quarta-feira, 22 de maio de 2019

DO "QUEEN BOAT" À QUEDA DE MUBARAK



Uma explicação. O "Queen Boat" é um navio restaurante-bar-discoteca ancorado no rio Nilo ao lado da rua Mohammed Abd El-Wahab, no Cairo, sensivelmente em frente do edifício da residência do embaixador de Portugal e não distante do Hotel Marriott. Cheguei a entrar lá uma vez, depois de um jantar na residência, mas estava quase vazio e por isso dei meia volta e saí. Isto ainda antes dos acontecimentos a seguir descritos.

Na dia 11 de Maio de 2001, o estabelecimento foi objecto de uma rusga por parte da polícia, com o pretexto de que às quintas-feiras era o local de encontro de homossexuais, tendo sido detidos mais de cinquenta homens. Aliás, nos dias anteriores já tinham sido presos diversos indivíduos, sob o mesmo pretexto, sendo estas acções integradas numa campanha de "purificação" do Egipto, levada a cabo pelo governo do presidente Mubarak. Ao mesmo tempo, o raïs, cuja política era progressivamente contestada,  mostrava aos integristas islâmicos a sua disposição de proteger os "bons costumes" e procurava demonstrar ao mundo, esforço inútil, que a homossexualidade era rara no Egipto.

"Queen Boat"

Os estrangeiros detidos, mesmo os árabes não egípcios, foram prontamente libertados, mas a maioria dos autóctones ficou meses na cadeia sem julgamento e foi objecto de processos vergonhosos, em que muitos dos acusados foram condenados a vários anos de prisão. As incriminações não se limitaram à prática de actos homossexuais mas também à de incitação ao deboche, atentado à religião, prática de actos satânicos, invocação do diabo, magia negra, etc. Esta atitude discricionária e persecutória do governo do Cairo foi largamente denunciada pela imprensa internacional e objecto de protesto de diversos países e de organizações dos direitos humanos. Os detidos, durante a permanência na cadeia, foram objecto das maiores sevícias, tanto físicas como morais, perderam a sua honorabilidade pública, ficaram com os laços familiares destruídos, muitos tiveram de exilar-se no estrangeiro e alguns suicidaram-se.

Sobre este caso exemplar foram produzidos alguns filmes, como Dangerous Living: Coming Out in Developing World, de Janeane Garofalo, All My Life (Toul Omry), de Maher Sabry e A Jihad for Love, de Parvez Sharma.

A campanha anti-homossexual de Mubarak - uma ideia tonta num país em que a maioria dos homens é geralmente bissexual - teve o efeito contrário ao pretendido. Se contou com a aprovação dos meios mais conservadores, especialmente na província, causou uma impressão negativa nos meios urbanos, e especialmente entre a juventude, continuando a degradar a imagem do presidente, que acabaria por ser obrigado a renunciar ao cargo em 2011, na efervescência das "primaveras árabes", não precisamente por causa deste caso, mas também porque ele contribuiu para o acentuar do mal estar social.

Mohammed Abdelnabi

Vem isto a propósito da recente publicação em língua francesa, com o título La Chambre de l'araignée (2019), do livro editado em árabe em 2016 Fî ghurfat al-'ankabût, do escritor egípcio Mohammed Abdelnabi (n. 1977), uma narrativa construída a partir do caso "Queen Boat". O romancista, baseado em diversos testemunhos, concebe a história de um homossexual egípcio, Hani Mahfouz, desde a primeira infância até ao momento em que é preso por ocasião do caso "Queen Boat", e suas consequências. São descritas, com o suficiente realismo, sem entrar em detalhes supérfluos, a descoberta feita pelo rapaz da respectiva orientação sexual, as suas conquistas amorosas, a vida familiar e profissional, a sua paixão por um parente, Abdelaziz, o seu casamento frustrado, o nascimento de uma filha, os maus tratos infligidos na prisão (ocasião para descrever o inumano sistema prisional egípcio), a quase unânime rejeição social (mais hipócrita do que genuína) a movimentada cena gay do Cairo. A referência à aranha é uma alusão a uma aranha que o acompanhava na sua solidão no seu quarto de hotel, depois da saída do cárcere.

Não são muitas as obras de escritores árabes sobre a homossexualidade, mas este livro aborda a vida do protagonista de forma magistral. Dir-se-ia que o próprio autor viveu todas as experiências que relata. A autenticidade das situações está aliada a uma profunda sensibilidade e a uma qualidade narrativa própria dos grandes romances. Deve registar-se uma palavra de apreço ao tradutor, Gilles Gauthier, pois a recriação em francês do original árabe é de uma fluidez impressionante.

A leitura de La Chambre de l'araignée permite-nos também, especialmente para os conhecedores do Cairo, a deambulação por muitos dos lugares evocados e a incursão na vida artística egípcia e ainda um conhecimento detalhado da corrupção e das práticas utilizadas pela polícia nas prisões do regime.

Por todos estes motivos e pela beleza da escrita, é um livro cuja leitura se recomenda vivamente.

 

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