Os "gays" mouros e cristãos perseguidos pela Inquisição
Para se resgatar o cotidiano dos mouriscos na Península Ibérica entre os séculos XVI e XVIII dispomos de riquíssima fonte documental - mais de mil processos e outros manuscritos do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição Portuguesa. Informam tais estudos que foram processados pelo Santo Ofício 349 mouros no século XVI e 376 no século XVII, número muitíssimo inferior se comparado com a perseguição aos cristãos-novos em Portugal e mesmo com os muçulmanos presos pelas Inquisições da Espanha e Itália. O crime dos mouriscos, na sua quase totalidade, consubstanciava-se na prática secreta do islamismo, sobretudo a observância de rituais determinados pelo Corão: a circuncisão, orações, jejuns e abluções, mas também blasfêmias contra o catolicismo, venda de armas para os infiéis, etc. Dentre estes documentos, localizamos dezenove processos de mouros e mouriscos envolvidos com o crime de sodomia, acrescidos de cinco denúncias registradas nos Cadernos do Nefando. Além destes, disponho de mais nove indicações de renegados “bardaxos” processados pelos Tribunais do Santo Ofício de Múrcia, Maiorca e Sardenha. É com base neste corpus documental relativo a 32 réus, que reconstruiremos o cotidiano dos mouros sodomitas no Reino de Portugal assim como as desventuras homoeróticas de uma dezena de cristãos sodomitas – chamados na época de “bardaxos” em terras do Islão. No imaginário popular da cristandade, da Ibéria à Germânia, refletido no discurso teológico e também na práxis inquisitorial, acreditava-se que “os mouros são mui dados a cometer o abominável crime de sodomia e na seita de Mofamede é concedido que possam usar desta abominável torpeza assim com os homens como com as mulheres.” O amor que não ousava dizer o nome era muito mais visível e tolerado do outro lado do Mediterrâneo do que nas terras dominadas pelo Tribunais do Santo Ofício. Ao tratarmos mais adiante dos “renegados” cristãos que no Levante adotaram os costumes e religião dos mouros, veremos diversos episódios confirmatórios dessa maior visibilidade e tolerância homoerótica nas sociedades islâmicas.
LUIZ MOTT *
Introdução
Os portugueses costumavam chamar de mouros não só aos naturais do
noroeste da África, região identificada como Berbéria ou Mourama, mas
também todos os seguidores da religião de Maomé, incluindo árabes ou
convertidos de outras nações e etnias, assim como seus descendentes,
que, a partir do século VIII, invadiram e ocuparam grande parte do que
veio a se tornar o Reino de Portugal, território que foi sendo
paulatinamente reconquistado pelos cristãos até a tomada final do
Algarve por Afonso III em 1249. Encerra-se então o domínio islâmico em
terras portuguesas, embora continue marcante apresença mourisca na
Lusitânia, contribuindo de forma significativa na miscigenação e nas
mais variadas manifestações socioculturais, como a inclusão de numerosos
arabismos na língua portuguesa, influência significativa nas artes,
arquitetura, culinária, agricultura, conhecimentos científicos, etc. (1)
Durante a Idade Média e início dos Tempos Modernos, mouros e mouriscos
(2), assim como os judeus e cristãos-novos, padeciam de graves entraves
discriminatórios, obrigados a portarem roupas e cortes de cabelo
identificáveis e ao pagamento de numerosos e pesados impostos, proibidos
de livre circulação e de união sexual/matrimonial com as cristãs.
“Viviam em comunidades fechadas chamadas mourarias ou aljamas,
governados por um alcaide de sua escolha que é também juiz. A mouraria
de Lisboa dispunha de banhos, prisão, açougue, escola, curral, cemitério
e duas mesquitas, existindo igualmente outras mourarias em mais de uma
dezena de outras cidades, cujas portas eram fechadas à noite,
proibindo-se e castigando-se até com pena de morte a permanência de
mulheres cristãs em seu interior. Apesar de todas estas leis, a
miscigenação é inevitável, em todos os estratos da sociedade e mesmo no
que toca aos monarcas: D. Afonso Henriques tem um filho de uma moura, o
mesmo acontecendo com D. Afonso II.” (3)
Os mouros exerciam variadas atividades produtivas e comerciais dentro da
sociedade portuguesa, particularmente no setor secundário: sapateiros,
ferreiros, oleiros, esparteiros, estribeiros, albardeiros, pedreiros,
carpinteiros. A convivência relativamente pacífica entre mouros e
cristãos no território português acaba abruptamente no reinado de D.
Manuel, quando, em 1496, sob o pretexto religioso, são obrigados a
escolher entre a expulsão ou o batismo. (4)
Para se resgatar o cotidiano dos mouriscos na Península Ibérica entre os
séculos XVI e XVIII dispomos de riquíssima fonte documental: mais de
mil processos e outros manuscritos do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição Portuguesa. Notadamente três importantes trabalhos já
resgataram criteriosamente tais fontes: “Les Crypto-Musulmans d’origine
marocaine et la société portugaise au XVIe siècle” (BOUCHARB,1987),
“Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista: Duas culturas e duas
concepções religiosas em choque” (BRAGA, 1999) e “Filhos de Mafoma:
mouriscos, cripto-islamismo e Inquisição no Portugal quinhentista”
(RIBAS, 2004). (5)
Informam tais estudos que foram processados pelo Santo Ofício 349 mouros
no século XVI e 376 no século XVII, número muitíssimo inferior se
comparado com a perseguição aos cristãos-novos em Portugal e mesmo com
os muçulmanos presos pelas Inquisições da Espanha e Itália (6). O crime
dos mouriscos, na sua quase totalidade, consubstanciava-se na prática
secreta do islamismo, sobretudo a observância de rituais determinados
pelo Corão: a circuncisão, orações, jejuns e abluções, mas também
blasfêmias contra o catolicismo, venda de armas para os infiéis, etc.
Dentre estes documentos, localizamos dezenove processos de mouros e
mouriscos envolvidos com o crime de sodomia, acrescidos de cinco
denúncias registradas nos Cadernos do Nefando, tendo como datas limites
1547-1754. Além destes, disponho de mais nove indicações de renegados
“bardaxos” processados pelos Tribunais do Santo Ofício de Múrcia,
Maiorca e Sardenha entre 1576-1678. (7) É com base, portanto, neste
corpus documental relativo a 32 réus, que reconstruiremos o cotidiano
dos mouros sodomitas no Reino de Portugal assim como as desventuras
homoeróticas de uma dezena de cristãos sodomitas – chamados na época de
“bardaxos” em terras do Islão.
1. Sodomia, o vício dos árabes no imaginário cristão
Começamos com uma constatação: no imaginário popular da cristandade, da
Ibéria à Germânia, refletido no discurso teológico e também na práxis
inquisitorial, acreditava-se que “os mouros são mui dados a cometer o
abominável crime de sodomia e na seita de Mofamede é concedido que
possam usar desta abominável torpeza assim com os homens como com as
mulheres.” (8)
Em diversos processos do Santo Ofício, os Inquisidores, quando perante
um mourisco ou de cristãos que viveram na Berbéria, frequentemente
insistem nessa mesma suspeita: em 1566, perguntaram ao mourisco forro,
Gil (9), 20 anos, “se na lei de Mafoma é permitido cometer o pecado de
sodomia dormindo com moços”, ao que respondeu, que “na sua terra não mas
que nas terras dos turcos se permite”. Mais tarde retificou: “em sua
terra, na Berbéria, sendo mouro, era costumado a dormir com moços por
detrás porque disto na sua terra não tinha outra pena senão metê-lo na
cadeia e pagar dinheiro e soltá-lo, mas que depois de cristão nunca mais
cometera este pecado”. Em 1593, a mesma insistente pergunta feita a um
tal Diogo Fernandes, 30 anos, lavrador da Ilha Graciosa, “se sentiu bem
da lei dos mouros ou gentios por darem liberdade para pecar e
particularmente no pecado da sodomia?” (10)
No processo de socialização das crianças católicas, ensinava-se a terem
cautela "vis a vis" os muçulmanos, reputados como useiros na prática do
“mau pecado”: em 1556, uma indiana que servia no Orfanato do Colégio da
Companhia de Jesus em Lisboa, disse a um menino “que não dormisse perto
do mourisco João de Távora, menor de 25 anos, porque na sua terra os
turcos faziam ruindade com os meninos.” (11)
Foi recorrente e universal na cristandade, no processo de catequização
dos gentios, a demonização dos bárbaros e selvagens, notadamente dos
seguidores da lei de Mofamede, acusados exageradamente da prática de
gravíssimos pecados mortais condenados pela moral católica: nudez,
poligamia, incesto, mutilações genitais, mas sobretudo, “o mais torpe,
sujo e desonesto pecado”, a abominável sodomia, cujo nome não podia
sequer ser pronunciado (12). Pecado tão cabeludo que foi criminalizado e
equiparado pela Justiça Real aos delitos de lesa majestade e traição
nacional. E mais grave ainda: o amor entre pessoas do mesmo sexo foi
considerado “peccatunt ad coelum clamans”, clamando pela ira divina que
castiga a humanidade com terremotos, pestes, fomes... (13)
Assim sendo conjeturamos que a associação entre islamismo e homoerotismo
teve seu "début" particularmente datado no imaginário cristão através
de um episódio emblemático na luta de expulsão dos invasores sarracenos e
reconquista dos territórios ibéricos: o martírio de São Paio – também
conhecido por Sampaio ou São Pelágio, morto no ano do Senhor de 925 na
Andaluzia. Paio era um virtuoso jovem cristão, nascido na Galícia, que
entre seus 10 a 13 anos teve a desventura de ser cativo do califa
Abd-ar-Rahmãn III, da dinastia dos Omíadas, governador de Córdoba, o
qual torpemente atraído pela beleza desse efebo, representado na
iconografia como alvinho e de olhos azuis, tentou converte-lo à lei de
Maomé, tentando seduzi-lo, com muitas promessas de bens materiais, para
ser mais um ganimedes em seu nefando harém. Paio, que era sobrinho do
piedoso Bispo de Tui, indignado contra proposta tão imoral, teria
respondido: “Afasta-te, cão! Pensas por acaso que sou um dos teus
efeminados lacaios?” (14) Em represália por tamanha audácia, foi
barbaramente torturado, tendo seus braços e pés arrancados, e por fim
decapitado e lançado no rio Guadalquivir. Sua dramática e virtuosa
história foi rápida e amplamente divulgada pela cristandade em três
versões impressas em prosa e versos, ampliando e reforçando a associação
pecaminosa dos mouros com o abominável pecado de sodomia. (15)
Certamente a maior convivência dos portugueses com mouros, turcos e
magrebinos, tanto no Reino quanto na Berbéria, contribuiu igualmente
para o reforço dessa visão de que os maometanos possuíam códigos sexuais
mais licenciosos do que os impostos pelas leis del Rei e da Santa Madre
Igreja: além da generalizada prática da poligamia poligínica e a
despeito das condenações do Corão ao “pecado dos filhos de Lot” (16), na
realidade, o amor que não ousava dizer o nome era muito mais visível e
tolerado do outro lado do Mediterrâneo do que nas terras dominadas pelo
Tribunais do Santo Ofício. (17) Ao tratarmos mais adiante dos
“renegados”cristãos que no Levante adotaram os costumes e religião dos
mouros, veremos diversos episódios confirmatórios dessa maior
visibilidade e tolerância homoerótica nas sociedades islâmicas.
Um outro fator explicaria a persistente crença, sobretudo entre os
teólogos e inquisidores, da maior permissividade da lei de Mafoma ao mau
pecado: tinham conhecimento dos ensinamentos do destacado teólogo
franciscano Alfonso de Spina (†1491), reitor da Universidade de
Salamanca, confessor real, bispo de Orense, autor do celebrado tratado
"Fortalitium fidei contra Judeos, Sarracenos aliosque christiane fidei
inimicos", obra publicada originalmente em 1458, que teve quase uma
dezena de reedições na Alemanha e França - a última data de 1525, em
Lion. Embora não seja a primeira obra a acusar o Corão de ser “gay
friendly” (18), foi, sem dúvida, o incunábulo teológico que teve maior
expansão na cristandade. Nesse compêndio, dividido em quatro tratados,
Spina refuta, com combativa veemência, os quatro principais inimigos da
fé cristã: hereges, judeus, sarracenos e demônios. É, pois, no terceiro
livro onde inclui, entre outras perversões dos seguidores da lei de
Mafoma, sua anuente tolerância à cópula anal.
Não localizamos o "Fortalitium Fidei" na Livraria do Santo Ofício de
Lisboa. Contudo, na Biblioteca Nacional Portuguesa há quatro volumes do
mesmo tratado: três versões francesas impressas em Lion (1487, 1511 e
1525) e uma de Nurembergue (1494). Foi provavelmente baseado na leitura
de uma destas edições que em 1579 o Promotor da Inquisição de Évora ao
acusar de sodomia o mourisco João de Noronha, 40 anos, natural de
Alcácer Quibir, cativo do bispo de Porto Alegre, assim alegou: “o réu
tem contra si as cousas seguintes: primeiramente a presunção de sua
nação, que foi mouro nascido na Berbéria e queira Deus que o não seja
inda hoje, os quais são mui dados a cometer o abominável crime de
sodomia e na seita de Mofamede é concedido que possam usar desta
abominável torpeza, assim com os homens como com as mulheres, sicut
diccitur in Fortalicio fidei de Bello Sarracenorum et de Erroribus legis
Mahometi" (19).
2. Mouros Sodomitas em Portugal
Salvo erro, a primeira referência a um mourisco envolvido com a prática
da sodomia em Portugal remete-nos a primavera de 1547, quando os
inquisidores, mesmo ainda sem ordem papal expressa autorizando-lhes a
perseguição ao abominável e nefando pecado, iniciam a perseguição aos
“filhos da dissidência” (20). Foi o zeloso Arcebispo D. Fernando de
Meneses Coutinho e Vasconcelos (1540-1564) quem levantou o escândalo:
denunciou ao Santo Oficio que “havia em Lisboa casa ou casas e pessoas
tocadas do crime abominável de sodomia” (21). Feita a averiguação,
desmantela-se então nefanda rede de uma dezena de intrépidos sodomitas,
sobretudo serviçais e cativos de nobres e até da própria casa real,
incluindo também gente graúda, jovens e adultos, entre eles “o mourisco,
Fernando Castro, escravo do fidalgo Afonso d’Ataíde”, igualmente
referido como “Fernão de Castro, mourisco de D.Felipa que dormia com
Nicolau Peçanha, 20 anos e dizia que era seu rufião”. É citado também um
mancebo por nome André Mouro, sem mais detalhes (22) Desta trintena de
primeiros sodomitas denunciados ao Santo Tribunal em 1547, 17 foram
efetivamente presos e sentenciados a degredo e galés, dos quais dois
pretos e um mulato, nenhum mouro. Suas culpas não foram então julgadas
suficientes para castigo.
Passados cinco anos, ocorre em 1552 a primeira prisão de um mouro
sodomita em Portugal: Mestre Francisco Levantisco (23), meirinho da galé
del Rey denominada Vitória, é acusado por um seu grumete, Luís, 13
anos, natural de Coimbra, de dormir com ele na mesma cama, por dois
meses: “seu mestre pecava com ele, mandando que se calasse.” Consta em
seu processo que esse levantino era natural de Corfu, ilha grega do mar
Jônico situada na costa da Albânia, de um lugar chamado Grastados, filho
de pai e mãe gregos, naturais de Egurna, então senhorio de Veneza. Ele
próprio diz que fora “tomado em Argel pelos turcos, que o fizeram
cativo”, remando anos seguidos em suas galés, até que foi capturado
pelos portugueses nos mares dos Algarves. Sua prisão nos cárceres do
Santo Ofício durou sete meses, sendo condenado por cinco anos a “remeiro
com ferros” nas galés, além das costumeiras penitências espirituais,
obrigado a se confessar e comungar nas três páscoas do calendário
litúrgico.
No ano seguinte, 1553, ocorre a prisão do segundo mouro, Alle (24), 30
anos, cativo do Provedor Fernão Rois Castelo Branco, “há quatro anos na
terra de cristãos”, morador então em Lisboa, denunciado por um serviçal
do mesmo senhor de tê-lo flagrado na estrebaria por cima de “um mancebo
amulatado que jazia de bruços, descoberto, com as ceroulas derribadas
abaixo, praticando o mau pecado”. Acrescenta que o dito mouro “tinha
muita má fama” e tentara comprar com dinheiro, o silêncio dos delatores.
Em sua sentença, proferida oito meses após sua prisão, considera-se que
“cometeu muitas vezes e continuação de tempo o abominável e nefando
pecado de sodomia contra natura, sendo agente, mas como disse que quer
se fazer cristão e receber o santo batismo, depois de bem instruído nas
cousas da nossa santa fé e necessárias para sua salvação, que seja
condenado a dez anos de degredo nas galés.”
Estes dois primeiros mouros processados antecipam, mutatis mutandis, uma
tendência presente na interação homoerótica de diversos outros
ismaelitas denunciados e ou processados pelo Santo Ofício de Portugal
entre 1547-1754, dos quais dezesseis no século XVI, seis no XVII e dois
no XVIII: a preferência por meninos e rapazes bastante jovens, assim
como condutas autoritárias, quiçá violentas, permeando tais interações
libidinosas.
Comecemos pela identificação nominal desta minoria étnica: apenas sete,
do total de 24 mouriscos, mantinham seu onomástico original arábico:
Alle, Osmam/Osmão, Barria, Salim/Celema, Ali de Bona, Hamet (dois
casos). Dentre todos, foi Francisco, mouro, 26 anos, natural do
Marrocos, quem mais informou sobre seus antepassados: nomeou não apenas
seu pai, Amed e sua mãe, Golizae, mas também seus avós, Amatamançor e
Fátima. (25)
Alguns destes eram identificados por sua procedência ou condição de
origem: Francisco Levantisco, Thomas Marunita, Felipe Mourisco, João
Mourisco. A maior parte havia adotado nome de cristão, sem sobrenome:
Gil, Joane, Francisco, João Batista. Um menor número já ostentava
sobrenome, poucos até de boa estirpe, certamente apropriado dos donos da
casa onde serviam: Antonio de Brito, Manuel de Menezes, Antonio José
Noronha. O mouro João Távora informou que adotara o mesmo nome de seu
padrinho. Dois possuíam dois onomásticos: João Mourisco ou de Noronha,
Manoel de Menezes ou Ali de Bona. Nos processos, e certamente no seu
meio social, eram referidos como mouros, mouriscos, mouros de nação;
apenas dois são identificados como turcos. O citado Thomas Marunita era
egípcio, tendo como sobrenome a Igreja Católica Maronita, originária do
Líbano, sujeita à comunhão com o papado romano. Tais sodomitas provêm de
extensa área mediterrânea, sendo citados como local de origem a
Berbéria, notadamente o Reino do Marrocos: Ceuta, Alcacer Quibir,
Tetuão, Fez, mas também Corfu, Cairo e Anatólia.
Variado é o fenótipo, assim como a aparência e indumentária destes
sodomitas mouros provenientes de grupos étnicos tão diversos: Hamet, 17
anos, “mancebo que começa a barbear”, é descrito como “homem branco,
grande de corpo”; já o mouro de nação, Joane, 30 anos, escravo do
Cardeal Inquisidor D.Henrique, é “preto”. Alguns são imberbes: João
Pereira, mourisco de 15 a 16 anos, “mancebo sem barba”; Francisco, mouro
de 26 anos, natural do Marrocos, “tem boa estatura, pouca barba, cabelo
preto e crespo”; Gil, 20, de meã estatura, “desbarbado, anda vestido de
vermelho, com calças de pelote”, enquanto Manuel de Menezes, 35,
mourisco de nação convertido cristão, morador em Leiria, “alto de corpo,
tem barba preta e rosto largo”.
Dentre todos, o melhormente descrito foi Osmão, turco infiel da
Anatólia, 55 anos: “alto e grosso, barba tosada e quase branca, bigodes
compridos”, que não obstante sua condição de cativo do Marquês de Santa
Cruz, se vestia com o esmero de um paxá: “traz sombreiro preto, capa de
baeta e roupeta verde, meias calças pardas, usa meias e sapatos”. Foi o
único mouro queimado na fogueira cujo nome consta na Lista dos Autos de
Fé da Inquisição.
Alguns destes mouriscos sodomitas, antes de cair nas malhas do Tribunal
da Fé, tiveram vida bastante atribulada - muitos, capturados por piratas
e vendidos como cativos, como foi o caso de Manuel de Meneses, que ao
ser preso em 1583, disse que “veio para Portugal no ano que os turcos
cercaram Malta e a não tomaram”, sendo capturado na sua galeota pelos
espanhóis do Capitão Conde de Altamira perto da Ilha de Sardenha,
remando nas galés por 20 anos seguidos, chamando-se então Ali de Bona,
até que há dois anos passados, estando no porto de Leiria, fugiu,
ficando oito meses em casa de um clérigo, mudando-se dali para a casa do
Marquês de Vila Real, onde foi batizado pelo Marquês e o Conde seu
filho, recebendo então atestado de batismo, passando a trabalhar na sua
estrebaria.(26)
Também teve história acidentada nosso já conhecido Levantisco, tomado em
Argel por turcos, que o fizeram cativo, servindo ao remo nas frotas
muçulmanas, capturado agora pelos portugueses nos mares algarvinos. Joao
Pereira, 15 anos, disse ter vindo há dois anos de Tetuão onde tinha
“bons parentes e pai cavaleiro”, o qual trouxera para o Reino dois
cristãos cativos que o batizaram. (27)
Encontramos, portanto alguns mouros chegados há poucos anos em Portugal,
como esse adolescente marroquino, outros vivendo há mais tempo, como
Hamet, cativo de 42 anos, que disse estar vivendo em terra de cristãos
há 4 anos. Infelizmente, faltam-nos mais informações sobre este quesito.
Treze dos denunciados declararam viver em Lisboa, sendo também citado
como local de residência Leiria, Porto Alegre e Angra na Ilha Terceira.
Desses 21 mouros cuja idade é revelada, seis tinham menos de 20 anos,
cinco estavam na faixa dos 20, sete na dos 30, dois com quarenta e o
mais velho com 51 anos, portanto, pouco mais da metade “menor de idade”,
isto é, com menos de 25 anos, segundo a casuística demográfica
inquisitorial. O que vale dizer, estavam na flor da idade e exuberância
da testosterona... População bem mais jovem do que a média dos mouros
presos por heresia, pois segundo dados de BOUCHARB(1987) e RIBAS(2004),
por volta de 62% destes, ultrapassavam 40 anos.
No tocante à ocupação/profissão, aproximadamente 1/3 dos mouros
envolvidos com o mau pecado eram cativos, perfazendo o total de sete,
dos quais três vivendo nas galés reais, certamente tendo sido capturados
no corso ou criminosos cumprindo sentença da justiça civil. Alguns eram
escravos de gente graúda, como do Cardeal Inquisidor D.Henrique, do
Marquês de Santa Cruz, do bispo de Porto Alegre (D.Amador Arrais?),
cativo do Desembargador Simão Cunha, do Provedor Fernão Rodrigues, do
Almoxarife da Casa da Índia.
Diversos trabalhavam em estrebarias de casas abastadas, como Joane,
mouro de nação, 30 anos, que servia ao Cardeal Inquisidor em 1576 e o
mourisco Francisco, “que cuida das estrebarias do Conde de Ribeira
Grande”(1677) (28) sendo em tais espaços que vão ocorrer alguns
encontros homoeróticos.(29) Há também um cozinheiro, um criado
despenseiro do Marquês de Santa Cruz, um homem de pé do Governador do
Brasil Alexandre de Sousa Freire e dois mouriscos ocupando funções de
mando, seja como Meirinho da galé real, seja como carcereiro no
Limoeiro, a principal prisão de Lisboa neste período.
Quanto às práticas homoeróticas destes mouros, encontramos grande
diversidade de vivências, seja na frequência e morfologia dos atos
libidinosos, seja na escolha do parceiro e convivência homossocial com
outros amantes do mesmo sexo.
Alguns destes mouros parecem ser novatos na somitigaria: Gil (30),
forro de “menos de 20 anos”, teve a desdita de cair nas malhas da
inquisição aparentemente logo no primeiro ato sodomítico: ao violentar
um menino de 9-10 anos, Baltazar, “tirou-lhe muito sangue de modo que em
dois ou três dias não podia fazer suas necessidades e por quatro ou
cinco dias não podia sentar e no dia seguinte quis dar-lhe 20 réis para
que dissesse ao seu patrão que o não fizera mal, apenas o batera com uma
correia.” Depois dessa abominável violência, lançaram o pedófilo fora
de casa.
Outro acusado, identificado simplesmente como “mourisco” 19 anos, repete
em 1576 o mesmo padrão de assédio sexual contra um pré-adolescente:
convertido há um ano e fugindo de sua pátria, cometeu sodomia com dois
moços, um deles sendo encontrado pelas testemunhas com marcas de sangue.
Ao ser preso, confirmou ter sodomisado os mancebos, dizendo que “assim
costumava lá na sua terra fazer e se tinha por costume entre os mouros
donde nascera fazer o mesmo”. Foi condenado a 5 anos de galés “por ser
menor, por ter apenas um ano de convertido e esperança de emenda.” (31)
Diversos levantinos, como este último cristão novo "ex-muslim",
confirmam que eram habituados ao homoerotismo desde quando viviam na
Berbéria: em 1691 Thomas Marunita (32), 30 anos, filho de Aresque e
Jitelbech, natural do Cairo onde foi batizado no rito maronita,
exercendo em Lisboa a ocupação de sotacocheiro na casa do Embaixador da
França. Disse que no Cairo, dos 15 anos aos 23 anos, relacionou-se
sexualmente com muitos e vários homens, às vezes como agente [activo],
outras, paciente [passivo], incluindo “alguns turcos de nação, outros
egípcios, todos profitentes da seita de Mafoma, mas não pode numerar
todos.” Disse que há oito anos embarcou para Veneza e em seis meses, lá
cometeu somitigarias com um moço marinheiro filho de um capitão, sendo
agente três ou quatro vezes; daí foi a Paris em companhia do Monsieur de
Amelot de quem era criado e copulou várias vezes por dois meses, sempre
agente, com um francês, cozinheiro da mãe de seu patrão. Há seis anos
veio para Lisboa acompanhando o dito embaixador e por três anos, copulou
três vezes com Charbam, francês de nação e vinte vezes, com Guilherme,
16 anos, filho de uma alemã, tendo atos libidinosos com um menino de 7-8
anos na casa do Embaixador. Sem saber que diferentemente das
inquisições espanholas, o Santo Ofício lusitano não perseguia o
bestialismo, confessou ainda: “com grande tentação do demônio, teve
ajuntamento carnal duas vezes com uma cabra, pelo vaso natural, por fora
derramou semente e também com uma burra na estrebaria”. Disse que há
três anos servia o Embaixador, vivendo em casa do Marquês de Nizza em
São Roque, onde teve vinte sodomias com Zeladon, francês de nação,
criado do embaixador e com mais três criados franceses do Embaixador, um
de 12 anos. Incluiu em sua crônica erótica algumas fornicações pelo
vaso natural e pelo traseiro com uma mulher-dama moradora ao Lagar,
castelhana de nação. Pede perdão por tantos pecados da carne!
Misericordiosos e certamente para não criar problemas com a chancelaria
do rei Luiz XIV, os Inquisidores deliberam, tout court, que esse fogoso
egípcio afrancesado fosse degredado para sempre para fora do Reino, com
leitura da sentença na mesa inquisitorial, o que sequer chegou a ser
cumprido, posto que espertamente o Embaixador da França encarregara-se
de embarcar seu sotacocheiro para fora do Reino.
Neste seu relato o egípcio frisa que na sua terra natal, cometeu com
muitos e vários homens o nefando pecado, “as vezes como agente, outras,
paciente”, embora ao identificar os parceiros em mais de meia centena de
atos sodomíticos consumados nos últimos oito anos, insistiu sempre ter
sido “agente”.
Também João de Távora, mourisco forro já citado, menor de 25 anos,
batizado em Ceuta há sete, preso em 1556, declarou ter cometido diversas
vezes o pecado com alguns moços em Lisboa, sendo “agente”. E por sua
performance libidinal, revela ser bom "connoisseur" desse "métier":
quando morava no Colégio da Companhia de Jesus aprendendo a doutrina,
“apagou a lâmpada, cuspiu na mão e untou o vaso traseiro de João, 12
anos e meteu seu membro viril: o menino quis gritar, mas o réu impediu,
ameaçando-o de morte, repetindo o ato muitas outras noites.”
Também Francisco (33), criado marroquino de 25 anos, preso em 1662,
“homem de pé”, que disse já ter morado em Marzagão, Algarves, Vila
Galega e Óbidos, batizado na igreja dos jesuítas de São Roque, foi ativo
cinco vezes com o mulato João Róis e passados três meses, “levou-o para
dentro da casa de seu amo e tentou pecar no nefando, recusando, meteu a
mão na sua braguilha, mas também recusou.” O mouro Alle, flagrado
cavalgando um mulato, foi sentenciado a 10 anos de galés “pois cometeu
muitas vezes o mau pecado sendo agente.” (34)
Aliás, conforme veremos mais adiante, nos relatos de portugueses que
viveram como bardaxos na Berbéria, há informação de que era valorizado e
prova de masculinidade, o ativo-penetrador exibir-se publicamente como
tal, tendência que parece ter se enfraquecido do lado cristão do
Mediterrâneo, percebendo-se entre os mouriscos maior versatilidade
libidinosa, vários tendo praticado sodomia "ad invicem", como se
referiam os Inquisidores ao “troca-troca” entre ativo e passivo. O já
citado João Pereira, marroquino de Tetuão, 16 anos, confessou ter sido
passivo de Hamet e Gonçalo, enquanto com Felipe foi agente e paciente. O
mouro Salim (35), feito cativo em Argel, confessa em 1552, que foi
quatro vezes passivo do mouro cativo do Almoxarife da Casa da Índia,
tendo igualmente “ajuntamento por detrás” com Hamet, 17 anos.
Diversos magrebinos presos pelo Santo Ofício revelam participar de
extensa e diversificada rede social de praticantes do homoerotismo,
incluindo outros levantinos, indianos e africanos, mas também fanchonos
portugueses. Joane, o já citado mouro de nação, preto, 30 anos, escravo
da estrebaria do Cardeal Inquisidor, tem um séquito de onze cúmplices
nefandistas a quem assediou sexualmente, com alguns chegando a “meter
sua natura no cuu”, quase todos jovens ligados a seu mesmo universo de
trabalho: escravos mouriscos estribeiros e um cozinheiro indiano do dito
Cardeal e com outro “escravo panasco meteu-lhe a natura e lhe deu 1
vintém”, mas também com homens brancos, com o criado de D. Jerônimo, na
quinta da Companhia e com Belchior, criado do cozinheiro mor do cardeal.
João Antônio (36), turco de 18 anos, criado de D. Bartolomeu Veiga,
preso em 1562, pela frequência e ousadia em assediar e aceitar os
convites de outros homens, se enquadra na categoria que os Inquisidores
nomeavam de “sodomita convicto e exercente”, e que entre os próprios
homopraticantes e a população em geral chamavam de “fanchonos”.
Certamente frequentava locais de encontros homoeróticos existentes na
cena gay lisboeta (37), como sucedeu à véspera de sua detenção: disse
que “ontem, nos alpendres de São Francisco, um estrangeiro de 40 anos
que fala sete línguas, bem vestido, com chapéu, barbas, capa frisada,
calções de sarja e adaga dourada, travou com ele práticas dizendo que
era amigo de estrangeiros e mancebos do seu jeito e que tinha uma casa e
havia medo de estar só e que queria que pousasse junto”. Certamente por
estar habituado a tais encontros, industriou-o que se perguntado,
dissesse que lhe trazia uma carta dos Algarves. E como estava muito
quente, o homem desatacou-lhe os calções e começaram a se tocar, quando
chegou um mourisco de cabelo branco e mais dois moços seus vizinhos, e
ficando a sós, despiram-se, ele denunciante atemorizado, e abraçou-o e o
beijou, tentando três vezes praticar sodomia, mas negou dizendo que
“era pecado mortal e que não fizesse tal”, ao que respondeu o
estrangeiro poliglota : “cala parvo, que não sabes o que dizes”.
Essa foi a confissão original do jovem turco, se passando por vítima,
versão logo desacreditada devido às diversas acusações que contra ele já
estavam registradas nos processos de outros sodomitas investigados pela
Santa Inquisição: um jovem de nome Pero, 21 anos, disse que viveu seis
meses com o citado turco, que por muitas vezes João Antônio dormiu com
ele sem sua vontade e chamava também Mesquita para pecar e outros
mancebos; Miguel, 16 anos, que conviveu por um ano com o réu e o
convidara uma vez para dormir em sua casa, “pediu que lhe mostrasse suas
vergonhas e ele por importunado lhe mostrou e lha apalpou” e isto
repetiu outras vezes.
Informa detalhes sobre os encontros destes jovens de diferentes origens
étnicas e sociais: “iam a sua casa moços desbarbados bem dispostos,
entre estes, criados de fidalgos e também mulheres solteiras ”, e
mandava buscar pão e vinho, e aí se abraçavam e beijavam, dormindo
juntos duas vezes “e por esta causa saiu de sua casa”. Outro mancebo,
Inácio Lopes Mesquita, 17 anos, de Guimarães, criado do Escrivão da Casa
de Ceuta, disse que este turco o “apalpou e pegou nas suas vergonhas e
com força dormiu com ele.” Em sua confissão, o réu disse ter provocado
muitos moços para pecar e que alguns moços não consentiram, mas com
tocamentos desonestos e polução (38) conseguia o desejado e que certa
vez “se rapara o dito turco diante de um moço em suas partes desonestas e
o mesmo fizera ao dito moço”. Diz que frequentava sua casa Francisco de
Melo, fidalgo que foi na armada, e muitos estrangeiros, incluindo dois
criados portugueses, cometendo com um tal de Pedro em sua casa na
Mouraria, duas sodomias depois do jantar, contra a vontade do moço, três
vezes com Mesquita e outros mais, “sempre o réu provocava, mas
conhecera (39) fora de seu corpo no mais das vezes e sempre estava
alegre de vinho quando pecava neste pecado”.
Diversos são referidos como useiros na prática do mau pecado: os já
citados Alle, 30 anos, há quatro em terra de cristãos, “era muito
infamado”; o mourisco João de Noronha, 40, cativo do Bispo de Porto
Alegre era “infamado publicamente de somítigo” tanto que ao tentar
beijar um menino de 10 anos, este fugiu, “porque era infamado de cometer
os rapazes”.
Contou o forro Felipe Mourisco (40) que já depois de batizado, no dia de
São João de 1557, “indo com outro moço pobre, Gonçalo, pelas quintas
desta cidade procurar emprego e comer frutas, não tendo onde dormir
foram a uma estrebaria onde havia outros mouros dormindo.” Trata-se da
Estrebaria do mouro Hamet, sita à Rua Nova dos Ourives, o espaço
lisboeta de maior concentração de sodomitas de origem muçulmana, sempre
acompanhados de fanchonos cristãos. O marroquino João Pereira, de 15-16
anos, diz que também ele fora convidado por Felipe Mourisco para pousar
na mesma estrebaria, e num colchão, dormiram êle, Francisco de Argel
que foi escravo do vice rei da Índia, Hamet e o dito Felipe e todos
mantiveram cópula com Gonçalo, “que às vezes ria ou chorava e parece que
consentia nisso”. Na mesma estrebaria somitigou com Hamet sendo
paciente, mais duas vezes com Felipe sendo agente e com o dito Gonçalo,
uma vez, também agente. Ao ser inquirido, o moço pobre Gonçalo, 15 anos,
disse que três mouriscos seguraram-no pelas pernas e o sodomizaram
“cada um a sua vez “ (41).
Tais relatos evidenciam, como padrão predominante, mouriscos assediando e
relacionando-se sexualmente com seus próprios conterrâneos, em menor
número fornicando com portugueses. Eram compulsoriamente levados a
praticar uma espécie de “endogamia homoerótica”, decorrente da
apartação social a que estavam confinados e quiçá por ostentarem
fenótipo depreciado no mercado libidinal europeu, onde a beleza estava
fortemente ligada à raça branca. Raros são os mouros que assediavam aos
cristãos brancos adultos, devido aos códigos tradicionais de distância
estamental dominante que separava os cristãos velhos das pessoas de
“sangue infecto de judeu, mouro, preto ou índio”, conforme previam os
estatutos de limpeza de sangue vigentes na época.
Contudo, além do episódio há pouco citado em que o jovem turco relatou
ter sido seduzido por um estrangeiro quarentão que lhe disse gostar de
“mancebos do seu jeito”, encontramos outro episódio de relação
interétnica onde patenteia-se a técnica de sedução aplicada por um
incorrigível sodomita branco "vis a vis" um mouro de cara escura: Mestre
Felipe Correia (42), cirurgião, foi preso pela inquisição de Évora em
1553. Natural de Torres Vedras, casado, tinha pouca barba, meão, moreno,
cabelo comprido. Assim foi denunciado pelo mourisco Domingos de
Miranda: “mostrou um pedaço de seu peito tomando-o com a mão e dizendo
que também tinha peito como Francisca e de noite, tomou sua mão e a pôs
sobre seu peito enquanto alisava-lhe a barriga e coxa, chamando-o de
mano, dizendo que tinha muitas formosas carnes e lá fora me vestirei de
outros vestidos e de camisas perfumadas e farei unguentos para o rosto
para parecer bem e vos farei uma mesinha, para vos crescer a barba e
parecerdes mais alvo de rosto” e meteu a mão na natura do mouro,
advertindo que se chegasse alguém, mudassem de assunto, prometendo
dar-lhe 4 mil cruzados se o acompanhasse à sua terra. Disse mais: que o
“mestre solorgião fazia mesura como as mulheres, que é puto e queria que
o cavalgasse”.
Comparando essa vintena de sodomitas levantinos com mais de quinhentos
processos relativos ao mau pecado, salta aos olhos a maior frequência de
condutas sexuais violentas tendo crianças ou pré-adolescentes como
vítimas. Violência, aliás, igualmente praticada nas relações
heterossexuais, embora menos documentadas, posto que tais abusos entre
homens adultos e meninas e adolescentes não pertenciam ao conhecimento
do Santo Ofício. O mourisco Gil, 20 anos, já citado, “foi visto pegando
um moço pobre no braço e levá-lo a um palheiro e conheceu-o como homem
com mulher, chorando o moço, tinha sinais de sangue em suas partes
vergonhosas” o que foi noticiado não só por uma “mourisca que vende
cuscus”, mas pelo próprio menor, Baltazar, 9-10 anos, declarando que
“lhe levantou as abas porque não trazia calças” e meteu-lhe no vaso
traseiro, do qual “tirou-lhe muito sangue”.
O citado João de Noronha, 40 anos, casado com mourisca, copulou a força
com dois meninos de 8 e 10 anos, um no forno de Beatriz, do qual diziam:
“este coitadinho não se pode sentar porque João, mourisco do Bispo,
dormiu com ele por detrás tirou-lhe uma tripa que trás fora” e a mãe do
menino foi à casa do Bispo que estava ausente e como não quiseram abrir a
porta de noite, ajuntou muita gente e em altas vozes bradou e lho fez
botar fora da cama onde dormia. Um dos meninos disse que tentou beijá-lo
e fugiu porque era infamado de cometer os rapazes; outro, de 13 anos,
disse que o réu levou-o para trás do mosteiro e “assentou na palma da
mão e o levantou do chão e lhe disse que se lhe queria dar de carregar” e
dizendo que não, o soltou (43). O mouro de nação Antonio José de
Noronha (44) é denunciado em 1754 que na enxovia da cadeia comete
“sedomia” com um rapaz, Marcelino, colocando-lhe uma navalha no peito
que se gritasse, morria.
À guisa de conclusão dessa primeira análise relativa aos mouros
sodomitas em Portugal, restam ser feitas algumas considerações sobre a
repressão inquisitorial a tal minoria étnica. Dos 19 mouros presos e
processados por sodomia, 5 foram açoitados nos cárceres ou publicamente
pelas ruas de Lisboa, 3 foram torturados sob suspeita que ocultavam suas
culpas, 13 foram condenados a remar nas galés, variando de dois a dez
anos, a maioria por cinco anos, apenas um, o turco João Antonio, foi
condenado a galés perpétuas, assim justificada sua condenação: “em
grande detrimento de sua consciência e dano da república, praticou o
abominável pecado de sodomia durante muito tempo, com muitas pessoas em
diversos lugares”. Todos que já eram batizados tiveram de cumprir as
penitências espirituais de praxe, incluindo orações diárias, confissão e
comunhão nas principais festas litúrgicas, e no caso dos renegados ou
suspeitos de apostasia, assinaram termo de abjuração, comprometendo-se a
seguir fielmente os ensinamentos católicos, devendo trazer o hábito
penitencial e ser instruídos no Colégio dos Jesuítas.
Apenas um foi condenado à morte na fogueira, o turco Osmão, 55 anos, e
de todos esses réus, o que mais sofreu, estando entre os raros sodomitas
a purgar dois tipos de castigos: “levado à casa do tormento, foi
despido e posto deitado no potro, se lhe deu uma volta de cordel e por
ele réu não confessar cousa alguma, o ministro lhe deitou água pela boca
coada por um pano de linho, de licença do Sr. Inquisidor, tomadas
primeiramente informação do ministro que o réu não corria perigo algum
em lhe darem a beber água e depois de lhe darem alguns púcaros de água
disse o réu que queria falar a verdade...” Como havia diminuído a
confissão de suas culpas, o Conselho Geral foi inclemente,
considerando-o incorrigível, assim declarando no Acórdão: “cometeu o
horrendo crime de sodomia com muitos moços cristãos, por muitas vezes,
com muito atrevimento”, sendo entregue ao auditor Geral das Galés para
fazer cumprimento da justiça, determinando que “seja executado do modo
que se faz nos relaxados pelo crime de heresia por ordem de S.
Majestade.” (45) Sua execução entrou na casuística inquisitorial, pois
de acordo com os regimentos, não se aplicava a pena capital a culpados
de primeiro lapso, “salvo de um turco Osmão, que como era este de seita e
nação, não convinha nem era razão que gozasse desse privilégio”.
Xenofobia e homofobia se dão as mãos.
Embora não haja registro nas Listas dos Autos de Fé das Inquisições, nem
referência na História dos principais actos e procedimentos da
Inquisição em Portugal (46), há informação na obra "Monstruosidades do
tempo e da fortuna: Diario de factos mais interessantes que succederam
no reino de 1662 a 1680, até hoje" (47), de autoria de J.A.Graça
Barreto, que aos 22 de agosto de 1679, foram presos pela justiça secular
cinco mouros que mantinham relação orgiástica com um ex-pajem do
Tesoureiro Mor da Sé de Lisboa. Examinados pelo Santo Ofício, foram
devolvidos ao juízo civil. O pajem, por ser menor, foi açoitado e
obrigado a passar três vezes pelo fogo, sendo desterrado para Cabo Verde
por toda a vida. Quanto aos mouros, três se converteram sendo batizados
em um altar adrede preparado no Cais do Carvão, local onde cometeram o
delito. Consta ter concorrido muito povo para assistir à queima,
sucedendo edificante sinal dos céus: os mouriscos cristianizados
“ficaram com seus rostos, outros, depois do batismo, pois neles se via a
graça que haviam recebido”, enquanto os dois não conversos, “se foram
em companhia para o inferno.”
Verdade seja dita,em muitos desses processos de maometanos envolvidos
com práticas homoeróticas, prevaleceu por parte dos juízes
inquisitoriais,mais a misericórdia do que a justiça no castigo dos réus.
Por exemplo, em 1582, o mourisco de nação Manuel de Menezes (48), 35
anos, é acusado de ter sido visto beijando e abraçando um menino de 12
anos. O Inquisidor manda “averiguar extra judicialmente e com toda
cautela para confirmar se é verdade, pois é só uma testemunha que disse
ter visto e ouvido: que se vá ao local do crime conferir se era possível
ver e ouvir”. Após a investigação, concluemos Deputados do Santo Ofício
que não há culpa de sodomia, posto ter sido só uma testemunha, mas que
sejam os suspeitos separados, sem prisão, seja absoluto por falta de
prova, mas que volte para as galés de onde fugiu, para evitar
reencontrar o cúmplice.” Algumas vezes os Inquisidores atribuíram penas
mais leves levando em conta que o mouro tinha se convertido fazia pouco
tempo, ou que estava tomado do vinho quando cometeu o mau pecado, que
era de menor idade, ou ainda, que havia esperança de emenda, alguns dos
apenados alegando que queriam mudar de vida: o citado turco João
Antonio, condenado a galés perpétuas, após cinco anos preso, recebendo1
tostão por dia del Rey para seu mantimento, diz que construiu muitas
galés que estão nos Algarves defendendo o reino e nelas não foi
embarcado porque se fosse preso por turcos ou mouros “lhe fariam muito
mal se o tomassem e mais não sendo sua vontade senão casar e assentar
sua terra e servir a Deus”. Misericordiosos, revogam a perpetuidade do
castigo, libertando-o com o recado: “Que se case e não torne a
pecar.”Uma quase paráfrase do dogma paulino: “Melhor se casar do que se
abrasar!”
3. Cristãos bardaxos na Berbéria
“Terra do mau pecado” era como os inquisidores se referiam à Berbéria,
refletindo o imaginário homofóbico e a xenofobia dominantes na
cristandade, desde a Idade Média,mas,sobretudo, durante a Reconquista e
nos tempos modernos. A mais de um réu, os Inquisidores questionaram os
réusse sentiam bem da lei dos mouros por darem liberdade para pecar no
pecado da sodomia.
Viajantes europeus, como o inglês Joseph Pitts, que viveu quinze anos
como cativo em Argel nos meados do século XVII, confirmaram a sôfrega
visibilidade do homoerotismo no mundo islâmico: “o horrível pecado de
sodomia está tão longe de ser punido entre os árabes, que faz parte de
seu discurso ordinário e se vangloriam dessa detestável ação. É tão
comum para um homem de Alger estar apaixonado por um rapaz, como na
Inglaterra estar apaixonado por uma mulher.” (49) Também o escritor
francês C.S. Sonnini, que visitou o Egito em 1777, declarou que “a
paixão contra natureza, este inconcebível apetite que desonrou os gregos
e persas na antiguidade, constitui o deleite e a infâmia dos egípcios.
Não é para as mulheres que escrevem seus versos amorosos nem dirigem
suas carícias lascívias: é outro o objeto distante que os inflama.” (50)
GREENBERG (1990), ao analisar comparativamente a presença dos amores
unissexuais no mundo antigo, conclui que a homossexualidade masculina
foi “profunda e altamente visível” entre os árabes e no mundo islâmico
(51) e BOSWELL (1980) lembra que a língua árabe possui vasta
terminologia erótica, com uma dezena de palavras só para descrever
prostitutos masculinos.” (52) Entre tais termos homoeróticos, vale
destacar o étimo “bardaxo”, citado quando menos em cinco processos de
renegados do século XVI do Marrocos e Argélia, conforme veremos mais
adiante, comprovando a amplidão de seu uso não só no mundo mediterrâneo,
como no Novo Mundo. Segundo DYNES (1985:20) e COUROUVE (1985), bardaxo
provem da língua persa, bardag, significando originalmente “jovem
escravo passivo sexual”, divulgado no mediterrâneo através do árabe
vulgar, bardaj: جَُدرْبلاَ, “cativo, capturado”, grafado
bardaxo-bardacho em português, bardaje/bardaxe em espanhol,
bardasse/bardascia em italiano, berdache/bardache/bredache/bredaixe em
francês e bardashe em inglês. Salvo erro, data de 1537 a primeira vez
que “bredaiche” é grafado em francês, citado na década seguinte por
Rabelais “bredache” (1548) e curiosamente já em 1575 escrito pelo
missionário francês André Thevet, “bardache”, para se referir aos índios
Tupinambá do Brasil praticantes do abominável pecado de sodomia. (53)
Foi notadamente a partir da conquista da Praça de Ceuta no Marrocos, em
1415 (54), que os portugueses depararam-se com a chocante presença de
amantes do mesmo sexo por toda a Berbéria, tanto nos estamentos
populares, nos banhos públicos, como dentro das mansões. Aliás, cenário
assaz semelhante ao que existiu por séculos na Andaluzia e demais reinos
cristãos dominados pelos sarracenos. (55)
Na documentação inquisitorial, tanto em Portugal, quanto na Espanha e
Itália, há centenas de processos de católicos “renegados”, a quem
Bartolomé Bennassar chamou de “Cristãos de Alá” (56), alguns, além de
converterem-se sincera ou oportunisticamente ao maometanismo, adotaram
trajes, costumes e práticas sexuais islâmicas, inclusive o “vício dos
persas” ou “vício dos árabes”, expressões usadas pelos cristãos desde a
idade Média para se referir ao “pecado cujo nome não pode ser
pronunciado”. (57) Tais renegados eram punidos como hereges por terem
vilipendiado o sacramento do batismo, arrenegando a verdadeira religião
ao adotarem a doutrina e as cerimônias do Corão. Ao serem presos pelo
Tribunal do Santo Ofício, muitos deles já tinham sido denunciados,
alguns confessando ter praticado o mau pecado na terra dos infiéis.
A partir dos relatos destes apóstatas, nota-se a existência de quando
menos duas categorias de homoeróticos na Berbéria: cristãos livres ou
cativos que espontaneamente mantinham relações sexuais com nativos do
mundo islâmico e cativos cristãos que eram usados sexualmente por seus
senhores como faziam costumeiramente com os bardaxos nativos. (58)
Localizamos na Torre do Tombo nove notícias sobre renegados
homoeróticos, entre 1557-1657, sendo cinco no século XVI e quatro no
XVII, incluindo sete portugueses, um francês e um catalão. Além destes,
dispomos de mais oito indicações de renegados “bardajas” e “putos”
processados pelos Tribunais do Santo Ofício de Múrcia, Maiorca e
Sardenha entre 1576-1678, incluindo dois espanhóis, dois portugueses e
um grego, sardo, maltês e corso.
Semelhantemente aos mouros presos em Portugal por sodomia, também estes
renegados estavam na flor da idade, entre 21-33 anos, quando se
envolveram com práticas sodômicas, notadamente em Argel, Tanger e Fez,
mas também nas distantes franjas do mundo islâmico, como ocorreu com
Pedro Medina (59), 30 anos, preso nos Estaus do Santo Ofício de Lisboa
em 1657, filho de pai português, nascido no México. Como soldado navegou
por distantes reinos então pertencentes às coroas de Portugal e
Espanha, em todas estas terras mantendo relações homoeróticas, sendo
islamitas alguns de seus parceiros: “na vila de Mogor, na Pérsia”, no
Ceilão, em Malaca, nas Filipinas, em Jacatará na Índia. Foi na Pérsia
que negou a fé em Cristo. Preso pelos holandeses no Ceilão há dois anos,
tentou fugir com os portugueses, mas foi pego e acantonado por seis
meses num navio sem descer à terra, praticando então quinze atos de
sodomia.
Também marinheiro, o catalão Salvador (60), 25 anos, natural de
Mosteros, termo de Barcelona, processado em 1557, disse que foi
capturado pelos mouros em Cartagena, convertendo-se à religião dos
turcos, observando seus jejuns e preces, chegando a perseguir e açoitar
os cristãos cativos. Acusou-se de ter praticado o “mao pecado, sendo
paciente”. Como em outras confissões quejandas, os Inquisidores fizeram
ouvido mouco deste desvio libidinoso, constando em sua sentença apenas o
crime de heresia e apostasia, nenhuma referência à sodomia.
No Reino de Fez, consta que havia um mulato “que por nome de cristão se
chama Clemente e por nome de mouro Cara Mustafa, que cometia o pecado de
sodomia com um judeu moço de 18 anos, chamado Jacob, que era usado como
mulher no pecado contra natura”. (61) Também o mercador Gonçalo Pires
(62), cristão novo, natural de Ponte do Lima, 23 anos, cujos pais eram
“judeus em Selanique, Judéia de Turquia”, donde ele fugiu para Roma e de
lá para Lisboa, confessou que na Turquia manteve cinco cópulas
sodomíticas, com turcos e judeus, ora agente, ora paciente, o mesmo
repetindo em num banho em Roma, Veneza, São Tomé e na Bahia.
Dentre os cristãos que livremente mantinham relações sexuais com nativos
do mundo árabe, Jorge Mendes Morato (63), 25 anos, natural de Estremoz,
preso nos Cárceres do Santo Ofício em 1576, é o renegado de quem
possuímos mais detalhes relativamente a suaspráticas homoeróticas.
Declarou que quando rapazote de 14 anos foi para a cidade de Tanger, “de
sua própria e livre vontade”, permanecendo por 15 anos nos reinos do
Marrocos e Fez, onde “se deitou com os mouros de África e se apartou de
nossa santa Fé católica, passando-se à maldita seita de Mafamede”,
circuncidando-se, frequentando mesquitas, cumprindo todos os lavatórios
rituais, orações e jejuns, pelejando contra os cristãos, lá chegando a
casar-se duas vezes. Devido a sua valentia, recebeu o título de “Erche”
(64), tornando-se um dos mais valorosos capitães, muito estimado do
Xerife (65), que o cumulou de mercês e rendas, seguindo religiosamente a
Lei de Mafoma. Por motivo ignorado, fugiu para Tanger levando consigo
quatro cativos cristãos, retornando ao Reino de Portugal munido de
elogiosa carta de apresentação do Governador do Marrocos, D. Duarte de
Menezes e do Deão do Cabido local, que atesta sua reconciliação cristã e
dos demais acompanhantes com a Igreja.
A despeito destas credenciais, foi encarcerado no Tribunal do Santo
Ofício, suspeito de continuar cripto-muçulmano. Entre seus delatores, o
mulato Antônio Esperança, igualmente retornado do Marrocos, informou que
no tempo em que esteve em casa do Xerife e em poder seu Alcaide Morato,
o mesmo “tinha dois moços bardaxos com os quais dormia por detrás e o
sabe porque o dito Morato vinha por diante dele dormir com os ditos
moços por detrás e tinham isto lá por galanteria e que isto é publico e
notório e trazia sempre por atrás de si dois bardaxos a cavalo, e que
disso pode saber o cocheiro que era seu criado e também Antonio Froes,
por ser seu soldado e por ser esta a verdade.”
Outra testemunha João Cordeiro, é perguntado se “estando em Berbéria viu
ou ouviu dizer que alguns Erches usassem de moços em lugar de mulheres e
com eles fizessem o nefando pecado de sodomia e como se chamam os tais
Erches e onde residem agora; respondeu que estando em Berbéria ouviu
dizer que Jorge Mendes Morato, Erche, o qual reside agora nesta cidade
de Lisboa, usava de moços como se fossem mulheres e que tinha em sua
casa dois moços erches, um dos quais se chamava Amet, pelo nome dos
mouros, de idade de 16 anos, e o outro se chamava Morato, de 20 anos, o
qual morreu nesta guerra que teve o Maluco (sic) com o xerife e o outro
Amet ficou ao tempo de sua jornada em casa do Maluco e com estes dois
era público entre os Erches que usava Jorge Mendes deles como mulheres e
que com eles cometia o pecado nefando de sodomia mas que ele,
testemunha, sabe pelo ver que quando o dito Morato entrava na casa dos
banhos pera se banhar, mandava algumas vezes a um destes e outras vezes,
ambos, que lhe levassem à dita casa algumas cousas necessárias pera se
banhar e que depois de os ter lá dentro, fechava a porta e ficava lá a
sós e que não sabe se seria isto pera algum outro efeito mais que pera
os ir ver nos banhos. E perguntado mais se depois de cada um destes
moços saírem da dita casa lhe fizeram a ele testemunha, queixume, ou
ouviu dizer que se queixassem à alguma outra pessoa de se cometer com
eles o pecado de sodomia, disse que nunca os dois moços lhe fizeram e
ele queixume do mesmo”.
O antigo Erche Morato tentou desqualificar tais acusações, alegando que o
xerife o escolhera para cuidar de suas duas mulheres, filhas e moços
bardaxos “por ser casto e se tivesse praticado sodomia, teria sido morto
pelo xerife”. Posteriormente, contudo, assume “que todos os renegados
têm por costume em lugar de mulheres, terem moços para suas
sensualidades com os quais cometem o pecado de sodomia e que disto se
gabam”. Acrescenta que seu denunciante Antônio Esperança também se
gabava, mas ele réu “se gabava só para os mouros não cuidarem que ele
era cristão, mas não cometia-o e que o xerife lhes encarregava todos os
moços por ter confiança nele e aborrecer muito todas as pessoas que o
cometiam, daí entregar-lhe todos os moços e mulheres para que cuidasse.”
Desculpa difícil de acreditar, convenhamos.
A documentação inquisitorial sugere a existência de uma segunda
categoria de homopraticantes na Berbéria: cativos cristãos que eram
usados sexualmente por seus senhores como faziam costumeiramente com os
bardaxos nativos. Diversos renegados afirmaram categoricamente terem
sido vítimas do abuso sexual de seus proprietários muçulmanos. Francisco
Francês (66), 25 anos, preso em 1558, natural do Languedoc, capturado
pelos turcos aos 12 anos num campo de Marselha e levado para Argel, onde
por três anos seguiu os preceitos de Mafoma, assegurando porém que
“nunca teve coração de mouro”. Servia de lavadeiro na galé de seu
senhor, o qual “o usava no mau pecado”, até ser resgatado nas costas dos
Algarves. Francisco Freitas, cativo em Argel em 1619, diz que seu amo, o
turco Mustafá o sodomizou durante os oito meses de seu
cativeiro,“consentindo por ser seu cativo” (67). Juan Carbonell, 33
anos, natural de Palma de Maiorca, residente em Alexandria, preso em
1644 no Tribunal do Santo Ofício desta ilha, “cometeu o pecado contra
natura com seu senhor ao mesmo tempo como agente epaciente.” (68) Neste
caso parece que houve certa cumplicidade do cativo cristão, pois ser
ativo na cópula anal implica em consentimento no ato venéreo.
Dois renegados se auto-nomearam “bardaje”: Antonio Vello, português de
22 anos, capturado quando tinha 15 anos, renegado que vestia roupas de
turco, processado pela Inquisição de Múrcia em 1587, disse que foi
“bardaje de seu senhor” (69), assim como Clemente Saura, aragonês da
Maiorca, réu da Inquisição da Sardenha (1585), “serviu de bardajo a seu
senhor durante quatro anos” até que fugiu e foi se reconciliar na
Córsega. (70)
Somente um, dentre esta quinzena de renegados disse não ter consentido e
reagido contra o assédio homoerótico de seu dono: Valério Alum, natural
da ilha de Malta, 35 anos, preso pelo Tribunal da Sardenha em 1670,
quando ainda era escravo, seu dono, Ali Mustafá quis faze-lo “puto e
usar dele pela traseira” e por resistir, foi amarrado a um cepo.” (71)
É trágica a história de Manoel Ribeiro (72), reunindo numa só
personagem, ter sido abusado por seu senhor, mas também ser useiro em
nefandar com rapazes mouros: 22 anos, “de baixa estatura, olho azul,
claro, cabelo castanho”, é denunciado que lá pelos idos de 1647, “andava
amigado com um turco de quem era escravo e usava dele como sua mulher”.
Foi, contudo, largado pelo amo, que o mandou ganhar pela cidade o seu
jornal enquanto não se resgatasse. Era infamado de ser “sodomita agente
com rapazes mouros, e outros cristãos cativos se enfezaram do escândalo
que dava de nossa nação e religião e por o verem deitado com um mouro, o
amarraram, dando-lhe muitas pancadas e o afrontaram com imundícies
dizendo injuriosas palavras contra seu vício e pecado”. Revoltado com
tantos insultos e violência, o jovem sodomita é mais um a renegar sua fé
em Cristo, dizendo as palavras de praxe dos que aceitam a lei de
Mofamede. A infeliz mãe do réu, igualmente cativa com mais sete filhos,
sabendo desse seu desatino, declarou sem efeito o resgate e seu patrão
ex-amante deu muita pancada no galeguinho, quebrando-lhe um braço,
dizendo que devia ter renegado em praça pública entre mouros e não entre
cristãos, metendo-o na cadeia para que se tornasse cristão, mandando-o
para Tetuão. Consta ter ficado aleijado, mas dando sinais de cristão
praticante, trazendo o cabelo comprido e dizendo desejoso de ir para
terra de cristãos. Era bissexual, posto que se amigara com mouras e
“fizera o costume dos mouros galantes e namorados, dando um corte em seu
braço esquerdo na frente de uma enamorada e derramando o sangue no
vinho o bebera, fazendo demonstração de seu amor”, repetindo esse gesto
algumas vezes, “cortando do pulso até o lombo, sendo visto repetir as
mesmas feridas seis ou sete vezes.” Não obstante tais gestos de
galanteria, seu denunciante fornece-nos curiosa estimativa: “mais de 2
ou 3 mil cativos sabiam de sua fama de sodomita.” Outras testemunhas
asseveram que Manoel Ribeiro cometia o nefando com mouros, turcos e com
um cativo napolitano, sendo muito amigo dos mouros, comendo e bebendo
com eles, sendo tratado com largueza pelo seu patrão amante. Carregava
esta mesma má fama outro cativo português, “João Batista que arrenegou a
fé e vestia-se de mouro, e hoje tornou-se carmelita no Maranhão após
confessar-se na Inquisição”.
Estoutro episódio, tão insólito quanto o anterior, confirma que Gaspar
Barreto (73), devia ser tão encantador, que se tornou “mignon” de dois
potentados marroquinos da dinastia Saadiana. Era nativo de Marzagão e
morador em Betlem, confessando em 1630 que há 35 anos passados, na
cidade de Marrocos, “foi cativo do xerife Muley Abet-el-Medeo, que quer
dizer Anjo de Deus, o qual o mandou chamar à sua câmara e de ilharga o
xerife lhe meteu o membro viril no traseiro e seminou, obrigando-o
depois a se porsobre o xerife, mas não derramou semente nem se lhe
levantou a natura”, repetindo o nefando ato por seis vezes. Morrendo seu
dono, sucedeu-lhe o irmão, Muley Amet e “deitando-o numa alcatifa e
despindo-lhe por força os calções, de bruços,” o sodomizou. Disse mais
que o Alcaide do Marrocos, o português arrenegado, Roduão, também o
penetrou à força, igualmente usando dele na estrebaria de seu senhor.
Acrescentou que manteve relação com uma burra, uma ovelha e com sete
burras carregadas de comida do xerife.
Três destes sodomitas portugueses declararam ter sido soldados na
histórica armada de Dom Sebastião, sendo capturados pelos marroquinos
após a trágica derrota e desaparecimento del rei em Alcacer Quibir, em
1578: Bartolomé Corro (74), natural de Santarém, processado pelo
Tribunal de Murcia em 1588, esteve cinco anos engajado como soldado, e
aos 20 foi feito cativo; Antonio Vello, originário de Cascais, tinha
apenas 10 anos quando alistou-se na armada sebastianista, sendo
capturado aos 13, igualmente processado pela Inquisição de Múrcia,
inculpado, além de praticar a religião de Maomé, de ter sido “bardaje de
seus senhores”. O terceiro participante da batalha de Alcacer Quibir
denunciado por sodomia remete-nos a um colono do Brasil, confirmando a
fantástica mobilidade transcontinental destes portugueses quinhentistas,
numa época em que a travessia do Atlântico levava de dois a três meses,
dependendo das moções e calmarias. Gaspar Róis (75), “homem baixo do
corpo e magro”, nascido em Torres Novas, tinha 30 anos quando em 1591
foi denunciado ao Visitador do Santo Ofício em Salvador: um negro da
Guiné, Matias, 18 anos, disse que “dormira com ele por detrás à força e o
amarrava para tanto”. A história deste jovem do médio Tejo é
rocambolesca: quando tinha por volta de 17 anos, engajou-se como “fiel”
na armada portuguesa de D.Sebastião e após sua derrota nas areias do
deserto, foi capturado pelos mouros e vendido para remar nas galés dos
Turcos de Argel, navegando pelos mares de Constantinopla e Grécia.
Passados quatro anos, “per si adquiriu cento e tantos escudos espanhóis
de ouro, com que se resgatou e se tornou para Portugal, depois tornou à
Ilha Terceira na armada do Marquês de Santa Cruz, daí vindo para o
Brasil”, pelo ano de 1586. Em Salvador estabeleceu-se como feitor na
propriedade de Manuel de Mello, irmão do Cônego Bartolomeu de
Vasconcelos, seu denunciante, tendo recentemente se retirado primeiro
para a recém-conquistadaouvidoria de Sergipe Del Rey,
encontrando-seentão na Cidade de Cuzco, no Vice-Reino do Peru, quando do
início da Visita Inquisitorial na Bahia. Um incansável globetrotter!
Consta que por causa do nefando episódio com o negro guiné, foram feitos
autos de denúncia contra ele, o qual, astutamente, pagou dez cruzados
para o escrivão para queimar os autos,deixando-se por conseguinte de se
proceder contra o delato. Dentre seus oito acusantes, o relato do Padre
Baltazar Lopes, 35 anos, é-nos particularmente interessante: “ouvia
dizer que estando cativo em terras de mouros, Gaspar Róis usava no dito
pecado de sodomia e trazia os cabelos do toutiço depenado”.
Certamente fora algum outro remanescente da fatídica armada real, seu
parceiro de infortúnio, quem espalhara pelo Novo Mundo detalhe tão
comprometedor: que antes do suposto assédio sodomítico ao negro na
Bahia, o feitor Gaspar Róisjá “usava no dito pecado de sodomia”,
acrescentando detalhe etnográfico revelador: “trazia os cabelos do
toutiço depenado”. Toutiço é termo antigo pouco usado no Brasil e
refere-se “a parte traseira e inferior da cabeça, nuca”. Depenado
significa, tirar penas ou arrancar pelos ou cabelos. Investigando
imagens de homens com cabelos cortados na nuca, deparamo-nos com
fantástica gravura dos finais do século XVIII onde se vê um massagista
de um banho turco com a parte inferior da cabeça depenada. Consta que
tais jovens “rotineiramente prestavam serviços sexuais”. (76) Seria tal
corte de cabelo um sinal diacrítico identificador dos berdaxos, como que
simbolizando sua passividade quando deitados com a nuca à vista para os
homens que os cavalgavam pela traseira? Ainda hoje no Brasil
contemporâneo, usam-se as expressões “comer carne de pescoço”, ou
“fungar no cangote” para se referir à posição assumida pelo “agente”,
deitando-se sobre as costas do “paciente”, como diziam os Inquisidores.
Localizamos outro documento onde novamente raspar os pelos parece fazer
parte dos fetiches exercitados pelos homoeróticos de cultura islâmica: o
já citado João Antônio, 18 anos, criado de um nobre em Lisboa, preso em
1552, “que foi turco”, confessou perante o Santo Ofício ter mantido uma
dezena de encontros homoeróticos com estrangeiros, mouros e
portugueses, e que certa feita “se rapara diante de um moço em suas
partes desonestas e o mesmo fizera ao dito moço”. Em aproximadamente 600
processos de sodomia, envolvendo mais de cinco mil “cúmplices”, foram
estas as únicas duas vezes que encontramos referência a depenar o
toutiço ou rapar as partes desonestas, em ambas, envolvendo homoeróticos
ligados ao Islão. Uma pista a ser aprofundada pelos estudiosos do mundo
islâmico e da homossexualidade.
Luiz Mott é docente da Universidade Federal da Bahia (Brasil)
1 MARQUES, A. H. de Oliveira. “A persistência do elemento muçulmano na
história de Portugal após a Reconquista: o exemplo da cidade de Lisboa”,
in Novos ensaios de história medieval portuguesa, Lisboa, Presença,
1988.
2 Nem BLUTEAU (1728), nem MORAES (1789) fazem distinção entre mouro e
mourisco, embora certos autores identifiquem mouriscos como mouros
batizados. BLUTTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino.
Lisboa/Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 10 vols.,
1712-1728; SILVA, António de Moraes. Diccionário da Língua Portuguesa.
2ª ed. Lisboa, Typographia Lacérdina, 1813, v.
3 “Cristãos e Muçulmanos em Portugal”, Associação Internacional dos
Colóquios da Lusofonia, http://blog.lusofonias.net/?p=1001; RIBAS,
Rogério de Oliveira. Ser Mourisco em Portugal durante o Século XVI.
Anais do XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ, 2006; ORTIZ,
Antonio Domínguez & VINCENT, Bernard. Historia de los moriscos,
Madrid, Alianza Editorial, 1978.
4 M. VIEGAS GUERREIRO, « Mouro », inJ. SERRÃO, dir., Dicionário de história de Portugal, Lisboa, s. d.
5 BOUCHARB, Ahmed. Les Crypto-Musulmans d’origine marocaine et la
société portugaise au XVIe siècle.Thèse du Doctorat d’Etat ès-Lettres.
Montpellier, 3 vols., 1987; BRAGA, Isabel M. R. Drumond.
“Mouriscos e cristãos no Portugal quinhentista, duas culturas e duas concepções religiosas em choque”,
Lisboa, Hugin,1999; RIBAS, Rogério de Oliveira. Filhos de Mafoma:
mouriscos, cripto-islamismo e Inquisição no Portugal Tese de doutorado.
Lisboa, Vol. I e II, 2004.
6 CYSNEIROS, Marcus Vinícius de Macedo. “A Questão Mourisca”. Em Tempo
de Histórias - Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de Brasília PPG-HIS, nº. 17, Brasília, ago/dez. 2010;
ECHEVARRIA, Ana. The Fortress of Faith.The Attitude towards Muslims in
Fifteenth Century Spain, Leiden, Brill, 1999.
7 Agradeço ao Prof. Bartolomé Bennassar, da Université de Toulouse, a generosa indicação destes documentos. (1987)
8 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição Évora, Processo 8056, 1580, (doravante ANTT).
9 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 2033.
10 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 3208.
11 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6018. Sobre o Colégio dos Catecúmenos
de Lisboa, cf. TAVIM, José Alberto R. Silva. “Educating the Infidels
within:Some Remarks on the College of the Catechumen of
12 D. Sebastião “Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em
África, Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia,
Arábia, Pérsia e da Índia etc...”, ao promulgar a “Lei sobre o pecado
nefando de sodomia”, sugeria claramente que esses maus costumes
presenciados no Reino teriam vindo do além-mar: "Vendo eu como de algum
tempo a esta parte foram algumas pessoas de meus reinos e senhorios
culpadas no pecado nefando, de que eu recebi grande sentimento pela
graveza de pecado tão abominável e de que meus reinos pela bondade de
Deus tanto tempo estiveram limpos..." Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Livro 2º da Chancela”ia (1571)
13 MOTT, Luiz. "Pagode português: a subcultura gay em Portugal nos
tempos inquisitoriais”. Ciência e Cultura, SBPC, v. 40, p. 120-139, fev.
1980; BUNES IBARRA, Miguel Angel de. La imagen de los musulmanes y del
Norte de Africa en la España de los siglos XVI y XVII: los caracteres de
una hostilidad. Madrid, Consejo Superior de Investigaciones
Científicas, 1989; Los moriscos en el pensamiento histórico:
historiografia de un grupo marginado. Madrid. Cátedra, 1983.
14 São Pelágio, Martir:
http://editorasantuario.com.br/santo-do-dia/06/26; COOPE,Jessica.
Martyrs of Cordoba: Community and Family Conflict in an Age of Mass
Conversion.Lincoln, University of Nebraska Press, 1995; JORDAN, Mark
D.The Invention of Sodomy in Christian Theology, Chicago, 1997; KOLVE,
V. A. "Ganymede/Son of Getron: Medieval Monasticism and the Drama of
Same-Sex Desire". inSpeculum, Vol. 73, No. 4 (Oct., 1998), pp.
1014-67;HUTCHEON, Greg. "The Sodomitic Moor: Queerness in the Narrative
of the Reconquista" in Glen Burger and Stephen Kruger (eds.) Queering
the Middle Ages: Minneapolis: University of Minnesota Press, 2001.
15 WAILES, Stephen L. Spirituality and Politics in the Works of Hrotsvit
of Gandersheim, Rosemont Publ. &Print.Corp., 2006; WOLF,Kenneth.
Christian Martyrs in Muslim Spain. Cambridge: Cambridge University
Press: 1988.
16 WAFFER,Jim “Muhammad and Male Homosexuality”, in MURRAY, Stephen O.
&ROSCOE, Will. Islamic Homosexualities: Culture, History, and
Literature. NYU Press,1997, pp. 87-96.
17 SCHMITT, Arno & SOFER, Jehoeda, editors.Sexuality and
Eroticism among Males in Moslem Societies. New York, Haworth Press,
1992; MURRAY, Stephen O. &ROSCOE, Will.IslamicHomosexualities:
Culture, History, and Literature. NYU Press,1997; EL ROUAHEB, Khaled.
Before Homosexuality in the Arab Slamic World, 1500-1800.The University
of Chicago Press, 2005; KUGLE, Scott Alan.Homosexuality in Islam:
Critical Reflection on Gay, Lesbian, and Transgender Muslims. Oneworld
Publications, 2010.
18 PAIS, Álvaro. Colírio da Fé contra os Hereges (1348). Lisboa,
Instituto de Alta Cultura, 19 54/1956, tradução de Miguel Pinto de
Meneses
19 ANTT, Inquisição Évora, Proc. 8056.
20 MOTT, Luiz. “Os filhos da dissidência: o pecado da sodomia e sua
nefanda matéria”. Revista Tempo, Universidade Federal Fluminense, vol.6,
n. 11, Julho 2001:189-20.
21 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 4170. Agradeço ao Dr. Ahmed Boucharb,
da Faculté des Lettres Fès, a indicação deste documento. (1983)
22 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6614; Proc. 4030.
23 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 9677
24ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6636
25 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 10469
26 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 1728
27 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 1617
28 ANTT, 14º Caderno do Nefando, 143-6-39, fl. 160.
29 Sobre a importância das estrebarias como local de encontro de
mouriscos em Lisboa, inclusive como espaço para celebrações religiosas,
cf. RIBAS, 2004.
30 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 3592.
31 ANTT, Manuscritos da Livraria, nº 1238.
32 ANTT, 15º Caderno do Nefando, 143-6-40, fl. 4.
33ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 10469.
34 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6636.
35 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 10872.
36 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 1600.
37Sobre a antiguidade e propriedade do termo gay para descrever os homoeróticos de outras eras, cf.
BOSWELL (1989) e MOTT (1980).
38“Polução”, nalguns processos de sodomia significava ejaculação, mas
também sinônimo de “punhetas” ou “fazer as sacanas”, i.e., masturbação
individual ou recíproca.
39 “Conhecer” aqui usado no sentido de consumar, cumprir, ejacular.
Detalhe fundamental no casuísmo inquisitorial, pois somente a ejaculação
intra-vas, dentro do vaso traseiro, se configurava como crime de
sodomia perfeita. JOHNSON, Harold B. & DUTRA, Francis
A.Pelovasotraseiro: sodomy and sodomites in Luso-Brazilian history.
Fenestra Books, 2007.
40 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 12108.
41 Também em Espanha, em Cox, 1587, há o relato de um mourisco jovem que
foi sodomizado por nove homens da mesma nação. CARRASCO, Rafael.
Inquisición y represión sexual en Valencia. Historia de lossodomitas
(1565-1785). Barcelona, 1985, Editorial Laertes.
42 ANTT, Inquisição Évora, Proc. 8874.
43 ANTT, Inquisição Évora, Proc. 8056. “Dar de carregar” certamente é um modismo relacionado à copula anal ativa.
44 ANTT, Inquisição de Lisboa, 20º Caderno do Nefando, 149-7-698, fl. 257
45 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 312.
46 MENDONÇA, José Lourenço & MOREIRA, Antonio Joaquim. História dos
principais actos e procedimentos da Inquisição em Portugal. Lisboa,
Imprensa Nacional, 1980
47 BARRETO, J.A.Graça. Monstruosidades do tempo e da fortuna: Diario de
factos mais interessantes que succederam no reino de 1662 a 1680, até
hoje. Lisboa,Tipografia Viúva Sousa Neves, 1888:316.
48 ANTT, Inquisição de Lisboa, Proc. 1728.
49 LONGMAN, Joseph Pitts. A Faithful Account of the Religion and Manners of the Mahometans (1738) apudKHALED, op.cit. 2005:3.
50 SONNINI,C.S. Travels to Upper and Lower Egypt, 1799, apudKHALED, op.cit.2005:3.
51GREENBERG, David F. The Construction of Homosexuality. Chicago, University of Chicago Press, 1990:175.
52 BOSWELL, John. Christianity, social tolerance and homosexuality.Gay
People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the
Fourteenth.Chicago UniversityPress, Chicago, 1980:195.
53 COUROUVE, Claude. Vocabulaire de l’homosexualité masculine. Paris,
Payot, 1985:59. A partir dos meados do século XIX “berdache” tornou-se
conceito amplamente divulgado pelos antropólogos para descrever
sobretudo aos transexuais nativos da América do Norte.
54 ROSENBERGER, Bernard. “Le Portugal et l’Islam maghrebin: XVe - XVIe
siècles”, in Histoire du Portugal, Histoire Européenne, Paris, Fondation
Calouste Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, vol. II, 1987, pp.
57-83; “Mouriscos et elches - conversions au Maroc au début du XIVe.
Siècle “, in: Relaciones de la Península Ibérica con el Magreb siglos
XIII-XVI: actas del coloquio (Madrid, 1987). GARCÍA-ARENAL, Mercedes
& VIGUERA, María J. (eds.) Madrid, 1988.
55 BLACKMORE, Josiah & HUTHCESON, Gregory S. Queer Iberia:
Sexualities, Cultures and Crossings from the Middle Ages to the
Renaissance.DukeUniversityPress, Durham, 1999.
56 BENNASSAR B., BENNASSAR L. Les Chrétiens d'Allah: L'histoire
extraordinaire des renégats. Perrin, 1989; PIERONI,Geraldo. “Renegados e
excluídos: cristãos islamizados perseguidos pela Inquisição
portuguesa”. ANPUH, Anais do XXII Simpósio Nacional de História,
Londrina, 2005.
57 Para a monja alemã Roswitha de Gandersheim (935-975), autora da
citada biografia sobre o mártir São Paio de Córdoba, a sodomia era vício
próprio dos sarracenos, o qual os verdadeiros cristãos deviam evitar”.
BOSWELL, op.cit., 1980:200.
58 “Sodomisar seus escravos ou um cristão era sancionado pela opinião
pública no mundo islâmico, assim como por certos juristas, baseando-se
na sutra IX,120 do Corão”. SCHMITT & SOFER, op.cit.,1992:3.
59ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 3710.
60ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 13192.
61ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 6465 e 6465-1.
62ANTT, Inquisição Lisboa nº 4307.
63ANTT, Inquisição Lisboa nº 6465; 6465-1.
64 Para os citados dicionaristas BLUTEAU e MORAES “elche é o cristão que
se fez mouro e que passando para a lei de Mafoma, é trânsfuga da
Sagrada milícia de Cristo.” Segundo MAÍLLO SALGADO “elche provem do
árabe, sinônimo de bárbaro, não árabe, não muçulmano. Os elches
desempenharam postos importantes, como artilheiros dos exércitos
norteafricanos, alcançando alguns o posto de notáveis, capitães e
grandes homens.” MAÍLLO SALGADO, Felipe. Vocabulario de Historia Árabe e
Islámica. Madrid, Ediciones Akal. 1997.
65 FARINHA, António Dias. “Os xarifes de Marrocos: notas sobre a
expansão portuguesa no Norte de África”, in Estudos de História de
Portugal, Lisboa, Estampa, vol. II, 1983:59-68.
66 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 9682.
67ANTT, 5º Caderno do Nefando, 143-6-32, fl. 399.
68Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Mallorca, Lib.864, fol.62 v. (1664).
69Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Murcia, Leg.2022, Exp.19 (1587).
70Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Cerdeña, Lib. 782, fol.381 (1585).
71Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Cerdeña, Lib. 783, fol.330 (1670).
72 ANTT, 12º Caderno do Nefando, 143-6-37, fl. 158.
73 ANTT, 5º Caderno do Nefando, 143-6-32, fl. 180.
74Arquivo Histórico Nacional, Madrid, Sección Inquisición, Murcia, Leg.2022, Exp.20 (1588).
75 ANTT, Inquisição Lisboa, Proc. 11061; MOTT, Luiz.Homossexuais da
Bahia. Dicionário Biográfico: Século XVI-XIX. Salvador:EditoraGrupo Gay
da Bahia, 1999.
76 “Masseur at the hamanbaths, tellaak, scrubber with massage mitt.
Illustration from the Hubanname (The Book of the Handsome Ones
&ÇenginameBook on Cross-dressed Male Dancers), an 18th century
homoerotic work by the Turkish poet FAZYL BIN TAHIR ENDERUNI
(1759-1810).http://www.gay-art-history.org/gay-history/gay-art/turkey-gay-art/hubanname-gay/scrubberA.html;
PARLAK, Fatih.On Syphilis in the Ottoman Empire and Turkish History
Writing. Thesis (M.A.), Eastern Mediterranean University, Institute of
Graduate Studies and Research, Dept. of Arts, Humanities & Social
Sciences, Famagusta, North Cyprus, 2012.
____________
Foto: "Audição perante a Inquisição", do pintor mexicano Constantino Escalante
Foto: "Audição perante a Inquisição", do pintor mexicano Constantino Escalante
2 comentários:
Texto de inegável interesse,não apenas para os estudos "queer",mas para o conhecimento da vida social portuguesa nos séculos em que prevaleceu a sinistra Inqusição. O prof.Luis Mott tem trabalhado com grande sucesso nos arquivos brasileiros e portugueses nesta temática,que tem sido quase totalmente ignorada pela investigação histórica portuguesa publicada. Timidez,estupidez? As duas? A Inquisição foi sinistra,mas simultaneamente cuidadosamente documentada. A Tore do Tombo dispõe de abundante espólio arquivístico sobre o "pecado nefando"e o seu tratamento e divulgação daria um contributo de enorme valor para a compreensão da dociedade portuguesa naquela época. Mas alem de Luis Mott,nos intervalos da docência na Baía, quem os vem estudar e divulgar? A tacanhez nacional nunca abrandará?
Muito obrigado por este post. Recordo uma conversa há cerca de 15 anos com um docente da área de Letras da Universidade de Coimbra. Disse-me que estas temáticas eram tabu na Universiade, não se tocava no assunto, e que entre outras coisas ignoravam-se a homossexualidade na obra de Fernando Pessoa ou a provável homossexualidade de D. Sebastião.
Sabe-se também que na população judaica, que chegou a ser perto de 10% da população portuguesa, havia uma maior tolerância em relação à homossexualidade. Aliás, a relação do judaísmo e do Islão com a sexualidade em geral, se excluirmos as tendências mais dogmáticas e ortodoxas, é muito diferente da relação que o Cristianismo tem com a vivência da sexualidade. É provável que o clima de intolerância tenha demorado vários séculos a instalar-se em Portugal. Afinal antes da vinda dos romanos dominavam as tribos celtas, as quais, segundo relatos dos Antigos, eram muito dadas à homossexualidade. O Al-Andaluz antes da vinda dos almoádas e dos almorávidas também terá sido muito tolerante. A perseguição sistemática e organizada começará contudo com a Inquisição no século XVI. Mais tarde Portugal passará à margem de todas as alterações sociais de libertação sexual que têm início no século XIX. O tema será tabu na Academia portuguesa durante longas décadas. Com Salazar, a homossexualidade será tolerada desde que não haja «escândalo público», e mesmo depois do 25 de Abril as coisas pouco mudaram. Isto não implica que não houvesse uma vivência subterrânea da homossexualidade, que aliás ainda hoje se mantem (basta ir a redes sociais de «engate» e verificar o elevado número de homens casados que por lá andam).
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