quarta-feira, 22 de maio de 2019

DO "QUEEN BOAT" À QUEDA DE MUBARAK



Uma explicação. O "Queen Boat" é um navio restaurante-bar-discoteca ancorado no rio Nilo ao lado da rua Mohammed Abd El-Wahab, no Cairo, sensivelmente em frente do edifício da residência do embaixador de Portugal e não distante do Hotel Marriott. Cheguei a entrar lá uma vez, depois de um jantar na residência, mas estava quase vazio e por isso dei meia volta e saí. Isto ainda antes dos acontecimentos a seguir descritos.

Na dia 11 de Maio de 2001, o estabelecimento foi objecto de uma rusga por parte da polícia, com o pretexto de que às quintas-feiras era o local de encontro de homossexuais, tendo sido detidos mais de cinquenta homens. Aliás, nos dias anteriores já tinham sido presos diversos indivíduos, sob o mesmo pretexto, sendo estas acções integradas numa campanha de "purificação" do Egipto, levada a cabo pelo governo do presidente Mubarak. Ao mesmo tempo, o raïs, cuja política era progressivamente contestada,  mostrava aos integristas islâmicos a sua disposição de proteger os "bons costumes" e procurava demonstrar ao mundo, esforço inútil, que a homossexualidade era rara no Egipto.

"Queen Boat"

Os estrangeiros detidos, mesmo os árabes não egípcios, foram prontamente libertados, mas a maioria dos autóctones ficou meses na cadeia sem julgamento e foi objecto de processos vergonhosos, em que muitos dos acusados foram condenados a vários anos de prisão. As incriminações não se limitaram à prática de actos homossexuais mas também à de incitação ao deboche, atentado à religião, prática de actos satânicos, invocação do diabo, magia negra, etc. Esta atitude discricionária e persecutória do governo do Cairo foi largamente denunciada pela imprensa internacional e objecto de protesto de diversos países e de organizações dos direitos humanos. Os detidos, durante a permanência na cadeia, foram objecto das maiores sevícias, tanto físicas como morais, perderam a sua honorabilidade pública, ficaram com os laços familiares destruídos, muitos tiveram de exilar-se no estrangeiro e alguns suicidaram-se.

Sobre este caso exemplar foram produzidos alguns filmes, como Dangerous Living: Coming Out in Developing World, de Janeane Garofalo, All My Life (Toul Omry), de Maher Sabry e A Jihad for Love, de Parvez Sharma.

A campanha anti-homossexual de Mubarak - uma ideia tonta num país em que a maioria dos homens é geralmente bissexual - teve o efeito contrário ao pretendido. Se contou com a aprovação dos meios mais conservadores, especialmente na província, causou uma impressão negativa nos meios urbanos, e especialmente entre a juventude, continuando a degradar a imagem do presidente, que acabaria por ser obrigado a renunciar ao cargo em 2011, na efervescência das "primaveras árabes", não precisamente por causa deste caso, mas também porque ele contribuiu para o acentuar do mal estar social.

Mohammed Abdelnabi

Vem isto a propósito da recente publicação em língua francesa, com o título La Chambre de l'araignée (2019), do livro editado em árabe em 2016 Fî ghurfat al-'ankabût, do escritor egípcio Mohammed Abdelnabi (n. 1977), uma narrativa construída a partir do caso "Queen Boat". O romancista, baseado em diversos testemunhos, concebe a história de um homossexual egípcio, Hani Mahfouz, desde a primeira infância até ao momento em que é preso por ocasião do caso "Queen Boat", e suas consequências. São descritas, com o suficiente realismo, sem entrar em detalhes supérfluos, a descoberta feita pelo rapaz da respectiva orientação sexual, as suas conquistas amorosas, a vida familiar e profissional, a sua paixão por um parente, Abdelaziz, o seu casamento frustrado, o nascimento de uma filha, os maus tratos infligidos na prisão (ocasião para descrever o inumano sistema prisional egípcio), a quase unânime rejeição social (mais hipócrita do que genuína) a movimentada cena gay do Cairo. A referência à aranha é uma alusão a uma aranha que o acompanhava na sua solidão no seu quarto de hotel, depois da saída do cárcere.

Não são muitas as obras de escritores árabes sobre a homossexualidade, mas este livro aborda a vida do protagonista de forma magistral. Dir-se-ia que o próprio autor viveu todas as experiências que relata. A autenticidade das situações está aliada a uma profunda sensibilidade e a uma qualidade narrativa própria dos grandes romances. Deve registar-se uma palavra de apreço ao tradutor, Gilles Gauthier, pois a recriação em francês do original árabe é de uma fluidez impressionante.

A leitura de La Chambre de l'araignée permite-nos também, especialmente para os conhecedores do Cairo, a deambulação por muitos dos lugares evocados e a incursão na vida artística egípcia e ainda um conhecimento detalhado da corrupção e das práticas utilizadas pela polícia nas prisões do regime.

Por todos estes motivos e pela beleza da escrita, é um livro cuja leitura se recomenda vivamente.

 

domingo, 19 de maio de 2019

A MORTE DE TCHAIKOVSKY




A recente audição da 6ª Sinfonia de Tchaikovsky, no Centro Cultural de Belém, suscitou-me o desejo de reler o livro Tribunal d'honneur (1997), do escritor francês Dominique Fernandez (n. 1929). Como é hoje do conhecimento geral, e já o era nas altas esferas da Rússia de então, Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893) era homossexual, e a sua morte inesperada, ocorrida em circunstâncias nunca verdadeiramente esclarecidas, teve lugar precisamente nove dias depois dele ter dirigido, em São Petersburgo, a estreia da sua 6ª, e última, sinfonia.

No seu livro, Dominique Fernandez, membro da Academia Francesa, autor de vasta e notável obra, baseando-se em factos históricos entrelaçados numa poderosa criação ficcional, imaginou a constituição de um tribunal de honra, constituído por antigos condiscípulos do compositor na Escola de Direito, com a missão de o julgar pela sua conduta considerada moralmente condenável. Ao longo de 500 páginas, muitas das quais não têm a ver com o tema mas permitem ao autor exibir a sua erudição sobre São Petersburgo (Fernandez é um amante da cidade), sobre a história da Rússia, sobre a arte, a literatura e a música em geral, é-nos apresentada uma profusão de acontecimentos e personagens que torna difícil determinar o que é realmente do domínio da história e o que decorre da efabulação do escritor.

A homossexualidade de Tchaikovsky não oferece dúvidas. Há os testemunhos dos seus contemporâneos, incluindo o do seu irmão mais novo Modeste Tchaikovsky, que também era homossexual. Eram-no igualmente o grão-duque Jorge Alexandrovitch, filho segundo do tsar Alexandre III, o grão-duque Constantin Constantinovitch, primo direito do tsar e outras altas figuras da Corte Imperial. Também é verdade que nos últimos tempos da sua vida Tchaikovsky estava loucamente apaixonado por seu sobrinho Vladimir Lvovitch Davydov, dito Bob, um belo rapaz de 20 anos, cadete do regimento Sémianovski, que não compartilhando propriamente dos gostos do tio lhe prodigalizava contudo alguns favores em troca da adequada compensação material. Já me parece difícil de confirmar que Bob fosse intermediário na apresentação ao tio de outros cadetes do seu regimento.


Casa onde morreu Tchaikovsky

A história é-nos contada por Vassili de Sainte-Foy, (alter ego do autor), cidadão russo de ascendência francesa, a trabalhar em Moscovo mas temporariamente em São Petersburgo, por motivos profissionais, no período do caso narrado. O conde Illarion Ivanovitch Vorontsov, ministro da Corte Imperial, considerando que o comportamento de Tchaikovsky começava a provocar escândalo, decide constituir um tribunal, composto por sete dignitários, todos antigos condiscípulos do compositor, com a missão de o julgar. A intenção é promover, de acordo com o Código Penal, a sua condenação e consequente deportação para a Sibéria. Alguns dos escolhidos são também amigos de Sainte-Foy, que entretanto trava conhecimento com Tchaikovsky e pode acompanhar a evolução da tendência de voto dos membros do tribunal. Finalmente, quatro votarão contra o compositor e três a favor. A decisão é-lhe comunicada pessoalmente por Vorontsov, que lhe entrega o documento encerrado num estojo com a obrigação do compositor não o mostrar a quem quer que seja. Mas entretanto o caso Tchaikovsky chegou ao conhecimento do tsar, que ficou enfurecido e declarou a um dos jurados que ele mesmo decidiria da condenação. Isto é, para Alexandre III a deportação não seria suficiente. Para constituir exemplo, e tendo em atenção o comportamento de alguns dos seus próximos, o tsar considerava que Tchaikovsky deveria morrer.

A 20 de Outubro de 1893, Tchaikovsky convida um grupo de amigos para jantar no famoso restaurante Leiner, na Nevskiy Prospekt. A meio da refeição tem sede e vai à cozinha buscar um copo de água, que bebe. De regresso a casa, no nº 13 da Malaya Morskaya, sente-se indisposto. O seu estado de saúde degradar-se-á rapidamente, vindo a morrer no dia 25 de Outubro. Ninguém o poderá visitar, já que o tsar colocou polícias à sua porta com ordem de não deixar qualquer pessoa aproximar-se do compositor. Nem mesmo o seu médico pessoal, já que Alexandre III enviou o seu médico particular para tratar do enfermo. As notícias são confusas. Faz-se crer que Tchaikovsky teria contraído cólera, epidemia que então grassava entre as classes baixas da cidade, mas era certamente improvável que um restaurante como o Leiner não servisse apenas água mineral. As queixas do compositor, depois reveladas por seu irmão Modeste, que tinha vindo visitá-lo a São Petersburgo e vivia no apartamento, não indiciavam sintomas de cólera mas de envenenamento por arsénico. Conteria o veredicto do julgamento, em vez da decisão de deportação para a Sibéria a ordem do tsar para que se suicidasse? Nunca o saberemos, já que o documento desapareceu. O túmulo do compositor encontra-se hoje no Cemitério de Tikhvin, situado ao lado do Mosteiro de Alexandre Nevsky.


Mausoléu de Tchaikovsky, no Cemitério de Tikhvin

É esta a história que - envolvida em inúmeras peripécias e permitindo ao autor dissertar sobre inúmeros assuntos e exprimir as suas convicções pessoais sobre o tema, a questão da homossexualidade e o pecado - nos conta Dominique Fernandez. A verdade, jamais a saberemos, mas a morte do compositor permaneceu até hoje envolta em mistério, ainda que a tese do suicídio seja verosímil, atendendo ao temperamento de Tchaikovsky.

Quando esteve em Lisboa, para a estreia no Teatro Nacional D. Maria II da sua peça A Caçada Real do Sol, em 2000, o famoso dramaturgo inglês Peter Shaffer (1926-2016), célebre autor de Amadeus, confidenciou-me que tinha em projecto uma peça sobre as circunstâncias da morte de Tchaikovsky. Tendo-o contactado para Londres, muitos meses depois, fui informado que esse trabalho continuava numa fase embrionária. Lamentavelmente, Peter Shaffer morreu sem ter concluído a obra.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

SALÓNICA XIX - IGREJA DE PANAGIA TON CHALKEON



A Igreja de Panagia ton Chalkeon (Παναγία τῶν Χαλκέων) é uma igreja bizantina do século XI, situada na Praça Dikastirion, a norte da Via Egnatia, no ponto de intersecção desta com a Avenida Aristóteles. O seu nome significa Virgem dos Caldeireiros, já que o local foi outrora ocupado pelos profissionais desta actividade.






Com a conquista da cidade em 1430 pelos turcos otomanos, a igreja foi convertida em mesquita, com o nome de Kazancilar Camii (Mesquita dos Mercadores Caldeireiros). Serviu como mesquita até ao fim da ocupação otomana em 1912. O edifício foi restaurado em 1934, depois do terramoto de 1932.





Segundo a inscrição sobre a entrada oeste, a sua construção data de 1028. Reza assim a inscrição: «
Este lugar outrora profano é dedicado como eminente igreja à Mãe de Deus por Christophoros, o mais ilustre protospathario real e governador de Lagouvardia, e sua esposa Maria, e seus filhos Nicephorus, Anna e Catacale, no mês de Setembro, indicação XII, no ano de 6537. (O ano 6537 no calendário bizantino é equivalente ao ano 1028 da nossa era).


A planta da igreja é em forma de cruz, com quatro colunas e três abóbadas, uma central e duas sobre o narthex. O edifício é inteiramente construído em tijolo, o que lhe valeu a designação popular de Igreja Vermelha ( Κόκκινη Εκκλησιά). O exterior é animado por uma variedade de arcos e pilastras, que podem dever-se à influência constantinopolitana. A utilização de arcos com setbacks dá ao edifício uma aparência esculpida. Uma cornija de mármore, que corre em redor da igreja, configura secções distintas, superiores e inferiores.


 
 
O interior da igreja está dividido em três partes: o narthex, o naos (a parte central em forma de cruz) e o santuário.



O narthex é coberto por duas abóbadas e tem uma galeria superior que talvez tenha sido usada como sacristia, embora não existe, presentemente escada de acesso.





No naos, quatro colunas de mármore cinza claro formam um quadrado e suportam os arcos das quatro abóbadas de berço que constituem os braços da cruz. No centro do naos está a cúpula. Esta tem 3,8 m de largura e sua altura é de 5,3 m. É octogonal, contendo dezasseis janelas em duas fileiras, uma em cima da outra. Os braços da cruz podem ser vistos claramente do exterior, com telhados sobre as suas grandes abóbadas e frontões triangulares enfatizando as suas extremidades. 


 

Embora os túmulos dos fundadores sejam geralmente colocados no narthex das suas igrejas, em Panagia Chalkeon o túmulo que se acredita ser o do fundador, Christophoros, encontra-se num nicho na parede norte do naos.

O santuário é dividido em três secções: o corpo central do santuário, a prótese e o diaconicon. A secção central do santuário tem uma ampla abside, que é “semicircular do lado de dentro e trilateral do lado de fora.



Os capitéis das colunas do naos  são decorados com relevos de folhas de louro e o lintel da porta real que leva do narthex para o naos é decorado com um desenhos de banda sinuosa, formando quadrados e círculos em relevo. Os círculos contêm rosetas e é perceptível que as cruzes que costumavam estar nos quadrados foram raspadas. 


As paredes da igreja eram originalmente revestidas de pinturas, mas a maioria desapareceu com o passar do tempo. As paredes do narthex estão pintadas com cenas do Juízo Final, com Cristo sentado acima da porta real do naos.



sábado, 11 de maio de 2019

COMO AMAR UM HOMEM AFRICANO




Um dos mais notáveis escritores da Costa do Marfim, Isaïe Biton Koulibaly (n. 1949), publicou em 2006 Comment aimer un homme africain, livro que por acaso me veio parar às mão.

Trata-se de um manual em que se prescrevem algumas regras para as mulheres seduzirem e conservarem os homens africanos, mas que será possível adaptar, mutatis mutandis e com alguma boa vontade, para utilização dos homens.

Esta obra, que tem tanto de curiosa como de inesperada, foi, segundo o autor, inspirada na Arte de amar, de Ovídio, por quem Koulibaly nutre profunda admiração. Algumas das regras sugeridas são apenas exequíveis no contexto das sociedades africanas, mas nem por isso o livro deixa de ser surpreendente. E simultaneamente divertido.

O autor recebeu o Grand Prix Ivoirien des Lettres em 2005 e possui outros galardões literários.


A DITADURA DAS IDENTIDADES


(Clique na imagem para aumentar)

Numa entrevista concedida a "L'Obs" (nº 2843 - 2 a 8/5/2019), o professor Laurent Dubreuil, da Universidade Cornell (Estados Unidos), responde a algumas questões sobre o seu recente livro La Dictature des identités.


Afirma este cientista: «Quando a expressão identity politics apareceu no fim dos anos 1970, numa declaração de um colectivo de lésbicas afro-americanas, o Combahee River Collective, tratava-se de facto da emancipação das opressões sociais ligadas ao género ou à raça. Certamente, estas reivindicações exprimiam-se em nome de uma identidade, "as mulheres negras", por exemplo, mas o enfoque em torno de tais características era um meio, não um fim em si. Na configuração contemporânea, a opressão é vista como fundadora das identidades. A partir de então, a promessa de emancipação desaparece. É uma completa reviravolta.»

Laurent Dubreuil tece oportunas e pertinentes críticas a esta nova forma de ditadura, que alastra perigosamente à Europa, tendo publicado o seu livro em francês por receio das reacções nos Estados Unidos. 

Esta política identitária é perigosíssima e deve merecer a nossa maior repulsa, pois conduz-nos a sermos prisioneiros de uma "tenaz identitária" em lugar de prosseguir uma verdadeira libertação no que respeita à origem, à classe social ou ao género. 

Reproduzimos as duas páginas da entrevista.


sexta-feira, 10 de maio de 2019

OS TEMPOS MUDARAM




Realmente, os tempos mudaram! Num livro recentemente publicado, "Il faut dire que les temps ont changé..." - Chronique (fiévreuse) d'une mutation qui inquiète, Daniel Cohen, director do departamento de economia da École Normale Supérieure e membro fundador da École d'Économie de Paris, faz um diagnóstico lúcido e um prognóstico aterrador.

Do Maio de 1968 à revolução conservadora protagonizada por Reagan e Thatcher, do fim do proletariado à revolução digital, o autor escalpeliza as transformações da sociedade nos últimos cinquenta anos, que só agora começamos a compreender.

Transcrevo da contra-capa: «A histeria do mundo do trabalho, o grande protesto dos povos, o encerramento das novas gerações numa espécie de presente perpétuo são as consequências do colapso de uma civilização: a da sociedade industrial. Uma após outra, as utopias de esquerda e de direita fracassaram face a uma realidade que é daqui em diante possível de designar pelo seu nome: a sociedade digital. Ela transforma-nos numa série de informações que um software pode tratar a partir de qualquer ponto do globo. Um medo imenso percorre a sociedade. O trabalho em cadeia de ontem deixou lugar à ditadura dos algoritmos? As redes sociais são o meio de uma nova formatação dos espíritos? Por um formidável regresso ao passado, as questões do mundo antigo estão em vias de ressurgir no coração do novo. Os tempos mudam, mas vão em boa direcção? Este livro iconoclasta descreve de forma luminosa os acontecimentos cujo sentido por vezes nos escapa, permitindo-nos compreender a desordem de que o populismo é a expressão.»

Transcrevo de uma entrevista do autor a "L'Obs", de 30 de Agosto passado, antes da edição do livro: «La gauche et la droite se sont fourvoyées, chacune à leur manière. La gauche, dans les années 1960, pensait qu'en sortant da la société industrielle, on sortirait du capitalisme. Mitterrand a été élu en proposant de changer la vie. En cela, il était l'héritier da la contestation des sixties. Mas ces utopies ont été balayées par la crise des années 1970. A partir de là, pour la plupart des gens, la question n'était plus de sortir du monde du travail mais d'y rester, de garder le sien. C'est sur cette base que la droite prend le pouvoir dans les années 1980, la France étant comme d'habitude à contre-courant. La droite impose l'idée que seuls le travail et l'effort feront sortir de la crise. Reagan et Thatcher ont prôné une révolution morale tout autant qu'économique. Il s'agissait à les entendre de revenir aux valeurs traditionelles, quelque chose d'un peu puritain, à la Max Weber. Mais cette révolution conservatrice a entraîné ses soutiens dans une illusion aussi naïve que celle des gauchistes vingt ans plus tôt. Le capitalisme de Reagan et Thatcher ne s'est pas ressourcé dans un bain de jouvence moral: il a fait advenir le triomphe de la cupidité. Une nouvelle fois, les classes populaires ont compris qu'elles avaient été flouées.»

[As tragédias vêm habitualmente do mundo anglo-saxónico. Veja-se a invasão do Iraque]

Ainda a entrevista: «Macron est en effet à contretemps de la vague populiste, comme Mitterrand l'avait été de la révolution conservatrice. Ce dernier est parvenu au pouvoir au moment même où la révolution libérale portée par Reagan et Thatcher conquérait le monde. A l'heure où le populisme gagne partout, la France est á nouveau à contresens de l'histoire, Macron est un libéral dans un monde qui est devenu illibéral. D'où sa difficulté à peser sur la scène internationale.»

Os capítulos dedicados aos robots, ao homo digitalis, à geração iPhone e à vida algorítimica são assustadores. O autor retoma alguns dos temas dos últimos livros do escritor israelita Yuval Harari, deixando-nos a esperança de que a completa absorção do homem pela máquina talvez possa evitar-se pela existência do bom-senso, uma coisa humana ainda não ao, previsível, alcance dos engenhos digitais.

O presente livro constitui um precioso contributo para clarificar ideias e permitir que nos apercebamos dos perigos desencadeados pela revolução digital em curso, a que achámos graça e até utilidade pela facilidade das comunicações, pelos progressos na medicina e na ciência em geral, mas que ameaça transformar-se num pesadelo alucinante a que a bioética não parece constituir travão.


terça-feira, 7 de maio de 2019

AS CHÉCHIAS TUNISINAS



Adquiri recentemente em Tunis, na Livraria Diwan, no suq das chéchias, um livro que regista a história desses conhecidos barretes, ou bonés, que eram característica embora não exclusiva dos cidadãos muçulmanos, e que ainda hoje se vêem em alguns países árabes, embora o seu porte tenha caído em desuso.




O livro Le petit livre de la chéchia, de Mika ben Miled, traça uma história da utilização das chéchias através dos séculos. Também chamada fez, tarbush, gorro de Toledo, barrete berbere ou ainda boné à moda de Tunis, para uso dos turcos ou boné capacete, etc., essa peça de lã vermelha, com tonalidades do vivo à cor do vinho, penetrou igualmente na Europa, e fez da Áustria, durante muito tempo, o seu principal produtor.



Vemos chéchias, de feitios vários, nas pinturas de Piero della Francesca, do Perugino, de Mantegna, de Dürer, de Botticelli, de Bellini. Na Revolução Francesa, o barrete vermelho, frígio, simbolizou a liberdade.



A indústria das chéchias teve grande desenvolvimento na Tunísia. No século XIV, existia já um suq das chéchias em Qairwan. E o célebre viajante El-Hassan ben Mohammed el-Wazzân ez-Zayyâti, (Leão, o Africano), refere a existência em Tunis de um suq dos Tintureiros, cuja antiga localização fora ditada pela existência de um poço fornecendo em abundância uma excelente água.



Num documento espanhol de 1579, é relatado que um religioso trinitário, o mesmo que libertou Cervantes do cativeiro, comprou em Toledo ao negociante Juan Polanco, quarenta dúzias de bonetes de grana colorados finos pelo preço de trinta reais a dúzia.



Inicialmente, as chéchias eram vermelhas ou azuis, mas o azul foi caindo em desuso. Em muitas localidades usou-se, e usa-se, também o preto. A indústria da chéchia foi florescente na Andaluzia e ainda o era no começo do século XVII. Relativamente à exportação de chéchias espanholas para a África do Norte, o documento mais antigo é uma carta de quilaçao a favor de um negociante português de Safi, datada de 7 de Maio de 1499.



As perseguições da Inquisição na Península, no começo do século XVII, provocaram o êxodo para Tunis dos mouros andaluzes, que aí foram muito bem recebidos e apoiados por Othman Dey. Em consequência, desenvolveu-se a indústria das chéchias. Enquanto a cor vermelha estava reservada aos muçulmanos, os judeus deviam usar chéchias negras. É claro que havia variantes nestas determinações, especialmente quando os judeus eram estrangeiros. No princípio do século XX, Tunis era, depois de Constantinopla, o mais importantes mercado destes barretes vermelhos. Em 1960, o volume de negócios oficial do comércio das chéchias foi de 270.000 dinares tunisinos, equivalente a três milhões de francos franceses à época. O negócio tem passado de pais para filhos, só interrompido pela extinção da linhagem. Houve mesmo grandes dinastias de chaouachis, que se mantiveram nos três suqs especializados ainda hoje existentes na medina de Tunis.



O livro explica também as fases da confecção das chéchias, o processo de tinturaria e as diversas formas destes barretes. É também apresentada vasta documentação sobre a matéria e grande número de ilustrações que facilitam a compreensão do texto, nomeadamente para os menos familiarizados com a cultura islâmica.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

SALÓNICA XVIII - IGREJA DE SÃO MINA



A Igreja de São Mina (Agyos Minas) está situada a sudoeste do centro da cidade, perto do mar, no cruzamento das ruas Agyou Mina e Ionos Dragoumis. A referência mais antiga conhecida encontra-se na "Vida de Agyos Gregorios de Decapolitou" (primeira metade do século IX), mas é crível que a igreja já existisse no princípio do século VI. Há relatos sobre a igreja em documentos do Monte Athos, dos séculos XI a XV. 
 



A Igreja de São Mina é uma das poucas de Salónica que não foi convertida em mesquita após a ocupação da cidade pelos turcos, permanecendo a funcionar normalmente e mantendo o seu nome grego.





Contudo, durante a ocupação otomana, o templo sofreu graves danos, que foram sucessivamente reparados. Em 1569, o sultão Selim II mandou retirar seis colunas, e em 1687 foi bombardeada por um navio de guerra veneziano.




 


No século XVIII, a igreja foi praticamente destruída por um incêndio, sendo reconstruída em 1806 por iniciativa de um abastado comerciante, Ioannis Kaftantzoglou. Novamente danificada por um incêndio em 1839, a versão actual de Agyos Minas é o resultado da renovação operada sob a orientação do arquitecto Ralli Plioufou, em meados do século XIX.




 

O edifício foi reconstruído no estilo pós-bizantino de uma basílica de três naves, com uma rica decoração interior com influências neoclássicas e do barroco-rococó.





O templo apresenta assim características originais diferentes das dos outros monumentos bizantinos da cidade e serviu de modelo à construção de novas igrejas em Salónica e na Macedónia em geral.





 
Entre 1890 e 1912, serviu de igreja metropolitana, e nela foi celebrada a primeira acção de graças após a libertação da cidade em 26 de Outubro de 1912.








São Mina, natural do Egipto, foi um soldado do exército romano martirizado no século IV por ter-se recusado a abjurar a sua fé e é um dos santos mais venerados pela Igreja Copta. Quando o Papa Cirilo VI foi entronizado Patriarca de Alexandria no Trono de São Marcos, iniciou a construção de um grande mosteiro em sua honra, nos arredores de Alexandria, que é um dos mosteiros mais famosos do Egipto. As relíquias do santo e as do patriarca encontram-se nesse mosteiro, que sucedeu ao primitivo mosteiro, destruído aquando das invasões árabes do século VII.


São Mina