeira grande confrontação europeia. Parece que também não era muito inteligente.

Morreu em 21 de Novembro de 1916, e o seu funeral foi a última grande manifestação pública da monarquia dos Habsburg, a que acorreu toda a população de Viena.

Sucedeu-lhe, como estabelecido, o arquiduque Carlos, com o nome de Carlos I, para um efémero reinado de dois anos, que terminaria com a derrota dos impérios centrais na guerra de 1914-18.

A tragédia de Mayerling, observada à distância, pode configurar simbolicamente o suicídio original da Europa, que, a partir de então, se obstinou a auto-mutilar-se, num processo que voltaria a ensanguentar o velho continente duas décadas mais tarde, e que prossegue hoje, num grau de menor intensidade, com os conflitos abertos da Jugoslávia (por ora suspenso) e da Ucrânia e com outros conflitos latentes que ninguém cuida de apaziguar, antes pelo contrário.

*****



Tudo isto a propósito do notável bailado Mayerling, coreografado por Kenneth  MacMillan, com música de Franz Liszt, adaptada e orquestrada por John Lanchbery. Criado em 1978 para o Royal Ballet, de Londres, a gravação que se apresenta refere-se a uma reposição, no Covent Garden, em 2009. Os bailarinos Edward Watson e Mara Galeazzi interpretam o arquiduque Rudolf e a baronesa Vetsera. A Orquestra da Royal Opera House é dirigida por Barry Wordsworth.

O drama de Mayerling deu origem a centenas de obras, desde livros a filmes, a peças de teatro, a bailados, a espectáculos musicais, etc. Entre os filmes, refira-se, De Mayerling à Sarajevo (1940), do alemão Max Ophüls e pela originalidade, a película Vizi privati, pubbliche virtù (1975), do húngaro Miklós Jancsó.



Dos muitos livros, refiro uma curiosa obra que comprei há alguns anos em Veneza, Mayerling - Il Mito, de Romana de Carli Szabados, mas a lista é interminável.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

JOÃO HALL THEMIDO - MEMÓRIAS DA CARREIRA




Devido a uma tiragem muito reduzida, ou a quaisquer outras razões que desconheço, o livro Uma Autobiografia Disfarçada, do embaixador João Hall Themido, editado pelo Instituto Diplomático do MNE em fins de 2008, desapareceu há muito de circulação.

Consegui, finalmente, lê-lo, devido à generosidade de um amigo diplomata que possuía um exemplar na sua biblioteca e teve a gentileza de mo emprestar.

Nesta obra, em que relata episódios da sua vida profissional, o autor procede a uma análise da situação política nacional e internacional no tempo em que exerceu funções, quer no Ministério dos Negócios Estrangeiros, como Director-Geral dos Negócios Políticos e como Secretário-Geral, quer enquanto Chefe de Missão em Roma, Washington e Londres.

A sua actividade na capital norte-americana já havia sido previamente documentada na obra anteriormente publicada, Dez Anos em Washington, 1971-1981, editada em 1995. O embaixador Hall Themido constitui um caso particular na diplomacia portuguesa. Homem de tendências conservadoras, grande admirador de Franco Nogueira, fora nomeado embaixador em Washington em 1971. Por decisão de Mário Soares, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, foi mantido nesse lugar após a Revolução de 1974, com a intenção de tranquilizar os americanos acerca da evolução da política portuguesa. Recorde-se que, nessa ocasião, embora alguns diplomatas tenham sido saneados, a maioria dos chefes de missão continuou em funções, tendo contudo sido obrigados a trocar de posto por se entender que não era desejável manter numa capital, após a Revolução, um embaixador que defendera, no período anterior, posições muito diferentes daquelas que teria de assumir com a vigência do novo regime.


Naturalmente que em Uma Autobiografia Disfarçada, Hall Themido se ocupa principalmente das nossas relações com os Estados Unidos, reproduzindo até alguns textos já publicados em Dez Anos em Washington. As suas convicções ocidentalistas não o inibem, contudo, de fortes críticas à política norte-americana e ao american way of life, como, aliás, já fizera o embaixador Rosa Lã no seu livro Do Outro Lado das Coisas - (In)Confidências Diplomáticas, que comentámos aqui. 

O embaixador Hall Themido salienta a pouca importância concedida a Portugal na Casa Branca, no Congresso ou no Departamento de Estado, salvo por ocasião dos acontecimentos verificados no pós 25 de Abril, quando se registaram apreensões em Washington sobre os caminhos da nova democracia portuguesa. Mas, mesmo nessas circunstâncias, a preocupação dos americanos era sobretudo em relação à Base das Lajes, nos Açores, que os Estados Unidos consideravam, e ainda consideram, de importância estratégica para a defesa dos seus interesses.

Salienta Hall Themido o convencimento (que todos conhecemos) de Henry Kissinger quanto à inevitabilidade de uma "comunização" de Portugal, o que constituiria, em sua opinião, uma "vacina" para outros países do sul da Europa. Ficou a dever-se à persistência de Frank Carlucci, embaixador americano em Lisboa, o apoio aos movimentos mais moderados (e gozando de maior apoio popular) saídos da Revolução - leia-se, ao Partido Socialista, e particularmente a Mário Soares - dado que aquele diplomata, movimentando-se facilmente no "terreno", havia concluído que os portugueses escolheriam finalmente um regime democrático (na acepção ocidental do termo) ainda que de tendência socializante.

São variados os assuntos tratados na autobiografia, em que, como é de uso em obras este género, existe uma parte substancial dedicada à análise de problemas políticos domésticos e mundiais. Não sendo possível abordá-los num post, resta a evocação de alguns factos que despertarão mais facilmente a curiosidade do leitor.

Assim, salienta-se o ultimato americano a Portugal, aquando da guerra do Yom Kippur (1973), em que fomos obrigados a ceder, contra os nossos próprios interesses, a utilização da Base das Lajes para escala dos aviões americanos que transportavam material de guerra para Israel, então em guerra com o Egipto e a Síria, sendo a mensagem de Nixon para Marcelo Caetano de que "utilizariam os Açores com autorização ou sem ela".  Aliás, tínhamos já precedentes neste tipo de atitudes, quando o governo de Inglaterra, o nosso velho aliado (uma Aliança que ao longo dos séculos só funcionou num sentido e é portanto inútil) nos enviou também um ultimato em 1890, a propósito do pretendido Mapa Cor-de-Rosa. Aliás a cedência das Lajes aos americanos, que ocorreu na Segunda Guerra Mundial, e também com a interferência de Churchill, foi uma imposição a Salazar, que, todavia, conseguiu negociar da forma menos humilhante para Portugal.

Hall Themido relata também a sua opinião acerca de Kissinger (que é a opinião de todos nós), um homem inegavelmente culto e inteligente, mas extraordinariamente ambicioso, arrogante e sem escrúpulos. Acrescentaria eu, também capaz de promover as maiores atrocidades, como é documentado pelas numerosas intervenções que promoveu no estrangeiro, na América do Sul, por exemplo, factos ainda bem vivos na memória colectiva, mas pelos quais certamente nunca será julgado.

Outro assunto trazido à colação pelo embaixador é a "mitificação de Aristides de Sousa Mendes". A meio da sua estada em Washington começou Hall Themido a receber sucessivos pedidos de informação sobre aquele antigo cônsul português em Bordéus. O seu conhecimento sobre o caso do processo disciplinar a que Sousa Mendes fora submetido era, embora não pormenorizadamente, do seu conhecimento. Outros diplomatas portugueses, como os embaixadores Sampayo Garrido e Teixeira Branquinho, em Budapeste, tinham concedido, com grande coragem, vistos e asilo a numerosos judeus, mas sem desrespeitarem frontalmente as instruções do MNE. Tendo-se documentado posteriormente em Lisboa, concluiu Hall Themido que «O processo disciplinar que lhe foi movido quando era cônsul em Bordéus foi o último de vários de que foi alvo ao longo da carreira, quase sempre por abandono do posto ou concussão. Pelos visto, Aristides e Sousa Mendes, além de viver acima dos seus meios, o que tinha reflexo nas contas consulares, gostava de abandonar os postos, sem autorização, para visitar Paris, segundo se dizia movido por razões sentimentais. Como tem acontecido em outros casos mediáticos, a maioria desses processos disciplinares desapareceu misteriosamente do Arquivo Geral, onde todavia, ainda está, incompleto, o relativo a Bordéus. A Nota de Culpa menciona abandono de funções, concussão e desobediência.»  Sobre o caso Aristides de Sousa Mendes se referiu também o embaixador Carlos Fernandes no seu livro O cônsul Aristides Sousa Mendes - A Verdade e a Mentira, que comentámos aqui. Afigura-se, pois, pacífico que todo este processo de endeusamento de Sousa Mendes, mais do que uma homenagem póstuma à acção, ainda que irregular, do falecido cônsul, faça parte da propaganda sionista, na linha do que o cientista político judeu norte-americano Norman Finkelstein chamou corajosamente a "indústria do holocausto".

No início do livro, Hall Themido refere-se à "perseguição" que lhe foi feita no Ministério pelo embaixador António de Faria, «um produto acabado da escola de Teixeira de Sampaio». Por razões que seria ocioso explicar, Hall Themido fora designado, em 1947, para cônsul-adjunto em Tânger, que seria o seu primeiro posto. Ora Faria, sendo contrário àquela nomeação, envidou todos o esforços para o fazer desistir do lugar. Não logrando êxito, acabou por lhe vaticinar o pior destino na carreira, o que o futuro se encarregaria de desmentir. Segundo Themido, Faria tentou ainda durante muitos anos dificultar-lhe a vida.

Tânger era então uma pequena cidade, embora habitada por  notabilidades mundiais. Constituía à época uma Zona Internacional, administrada alternadamente pela França, Espanha, Portugal, Grã-Bretanha, Itália, Bélgica, Holanda, Suécia e Estado Unidos. Na altura, o administrador era português, o almirante Magalhães Corrêa, por acaso meu primo. Foi precisamente em Tânger, nos idos de 1949, que Themido conheceu Natália Correia. Fora a escritora ali passar a lua-de-mel do seu casamento com um americano, William Creighton Hyler. O consulado português prestou o apoio necessário, tendo-se  gerado um simpático ambiente de convívio entre o casal e o cônsul-adjunto, ainda que este suspeitasse que o matrimónio não era feliz. «A surpresa maior estava para acontecer na hora da despedida. Ao embarcar no avião da "Aero-Portuguesa", que assegurava as ligações com Lisboa, Natália Correia pediu-me que, no caso de haver um acidente no avião em que viajava e ela não sobrevivesse, fosse procurar Alfredo Machado, dono do Hotel Império, situado no ingresso da Rua Rodrigues Sampaio, próximo do cinema Tivoli (hoje Hotel Britânia), e lhe dissesse que, na verdade e não obstante ter-se casado, era dele que ela gostava.» Todavia, muito mais tarde, encontrando-se Themido em Washington, participou num almoço oferecido a Natália pela nossa Embaixada. Natália ignorou a sua passagem por Tânger e o conhecimento com Hall Themido, como voltaria a acontecer, em 1982, num jantar em casa do embaixador Hélder de Mendonça e Cunha.

De uma maneira geral, Hall Themido elogia os seus colegas da Carreira, com raras excepções, como a já referida de António Faria, com quem, todavia, acabaria por manter boas relações, mas muito mais tarde. Há contudo algumas personalidades que Themido enaltece especialmente, sendo uma delas Alberto Franco Nogueira, pela sua cultura, pela sua competência, pela sua integridade, pelo seu sentido de Estado e do cumprimento do dever. É certo que Themido e Nogueira eram politicamente próximos, mas elogios à capacidade e frontalidade do embaixador Franco Nogueira tenho-os ouvido das bocas mais desafectas ao regime anterior. Franco Nogueira, enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros, empenhou-se de alma e coração na defesa da política ultramarina de Portugal delineada por Salazar. Nunca tergiversou, embora Themido confesse que pressentiu algumas vezes que Nogueira, jamais o declarando, não acreditava já no êxito dessa política, mas entendia que, uma vez definida pelo chefe do Governo, e nas circunstâncias de então, não havia alternativa no quadro do Regime. E, de facto, não havia.

Não sendo objecto deste post uma análise de todos os capítulos do livro, não posso deixar de referir uma acção de que Hall Themido especialmente se orgulha: a aquisição para sede da nossa Embaixada em Roma da célebre Villa Barberini, na Via Riccardo Zandonai (do nome do compositor italiano autor de numerosas óperas, mas que se celebrizou especialmente por Francesca da Rimini, sobre a tragédia de Gabriele D'Annunzio, mas isto Themido não refere). Passámos, assim, a dispor de uma condigna representação diplomática na capital italiana, em igualdade de circunstâncias com a nossa Missão junto da Santa Sé, instalada na Villa Elia.

João Hall Themido terminou a sua carreira diplomática como embaixador em Londres, um posto certamente ambicionado. Instalada em famoso edifício, em Belgrave Square, a Embaixada tinha todas as condições para proporcionar uma  estada na capital britânica de especial agrado para Hall Themido, bem como o meio londrino que indiscutivelmente apreciava. Verdadeiramente, um happy end, ao fim de 40 anos ao serviço da diplomacia portuguesa.

Não se esqueceu o embaixador de mencionar alguns dos seus mais ilustres antecessores na Corte de Saint James: o marquês de Pombal, o marquês de Soveral, o duque de Palmela e Armindo Monteiro. Facto digno de nota, em 12 de Maio de 1986, a rainha Isabel II visitou a embaixada de Portugal, onde foi recebida por Mário Soares, durante as cerimónias das comemorações dos 600 anos do Tratado de Windsor.

Mais haveria a comentar mas já me alonguei demasiado. O livro do embaixador Hall Themido é indiscutivelmente interessante, embora me pareça que a matéria mereceria uma estruturação mais adequada  e sobretudo uma sequência cronológica dos acontecimentos ou, em alternativa, a indicação das datas dos eventos, o que não sucede na maior parte dos casos.

De qualquer maneira, a consignação em livro das memórias dos nossos representantes diplomáticos representa sempre uma mais valia para o estudo das relações internacionais, embora, como é de regra, os embaixadores refiram, de uma maneira geral, apenas os êxitos e nunca os insucessos nas carreiras. Os  livros de memórias permitem também registar os fait divers inerentes à vida diplomática, sempre curiosos, e o contacto mais directo com povos de outros países, ainda que, na maior parte dos casos, as histórias que poderiam ser mais interessantes são geralmente omitidas por óbvias razões de natureza pessoal.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A VITÓRIA DO SYRIZA




A vitória eleitoral do Syriza, esta noite, na Grécia, é indesmentivelmente um facto histórico. Realmente, os gregos já têm tão pouco a perder (não me refiro aos gregos ricos que os há, e muitos) que as consequências do resultado do escrutínio dificilmente poderão piorar as suas vidas. É claro que as dificuldades começam agora. Com maioria absoluta ou não, tanto faz, espera-se e deseja-se que  o partido de Alexis Tzipras cumpra as suas promessas eleitorais, pelo menos nas linhas gerais do programa apresentado a sufrágio. Não se lhe poderá exigir tudo e num só dia. Isso é apenas para quem acredita em milagres. Mas que trace uma linha vermelha para lá da qual não poderão ser exigidos mais sacrifícios aos gregos.

A União Europeia receou tanto a vitória do Syriza que não se coibiu de enviar recados aos gregos, numa clara interferência na política interna grega e numa clara demonstração de que a ideia de democracia não passa, para muitos líderes europeus, como Angela Merkel, de uma palavra vã. Mas os gregos têm uma longa história, e se os gregos actuais já não serão descendentes directos de Sócrates ou de Péricles, têm mesmo assim um já longo passado comum e um orgulho de que foi em Atenas, ainda que em circunstâncias muito diversas das actuais, obviamente, que foi criada a palavra Democracia.

A vitória do Syriza deverá ser também importante para o futuro da Europa, para a clarificação do seu destino, nesta época por demais conturbada da vida do Velho Continente. Estamos perante uma oportunidade rara, diria mesmo única, de restabelecer as regras do jogo, há décadas adulteradas pela ditadura dos mercados e pela economia totalitária dita neo-liberal.

Ouvi alguns comentadores televisivos bolçarem prognósticos e formularem ambíguos desejos sobre a evolução da situação. Não merecem crédito nem respeito. Estão ali a defender os interesses dos patrões.

O dia 25 de Janeiro de 2015 pode ser, deseja-se que seja, o dia da mudança na Grécia e na Europa. Se o não for, então seremos confrontados com uma catástrofe de proporções inimagináveis.


sábado, 24 de janeiro de 2015

FRANÇOIS HOLLANDE - RETRATO DE UM CANALHA




O último livro de Jean-Luc Mélenchon, L'ère du peuple, que tem sido um best-seller em França, procede a uma análise impiedosa da situação actual  no seu país e no mundo. Nem sempre escrito no melhor estilo, como o próprio autor reconhece, a obra debruça-se sobre questões sociais, económicas, financeiras, ecológicas e políticas (que obviamente incluem as anteriores).

Entende Mélenchon que é indispensável a convocação de uma assembleia constituinte com vista a instaurar a VI República, considerando definitivamente gasto o modelo actual, desenhado segundo o perfil do general De Gaulle e que foi sucessivamente adulterado pelos seus sucessores.

Não podendo descrever aqui as teses do autor, não deixarei de registar as apreciações que faz em relação à Esquerda, ao Partido Socialista francês e a François Hollande.  Nunca os ideais de esquerda foram tão renegados em França como nos dois anos e meio do mandato de Hollande, que se apresentou ao eleitorado como uma consistente alternativa aos delírios de Nicolas Sarkozy. Verdadeiramente, o voto em Hollande foi um voto pela negativa. Os franceses votaram Hollande para correr com Sarkozy. Esperavam, pelo menos, uma inversão de rumo, uma atitude de firmeza face a Angela Merkel, a anunciada renegociação do tratado orçamental, uma travagem na destruição do Estado social, a revisão da carga fiscal, um não alongamento da idade da reforma, uma politica de firmeza face a Israel, etc.,etc. Mas só colheram desilusões. Hollande sacrificou no altar do mais desabusado liberalismo e da maior subserviência face à Alemanha e aos Estados Unidos. A interdição do sobrevoo da França pelo avião do presidente boliviano Evo Morales devido à simples injunção de um funcionário da CIA, o silêncio perante a declarada espionagem americana de milhões de franceses e das embaixadas francesas no  mundo, o apoio a Netanyahu no momento dos crimes de guerra contra a população de Gaza, o abandono da siderurgia, da Alstom, da indústria aeronáutica, da química farmacêutica ou do cabo submarino para a internet são apenas algumas das manchas do seu mandato. Hollande que dizia antes das eleições: «Mon enemmi, c'est la finance !». E que, com inaudito desplante, fez, após eleito, exactamente o contrário do que prometera.  Hollande que nomeou primeiro-ministro o ambicioso, inculto e pouco escrupuloso Manuel Valls que afirmou «la gauche peut mourir» e que propôs que o Partido Socialista francês deixasse de chamar-se "socialista".



Trancrevo algumas linhas: «François Hollande a amplement et cruellement dépouillé les gens do commun de tout ce qui compte pour eux. Salaires, santé, retraites, services publics, protections du droit de travail, organisation républicaine de l'État, indépendance nationale et combien d'autres choses essentielles ont été davantage dévastés par Hollande que par aucun de ses prédécesseurs de droite. C'est pire que Sarkozy, la honte en plus pour nous car nous l'avons élu.» (p. 18)

Não é necessário alongarmo-nos na descrição das turpitudes referidas por Mélenchon, a  maioria das quais é do conhecimento público mesmo entre nós. Nem sequer tecer quaisquer considerações à risível vida privada de Hollande, que por ser privada não cabe nesta apreciação, salvo quando interfere com a esfera pública.

Mas não podemos deixar de registar que o retrato que Jean-Luc Mélechon traça de François Hollande nas páginas do seu livro é o retrato de um verdadeiro canalha.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

ISLAMOFOBIA, UM RACISMO NÃO DECLARADO

ISLAMOFOBIA, UM RACISMO NÃO DECLARADO





Pelo seu interesse e oportunidade, transcreve-se a entrevista de Alain Gresh ao "Middle East Eye", a propósito dos recentes acontecimentos em França:



Islamophobia becoming undeclared racism in France, says Alain Gresh




'We claim that we fight wars in order to prevent jihadism from reaching us, but paradoxically jihadism is activated by our wars,' Gresh tells MEE.

Alain Gresh, French journalist specialised in the Middle East and deputy director of Le Monde diplomatique, reflects on the attacks which have shaken France and puts the country's foreign policy into perspective. - See more at: http://www.middleeasteye.net/in-depth/features/paris-attacks-analysis-alain-gresh-394831651#sthash.5XT1jjOa.dpuf



Alain Gresh, French journalist specialised in the Middle East and deputy director of Le Monde diplomatique, reflects on the attacks which have shaken France and puts the country's foreign policy into perspective.




Middle East Eye (MEE): Many participants in the Paris demonstration mentioned that the atmosphere in France has been tense for years. How do you explain this impression?

Alain Gresh: There is indeed a harmful atmosphere in France, and this is not new. There is, first, an Islamophobia which has gained in intensity for several years now, and which clearly targets the Muslim communities. I think this is some form of racism, all the more worrying that it is echoed by political forces and the media. We can even qualify it as state racism, even if, of course, it is not declared as such. For the French Jewish community, it is a bit different: there is no anti-Semitism in the political, institutional, meaning of the term. No political force, even the National Front, carries an anti-Semitic discourse as it was the case in the 1930s. All the opinion polls show a clear drop of anti-Semitism in France, below 10 percent, whereas in the aftermath of the Second World War, anti-Semitism was still mainstream. That said, it is true that French Jews are afraid and are the targets of terrorist acts, as illustrated by the attack against the kosher supermarket and that against a Jewish school by Mohamed Merah in March 2012 in Toulouse.

MEE: How can we explain the trajectory of the three terrorists, born and raised in France?

Gresh: You are right to underline that they are French. They went through the schools or the prisons of the Republic and they became the failures of Republic. Those are young men who looked for a way in life within Western societies. Those societies are not only detached from religion but no longer have great causes to offer. The era of great struggles, when you could be a member of the communist party or the far-left and support South American guerrillas, is over. Only a few credible causes have remained on the market of ideals, and the only one which seems to oppose imperialism today is the Islamic State (IS) or al-Qaeda. Besides, the way that those two organisations are depicted, like existential threats to the West, help make them credible. By exaggerating the threat of IS, we increase its attraction. Instead, I think that IS is not an existential threat; of course, we must fight it, fight its roots in the Iraqi and Syrian situations. But we have to be careful with the idea, heard these days, that we are engaged in a Third World War, this time against terrorism, thereby forgetting that the previous world wars opposed states, and not concepts. There is also, everywhere in France, not only in the population of North African origin, a deep detestation of the political and media elites. This is bound to impact on the way that international events are perceived. Last, there is a real mobilisation of these young French with an immigrant background around the question of Palestine. Some can be under the impression that there is a dual language in the West on that subject, which is absolutely exact.

MEE: Does the crystallisation of the French political debate around the notion of laïcité [secularism] contribute to this specific atmosphere?

Gresh: The French notion of laïcité may have poisoned the debates in France, all the more that, in my opinion, this is a wrong interpretation of laïcité. When one examines history, in particular the 1905 law of the Separation of the Churches and State, one realises that this law was quite tolerant. The fact that there were religious processions in the streets, that the state and local authorities funded the upkeep of churches, had never been a problem. It was not a closed notion of laïcité. But for the past 15 years, with the emergence of Islam as a religious force in France, this French concept of laïcité has become much more exclusive, and it is used as a pretext for ostracising French Muslims. It is very significant that the concept of laïcité has been seized upon by the far-right, whereas it had traditionally been a leftist value.

MEE: What political reading can we make of the demonstrations which took place all over France on 11 January?

Gresh: There are two things which must be separated. First, the mobilisation of the population in France has been exceptionally broad, unprecedented in the French history, even if people demonstrated for extremely various raisons. The second point is the way that the French government used this demonstration, both at the domestic and international levels. Externally, the French government was keen on having European leaders attending the event to show that Europe is united, that it serves a purpose at a time when the group faces strong criticism. But there were those surprising invitations extended to some heads of foreign states and governments who constantly violate media freedoms. For instance, the Egyptian Foreign Affairs minister was present whereas in Egypt, in addition to the three Al-Jazeera TV journalists detained for more than a year, dozens of other news workers are jailed.  

MEE: What do you think of the presence of Benjamin Netanyahu?

Gresh: The presence of the Israeli prime minister raised many questions. He was not supposed to come initially but decided otherwise when he heard that Avigdor Lieberman, his foreign affairs minister and also political rival for the elections set to take place in a few weeks, would go to Paris. There was, on behalf of Benjamin Netanyahu, a desire to use these events for domestic reasons and to assert an international presence at a time when Israel is criticised. Regarding media freedoms, it is interesting to note that an article in Haaretz pointed out recently that a newspaper like Charlie Hebdo could not have been issued in Israel, where it is not possible to attack religion in such a way. We must also consider the way that Israel treats Palestinian journalists and media workers, some of whom are jailed by Israel. During the latest attack on Gaza in July and August 2014, many Palestinian journalists were killed.

MEE: What do you think of the position of the head of the Shiite Lebanese movement Hezbollah, Hassan Nasrallah, who condemned these attacks while calling on Muslims to stand up to militants?

Gresh: There is a recurrent message addressed by the Lebanese Hezbollah, but also by Iran and Syria to the West, saying that the West has the wrong enemies and that its true adversaries are the radical Salafi groups. This message means: “We have the same enemy,” therefore there should be an alliance against those groups. This discourse is not new; it began when Hezbollah was criticised for its intervention in Syria. It is obvious that this is due to the fact that IS has an extremely violent anti-Shiite rhetoric, much more than al-Qaeda, which did not express such anti-Shiite diatribes. But it is also an attempt for Hezbollah to get out of its international isolation, in particular on the Syria issue.

MEE: Is it not also a way to contest the religious leadership of the Gulf monarchies over Muslims, knowing that these monarchies are accused by some of covertly funding Islamic terrorism?

Gresh: There can be a discussion about the politics of the Gulf monarchies and the presumption that they fund or help IS. For me, this is not something real; I do not think that it is necessarily true. IS has very clearly indicated that these monarchies were one of their foes, as illustrated by the recent attack against border checkpoints in Saudi Arabia. It is true that part of the religious rhetoric of these countries may have fed those groups. It is also true that these countries, and their civil society and religious networks, were mobilised at the beginning of the Syrian revolution. Kuwait, for instance, played an important role in supporting Islamist groups which became progressively radicalised.

MEE: The protocol for the official march saw the Malian President Ibrahim Boubacar Keïta placed at the right side of Hollande. Was there an implicit message?

Gresh: The attack against Charlie Hebdo has several dimensions. It is, of course, an attack against France’s foreign policy and its successive interventions in the Sahel, Mali, the Central African Republic, Libya, and Iraq. It is in Africa that France weighs more heavily, not in Iraq. Having the Malian president attending the event conveyed the message that the fight against terrorism is the same everywhere, that it is an international struggle. To some extent, it is like adopting the rhetoric of the war against terrorism as a global war in which we would be facing an organised enemy. It is, in my opinion, a very dangerous rhetoric, if only because this war has lasted for quite a long time now with very limited results. There is even more terrorism, even more chaos in Africa and the Middle East. [Inviting the Malian president] is therefore a way to reaffirm this policy, as questionable as it may be. We started intervening in Iraq four months ago and, on Tuesday, the French Parliament voted overwhelmingly in favour of prolonging this operation. (Editor’s note: around 800 French troops are involved in the so-called Chammal operation “to provide the Iraqi forces with air force support in their fight against IS.” According to the French Constitution, the Parliament must give its green light for the continuation of this intervention). There is no doubt that these attacks will be used to foster a broader support from the Parliament for a military policy which is already interventionist.

MEE: Will these attacks contribute to addressing essential political questions?

Gresh: There will inevitably be, in the coming days, fundamental debates in French society: the question of anti-terrorism laws which may be voted, that of foreign interventions, the relation with Muslim citizens – all that will have to be debated in France. Beyond the Libyan issue, we can already measure the negative consequences of the French foreign interventions in the region. But we have to be careful because these attacks can also lead to some backward redefinition of Western politics. After the Arab Spring, we witnessed some modest reversals of France’s position, which stated implicitly: “We were wrong, we supported dictatorships which were regarded back then as shields against Islamism, but we won’t do it again.” However, there is a risk of going back to those same politics of support to a dictatorial regime in Egypt, to authoritarian ones in Algeria or in Morocco. The attacks can give those regimes the opportunity to present themselves as protections against Islamist movements. We really need to have a substantial debate and ask how we can support the transformation of these countries without destroying or destabilising them, as we have done so far. Eventually, we must repeat it: terrorism and the most radical groups were ultimately created by those authoritarian regimes.

MEE: Can these attacks change the direction of France’s foreign policy in the Middle East? Former Prime Minister François Fillon recently declared that Iran and Russia should play a role “in the solution in Syria".

Gresh: International and regional relations are constantly shifting and I want to be cautious. That said, it is clear today that Syria is a deadlock because none of the forces fighting one another, neither the regime nor the opposition, can totally impose its will. This opposition to the regime, dominated by the most radical groups, is pushing Western countries to review their policy in the Syrian crisis. It is, in fact, less the case for France than for the United States. Different approaches are thus put forward. For a long time, France has been more open than the United States about the integration of Russia in the regional game. On Iran, on the other hand, France is more reluctant because it has always held a very tough stance on the issue of the Iranian nuclear program. But if the United States and Iran reach an agreement on this nuclear program, the alliances in play in the region will naturally shift.

MEE: Is France becoming aware of the consequences of its foreign interventions?

Gresh: What is certain is that in France there has been a real refusal to see the possible consequences of our foreign policy. It is clear that if France was targeted, it is also partly because of this interventionism, which is much more developed than in Germany or in Great Britain for instance. The United Kingdom is present in Iraq, but not in Africa. For that matter, France has constantly blamed these countries for not joining its intervention in Mali and in Central Africa, and believes that it should not carry alone the military effort in what it calls the fight against terrorism. Ironically, as it was the case for Afghanistan, we claim that we fight wars in order to prevent jihadism from reaching us, but paradoxically jihadism is activated by our wars.


AIDA




É dispensável qualquer palavra de enaltecimento da ópera Aida, de Verdi, tal a projecção que atingiu no mundo lírico como uma das maiores criações musicais não só do famoso compositor italiano como de qualquer outro autor de qualquer outra época.

Este favor dos melómanos deve-se não apenas à excelência da partitura mas também ao argumento, numa altura em que o fascínio do Orientalismo, na sequência da expedição de Bonaparte ao Egipto e dos trabalhos pioneiros de Champollion sobre os hieróglifos,  começava a seduzir os espíritos mais cultos e mais sedentos de exotismo.


Foi o Khediva do Egipto, Ismaïl Pasha, homem desejoso de modernizar o seu país e largamente influenciado pelo Ocidente, que encomendou a Verdi uma ópera para inaugurar o Teatro de Ópera do Cairo que mandara construir. Diga-se, de passagem, que este teatro, de madeira,  foi completamente destruído por um incêndio em 28 de Outubro de 1971, existindo hoje no local um edifício de escritórios, armazéns e garagens, naquela que ainda se chama Midan Ubira (Praça da Ópera). O novo edifício da Ópera foi erguido na lha de Gezira, entre dois braços do Nilo, no centro do Cairo, e inaugurado pelo presidente Hosni Mubarak em 1988.


 Devido a problemas com o envio dos cenários e guarda-roupa, em resultado do cerco de Paris (1870-1871) durante a Guerra Franco-Prussiana, o Teatro do Khediva acabou por ser inaugurado com outra ópera de Verdi, Rigoletto, em  1 de Novembro de 1869, tendo Aida sido finalmente estreada em 24 de Dezembro de 1871.

O argumento de Aida, que todos conhecem, foi elaborado pelo egiptólogo francês Auguste Mariette (sepultado nos jardins do Museu Egípcio do Cairo), ainda que haja quem sustente que a autoria se deve a Temistocle Solera. O libretto é da pena de Antonio Ghislanzoni. Também ainda hoje se mantém a questão de saber se Aida foi ou não encomendada para a inauguração do Canal de Suez, que ocorreu oficialmente em 17 de Novembro de 1869.

Tudo isto a propósito de uma curiosa produção de Aida, na Ópera de Zurich, em 2006. Já é habitual a Ópera desta cidade suíça brindar-nos com encenações extravagantes e muito pouco convencionais, algumas de um franco mau gosto. Mas esta mania de inovar a todo o custo, só para parecer diferente, é um sinal dos tempos, e há sempre quem esteja disposto a pagar em nome de uma suposta modernidade.

A Aida de Zurich tem a particularidade de decorrer não no Egipto faraónico, como é intrínseco à própria história, ma no Egipto dos Khedivas, isto é, no século XIX. Para emprestar maior realismo à encenação, nem sequer faltam, nas vestimentas rituais dos sacerdotes, os adequados aventais maçónicos, muito em uso no Egipto daquela época. Eu mesmo tive ocasião de fotografar (mas não sei de  momento onde tenho as fotos), algumas vestes e insígnias maçónicas da família real egípcia, no Palácio de Manial, na ilha de Rawdha, a sul do Cairo, que foi residência do príncipe Muhammad Ali Tawfiq, tio do rei Faruq.



Esta produção, que apesar do desfasamento temporal não é escandalosa, reúne um leque de muito bons cantores: Nina Stemme (Aida), Salvatore Licitra (Radames), Luciana d'Intino (Amneris), Juan Pons (Amonasro) e Matti Salminen (Ramfis). A encenação é de Nicolas Joel e o maestro Adam Fischer dirigiu a Orquestra da Ópera de Zurich.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

MANUEL ATAÍDE FERREIRA




Morreu ontem Manuel Cabeçadas Ataíde Ferreira, que tive o prazer de conhecer e com ele conviver na SEDES. Não o via há largos anos mas recordo ainda as suas intervenções, o seu bom senso e o seu bom gosto. Deixará certamente saudades e estranhar-se-á a sua falta.

Soube casualmente da sua morte porque não notei qualquer referência na imprensa ao seu desaparecimento. Encontro agora uma notícia online da deco-protest, que transcrevo:


Até sempre, Dr. Manuel Ataíde Ferreira

19 Janeiro 2015
Até sempre, Dr. Manuel Ataíde Ferreira Faleceu ontem, dia 18 de janeiro, o Dr. Manuel Cabeçadas Ataíde Ferreira, um dos históricos presidentes da DECO.
Advogado, fundador da DECO, foi Presidente da respetiva Direção entre 1975 e 1999, foi igualmente sócio fundador da SEDES-Associação para o Desenvolvimento Sócio Económico e membro do CESE (Comité Económico e Social Europeu) entre 1986 e 2000, em representação dos consumidores. Manuel Ataíde Ferreira foi um Homem de valores e princípios, lutador pela Liberdade e pela Justiça tendo sido agraciado em 2004, pelo então Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, com o Grau de Comendador da Ordem da Liberdade que decidiu entregar à guarda da DECO num gesto de grande desprendimento e nobreza, como foi de resto a forma como sempre encarou a vida.
Enquanto Presidente da DECO, Manuel Ataíde Ferreira soube ter a visão e a capacidade para projetar e transformar a DECO na grande organização de Defesa dos Consumidores que é hoje. A Defesa do Consumidor e a DECO perdem uma referência e o seu nome maior. Em nome de todos os seus colaboradores e Associados, a Direção da DECO apresenta à família os seus mais sentidos pêsames.
A Direção da DECO.

O DESERTO DOS VALORES




A propósito dos recentes acontecimentos em França, Régis Debray concedeu ao nº 2619 (14 a 21 de Janeiro 2015), de "L'Obs" a entrevista de que se reproduzem excertos:

Régis Debray : "le désert des valeurs fait sortir les couteaux"

Très tôt Régis Debray aura alerté contre l’oubli des valeurs républicaines. Alors qu’il publie "Un candide", il s’exprime sur l’unanimisme de l’après attentat, l’état préoccupant de notre pays ou encore l’attrait inédit du djihadisme.

L'Obs La mobilisation nationale consécutive aux assassinats perpétrés à «Charlie Hebdo» et à la porte de Vincennes pourrait-elle montrer plus de ressources républicaines et de capacités de sursaut qu’on n’en attribuait ces derniers temps à la France ?

Régis Debray Oui, à l’heure où nous parlons, c’est un formidable encouragement. «Quelque chose meurt en nous quand un ami s’en va.» Non. Quand des amis comme ceux-là s’en vont, morts au champ d’honneur, quelque chose de profond se réveille en nous tous. Challenge and response, défi et renouveau. Cela vaut pour les civilisations, comme pour les pays et les individus. Et cela vaut bien de passer sur la récupération bizarre, voire obscène, de joyeux francs-tireurs par tous leurs ennemis réunis, au dedans comme au dehors. Paris vaut bien une comédie unanimiste. La République vaut bien un quiproquo. On devrait pouvoir repartir. Imaginez des politiques à la hauteur ! On peut rêver.

Depuis plus de vingt ans, on le voit à nouveau dans ce livre «Un candide à sa fenêtre», votre réflexion porte sur le délitement de l’idée de France, sur l’espèce de déliquescence qui affecte le grand récit national, et l’antipathie sourde que ce dernier inspire même à beaucoup d’entre nous. Chez vous pourtant, cela ne débouche jamais, contrairement à tant d’autres aujourd’hui en France, sur un déclinisme sinistre. Qu’est-ce qui vous permet de garder espoir en ce pays ?

D’abord, le noble instinct de conservation. Et puis la langue, et l’humour – parce qu’au fond, le français, ma vraie patrie, c’est beaucoup plus grand que l’Hexagone. Il y a là une vitalité, une veine d’impertinence, une résilience qui ne renonce pas, en France, en Algérie, au Québec, au Liban. On est bien forcé pourtant d’observer chez nous un appauvrissement du vocabulaire, un tarissement du poétique, un «casse-toi pauv con» généralisé.

Mais il y a de la ressource. Quand vous lisez Kamel Daoud par exemple [«Meursault, contre-enquête», NDLR], vous vous dites : ah, il y a encore une mise des mots sous tension, une intensité d’écriture. Bien sûr, minoritaire. Mais, ça l’a toujours été. Malraux disait que la secte littéraire, c’était 10.000 personnes. Au-delà, c’est un malentendu. Ou un opportunisme.

Espoir d’ordre culturel, donc. D’ordre politique ? Je crains que de ce côté, on ne soit à la fin d’un cycle, celui qui est né aux alentours de 1789 et qui liait la lutte pour le pouvoir à une confrontation d’idées. La première a sans doute 50.000 ans, en tout cas 3.000 ans attestés. C’est une lutte d’intérêts, de factions, de clans. Mais la Révolution a inventé autre chose en France qui arrimait l’éternelle bagarre pour les places à une idée de l’homme et de l’avenir, à un universel. On a souvent l’impression qu’on en est revenu là-dessus au statu quo ante, «ôte-toi de là que je m’y mette».
[...]

L’agitation autour de l’islam ne cesse de monter en France. Outre les événements tragiques survenus à «Charlie Hebdo», le nouveau roman de Michel Houellebecq traite précisément de ces questions sur un mode polémique. Est-ce que vous pouvez comprendre le fait que certains voient dans cette religion un facteur de déstabilisation majeur pour les pays européens ? Ou est-ce qu’il y a là pour vous une panique excessive qui finit du reste par devenir autoréalisatrice ?

Evitons surtout la paranoïa. Il y a un problème sérieux lié non à l’immigration en soi, mais au fait que beaucoup d’enfants d’immigrés ne se sentent plus français et n’ont pas envie de le devenir. Aux Etats-Unis, les arrivants arborent le drapeau américain. Pourquoi ? Parce que les politiques y ont un petit drapeau étoilé sur le revers du veston, parce que, lorsque vous arrivez dans un aéroport, vous avez un stars and stripes de 10 mètres sur 20.

Nous, nous avons une classe dirigeante qui a honte de sa langue et de son lieu de naissance: c’est ringard, franchouillard, moisi. Comment voulez-vous que les immigrés se sentent un attrait pour ce qui rebute nos gens du bon ton ?

Le vrai problème, ce n’est pas la présence musulmane, du reste aussi éclatée et diverse que le monde chrétien de souche. C’est notre incapacité à nous faire aimer des nouveaux venus. C’est plus un problème franco-français qu’un problème franco-musulman. Pourquoi rien à la place du service militaire ? Pourquoi n’a-t on pas ritualisé la naturalisation comme le font les Etats-Unis, pourquoi «la Marseillaise» à l’école est-elle jugée pétainiste ? Leur religion biblico-patriotique rend les Américains confiants dans leur destin, parfois même un peu trop. Nous avions un équivalent dans le culte laïque de la patrie ou du savoir ou du progrès. Les fondements symboliques sont aux abonnés absents.

C’est la fierté qu’il faut désormais récupérer. Pourquoi est-ce que nous n’arrivons plus en France à mobiliser notre passé prestigieux et nos mythologies autrement que sur un mode muséal ? Les pays comme la Chine ou l’Inde entretiennent leur mytho-histoire. Chez nous, le mythe, Barthes aidant, passe pour un affreux mensonge. La Maison de l’histoire de France était mal partie, avec Sarkozy en initiateur, on avait envie de fuir. Mais cette affaire était révélatrice, comme je le dis dans mon «Candide».

Qu’est-ce qu’une nation ? C’est une fiction qu’on accepte parce qu’elle nous augmente. L’histoire s’en allant, ne nous restent que des mémoires, parcellaires et antagonistes. On est passé de la molécule aux atomes. Ça se paie. [...]
Propos recueillis par Aude Lancelin

 Lamento a impossibilidade de transcrever integralmente a entrevista.

domingo, 18 de janeiro de 2015

AL-QAIDA E DAISH: A COMPETIÇÃO




Entrevista do prof. Henry Laurens no "Figaro":

FIGAROVOX INTERVIEW -. L'auteur, professeur au Collège de France, titulaire de la chaire d'histoire contemporaine du monde arabe, décrypte les forces et les faiblesses des mouvements terroristes ainsi que les relations entre l'islam et le monde occidental.

Henry Laurens est également professeur d'histoire et diplômé d'arabe littéraire à l'Institut national des langues et civilisations orientales ( Inalco), membre du comité éditorial de la revue Maghreb-Machrek.

LE FIGARO. - Al-Qaida au Yémen vient de revendiquer l'attentat contre Charlie Hebdo lancé par les frères Kouachi. Amedy Coulibaly, l'auteur de la prise d'otages de la porte de Vincennes, a, pour sa part, proclamé sa loyauté au chef de Daech. Quelle est la différence entre les deux mouvements?

Henry LAURENS. - Daech est né d'al-Qaida. Le mouvement s'inspirede son mode de franchise qui reposesur l'allégeance au groupe de diverses entités géographiquement séparées. Ainsi à chaque fois que le mouvement connaît un succès, il engrange des ralliements.La comparaison s'arrête toutefois là. À l'époque d'al-Qaida, le recrutementse faisait sérieusement, avec une méthode et un programme à respecter, sans parler d'un commandement centralisé . Le fonctionnement de Daech paraît plus brouillon autant qu'on puisse le savoir.

Les stratégies appliquées par al-Qaida et Daech diffèrent également. Ben Laden pouvait être considéré comme le petit-fils du révolutionnaire argentin Che Guevara. Sa méthode consistait à multiplierles foyers d'insurrection afin d'amener l'ennemi à se disperser, comme il l'a fait en Tchétchénie, au Kosovo, puis en Irak, en Arabie saoudite et au Maghreb. Daech fait le contraire en se concentrant sur un territoire, ce qui le rend plus vulnérable car plus facile à liquider. Mais cette fragilité s'arrête là. Le commandement décentraliséde l'organisation rend son fonctionnement plus souple. Il semble quesur le terrain ses élémentsont une très large liberté d'action.

Le mode opérationnel des terroristes est apparu très professionnel…

Ces événements montrent qu'on a bien affaire à une filière djihadiste entraînée. Comme l'indique mon ami Farhad Khosrokhavar, il semble que les frères Kouachi se soient radicalisés depuis plusieurs années. Ce qui est sûr, c'est qu'il est plus facile de débusquer des terroristes qui appartiennent à un réseau. Selon certains spécialistes, quand une forcene dépasse pas quatre personnes, elle passe sous le radar de la surveillance policière. Il est difficile de se prémunir contre les loups solitaires ou les malades mentaux. Fruit sans doute de la fermeture des asiles, les prisons comptent un gros pourcentage de ces malades. Tous ces gens sont sensibles au buzz médiatique qu'engendrent les actions meurtrières. Merah s'autofilmait quand il tuait. Le sentiment de stigmatisation d'une communauté peut amener aussi certains de ses éléments à se radicaliser.

Boko Haram, talibans, Daech sont-ils voués à se regrouper en un mouvement encore plus dangereux qu'al-Qaida?

Je ne crois pas en une Internationale islamiste, car il existe trop de divisions et de luttes au sein des différents mouvements. Aujourd'hui, il est clair qu'al-Qaida et Daech sont en compétition, d'où d'ailleurs des surenchères dans les actions. Mais une possible coordination entre ces différents mouvements ne peut être écartée. Par ailleurs, les cadres de ces mouvements sont en renouvellement constant, du fait de l'élimination régulière des dirigeants par des tirs de drones américains. Le chef de Daech, al-Baghdadi, qui était il y a dix ans une personnalité de second plan, doit sa promotion à ce processus.

Comment l'Europe peut-elle se protéger contre une éventuelle ramification de mouvements terroristessur son territoire?

Si beaucoup de djihadistes partis combattre en Syrie semblent vouloir rentrer au pays, peu y parviennent. À ma connaissance, Daech n'a pas vraiment de stratégie en Europe, car il est trop occupé à se battre sur les territoiresqu'il a investis. Ce n'est pas le cas d'al-Qaida, qui peut s'appuyer sur ses différentes franchises (Maghreb, péninsule Arabique…). La protection est avant tout de nature policière. Comme toujours, il y a un arbitrage douloureux entre les exigences de la sécuritéet la défense nécessaire des libertés.

Que pensez-vous de la notion d'islamophobie?

Je dis toujours que le plus grand responsable de l'islamophobie au monde est Ben Laden. Je pense que la première cause de l'islamophobie vient de certains musulmans qui incitent à la haine, ce qui diffère d'ailleurs de l'antisémitisme classique, qui n'était pas une réaction à un comportement ou à une action. Je préfère ne pas utiliser le terme de racisme, qui fait référence à la biologie, alors que, dans le même temps, on affirme que les races n'existent pas. Je préfère le terme anglo-saxon, «hate crime», qui signifie «crime de haine». Combattre l'incitation à la haine me paraît plus approprié que de dénoncer à tout bout de champ le racisme.

Comment expliquer la tension croissante des relations entre l'islam et le monde occidental?

Deux points essentiels sont à avoir à l'esprit. Le monde musulman, au moins dans sa dimension continentale(de la Méditerranée au Pakistan) ,reste un espace géopolitique où s'affrontent les puissances régionales et internationales. On est donc là dans une continuation de l'époque coloniale. Il en résulte que, pour les populations, le colonialisme et l'impérialisme restent des réalités vivantes. Ce qui domine est une culture du ressentiment aussi bien par rapport à l'histoire des deux derniers siècles que pour la réalité contemporaine. En ce qui concerne le domaine proprement religieux, ce sont les questions «sociétales» qui importent. C'est tout le vaste domaine des relations de genre et de sexualité. Aujourd'hui, le champ de bataille porte essentiellement surle corps de la femme. Il peut se résumer de façon lapidaire par le rapport entre voile et dévoilement. Il existe en effet un paradoxe à porter un voile, qui signifie ne pas vouloir être un objet sexuel, dans une société très sexualisée comme la nôtre, les publicités en faisant la démonstration quotidienne. Aussi, le fait de porter le voile attire les regards et est, donc, plus violent sexuellement qu'un nombril à l'air. Cette conduite est finalement contraire aux valeurs islamiques prétendument défendues.

Une jeune femme qui porte un foulard a tendance à dire non seulement «Dieu me l'ordonne», mais «c'est aussi mon droit». On voit là qu'il y a là deux légitimités qui sont en fait contradictoires, celle d'un ordre divin et celle d'une liberté individuelle qui pourrait être aussi bien invoquée pour le droit au piercing.


Já em Setembro aqui havíamos escrito sobre a matéria.


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

BERNARD MARIS



Bernard Maris

No meio da confusão resultante do ataque à revista "Charlie Hebdo" e atendendo ao destaque concedido aos cartunistas mortos, só agora me dei conta que entre as vítimas figurava o doutor Bernard Maris (68 anos), economista, escritor e jornalista, professor da Universidade de Toulouse e da Universidade de Paris-VIII, e também colaborador daquela revista.

Autor de numerosas obras, o seu último livro Houellebecq économiste, publicado em Setembro passado, foi objecto de um post em que publiquei a entrevista que concedeu ao "Nouvel Observateur" a propósito desse ensaio e onde analisa a carreira do polémico escritor francês (de quem era amigo) e, fazendo-se intérprete das suas (dele) ideias, afirmava que "o capitalismo não durará eternamente".

Considerado um altermundialista, foi membro do conselho científico de ATTAC e fazia parte, por nomeação do presidente do Senado, do Conselho Geral do Banco de França.

Em 15 de Dezembro de 2010, escrevera no "Charlie Hebdo" : « Moi-même, je pense qu'il y aura une nouvelle crise financière, que la zone euro éclatera, que l'Europe se balkanisera — elle est déjà balkanisée. Mais un certain nombre d'événements surgis depuis dix ans n'étaient pas prévisibles : la méga-crise financière, qui pouvait vraiment la prévoir ? Les Twin Towers? ».

Por ironia do destino, foi morto no próprio dia em que foi publicado Soumission, o último livro de Michel Houellebecq.

Não notei na imprensa portuguesa uma referência especial à morte de Bernard Maris, e mesmo em França as notícias foram discretas. Mas talvez tenha sido falta de atenção da minha parte.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

CRISTIANO RONALDO (A TERCEIRA BOLA DE OURO)




Cristiano Ronaldo ganhou hoje a terceira Bola de Ouro. Já sabíamos que tinha duas bolas. Mas o feito de obter uma terceira é digno de ser devidamente assinalado.

Fazemos votos para que CR7 continue em boa forma física, acumulando triunfos, para ele, para o seu clube e para Portugal.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

HOUELLEBECQ E O ISLÃO




O escritor francês Michel Houellebecq (n. 1956), também cantor, realizador e actor, notabilizou-se em França, e no mundo, pela sua prosa melancólica e pérfida, caracterizada por um pessimismo antropológico e por um antiprogressismo conscientemente assumido. É hoje um dos autores contemporâneos de língua francesa mais lido e mais traduzido, inclusive em português, encontrando-se editados na nossa língua, pelo menos, os seus livros As Partículas Elementares e Plataforma. As suas ideias identificam-no especialmente com as teses da extrema-direita francesa e tornou-se célebre a sua afirmação, após a publicação de Plateforme, a uma entrevista da revista "Lire": «La religion la plus con, c'est quand même l'islam. Quand on lit le Coran, on est effondré… effondré!».

A sua xenofobia, as suas posições anti-islão, as suas obsessões sexuais (o turismo sexual que praticou nas praias tailandesas constituiu uma narrativa de sucesso), as suas convicções sobre a decadência do Ocidente, transformaram-no num autor de culto. Em 2010, após o seu nome ter sido anteriormente várias vezes evocado, recebeu finalmente o Prémio Goncourt pelo livro La Carte et le Territoire.

Pode considerar-se que Houellebecq é um provocador, e é, mas não pode ignorar-se, ou negar-se, que é um grande escritor, filosoficamente discípulo de Schopenhauer e literariamente na linha do realismo francês de Flaubert, Balzac e Stendhal. Muita gente, por razões várias, o compara a Céline.

Acontece que o ultimo livro de Michel Houellebecq (Soumission), que é a tradução francesa de Islam, em árabe, tinha previsto seu lançamento, que a Flammarion efectuou, para o passado dia 7 deste mês, o mesmo em que teve lugar o ataque à sede da revista satírica "Charlie Hebdo". Longe de mim pensar que tal acto fosse uma manobra publicitária à edição do livro, ainda não chegámos a tal extremo, mas não pode deixar de assinalar-se a coincidência, já que o assunto da obra é precisamente a ascensão do islão ao poder em França.

Num resumo muito simplificado, o tema é o seguinte: em 2022, após um segundo mandato de François Hollande (reeleição que a mim se afigura improvável, mas não é a opinião de Houellebecq), apresentam-se ao escrutínio para a presidência a  conhecida Marine Le Pen, e Mohammed Ben Abbes, politécnico e enarca, filho de um merceeiro tunisino emigrado em França, e presidente da "Fraternidade Muçulmana". Para evitar a eleição da líder da Frente Nacional, o PS, a UMP e a UDI apoiam o candidato muçulmano que nomeia François Bayrou como primeiro-ministro. Entrertanto registam-se em França mutações profundas. As mulheres deixam os empregos e regressam ao lar para se ocuparenm dos maridos e dos filhos, o que provoca uma drástica diminuição do desemprego, os problemas sexuais são resolvidos pela adopção da poligamia, a Arábia Saudita compra a Sorbonne e transforma-a numa universidade islâmica, os professores que se afastaram, convertem-se ao islão e são readmitidos com o triplo da sua remuneração anterior, e por aí fora.

Devo dizer que  os livros de Houellebecq que tive oportunidade de ler (não todos) me provocaram quase sempre uma profunda irritação, o que não é propriamente um demérito para o escritor. Pior fora que eu permanecesse indiferente. Mas importa acrescentar que essa irritação adveio de circunstâncias distintas. Uma, a de que muitas partes da sua obra são verdadeiramente provocatórias; outra, a de que Houellebecq permite-se ignorar o "politicamente correcto",  com o que até concordo, mas vai além disso: aniquila muitas das convicções que havíamos por adquiridas, desconstrói o nosso universo mental e confronta-nos com as  nossas próprias dúvidas acerca da bondade de coisas que, no fundo de nós, há muito vínhamos pondo em causa. É essa evidência de uma realidade que nos recusamos a admitir que suscita em  nós uma repulsa, mas também uma adesão, às teses do escritor.

Um dos pontos nevrálgicos da obra é a questão da religião e do ateísmo. Houellebecq preconiza um regresso á religião e sustenta que fracassada a "religião positiva"  de Auguste Comte uma sociedade não pode subsistir sem um regresso ao religioso. A propósito, recorde-se a frase, atribuída a André Malraux: «Le XXIe siècle sera religieux ou ne sera pas». 

 Para melhor elucidação do leitor, recomenda-se a consulta do nº 2618, de ontem, do L'Obs, que inclui precisamente um dossier sobre Houellebecq e o seu livro Soumission. Além de um texto introdutório, pode ler-se a estimulante entrevista do escritor e dois depoimentos, um do insigne catedrático e arabista Gilles Kepel e outro do famoso psicanalista Fethi Benslama.

Os mais recentes acontecimentos em França têm tudo a ver com esta obra.