domingo, 25 de novembro de 2018

O PROBLEMA DELON



Foi recentemente editado o livro Un problème avec la beauté – Delon dans les yeux, de Jean-Marc Parisis, autor que desconhecia mas que tem alguma obra publicada.

Pretende este livro salientar o problema com que Alain Delon sempre se confrontou, a sua beleza, unanimemente apreciada por homens e mulheres. Segundo o autor, a extraordinária beleza de Delon terá de alguma forma condicionado a sua vida pessoal e profissional.

Existem diversos livros sobre Alain Delon, alguns controversos, e o visado tentou mesmo impedir a publicação de uma sua biografia. [Averiguei que se tratou de Les Mystères Delon, de Bernard Violet. A Justiça atendeu o seu pedido, um facto inédito na democracia francesa, mas o autor exigiu uma revisão do processo em nome da liberdade de expressão e o livro acabou por ser publicado, ainda que trucado, em 2000]. Por isso, não compreendo a necessidade desta obra, que nada de especial acrescenta ao que já é sabido ou verdadeiramente intuído do percurso da personagem.

É claro que Un problème avec la beauté – Delon dans les yeux, não é propriamente uma biografia, nem tão pouco um livro sobre as interpretações do actor ou a sua carreira cinematográfica. Trata-se de uma colectânea de instantâneos em que Jean-Marc Parisis regista episódios significativos da vida de Delon e das figuras que, na vida real e/ou artística, com ele contracenaram.

Conhecida uma proverbial rebeldia de Delon, insinua o autor, desde a primeira página, que nele se instilou a figura de Jean Genet, detido na prisão de Fresnes, quando ainda criança, Delon brincava no pátio daquela instituição, onde o seu “pai adoptivo” exercia funções de vigilante. Aventa mesmo Parisis que é muito possível que os olhos do autor de Notre-Dame des Fleurs possam ter cruzado alguma vez os do futuro intérprete de Rocco e i suoi fratelli.

 
Alain Delon em jovem

Desfilam ao longo da obra as inúmeras personagens com quem Delon contactou na sua vida, de gente dos bas-fonds, dos bandos de gangsters e do mundo do crime a figuras do meio artístico, especialmente cinematográfico, e do meio político e social. Dada a estrutura do livro e porque essas pessoas não são, na generalidade, devidamente apresentadas, e estando quase todas mortas, elas são hoje desconhecidas do grande público. E não sendo os referidos instantâneos cronologicamente ordenados, e primando o autor por uma total ausência de datas, difícil se torna seguir a trajectória do sedutor (seduzido) e de compreender os relacionamentos que Parisis entende demonstrar. É pois um livro só verdadeiramente acessível aos felizes “iniciados”.

Também é um facto que esta teia, casual ou intencionalmente urdida, se presta a confusões, a meias verdades ou até a inverdades, pelo que se ignora o propósito do autor ao escrever a obra.

Sabemos todos que Alain Delon interpretou alguns filmes que constituíram marcos na história do Cinema. Dois deles, Rocco e i suoi fratelli e Il Gattopardo, em especial este último, são obras-primas da cinematografia. Ambos foram dirigidos por Luchino Visconti, esse realizador famoso que é, porventura, o maior de todos os tempos. Sendo Alain Delon indubitavelmente lindo e sedutor (apesar do seu mau feitio) e sendo Visconti um apreciador declarado da beleza masculina, é universalmente consensual que os dois mantiveram muito tempo, uma relação íntima. Nem outra coisa justificaria que Visconti tivesse, durante a sua vida, a fotografia de Delon sobre a mesa-de-cabeceira. É por isso estranho que Parisis enfatize (p. 52) a seguinte declaração atribuída a Romy Schneider, que viveu com Delon alguns anos: «Je crois qu’il n’y a jamais rien eu d’autre à voir dans leur rapport que ceci: Luchino aimait Alain parce qu’il flairait en lui la matière brute du grand acteur. Il entendait donner forme à cette matière, et ce, de façon tyrannique, avec une prétention à la exclusivité.»

Também é estranha estoutra afirmação de Parisis: «Delon préférait travailler avec Visconti qu’avec Malle, mais ne tounerait pas L’Étranger. Le producteur refusait son prix. Était-ce seulement affaire d’argent? Retrouver, travailler avec Visconti ne valait-il pas tout l’or du monde? Une rencontre avait changé la vie de Visconti en la compliquant. Après Le Guépard, il s’était épris d’un blondin d’une beauté diaphane, un peu molle, morbida. Affolé par celle plus tranchante de Delon, qu’il haïssait, Helmut Berger craignait que l’autre n’accapare son amant. Visconti avait-il cédé aux crises de Berger? Delon refusait-il de les essuyer? Mastroianni jouerait Meursault, à la Mastroianni, trop légèrement pour incarner le sombre héros de Camus, et Visconti désavouerait son film.» (p. 103). Não me lembro agora, exactamente, das peripécias para a escolha do protagonista de Lo Straniero, mas não creio que Delon tivesse recusado o papel, fosse por dinheiro, fosse pela eventual concorrência de Berger. Acho que Delon pretendia antes afastar-se do Mestre, pois era voz corrente que eram, ou tinham sido, amantes. E Delon, que desde a sua mais tenra juventude deve ter passado pela cama de inúmeros homens (a sua biografia permite sustentar esta convicção), estando agora no estrelato entendia distanciar-se de uma relação quiçá comprometedora. Recordo-me de ter assistido, há anos, na televisão, a uma entrevista a Alain Delon, em que este desvalorizava o que teria aprendido com Visconti, enaltecendo como seu grande mestre o realizador francês René Clément (que não era homossexual) e com quem fizera um filme também de sucesso, Plein Soleil, a partir do romance de Patricia Highsmith, The Talented Mr. Ripley. Aliás, a carreira de Delon teve sempre cruzamentos homossexuais. O seu segundo filme, tinha ele 23 anos, foi dirigido por Marc Allégret, que fora, aos 17 anos, amante oficial de André Gide. Mas, nos últimos anos, Delon tem-se caracterizado por declarações homofóbicas (ele lá saberá porquê) e reaccionárias, como o seu apoio ao Front National, que entretanto já não deve ser suficientemente de direita para o seu gosto. É evidente que René Clément foi um importante cineasta, mas não se pode comparar a Visconti, cujo rigor profissional, vastíssima cultura, gosto requintado e paixão pelos actores (característica que nunca se pode ou deve menosprezar), transportava ao sublime os filmes que realizou e, também, as peças de teatro e óperas que encenou, entre as quais uma célebre La Traviata, no Scala, cantada por Maria Callas. Ainda sobre Lo Straniero, que o próprio Visconti descartaria da sua filmografia, é evidente que Marcello Mastroianni, embora grande actor, não era, de alguma forma, o intérprete conveniente para encarnar o protagonista da imortal obra de Albert Camus.

Desde muito jovem, Alain Delon frequentou meios problemáticos e conviveu com pessoas de duvidosa reputação. Expulso de sucessivas escolas por mau comportamento, alimentou a ideia de ir com um amigo para os Estados Unidos, mas foram impedidos pelas autoridades. Aos 14 anos foi trabalhar para a loja do padrasto, aos 17 alistou-se na Marinha francesa e aos 18 embarcou para a Indochina como fuzileiro naval, tendo estado vários meses preso por indisciplina durante os quatro anos de serviço militar. De regresso a França, e sem dinheiro, trabalhou como criado, porteiro, assistente de vendas, secretário e prestou outros serviços ocasionais, para os quais não lhe faltariam clientes, actividades que lhe terão permitido estabelecer uma rede de contactos com algumas pessoas influentes. A relação com os irmãos Allégret possibilitou-lhe entrar nos seus dois primeiros filmes (1967), o que o tornou conhecido do público. Começava a ascensão ao estrelato. Em 1968, conheceu Romy Schneider, com quem viveu alguns anos. Mas a sua reputação internacional consagra-se com Plein Soleil, em 1960, e com a inestimável colaboração com Visconti. Esteve para interpretar Lawrence of Arabia, mas o papel foi dado a Peter O’Toole.

 
François Marcantoni

A sua carreira artística no cinema (e também ocasionalmente no teatro), como actor e também como produtor, foi longa (até há cerca de dez anos) e não cabe aqui descrevê-la. O proprietário corso de um bar (Delon tinha ascendência corsa) apresentou-lhe um dia, era ele muito jovem, o seu irmão, François Marcantoni, gangster corso que combateu na Resistência. Ficaram amigos. Mais tarde, Marcantoni apresentou-lhe um outro corso, Barthélemy Guérini, o “Mémé”, “padrinho” de Marselha e próximo de Gaston Defferre, o maire da cidade, e seu conhecido dos tempos da oposição ao regime de Vichy. Posteriormente, numa filmagem em Belgrado, Delon travou conhecimento com um bonito rapaz da rua, Milos Milosevic (1941-1966), que vivia de expedientes, queria fugir do regime de Tito e sonhava com o cinema. Sempre aberto para com as gentes da sua laia, Delon empregou-o como “doublure lumière” (actor complementar que substitui o actor principal durante a afinação da iluminação) e como guarda-costas. Atrás de Milosevic, veio outro jugoslavo, Stefan Markovic (1937-1968), que Delon se comprometeu também a ajudar, ficando igualmente como guarda-costas. Como era muito bonito (apanágio frequente dos sérvios), durante o seu período em França Markovic entrou em contacto com o jet-set francês, entregando-se também à prostituição. E Delon acabou por ficar rodeado pela rede jugoslava de Paris.


Milos Milosevic

Por razões que não vêm agora ao caso, Markovic tornou-se o sérvio mais próximo de Delon, passando a viver em sua casa e gozando de um estatuto especial. A ligação a Markovic viria, contudo, a trazer os maiores dissabores a Delon e provocou um escândalo em França. Em 1968, o corpo de Stefan Markovic foi encontrado morto nos arredores de Paris. As relações de Markovic com Delon tinham entretanto esfriado, até porque este suspeitava de que, durante uma ausência, aquele mantivera um caso com a sua mulher Nathalie. Acontece que Stefan Markovic, antes de ser abatido, enviara uma carta, que foi presente à Justiça, a seu irmão Alexandre Markovic afirmando que se fosse morto seria 100% da responsabilidade de Alain Delon e de François Marcantoni. Entretanto, começaram também a circular em França rumores e fotos que envolviam Markovic em orgias, designadamente com Claude Pompidou, mulher do ex-primeiro-ministro e candidato à presidência da República Georges Pompidou. Parece que Markovic, além das suas funções junto de Delon e do tráfico de droga, tinha por hábito fotografar cenas íntimas das festas sexuais em que participava com mulheres e homens. Foi um escândalo nacional, que o casal Pompidou foi o último a conhecer, e que ficou conhecido como o Caso Markovic. A figura apresentada nas fotos como sendo Claude Pompidou seria afinal a de uma sósia. Supõe-se que os meios policiais franceses tenham estado envolvidos nesta mistificação, já que os gaullistas, apesar de De Gaulle, não gostavam de Georges Pompidou, que achavam demasiado mundano, muito dado a frequentar espectáculos, exposições, jantares e a conviver com artistas, literatos e, pelo meio, gente menos conveniente. E é um facto que o casal Pompidou conheceu pessoalmente Markovic e Delon, tendo mesmo sido convidado para casa deste último.
 
Stefan Markovic e Nathalie Delon

Marcantoni foi preso e Delon longamente interrogado, chegando a estar detido. Marcantoni foi libertado posteriormente e em 1976 obteve um “non-lieu” da Justiça. Chegou a aventar-se que a morte de Markovic fora ordenada por Pompidou para se vingar do ultraje. Mas poderia ter sido um ajuste de contas por negócios de droga ou de qualquer outro género, nomeadamente chantagem.

A morte de Stefan Markovic nunca foi esclarecida.

Em 1970, Alain Delon interpretou The Assassination of Trotsky, dirigido por Joseph Losey e contracenando com Richard Burton. Desempenhava o papel do assassino, Ramon Mercader, no filme Jackson, pois Mercader ainda estava vivo. Escreve Parisis (p. 170) com ironia: «En Mercader qui vivait encore, Delon voyait plutôt un “exécutant” qu’un “assassin” – il n’aimait pas ce mot de sinistre et récente mémoire. Assassin ou “héros”, au plan de l’Histoire les limites étaient floues selon lui, c’était une “question de timing”, tout dépendait des circonstances, du côté où l’on se plaçait.»

Em 1984, Delon interpretaria a figura do Barão de Charlus (a célebre personagem homossexual de Marcel Proust) no filme Un amour de Swann, realizado por Volker Schlöndorff. Um filme sobre uma adaptação de À la recherche du temps perdu, de Proust, fora um desejo nunca concretizado de Visconti. Também René Clément e Joseph Losey sonharam com a obra, cuja imensidão e complexidade tornavam muito difícil a passagem ao cinema. Coube a Schlöndorff a graça de a fazer, mas o filme não deu do livro senão uma pálida imagem.

Informa-nos Parisis que Delon utilizava a terceira pessoa para se referir a si mesmo. E adianta as justificações do próprio. Lembrei-me, de repente, de um jogador brasileiro que se tornou famoso em Portugal, Jardel, que também usava a mesma fórmula.

Além de Violet, também Henri Rode e Stéphane Guibourgé escreveram biografias sobre Delon, que não li e por isso não comento. Um capítulo da biografia de Rode intitula-se “Le danger d’être beau”.

Ao longo das 270 páginas deste livro, Jean-Marc Parisis faz desfilar perante os nossos olhos uma quantidade não negligenciável de pessoas, situações, comentários e acontecimentos relativos a Alain Delon, assinalando os aspectos positivos e negativos da sua carreira, mais os primeiros do que os segundos, não omitindo, obviamente, as pouco recomendáveis frequentações do actor, mas insinuando que elas constituíram o contraponto do seu enorme talento, e que os sarilhos em que esteve envolvido foram o preço que teve de pagar à sociedade pela sua indiscutível beleza. Não conheço as outras biografias de Delon, mas não encontro no livro qualquer revelação sensacional sobre o percurso pouco ortodoxo do actor, salvo talvez alguns pormenores semeados aleatoriamente. Neste apontamento, limitei-me a referir apenas certos aspectos que se me afiguraram mais relevantes, acrescentando algumas informações que não constam do texto: não constitui propriamente uma crítica da obra.

 
Alain Delon actualmente

Alain Delon nasceu em Sceaux (Seine) em 8 de Novembro de 1935, e tem hoje 83 anos. Entre 1959 e 1963 manteve uma relação com a actriz Romy Schneider. Em 1964 casou com Nathalie Barthélemy (Francise Canovas, de nascimento), de quem teve um filho, Anthony Delon. Divorciaram-se em 1969. De 1968 a 1982 manteve uma relação com a actriz Mireille Darc. De 1987 a 2002 manteve uma relação com o modelo Rosalie van Breeman, de quem teve dois filhos, Anouchka e Alain-Fabien. Durante a sua vida interpretou 87 filmes. Vive em Génève (Suiça), país de que possui a nacionalidade.


segunda-feira, 19 de novembro de 2018

SALÓNICA IV ~ A TORRE BRANCA





Construída em finais do século XV (versão inicial), depois da tomada da cidade pelos turcos de Murat II, em 1430, a Torre Branca (Beyaz Kule) é o monumento simbólico de Salónica, erguido junto ao mar. No seu lugar existira uma velha torre pertencente às fortificações bizantinas, no sítio onde a muralha oriental da cidade ficava sobranceira ao Golfo Termaico. Havia uma outra torre no lado ocidental e uma terceira no meio.


Ao longo do tempo, a Torre possuiu várias designações: Torre do Leão, no século XVI; Torre de Kalamaria, no século XVIII; Torre dos Janízaros (quando a guarnição destes soldados ali esteve instalada) e Torre do Sangue (Kanle Kule), quando se tornou prisão e lugar de execução dos condenados, no século XIX. Em 1826, o sultão Mahmut II mandou massacrar os janízaros revoltosos que ali se encontravam prisioneiros. Em 1880, num livro sobre os monumentos da cidade, o historiador Mihail Xatzi Ioannou chamou-lhe a Bastilha de Salónica, onde os condenados à morte eram executados e o seu sangue manchava as paredes de vermelho. Um tiro de canhão significava que a sentença de morte fora cumprida. Em 1883, por ordem do sultão Abdul Hamit II, a Torre foi pintada de branco e passou a chamar-se Torre Branca (Beyaz Kule), já que uma torre sanguinária não era um nome apropriado para os novos ventos que sopravam no Império Otomano. Curiosamente, foi um condenado, Nathan Guiledi, que pintou a torre de branco em troca da sua liberdade.


Segundo investigações recentes, a Torre (na sua forma actual) terá sido projectada pelo célebre arquitecto otomano Mimar Sinan, autor de muitos monumentos e de fortificações semelhantes. Até 1912, data da incorporação de Salónica no Estado Helénico, podia ver-se sobre a porta de entrada da Torre, que se tornou o símbolo da cidade, a seguinte inscrição em turco otomano: AH 942, o que equivale, na EC, ao período 1535-1536.

Foi nas proximidades da Torre Branca que foi assassinado, em Março de 1913, o rei Jorge I da Grécia.


Durante a Primeira Guerra Mundial, a Torre foi usada para armazenar antiguidades provenientes das escavações arqueológicas. Também alojou a defesa aérea, o laboratório de meteorologia da Universidade de Aristóteles e os grupos dos Escuteiros do Mar. Em 1983, a Torre passou para a dependência do Ministério da Cultura.


A Torre Branca tem a forma circular, com 33,9 m de altura e um diâmetro de 21,7 m. Possui um piso térreo e seis andares e é construída em pedra, gesso e tijolo. Uma escadaria em espiral, com 92 degraus, liga a base ao último andar. Quarenta janelas permitem a entrada da luz do dia no seu interior.

À parte a base e o último andar, que consistem apenas num espaço circular, os restantes possuem, envolvendo o espaço circular central (8,5 m de diâmetro), pequenas salas em torno do perímetro, comunicando com o espaço principal através de aberturas baixas. Arquitectonicamente, a Torre é constituída por dois cilindros, um interior e o outro exterior, elevando-se o segundo até ao quinto andar, e o primeiro até ao sexto andar, em cujo exterior existe um terraço donde se desfruta uma vista excepcional sobre a cidade. Até aos princípios do século XX, a Torre era rodeada por uma muralha octogonal baixa (camisa), provida de pequenos torreões octogonais em três dos seus cantos. Esta muralha, provavelmente construída em 1535, foi demolida em 1911.


Desde 2008, a Torre Branca acolhe uma exposição permanente sobre Salónica, desde a sua fundação, em 315 AC, até ao presente, apresentando cada andar um tema principal desenvolvido ao longo do tempo. O espaço central trata o núcleo do assunto, cujos pormenores são apresentados nas salas circundantes.

O Rés-do-Chão é dedicado a “Salónica: Espaço e Tempo”. Aborda a fundação da cidade e o meio ambiente desse tempo. A presença humana data do sexto milénio AC, encontrando-se já “colonatos” organizados na Idade do Bronze (3000-1100 AC). Cassandro fundou Salónica em 315 AC instalando na nova cidade habitantes de 26 colonatos existentes na área periférica.

O Primeiro Andar tem como tema “Salónica: Transformações”. Mostra a história do planeamento da cidade e das suas infra-estruturas. É assinalado o desenvolvimento da sua superfície, desde os 2.000 hectares originais até aos 3.000 hectares dos fins do século XIX. São ainda apresentados alguns objectos alusivos ao passado da cidade enterrado sob as fundações dos edifícios modernos. 

As pequenas salas circundantes da plataforma principal relatam as modificações dos fins do século XIX e princípios do século XX, incluindo a demolição das antigas muralhas, o Grande Incêndio de 1917 e o novo plano projectado pelo arquitecto francês Ernest Hébrard.


O Segundo Andar apresenta “Salónica: Monumentos e História”. Uma panorâmica da cidade é feita através da apresentação de sete importantes monumentos, descritos em projecções de vídeos:

. A Porta de Ouro (demolida em 1911, juntamente com uma parte das muralhas ocidentais) sublinha a importância de Salónica durante o período romano, quando os romanos lhe concederam especiais privilégios e a declararam “cidade livre”;
. A Agora Romana (séculos II a III) era o centro administrativo, financeiro e social da cidade;
. O Complexo de Galério (princípio do século IV) representa a transição gradual da religião antiga para o cristianismo, que se tornou uma componente essencial da fisionomia do Império Bizantino;
. A Igreja de São Demétrio (Agyos Demetrius) testemunha o papel importante desempenhado pelo culto deste santo (o padroeiro da cidade) na história da Salónica bizantina, de um ponto de vista religioso, social e financeiro;
. A Igreja dos Doze Apóstolos (Agyoi Apostoloi) que foi edificada em 1310/4,revela a importância de Salónica nos fins do período bizantino, quando esta era a segunda cidade do Império, depois de Constantinopla;
. A Igreja de Acheiropoietos (450-475), a mais antiga igreja cristã preservada em Salónica, foi a primeira igreja a ser convertida em mesquita depois da tomada da cidade pelo sultão otomano Murat II em 1430 (Eski cume camii) e conserva ainda, numa das suas colunas, uma inscrição mandada colocar pelo imperador. Outras igrejas tiveram depois o mesmo destino;
. O Heptapyrgion (Yedi Kule), que significa Fortaleza das Sete Torres (apesar de possuir dez), construído na Acrópole, data da Antiguidade tardia, tendo sido remodelado durante os períodos bizantino e otomano. Foi a sede do comando da guarnição otomana durante longo tempo, e depois convertido em prisão em fins do século XIX, a qual funcionou até 1989, altura em que foi transferida para fora da cidade. Começou a ser restaurado pelo Ministério da Cultura grego em 1973, e depois entre 1983 e 1985, para reparar os estragos provocados pelo terramoto de 1978.

Nas salas circundantes são apresentados importantes acontecimentos históricos de Salónica, como o massacre no Hipódromo, em 390, o Reino Latino (1204-1224), a revolta dos Zelotas (1342-1349), a Revolução de 1821, a Luta Macedónica (1904-1908), o Movimento dos Jovens Turcos (1908), a Libertação, em 1912 e a Primeira Guerra Mundial.


O Terceiro Andar apresenta “Salónica: A Pátria de um Povo”. O tema é o povo da cidade, as pessoas que a tinham por pátria ancestral e as que foram chegando de outras regiões e que nela se instalaram. Há uma apresentação de slides relativos às pátrias perdidas dos refugiados gregos de 1922, com referência à sua fé e à esperança de que um dia pudessem regressar às suas primitivas terras. É também projectado um filme sobre as memórias dos antigos salonicences e dos que adoptaram a cidade como a sua nova casa. E existem painéis com textos de escritores e viajantes, que descrevem a cidade do século VII até ao presente. 

Nas salas circundantes é fornecida informação sobre a vida dos salonicences durante a Antiguidade, nos períodos bizantino e otomano, aquando dos refugiados de 1922, durante a ocupação alemã na Segunda Guerra Mundial e as perseguições aos judeus, no período da urbanização dos anos 50 e 60 do século passado, e sobre os que foram repatriados em 1990.


O Quarto Andar tem por tema “Salónica: Nas Rotas do Comércio”. Trata do comércio e da economia da cidade, das pessoas e dos lugares envolvidos no comércio, e dos produtos e actividades comerciais. São apresentados objectos provenientes de escavações arqueológicas, como ânforas e moedas de várias épocas. São ainda mencionadas as trocas comerciais entre Salónica e outras cidades, os transportes comerciais, os mercados da cidade, as profissões e as actividades produtivas. 

As salas circundantes apresentam vídeos relativos à Feira Internacional de Comércio de Salónica, aos mercados da cidade através da história, às guildas profissionais, à modernização e industrialização do século XIX, à criação da classe operária, e às transformações sociais operadas pela era moderna.


O Quinto Andar trata de “Salónica: Lazer e Cultura”. Refere a vida intelectual e artística da cidade nos séculos XIX e XX. Existe um pequeno anfiteatro onde é apresentado um filme, “espectáculo na cidade”, com imagens da sua vida artística e atlética. 

As salas circundantes exibem elementos sobre a imprensa local, a Universidade de Aristóteles, as escolas da cidade, as fundações educativas, a literatura, o teatro, o cinema e a música de Salónica. Existe também uma projecção de slides sobre os jornais que têm circulado em Salónica, um vídeo sobre a rádio e a televisão e aplicações interactivas sobre as personalidades da vida intelectual e artística da cidade desde a Antiguidade aos nossos dias.


O Sexto Andar é dedicado a “Salónica: Sabores”. Trata dos “sabores” da cidade e reflecte a variedade de pessoas de diferentes antecedentes e cultura que aqui viveram. Uma parte do espaço está transformada em sala de jantar com quatro mesas. Os tampos das mesas são écrans que apresentam a preparação de receitas para comidas e doces característicos de Salónica. O espaço restante é ocupado pela Loja do Museu, onde se vendem livros e recordações da cidade. 


Do terraço que circunda este último andar desfruta-se uma magnífica vista sobre a cidade e estão colocados quadros de informação sobre localizações e monumentos do passado.


Esta descrição, necessariamente incompleta, pretende transmitir aos leitores uma ideia do conteúdo da Torre Branca, que continua a ser o monumento simbólico por excelência da cidade de Salónica.

   

sábado, 17 de novembro de 2018

JOSÉ ALBERTO LOUREIRO DOS SANTOS




Morreu hoje em Lisboa, aos 82 anos, vítima de doença, o general José Alberto Loureiro dos Santos, figura notável de cidadão, de militar e de académico, que prestigiou, durante décadas, a vida nacional.

O general Loureiro dos Santos, natural de Vilela do Douro (Sabrosa), frequentou a Escola do Exército, o curso de Estado-Maior e o Instituto de Altos Estudos Militares. 


Desempenhou diversas missões de serviço em vários organismos e foi Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (e por inerência membro do Conselho da Revolução), Ministro da Defesa Nacional (nos IV e V Governos Constitucionais) e Chefe do Estado-Maior do Exército.


Na sua carreira académica, foi professor em diversas instituições, salientando-se: Instituto de Altos Estudos Militares, Instituto de Altos Estudos da Força Aérea, Instituto da Defesa Nacional e Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Foi membro do Conselho de Investigação de Segurança e Defesa do Instituto de Estudos Superiores Militares e do Conselho Geral da Universidade de Lisboa. 

Foi sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa e da Sociedade de Geografia de Lisboa, membro fundador do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, sócio vitalício e emérito do Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo, tendo ainda pertencido a muitos outros organismos civis e militares.


O general Loureiro dos Santos possuía numerosas condecorações nacionais e estrangeiras, entre as quais a Comenda da Ordem Militar de Aviz e a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique, da Ordem Militar de Cristo e da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada.

Especialista em assuntos de estratégia e conferencista em diversas instituições, publicou numerosos livros sobre história militar, segurança e defesa e política internacional.


Com a morte do general Loureiro dos Santos abre-se em Portugal um vazio difícil de preencher.


sábado, 10 de novembro de 2018

SALÓNICA III - O MUSEU DE CULTURA BIZANTINA






O Museu de Cultura Bizantina de Salónica fica situado na Leoforos Stratou, no quarteirão seguinte ao do Museu Arqueológico. É um edifício moderno, inaugurado em 1994, e reúne peças notáveis, nomeadamente religiosas, do passado bizantino de Salónica, que foi a segunda cidade mais importante do Império Bizantino, depois de Constantinopla. Além do seu acervo permanente, o Museu organiza exposições temáticas temporárias e prossegue projectos educacionais.



Uma primeira área é reservada ao período bizantino antigo (séculos IV a VII) e uma segunda parte ao período bizantino médio (séculos VIII a XII).





Com a "conversão" de Constantino ao cristianismo e mais tarde o reconhecimento oficial do mesmo como religião do Estado por Teodósio, a Igreja Cristã conheceu um rápido desenvolvimento. O modelo predominante das primeiras igrejas era a basílica romana, um lugar de assembleia pública erigido no centro das cidades. Possuía uma estrutura rectangular e estava dividido longitudinalmente em alas, separadas por colunas, que podiam ser três, cinco ou mesmo sete. A abside do santuário era colocada a leste e o nártex, ou vestíbulo, a ocidente. O conjunto era rodeado por anexos, que serviam de apoio aos serviços litúrgicos. Um exemplo característico é a igreja de Achiropiitos (século V), em Salónica, depois transformada em mesquita por Murat II, e regressada ao culto cristão após a queda do Império Otomano.





A versão basilical evoluiu para um modelo mais complexo, com um transepto, criado pela introdução de um eixo transversal na parte final do lado oriental do edifício. Um exemplo notável é a igreja de Agyos Dimitrios (São Demétrio), em Salónica, resultante da transformação, no século VII, de uma basílica romana. Esta igreja, dedicada ao padroeiro da cidade, foi destruída pelo grande incêndio de 1917, e depois restaurada na forma actual.





Com o correr do tempo, foram construídos edifícios já expressamente destinados a igrejas, de forma circular ou poligonal, incluindo túmulos dos mártires no seu interior.





A vida e a aparência das cidades no período bizantino antigo não sofreu grandes modificações em relação à época romana propriamente dita. As cidades continuavam cercadas de muralhas fortificadas e a agora era o centro da vida pública. Existiam numerosas edificações para satisfação das necessidades sociais: cisternas, celeiros, banhos públicos, teatros, hipódromos. E com o triunfo final do cristianismo surgiram as igrejas, geralmente acompanhadas das residências episcopais, e que passaram não só a cumprir a sua função religiosa como também a ser o centro de actividades administrativas, económicas e sociais.





A exposição das peças está organizada em torno de um triclinium, o átrio de recepção das famílias abastadas de Salónica, com o chão em mosaico e as paredes pintadas. São apresentados objectos da vida quotidiana pública e privada (objectos de cerâmica, vidro, tecelagem ou cozinha, vestuário, adornos, cosméticos, etc.).





Também é dedicada atenção especial ao culto dos mortos. Neste período os cemitérios encontravam-se fora das muralhas da cidade, de acordo com a prática romana. Com o advento do cristianismo começaram a existir junto aos túmulos dos mártires e nas basílicas. A Igreja permitia a prática dos rituais pagãos de enterramento, excepto a cremação. Os mortos eram sepultados com as suas jóias, objectos de uso pessoal e moedas destinadas ao pagamento da viagem seguinte. O material exposto provém dos primeiros cemitérios cristãos de Salónica.





A segunda área do Museu é dedicada ao período bizantino médio, desde  a questão da Iconoclastia até ao apogeu da Dinastia Macedónica e à época dos Comnenos. Este período é marcado por mudanças radicais na vida do Império, devido à perda de parte da sua região ocidental. As cidades foram encolhendo progressivamente ou até abandonadas, devido aos ataques inimigos, epidemias e terramotos. Muitas foram substituídas por cidades-fortalezas.





A Igreja Cristã experimentou a sua maior crise neste período. Em primeiro lugar com a questão dos iconoclastas, movimento político-religioso contra a veneração de ícones e imagens religiosas no Império Bizantino, que começou no início do século VIII e perdurou até ao século IX. Os iconoclastas acreditavam que as imagens sacras seriam ídolos e a sua veneração idolatria. Foram destruídos milhares de ícones, mosaicos, frescos, estátuas, pinturas, livros e outras obras de arte. Os iconoclastas foram definitivamente condenados pelo Segundo Concílio de Niceia (787). A outra grave crise foi de natureza dogmática, e vinha a arrastar-se há séculos. Houve uma primeira ruptura entre a Igreja de Roma e a de Constantinopla por causa da recitação do Credo no cristianismo ocidental, durante o pontificado de Fócio, patriarca de Constantinopla (856-867). A situação agravou-se em 1043 com a ascensão à cadeira patriarcal de Miguel Cerulário, que em 1053 mandou encerrar todas as igrejas latinas de Constantinopla, proclamando-se patriarca ecuménico. Em 1054, o papa Leão IX enviou um legado, o cardeal Humberto, para intimar Cerulário a reconhecer a supremacia de Roma como mãe das igrejas. Este recusou e Humberto, apesar do papa ter entretanto morrido, depô-lo e excomungou-o. Por sua vez, Cerulário excomungou Humberto e toda a comitiva papal. Estava consumada a ruptura, que dura até hoje, e que ficou conhecida como o Grande Cisma do Oriente. Foi a primeira cisão na Igreja Cristã, passando a haver a Igreja Católica Apostólica Romana e a Igreja Ortodoxa Bizantina (depois do fim do Império, apenas Igreja Ortodoxa).




Em 963, foi construído o mosteiro da Grande Lavra, no Monte Athos, que marcou o início da vida monástica na região e contribuiu largamente para o florescimento do monasticismo na Montanha Sagrada. Surgiram, entretanto, novos estilos arquitectónicos para as igrejas. As primitivas basílicas cristãs, construídas segundo um eixo longitudinal e muito amplas, deram lugar a edifícios mais pequenos, em forma de cruz e com o tecto em abóboda. A igreja octogonal foi privilegiada nos mosteiros e os cemitérios passaram para o interior das cidades, especialmente para os pátios das igrejas e dos mosteiros. 





A Dinastia Macedónica e a governação dos Comnenos caracterizaram-se por um acentuado desenvolvimento cultural e artístico, cuja reverberação teve como consequência um decisivo impacto cultural e político no mundo então conhecido, com particular realce no mundo balcânico.  





Esta zona da exposição contém material arqueológico e painéis informativos relativos à Iconoclastia, à arquitectura, pintura e escultura das igrejas do período bizantino médio, ao monasticismo, à conversão dos eslavos pelos irmãos Cirilo e Metódio, aos cemitérios, cerâmica, selos de chumbo, moedas, etc. 





São ainda apresentadas as dinastias do Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente), desde Heráclio (610-641) até à queda de Constantinopla, em 1453, quando o imperador Constantino XI foi derrotado pelo sultão otomano Mehmet II.





Apresentámos algumas imagens das peças mais interessantes do Museu.