A recente audição da 6ª Sinfonia de Tchaikovsky, no Centro Cultural de Belém, suscitou-me o desejo de reler o livro Tribunal d'honneur (1997), do escritor francês Dominique Fernandez (n. 1929). Como é hoje do conhecimento geral, e já o era nas altas esferas da Rússia de então, Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893) era homossexual, e a sua morte inesperada, ocorrida em circunstâncias nunca verdadeiramente esclarecidas, teve lugar precisamente nove dias depois dele ter dirigido, em São Petersburgo, a estreia da sua 6ª, e última, sinfonia.
No seu livro, Dominique Fernandez, membro da Academia Francesa, autor de vasta e notável obra, baseando-se em factos históricos entrelaçados numa poderosa criação ficcional, imaginou a constituição de um tribunal de honra, constituído por antigos condiscípulos do compositor na Escola de Direito, com a missão de o julgar pela sua conduta considerada moralmente condenável. Ao longo de 500 páginas, muitas das quais não têm a ver com o tema mas permitem ao autor exibir a sua erudição sobre São Petersburgo (Fernandez é um amante da cidade), sobre a história da Rússia, sobre a arte, a literatura e a música em geral, é-nos apresentada uma profusão de acontecimentos e personagens que torna difícil determinar o que é realmente do domínio da história e o que decorre da efabulação do escritor.
A homossexualidade de Tchaikovsky não oferece dúvidas. Há os testemunhos dos seus contemporâneos, incluindo o do seu irmão mais novo Modeste Tchaikovsky, que também era homossexual. Eram-no igualmente o grão-duque Jorge Alexandrovitch, filho segundo do tsar Alexandre III, o grão-duque Constantin Constantinovitch, primo direito do tsar e outras altas figuras da Corte Imperial. Também é verdade que nos últimos tempos da sua vida Tchaikovsky estava loucamente apaixonado por seu sobrinho Vladimir Lvovitch Davydov, dito Bob, um belo rapaz de 20 anos, cadete do regimento Sémianovski, que não compartilhando propriamente dos gostos do tio lhe prodigalizava contudo alguns favores em troca da adequada compensação material. Já me parece difícil de confirmar que Bob fosse intermediário na apresentação ao tio de outros cadetes do seu regimento.
Casa onde morreu Tchaikovsky |
A história é-nos contada por Vassili de Sainte-Foy, (alter ego do autor), cidadão russo de ascendência francesa, a trabalhar em Moscovo mas temporariamente em São Petersburgo, por motivos profissionais, no período do caso narrado. O conde Illarion Ivanovitch Vorontsov, ministro da Corte Imperial, considerando que o comportamento de Tchaikovsky começava a provocar escândalo, decide constituir um tribunal, composto por sete dignitários, todos antigos condiscípulos do compositor, com a missão de o julgar. A intenção é promover, de acordo com o Código Penal, a sua condenação e consequente deportação para a Sibéria. Alguns dos escolhidos são também amigos de Sainte-Foy, que entretanto trava conhecimento com Tchaikovsky e pode acompanhar a evolução da tendência de voto dos membros do tribunal. Finalmente, quatro votarão contra o compositor e três a favor. A decisão é-lhe comunicada pessoalmente por Vorontsov, que lhe entrega o documento encerrado num estojo com a obrigação do compositor não o mostrar a quem quer que seja. Mas entretanto o caso Tchaikovsky chegou ao conhecimento do tsar, que ficou enfurecido e declarou a um dos jurados que ele mesmo decidiria da condenação. Isto é, para Alexandre III a deportação não seria suficiente. Para constituir exemplo, e tendo em atenção o comportamento de alguns dos seus próximos, o tsar considerava que Tchaikovsky deveria morrer.
A 20 de Outubro de 1893, Tchaikovsky convida um grupo de amigos para jantar no famoso restaurante Leiner, na Nevskiy Prospekt. A meio da refeição tem sede e vai à cozinha buscar um copo de água, que bebe. De regresso a casa, no nº 13 da Malaya Morskaya, sente-se indisposto. O seu estado de saúde degradar-se-á rapidamente, vindo a morrer no dia 25 de Outubro. Ninguém o poderá visitar, já que o tsar colocou polícias à sua porta com ordem de não deixar qualquer pessoa aproximar-se do compositor. Nem mesmo o seu médico pessoal, já que Alexandre III enviou o seu médico particular para tratar do enfermo. As notícias são confusas. Faz-se crer que Tchaikovsky teria contraído cólera, epidemia que então grassava entre as classes baixas da cidade, mas era certamente improvável que um restaurante como o Leiner não servisse apenas água mineral. As queixas do compositor, depois reveladas por seu irmão Modeste, que tinha vindo visitá-lo a São Petersburgo e vivia no apartamento, não indiciavam sintomas de cólera mas de envenenamento por arsénico. Conteria o veredicto do julgamento, em vez da decisão de deportação para a Sibéria a ordem do tsar para que se suicidasse? Nunca o saberemos, já que o documento desapareceu. O túmulo do compositor encontra-se hoje no Cemitério de Tikhvin, situado ao lado do Mosteiro de Alexandre Nevsky.
Mausoléu de Tchaikovsky, no Cemitério de Tikhvin |
É esta a história que - envolvida em inúmeras peripécias e permitindo ao autor dissertar sobre inúmeros assuntos e exprimir as suas convicções pessoais sobre o tema, a questão da homossexualidade e o pecado - nos conta Dominique Fernandez. A verdade, jamais a saberemos, mas a morte do compositor permaneceu até hoje envolta em mistério, ainda que a tese do suicídio seja verosímil, atendendo ao temperamento de Tchaikovsky.
Quando esteve em Lisboa, para a estreia no Teatro Nacional D. Maria II da sua peça A Caçada Real do Sol, em 2000, o famoso dramaturgo inglês Peter Shaffer (1926-2016), célebre autor de Amadeus, confidenciou-me que tinha em projecto uma peça sobre as circunstâncias da morte de Tchaikovsky. Tendo-o contactado para Londres, muitos meses depois, fui informado que esse trabalho continuava numa fase embrionária. Lamentavelmente, Peter Shaffer morreu sem ter concluído a obra.
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