sábado, 23 de abril de 2022

O HOMEM SUPÉRFLUO

Acabou de ser publicada a segunda parte do "testamento literário-sexual" de Dominique Fernandez, L'homme de trop 2, cuja primeira parte fora editada no ano passado e de que fiz aqui referência.

Nestes dois volumes, Dominique Fernandez, que conta agora 92 anos, membro da Academia Francesa e um dos maiores escritores franceses vivos, autor de vastíssima obra (mais de cem títulos) que abrange o romance, o ensaio, a narrativa de viagens e até o libretto de uma ópera, dá testemunho da "normalização" da homossexualidade, através da sua experiência de vida. 

Assumidamente homossexual desde a sua juventude, ainda que estivesse casado durante dez anos com a escritora Diane de Margerie e tenha um filho e uma filha, Dominique Fernandez (DF) cria neste livro uma personagem, Lucas, seu alter-ego, pertencendo a uma geração precedente, que dialoga com homossexuais mais jovens acerca da evolução dos costumes e da presente "aceitação" da homossexualidade como uma coisa perfeitamente natural. Com as vantagens e as desvantagens inerentes.  

Nesta sua extensa obra (a soma dos dois volumes ultrapassa as 800 páginas), DF evoca (no mundo ocidental) os perigos sociais e penais da prática da homossexualidade (considerada um crime na "liberal" Inglaterra até 1967 e na Escócia até 1980) mas igualmente a atmosfera de ambiguidade e mistério que a caracterizava e que constituía um dos seus encantos. Do texto, poderá de alguma forma concluir-se que para o autor ela é hoje incolor, inodora e insípida, apesar da bandeira arco-íris e de todo o folclore que a acompanha. Atrever-me-ia mesmo a supor que DF, sendo homossexual, é anti-gay, e profundamente desconfiado das teorias identitárias fomentadas do outro lado do Atlântico.

Porque o segundo volume é um prolongamento do primeiro,  as considerações mais pormenorizadas que fiz acerca deste, e cujo link referi acima, dispensam-me de desenvolver agora uma crítica detalhada. Os casamentos same-sex, a adopção de crianças,  as identidades de género, a redução do "casal" homossexual a uma família burguesa, são tudo manifestações do pensamento único ocidental, baseado nas atitudes politicamente correctas anglo-saxónicas. Nem sequer resta a magia do "engate", susceptível de ser considerado assédio sexual, salvo os encontros através de meios informáticos, o que eu chamaria a digitalização do sexo.

Neste segundo volume, aliás como no primeiro, DF aproveita a efabulação para exprimir as suas convicções particulares. E utiliza muitas vezes uma especial ironia, quando, por exemplo, a propósito da tradicional ligação dos homossexuais às suas mães, faz dizer à mãe de uma das suas personagens:

- «Voyez-vous, les filles se croient tout permis. Elles cherchent à arracher les garçons à leur mère. Leur but, c'est de nous spolier de ce qu'ils nous doivent, leur idée fixe, leur perfidie, c'est de vouloir qu'ils ne dépendent plus de celle qui les a mis au monde, nourris, bercés, soignés quand ils étaient malades, consolés quand ils avaient du chagrin, conduits vers le bonheur, amenés à l'épuisement. [...] Comme j'ai été soulagée, monsieur, quand j'ai appris que mon fils était pédé! » (p.225)

- «De mon temps, le fils homo choisissait d'être homo, précisement pour ne pas quitter sa mère. S'ils se mettent en ménage, comme ce journal annonce, c'est comme ils se mariaient avec une fille. Où seraient la différence?» (p. 229)

- «La première erreur a été de supprimer le service militaire. L'armée, ça ne suffisait sans doute pas à protéger la patrie contre l'invasion, mais c'était rudement bien pour fabriquer des pédés. Dormir l'un contre l'autre, dans la promiscuité des dortoirs... Les gouvernements pensaient à tout, en ces temps-là.» (p. 230)

Também DF se debruça sobre a idade de consentimento dos jovens, aludindo largamente à obra do romancista Tony Duvert e explicando que não há uma correspondência entre a maturidade sexual e a idade consagrada no bilhete de identidade. E é igualmente muito crítico sobre os "novos" assédios sexuais, cujas "vítimas" se queixam agora depois de actos ocorridos (se ocorridos) há décadas.

A propósito do desaparecimento, com um dia de intervalo, de Johnny Hallyday e de Jean d'Ormesson, DF pronuncia-se contra Emmanuel Macron, que considerou o primeiro como um herói e o segundo como um grande escritor. Entende DF que se trata de uma mistificação orquestrada para promover a imagem do presidente. E explica porquê.

Ao longo do livro perpassa uma crítica ao politicamente correcto, umas vezes ostensiva, outras dissimulada. Incluindo a transição ecológica e a transição digital. A dependência dos jovens, e até dos menos jovens, em relação aos telemóveis é um sinal de uma doença que afecta a nossa vida comum.

Este livro testemunha a luta interior de DF entre uma sociedade antiga, com muitos interditos mas também com os encantos da transgressão e da ultrapassagem de dificuldades e a sociedade actual, mais permissiva mas sem a magia do desconhecido, onde tudo nos é dado (ou parece que é) sem esforço, pronto a usar, nos corpos e nos objectos. O escritor considerava-se um homem supérfluo, um homem a mais, "un homme de trop", nos seus tempos de juventude, mas pensa que no mundo actual continua a ser um homem a mais, tão inadequado se sente em relação às novas gerações.

A encerrar o livro, DF evoca a hipótese, levantada o ano passado, da transferência dos restos mortais de Rimbaud e de Verlaine para o Panthéon. Esta trasladação, desejada por numerosos intelectuais, não foi acolhida pelas famílias dos defuntos e teve a oposição de muitos homossexuais notáveis (DF incluído) ,que consideraram que tal acto seria uma profanação da memória dos dois poetas, já que estes foram em vida absolutamente contrários aos convencionalismos da sociedade burguesa.

Esta obra de Dominique Fernandez, talvez a derradeira dada a idade do autor, foi concluída em 2021 mas deve ter começado a ser escrita alguns anos anos, atendendo às referências do texto. A qualidade dos capítulos é irregular, sendo alguns de grande vivacidade e interesse e outros algo monótonos e desnecessários. Como na maioria dos seus livros, DF dá testemunho de uma profunda erudição, mas permito-me considerar que a profusão de alusões culturais é por vezes excessiva.

Registei aqui alguns aspectos da obra em apreço, que poderão suscitar no leitor interessado a vontade de ler o livro. Ele é, sem dúvida, a demonstração não só de um conflito de gerações como das modificações abruptas ocorridas na sociedade nos últimos cinquenta anos, como o monoteísmo de mercado imposto pelo capitalismo ultra-liberal, a digitalização da vida, o ostracismo dos velhos, a correcção dos costumes, o pensamento único.

Será que estamos hoje melhor na vida? Em alguns aspectos, certamente que sim. Em muitos outros, obviamente que não!

 

sexta-feira, 22 de abril de 2022

O AMOR E O DESEJO

Vi ontem o filme Une histoire d'amour et de désir, da realizadora tunisina Leyla Bouzid (2021).

Ovacionado no último Festival de Cannes, a película conta a história do relacionamento entre Ahmed, 18 anos, francês de origem argelina, não arabófono, que estuda literatura na Sorbonne e trabalha também em mudanças, e de Farah, uma jovem tunisina que chegou a Paris para completar os estudos e é sua colega na universidade.

A realizadora desenvolve o tema da literatura árabe erótica, através da evocação dos grandes poetas Abu Nuwas e Cheikh Nefzaoui, autor de O Jardim Perfumado, que são ensinados nas aulas. Ahmed apaixona-se rapidamente por Farah, a quem mostra Paris, mas recusa-se a passar das palavras aos actos, revelando uma timidez decorrente da sua educação. Farah chega mesmo a supô-lo impotente ou homossexual. Só com o tempo Ahmed consegue corresponder aos desejos ardentes de Farah, rapariga muito desenvolta, como as jovens tunisinas modernas. Todo este percurso nos é relatado por Leyla Bouzid, que aproveita para evocar a emancipação feminina na Tunísia (fruto de Bourguiba e de Ben Ali, poderia eu acrescentar, embora pareça que a sociedade tenha começado a fechar-se depois da primavera árabe) e a riqueza da cultura erótica árabe. 

O filme apresenta as cenas mais íntimas com grande discrição mas suficientemente elucidativas da atracção dos corpos. E dá também a imagem da importância da reputação que é exigida em França às raparigas de origem árabe, através das censuras de Ahmed à sua irmã, que se encontra livremente com os amigos.

Algumas particularidades culturais muçulmanas são-nos também reveladas, como, por exemplo, o facto de Farah beber vinho e Ahmed coca-cola (ou bebidas semelhantes).

O papel de Ahmed é interpretado pelo actor francês Sami Outalbali (n. 1999), que foi considerado um ícone gay pela comunidade LGBT francesa. Ignoro se ele é homossexual. Farah é interpretada pela actriz tunisina Zbeida Belhajamor (n. 1999).

 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

EUNICE MUÑOZ

 


Com 93 anos morreu hoje EUNICE MUÑOZ.

Conheci Eunice, no palco, quando ainda era criança e ia ao teatro com os meus pais.

Conheci Eunice, pessoalmente, há mais de  cinco décadas, criámos uma forte amizade e tive o privilégio de conviver com ela durante largos anos. Houve um longo período em que almoçávamos aos domingos, num pequeno restaurante de Pedrouços (que já não existe), Eunice e a mãe, Mimi, eu e a minha mãe, Mestre Lagoa Henriques, Carlos Amado, João Belchior Viegas, por vezes também Isabel da Nóbrega, Helena Cantos e alguns outros amigos comuns.

Cheguei mesmo a trabalhar com Eunice Munõz no Teatro Nacional Dona Maria II quando fiz a dramaturgia da peça A Maçon, de Lídia Jorge, de que ela foi a protagonista.

Figura maior do teatro português, Eunice é inesquecível e o país deverá estar-lhe imensamente grato pelas personagens que interpretou no palco, no cinema, na televisão. Com a sua morte desaparece a última das três grandes actrizes da minha geração, tendo já morrido Mariana Rey-Monteiro e Carmen Dolores. 

Adeus Eunice, até sempre, que é o tempo certo.


segunda-feira, 11 de abril de 2022

LEONARDO TREVIGLIO EM SÃO SEBASTIÃO

Algumas imagens do actor italiano Leonardo Treviglio no papel de São Sebastião, no filme "Sebastiane", de Derek Jarman, a que me referi ontem.

As imagens constam do blogue, porque o FB poderia considerá-las inconvenientes. 




sábado, 9 de abril de 2022

REVISITANDO ANDRÉ GIDE

Li hoje Le Ramier, de André Gide (recebera o livro ontem, via Amazon). O meu desconhecimento desta brevíssima obra do Mestre era uma lamentável, e inexplicável, lacuna que só agora colmatei.

Trata-se de uma pequena novela erótica (para usar as palavras da filha do autor) que se resume a sete folhas de papel que Gide conservou num envelope, sem nunca as ter publicado, talvez devido ao conselho de amigos.

O texto foi escrito em 1907 e encontrado cerca de 2002 por  Catherine Gide, que decidiu dá-lo à estampa, devido à emoção que a descoberta lhe provocou: «Toute perversité en est totalement absente».

A presente edição contém um "avant-propos" de Catherine Gide, um prefácio de Jean-Claude Perrier e um posfácio de David H. Walker.

O argumento cabe em meia dúzia de linhas.

Em 28 de Julho de 1907, estava Gide de passagem em casa de seu amigo (e futuro senador da República) Eugène Rouart, em Bagnols-de-Grenade, perto de Toulouse. Havia festa na localidade. Rouart, próspero agricultor, mantinha sempre nas propriedades próximas do seu castelo um número razoável de trabalhadores, e respectivos filhos, cuja companhia muito apreciava. Ainda que casado, tal como Gide, Rouart não era indiferente às seduções da juventude e facilitava encontros para satisfação dos amigos que o visitavam.

Nessa cálida noite de Verão, passeava Gide pelo baile público local, na companhia de Raymond, o jovem motorista de Rouart, do pequeno Jean Coulon (o filho do doutor Coulon) e de três irmãos: Baptiste, de 16 anos, Ferdinand, de 15 e um mais pequeno que Gide (então com 37 anos) considerou insignificante. Com a passagem das horas, e cumpridos os rituais a que estas festividades sempre obrigam, acabou Gide por se encontrar, sozinho com Ferdinand, num bosque próximo. Ambos estavam excitados e Ferdinand insistiu para que fossem para os aposentos que Rouart pusera à disposição de Gide. Assim aconteceu, descrevendo Gide, com emoção, os momentos de deslumbramento que passou com o rapaz, talvez um pouco ingénuo mas ao mesmo tempo ousado e absolutamente atraente. Dispenso-me, naturalmente, de referir os pormenores desse inolvidável encontro, que o escritor consignou no papel e de que se recordaria durante toda a vida. 

Como investigaram os autores do prefácio e do posfácio, Ferdinand não tinha 15 anos mas 17 e os supostos irmãos eram afinal primos. Essa noite foi mais tarde lembrada por Gide em conversas com os seus amigos que cultivavam as mesmas inclinações, o próprio Rouart e, entre outros, os escritores Roger Martin du Gard e Henri Ghéon (que haveria posteriormente de se converter ao mais puritano catolicismo). Quis o destino que Ferdinand morresse três anos mais tarde, com 20 anos, vítima de tuberculose, mas os amigos acompanharam-no até ao fim. 

As obras completas de André Gide, que receberia em 1947 o Prémio Nobel da Literatura, ficariam "incompletas" sem este testemunho pessoalíssimo do escritor, ainda que este não tivesse omitido o tema em muitos dos seus livros, nomeadamente em Si le grain ne meurt (1926), onde descreve as suas aventuras com jovens argelinos e tunisinos, ou no seu incontornável Journal

O posfácio do livro inclui trechos da correspondência mantida entre Eugène Rouart e André Gide. 

Ocorre referir que "ramier" em francês designa uma espécie de pombo mais ou menos selvagem, com um arrulhar característico, e que Gide baptizara Ferdinand com o epíteto "ramier" devido aos sons que o rapaz produzia durante o acto sexual.

André Gide (1869-1951), o "contemporâneo capital", como lhe chamou Éric Deschodt, é uma das figuras literárias mais apaixonantes do século passado, como escrevi aqui: http://domedioorienteeafins.blogspot.com/2016/09/andre-gide-o-contemporaneo-capital.html