domingo, 20 de junho de 2021

UM ESCRITOR CONFESSA-SE

O escritor Dominique Fernandez, membro da Academia Francesa, à beira de completar os 92 anos, publicou há poucas semanas L'Homme de trop, uma espécie de testamento sexual, que coroará a sua vastíssima e notável obra.

Autor de cerca de 90 livros, dedicados à arte e à música, aos países de sua eleição e à vida de homens notáveis, e ainda especificamente à questão homossexual, ainda que esta percorra mais ou menos explicitamente toda a sua produção literária, Dominique Fernandez (n. 25 de Agosto de 1929) consagrou prioritariamente a sua obra ao mundo italiano e ao mundo eslavo, sem esquecer uma especial simpatia pelos árabes. Cultivou o romance, a biografia, a literatura de viagem (em muitos casos fotograficamente ilustrada com as imagens de Ferrante Ferranti), o ensaio, e escreveu mesmo um libretto de ópera. Devem-se-lhe ainda várias traduções da língua italiana.

A obra que ora se aprecia, e que presumo ser a derradeira, é uma espécie de testamento literário de carácter sexual. Apresentando-se como romance, e é, desvia o género literário para uma incursão ensaística, em que o autor molda a ficção à medida da necessidade de incorporar a sua erudição clássica na defesa da condição do homossexual. Obra também biográfica, onde Dominique Fernandez se oculta por trás da personagem do protagonista para descrever a sua adolescência, a sua educação sentimental e significativos episódios da sua vida, até que uma certa libertação dos costumes ocorreu nos anos 1970. Através deste livro, percorremos meio século de história da França, sob o signo da homossexualidade.

Há um aspecto curioso no livro. O autor, a partir da predilecção do jovem "pupilo" do protagonista do romance por uma colecção de porcos de porcelana, elabora largamente sobre a condição dos porcos. Faz notar que os porcos têm sido considerados injustamente animais imundos ao longo da história, uma espécie de seres excluídos, tal como os homossexuais. Estabelece mesmo a igualdade porcofobia=homofobia e brinda-nos com uma extensa bibliografia (dos clássicos e da Bíblia até aos contemporâneos) sobre a forma como a literatura considerou os porcos ao longo dos séculos.

Dominique Fernandez

Sobre os cuidados da velhice, Dominique Fernandez escreve apropriadamente: «Jusqu'à trente-cinq, quarante ans, on fanfaronne, on n'a besoin de personne, on s'est fier d'être seul, et puis, peu à peu, vient le désir de s'appuyer sur quelqu'un, de compter sur lui, ne serait-ce que pour les choses pratiques, les ennuis de santé, les réunions avec les colocataires, les déclarations d'impôts à remplir, les valises à porter quand on part en voyage.» (p. 230)

E sobre o ensino: «Lucas constata que les élèves de Gaël (une première littéraire), déjà installés à leur place, ne se levaient pas à l'entrée de leur professeur, comme lui même et ses camarades le faisaient quarante-cinq ans plus tôt. En quarante-cinq ans, l'argent étant devenu la seule valeur, on jugeait un homme selon son revenu. Le corps enseignant étant toujours aussi mal payé, la modestie de leur salaire diminuait l'estime portée aux professeurs dont on appréciait autrefois le dévouement. Quant au savoir, ils n'étaient plus les seus détenteurs. Google en savait autant qu'eux, et souvent bien plus. Tout ce qui était dates, vie des auteurs, raccourci des personnages, résumé des intrigues, réception de l'oeuvre, etc., n'avait plus besoin d'être enseigné.» (p. 233)

Sobre a actual atmosfera de uma maior liberalidade nos costumes, Dominique Fernandez é manifestamente contra. Desde a chamada linguagem "inclusiva" (que afinal exclui) até ao Pacs (Pacte civil de Solidarité), a união civil de duas pessoas maiores independentemente do seu sexo, o autor manifesta fundadas reservas. Apesar de ter, na altura, defendido a legalização do Pacs, considera-o uma prisão, a ocasião aguardada pelos conservadores para restabelecer os valores da família e reforçar a protecção dos filhos. «Les pacsés vont devenir fidèles et mener une vie de couple qui leur ôtera l'envie d'aller draguer les jeunes dans le métro, les étudiants à la sortie de la fac. Les chers petits seront à l'abri de la menace. Les soeurs ne craindront plus pour leur frère, les fiancées pour leur promis, les épouses pour leur mari. Un célibataire, c'est toujours dangereux! Rien ne l'attache à son foyer, puisq'il n'a pas de foyer. Le Pacs lui en donne un. Le voilà pourvu d'un chez-nous. Pénatisé! Je ne dis pas ligoté, mais ficelé quand même! Rallié au modèle conjugal! Son domicile, ses sorties, ses loisirs, il les partage. La vie à deux l'amène à des scrupules, à des concessions, à des renoncements qui, mis bout à bout, rognent fatalement sur son indépendance et lui enlèvent le goût des infidelités. Finies les incartades...» (pp. 256-7)

«Sans Corydon, on en serait resté à la vision de Proust, et les homos passeraient pour des tarés, des types à se faire enchaîner, fouetter, empaler par des malabars dans des bordels clandestins.» (p. 259)

«À Montmartre, Gaël se blotissait contre Lucas et feignait de l'embrasser sur la bouche. Cette manoeuvre, qu'il avait essayée dans les jardins du Palais-Royal, n'avait etonné personne. Les habitués en avaient vu d'autres! À peine si quelque passant occasionnel l'avait remarquée. Mais le dimanche, sur la butte envahie par la foule des badauds, l'opération réussissait à tout coup. On les pointait du doigt, les Américains vérifiaient dans leur vade-mecum si exhiber aussi publiquement son désir fait partie de "l'exception française", les Russes se poussaient du coude en constatant la décadence de l'Occident, les Japonais les prenaient en photo, les Chinois crachaient par terre, en signe de désaprobation (mais peut-être le contraire, on ne sait jamais avec eux). Quant aux mères de famille, elles ordonnaient à leurs rejetons de regarder ailleurs et se hâtaient de les entraîner plus loin. Un cadre en complet-veston et cravate à rayures, qui promenait ses deux fils mineurs, regretta tout haut de ne pouvoir appeler les agents.» (p. 267)

Em resumo: Dominique Fernandez lutou pela "emancipação" dos gays (não gosto desta palavra anglo-saxónica, mas uma vez ou outra utilizo-a) e pelo reconhecimento dos seus direitos; todavia, a "normalização" a que se assiste (normalização aliás fingida), desgosta-o. Quando os homossexuais começavam a lutar pelo direito à diferença, já Michel Foucault proclamava o direito à indiferença.  Está esta aparentemente adquirida (em alguns países). Mas Fernandez preferia uma certa cultura da ambiguidade, a única capaz de suscitar paixões, de conduzir à arte absoluta. A matéria é complexa e os tempos são outros.

Também as questões da identidade e do género arrepiam Dominique Fernandez. Importadas das universidades americanas, tentam fazer caminho na Europa Ocidental, que a Leste encontram obstáculos. É a vontade de construir um mundo novo que se perfila no horizonte, com a intenção de transformar (e destruir?) a sociedade actual. A imposição do "politicamente correcto", que determina o discurso, derruba estátuas, cancela livros e tentará proibir filmes, eliminar pinturas e esculturas, e os demais horrores que se avizinham nesta torrente demencial, prenuncia tempos sombrios. Se não houver homens que lhe ponham termo!

No século XX francês, distinguem-se escritores e intelectuais notáveis, como Proust e Céline, Sartre e Beauvoir, Gide e Camus, Yourcenar e Duras, Cocteau e Malraux, Aragon e Montherlant, Genet e Peyrefitte, Foucault e Barthes, e tantos outros cujo nome agora não me ocorre. Dominique Fernandez figurará indelevelmente entre eles, com a virtude de ter conseguido passar ao século XXI. 

 Previne-nos o autor, no fim do livro, que será publicado um segundo volume.

 

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