sábado, 15 de junho de 2019
O NAUFRÁGIO DAS CIVILIZAÇÕES
O escritor e jornalista franco-libanês Amin Maalouf (n. 1949), autor de livros bem conhecidos, como Leão, o Africano, Samarcanda, As Cruzadas vistas pelos Árabes, O Rochedo de Tanios (Prémio Goncourt 1993) ou As Identidades Assassinas, acabou de publicar um notável ensaio, talvez uma das suas melhores obras, Le naufrage des civilisations.
Neste livro, uma espécie de autobiografia, Maalouf traça o seu percurso pessoal e a evolução do mundo à sua volta, do mundo árabo-muçulmano em especial e do mundo em geral, desde o seu nascimento em Beirute, a infância no Cairo, o retorno ao Líbano, a instalação em França, e as suas viagens pelos inúmeros países que visitou.
Maalouf refere o apagamento da civilização islâmica, depois de séculos de esplendor e a esperança suscitada por Nasser, apesar da chegada dos "Oficiais Livres" ao poder no Egipto, pelas suas consequências, ter sido prejudicial aos interesses da família Maalouf. E salienta a Guerra dos Seis Dias (1967), como o grande trauma de que o mundo árabe ainda não conseguiu recuperar. É claro que refere a criação do Estado de Israel (1948), e a divisão do Médio Oriente (Acordos Sykes/Picot, que não menciona) contrária às promessas feitas pelos britânicos ao xerife de Meca e veiculadas pelo coronel Lawrence como causa do desespero árabe, mas remete para 5 de Junho de 1967 a grande frustração que permanece. Acompanhando sempre estes acontecimentos com as suas reflexões pessoais, lembra que outros povos ultrapassaram derrotas como os Estados Unidos com Pearl Harbor (este tema não é pacífico, mas Maalouf não o desenvolve) e a França com a invasão alemã, mas as circunstâncias são diferentes. Recorda a invasão do Líbano por Israel e depois pela Síria, a vida tranquila que se vivia anteriormente no Líbano, na convivência pacífica entre diferentes religiões e etnias, a instalação da OLP no país e a sua fuga final de Beirute em 1976, que determinou a fixação da sua residência em França.
Há, porém, alguns acontecimentos, que apenas a distância do tempo lhe permitiu avaliar na sua importância decisiva, que contribuíram para que o mundo evoluísse para a situação presente. Maalouf situa esses acontecimentos em 1979, com a designação de Margaret Thatcher para chefiar o governo britânico e iniciar uma revolução conservadora, seguida da eleição de Ronald Reagan, em 1980, perfilhando idênticas ideias. Ainda em 1979, a proclamação da República Islâmica do Irão pelo ayatollah Khomeiny, antecipada em 1978 com a eleição de Deng Xiaoping para chefe do Comité Central do Partido Comunista Chinês e a do cardeal Karol Wojtyla para papa, com o nome de João Paulo II, são acontecimentos que coincidem no tempo. Mas sendo tão díspares poderiam ter sido mais do que simples coincidência? Maalouf entende que eles permitiram alterar o Zeitgeist, na conhecida expressão da filosofia alemã, isto é, alterar o espírito do tempo. A juntar a tudo isto, o assassinato do chefe da Democracia Cristã italiana, Aldo Moro, em 1978, que impediu uma possível aliança do PCI e da DC, e, antes de tudo, o choque petrolífero de 1973, a Revolução portuguesa de 1974, a invasão do Afeganistão pelos soviéticos em 1979, que viria a determinar a própria desintegração da União, e muitos outros acontecimentos que não é possível aqui referir. Da conjunção de todos eles, Maalouf extrai as suas conclusões e permite articulações como a vitória de uma economia liberal sobre os preceitos do "socialismo científico". Ainda uma referência à execução do antigo presidente paquistanês Zulficar Ali Bhutto, em 1979, e, no mesmo ano, o assalto contra a Grande Mesquita de Meca, que levaria os dirigentes sauditas a intensificar, pelo mundo, a sua propaganda de um islão rigoroso, ou não sejam eles os Guardiões dos Lugares Santos e cuja ortodoxia estava a ser posta em causa pelos islamistas ainda mais radicais.
A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o fim da União Soviética, em 1991, seriam o coroar desta série de acontecimentos que modificaram por completo o panorama geral mundial. Subsiste, nesta revolução que liberta a economia e restringe os costumes, paradoxalmente ou talvez não, a União Europeia, com todos os problemas que se conhecem e que se vêm agravando ano após ano. Como escreveu recentemente Régis Debray, Jean Monnet, com uma ingenuidade de economista, não previu que uma união aduaneira não poderia criar a longo termo uma comunhão de corações e de espíritos e que para fazer um povo não bastava uma moeda única.
Nesta minuciosa análise dos acontecimentos, não deixa o autor de evidenciar as frustrações islâmicas, canalizadas primeiro contra os soviéticos no Afeganistão, com a participação de um então desconhecido tornado posteriormente célebre, Osama Ben Laden, e que viriam depois a causar estragos imensos não só nos países árabes (a Líbia, a Síria, o Iémen), como no mundo ocidental (o ataque às torres gémeas de Nova Iorque, os atentados em Madrid, Londres ou Paris). Em quase todos os eventos descritos, aparece os Estados Unidos, com as mais incríveis e reversíveis alianças, figurando-se que o único perigo residia no comunismo. Mas, caída a União Soviética, ignoraram que a sua anterior atitude de hostilidade deveria pautar-se agora por moderação (segundo a opinião do diplomata George F. Kennan) e não por integrar na NATO não só os países da antiga órbita soviética mas os próprios países da antiga União. Um erro estratégico norte-americano.
Por entre considerações morais e políticas, Amin Maalouf constata que se o progresso das últimas décadas permitiu a diminuição do número de pobres no mundo (e mesmo assim isto é discutível), ele aumentou inequivocamente e de forma gritante as desigualdades sociais.
Uma referencia é feita, e com ênfase, ao desmembramento da Índia, cujas consequências perduram. O erro clamoroso da divisão do país em dois Estados, a União Indiana e o Paquistão, e depois três, com o Bangladesh, a deslocação de populações inteiras, o acirrar de rivalidades entre muçulmanos e hindus e entre as próprias comunidades (e nem é referido o caso de Caxemira), demonstra a cegueira britânica que sempre orientou o Império colonial de Sua Majestade. Ao longo do livro, são evocadas algumas atitudes de um homem hoje muito incensado, Winston Churchill, responsável não só por Dresden, mas por atitudes criminosas em relação ao Egipto e ao Irão (o episódio Mossadegh). E a seu respeito muito mais haveria a dizer.
Perdoarão os leitores este comentário um pouco desordenado do livro, mas o autor é também responsável pela forma como vai expondo os acontecimentos, articulando-os com a sua "aventura" pessoal.
Já no fim, Maalouf convoca Orwell e evoca a vigilância a que todos estamos sujeitos no mundo em que hoje vivemos, vigilância das comunicações escritas e telefónicas, das transacções bancárias, dos sítios que visitamos, das compras que fazemos, das nossas próprias imagens registadas em câmaras um pouco por toda a parte. Além, evidentemente, dos drones. A tecnologia actual tal permite e certamente virá a permitir ainda muito mais. E há sempre um bom pretexto para um constante aumento dessa vigilância, fundamentada em razões que poucos se dispõem a contestar. A intromissão na vida íntima dos nossos contemporâneos, que pode conduzir - e conduz - a intoleráveis abusos, tornou-se uma das características mais visíveis das civilizações actuais. A ficção do Big Brother orwelliano de 1984 foi rapidamente ultrapassada pela própria realidade. Mas tudo nos é vendido em nome de superiores interesses comuns. Quem aceitaria, alguns anos atrás, ser revistado e quase despido para embarcar num aeroporto? Mas hoje, com um preocupante amolecimento do espírito, vamos cedendo às determinações das autoridades protectoras, e, em caso de manifesto exagero, até conseguimos encontrar-lhes desculpas. Escreve Maalouf: «"Le choix, pour l'humanité, est entre la liberté et le bonheur, et pour la grande majorité, le bonheur est le meilleur", faisait dire Orwell, avec cynisme, à l'un des personnages de 1984. Personne ne nous présentera les choses de manière aussi crue; mais, dans le contexte de ce siècle, un tel dilemme ne paraît plus complètement insensé.» (p. 313)
E a concluir: «Plus d'une fois, je me suis même arrêté, entre deux chapitres, pour m'assurer que je n'était pas victime d'une "illusion d'optique", que c'était vraiment le monde qui faisait naufrage, pas seulement mon monde à moi - l'Égypte de ma mère, le Liban de mon père, ma civilisation arabe, ma patrie adoptive, l'Europe, ainsi que mes vaillants idéaux universalistes. Mais à chaque fois je me suis remis à l'ouvrage, persuadé de n'être malheureusement pas dans l'erreur.» (p. 327)
«Je me dois d'ajouter, concernant ma civilisation d'origine, que si sa disparition est forcément une tragédie pour ceux qui ont grandi en son sein, elle l'est à peine moins pour le reste du monde. Je demeure convaincu, en effet, que si le Levant pluriel avait pu survivre et prospérer et s'épanouir, l'humanité dans son ensemble, toutes civilisations confondues, aurait su éviter la dérive que nous observons de nos jours. C'est à partir de ma terre natale que les ténèbres ont commencé à se répandre sur le monde.» (p. 328)
É claro que o que se escreveu não passa de uma pálida imagem da riqueza do livro.
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