Foi recentemente editado o
livro Un problème avec la beauté – Delon
dans les yeux, de Jean-Marc Parisis, autor que desconhecia mas que tem
alguma obra publicada.
Pretende este livro
salientar o problema com que Alain Delon sempre se confrontou, a sua beleza,
unanimemente apreciada por homens e mulheres. Segundo o autor, a extraordinária
beleza de Delon terá de alguma forma condicionado a sua vida pessoal e
profissional.
Existem diversos livros
sobre Alain Delon, alguns controversos, e o visado tentou mesmo impedir a
publicação de uma sua biografia. [Averiguei que se tratou de Les Mystères Delon, de Bernard Violet. A
Justiça atendeu o seu pedido, um facto inédito na democracia francesa, mas o
autor exigiu uma revisão do processo em nome da liberdade de expressão e o
livro acabou por ser publicado, ainda que trucado, em 2000]. Por isso, não
compreendo a necessidade desta obra, que nada de especial acrescenta ao que já
é sabido ou verdadeiramente intuído do percurso da personagem.
É claro que Un problème avec la beauté – Delon dans les
yeux, não é propriamente uma biografia, nem tão pouco um livro sobre as
interpretações do actor ou a sua carreira cinematográfica. Trata-se de uma
colectânea de instantâneos em que Jean-Marc Parisis regista episódios significativos
da vida de Delon e das figuras que, na vida real e/ou artística, com ele
contracenaram.
Conhecida uma proverbial
rebeldia de Delon, insinua o autor, desde a primeira página, que nele se
instilou a figura de Jean Genet, detido na prisão de Fresnes, quando ainda
criança, Delon brincava no pátio daquela instituição, onde o seu “pai adoptivo”
exercia funções de vigilante. Aventa mesmo Parisis que é muito possível que os
olhos do autor de Notre-Dame des Fleurs
possam ter cruzado alguma vez os do futuro intérprete de Rocco e i suoi fratelli.
Desfilam ao longo da obra as
inúmeras personagens com quem Delon contactou na sua vida, de gente dos bas-fonds, dos bandos de gangsters e do mundo do crime a figuras
do meio artístico, especialmente cinematográfico, e do meio político e social. Dada
a estrutura do livro e porque essas pessoas não são, na generalidade,
devidamente apresentadas, e estando quase todas mortas, elas são hoje
desconhecidas do grande público. E não sendo os referidos instantâneos
cronologicamente ordenados, e primando o autor por uma total ausência de datas,
difícil se torna seguir a trajectória do sedutor (seduzido) e de compreender os
relacionamentos que Parisis entende demonstrar. É pois um livro só
verdadeiramente acessível aos felizes “iniciados”.
Também é um facto que esta
teia, casual ou intencionalmente urdida, se presta a confusões, a meias
verdades ou até a inverdades, pelo que se ignora o propósito do autor ao
escrever a obra.
Sabemos todos que Alain
Delon interpretou alguns filmes que constituíram marcos na história do Cinema.
Dois deles, Rocco e i suoi fratelli e
Il Gattopardo, em especial este
último, são obras-primas da cinematografia. Ambos foram dirigidos por Luchino
Visconti, esse realizador famoso que é, porventura, o maior de todos os tempos.
Sendo Alain Delon indubitavelmente lindo e sedutor (apesar do seu mau feitio) e
sendo Visconti um apreciador declarado da beleza masculina, é universalmente
consensual que os dois mantiveram muito tempo, uma relação íntima. Nem outra
coisa justificaria que Visconti tivesse, durante a sua vida, a fotografia de
Delon sobre a mesa-de-cabeceira. É por isso estranho que Parisis enfatize (p.
52) a seguinte declaração atribuída a Romy Schneider, que viveu com Delon
alguns anos: «Je crois qu’il n’y a jamais rien eu d’autre à voir dans leur
rapport que ceci: Luchino aimait Alain parce qu’il flairait en lui la matière
brute du grand acteur. Il entendait donner forme à cette matière, et ce, de
façon tyrannique, avec une prétention à la exclusivité.»
Também é estranha estoutra
afirmação de Parisis: «Delon préférait travailler avec Visconti qu’avec Malle,
mais ne tounerait pas L’Étranger. Le producteur refusait son
prix. Était-ce seulement affaire d’argent? Retrouver, travailler
avec Visconti ne valait-il pas tout l’or du monde? Une rencontre avait changé
la vie de Visconti en la compliquant. Après Le
Guépard, il s’était épris d’un blondin d’une beauté diaphane, un peu molle,
morbida. Affolé par celle plus
tranchante de Delon, qu’il haïssait, Helmut Berger craignait que l’autre
n’accapare son amant. Visconti avait-il cédé aux
crises de Berger? Delon refusait-il de les essuyer? Mastroianni jouerait
Meursault, à la Mastroianni, trop légèrement pour incarner le sombre héros de
Camus, et Visconti désavouerait son film.» (p. 103). Não me lembro agora,
exactamente, das peripécias para a escolha do protagonista de Lo Straniero, mas não creio que Delon
tivesse recusado o papel, fosse por dinheiro, fosse pela eventual concorrência
de Berger. Acho que Delon pretendia antes afastar-se do Mestre, pois era voz
corrente que eram, ou tinham sido, amantes. E Delon, que desde a sua mais tenra
juventude deve ter passado pela cama de inúmeros homens (a sua biografia
permite sustentar esta convicção), estando agora no estrelato entendia
distanciar-se de uma relação quiçá comprometedora. Recordo-me de ter assistido,
há anos, na televisão, a uma entrevista a Alain Delon, em que este
desvalorizava o que teria aprendido com Visconti, enaltecendo como seu grande
mestre o realizador francês René Clément (que não era homossexual) e com quem
fizera um filme também de sucesso, Plein
Soleil, a partir do romance de Patricia Highsmith, The Talented Mr. Ripley. Aliás, a carreira de Delon teve sempre
cruzamentos homossexuais. O seu segundo filme, tinha ele 23 anos, foi dirigido
por Marc Allégret, que fora, aos 17 anos, amante oficial de André Gide. Mas,
nos últimos anos, Delon tem-se caracterizado por declarações homofóbicas (ele
lá saberá porquê) e reaccionárias, como o seu apoio ao Front National, que
entretanto já não deve ser suficientemente de direita para o seu gosto. É
evidente que René Clément foi um importante cineasta, mas não se pode comparar
a Visconti, cujo rigor profissional, vastíssima cultura, gosto requintado e
paixão pelos actores (característica que nunca se pode ou deve menosprezar),
transportava ao sublime os filmes que realizou e, também, as peças de teatro e
óperas que encenou, entre as quais uma célebre La Traviata, no Scala, cantada por Maria Callas. Ainda sobre Lo Straniero, que o próprio Visconti
descartaria da sua filmografia, é evidente que Marcello Mastroianni, embora
grande actor, não era, de alguma forma, o intérprete conveniente para encarnar
o protagonista da imortal obra de Albert Camus.
Desde muito jovem, Alain
Delon frequentou meios problemáticos e conviveu com pessoas de duvidosa
reputação. Expulso de sucessivas escolas por mau comportamento, alimentou a
ideia de ir com um amigo para os Estados Unidos, mas foram impedidos pelas
autoridades. Aos 14 anos foi trabalhar para a loja do padrasto, aos 17
alistou-se na Marinha francesa e aos 18 embarcou para a Indochina como
fuzileiro naval, tendo estado vários meses preso por indisciplina durante os
quatro anos de serviço militar. De regresso a França, e sem dinheiro, trabalhou
como criado, porteiro, assistente de vendas, secretário e prestou outros
serviços ocasionais, para os quais não lhe faltariam clientes, actividades que
lhe terão permitido estabelecer uma rede de contactos com algumas pessoas
influentes. A relação com os irmãos Allégret possibilitou-lhe entrar nos seus
dois primeiros filmes (1967), o que o tornou conhecido do público. Começava a
ascensão ao estrelato. Em 1968, conheceu Romy Schneider, com quem viveu alguns
anos. Mas a sua reputação internacional consagra-se com Plein Soleil, em 1960, e com a inestimável colaboração com
Visconti. Esteve para interpretar Lawrence
of Arabia, mas o papel foi dado a Peter O’Toole.
A sua carreira artística no
cinema (e também ocasionalmente no teatro), como actor e também como produtor,
foi longa (até há cerca de dez anos) e não cabe aqui descrevê-la. O
proprietário corso de um bar (Delon tinha ascendência corsa) apresentou-lhe um
dia, era ele muito jovem, o seu irmão, François Marcantoni, gangster corso que combateu na
Resistência. Ficaram amigos. Mais tarde, Marcantoni apresentou-lhe um outro
corso, Barthélemy Guérini, o “Mémé”, “padrinho” de Marselha e próximo de Gaston
Defferre, o maire da cidade, e seu
conhecido dos tempos da oposição ao regime de Vichy. Posteriormente, numa
filmagem em Belgrado, Delon travou conhecimento com um bonito rapaz da rua,
Milos Milosevic (1941-1966), que vivia de expedientes, queria fugir do regime
de Tito e sonhava com o cinema. Sempre aberto para com as gentes da sua laia,
Delon empregou-o como “doublure lumière”
(actor complementar que substitui o actor principal durante a afinação da
iluminação) e como guarda-costas. Atrás de Milosevic, veio outro jugoslavo,
Stefan Markovic (1937-1968), que Delon se comprometeu também a ajudar, ficando igualmente
como guarda-costas. Como era muito bonito (apanágio frequente dos sérvios), durante
o seu período em França Markovic entrou em contacto com o jet-set francês, entregando-se também à prostituição. E Delon
acabou por ficar rodeado pela rede jugoslava de Paris.
Milos Milosevic |
Por razões que não vêm agora
ao caso, Markovic tornou-se o sérvio mais próximo de Delon, passando a viver em
sua casa e gozando de um estatuto especial. A ligação a Markovic viria,
contudo, a trazer os maiores dissabores a Delon e provocou um escândalo em
França. Em 1968, o corpo de Stefan Markovic foi encontrado morto nos arredores
de Paris. As relações de Markovic com Delon tinham entretanto esfriado, até
porque este suspeitava de que, durante uma ausência, aquele mantivera um caso
com a sua mulher Nathalie. Acontece que Stefan Markovic, antes de ser abatido,
enviara uma carta, que foi presente à Justiça, a seu irmão Alexandre Markovic afirmando
que se fosse morto seria 100% da responsabilidade de Alain Delon e de François
Marcantoni. Entretanto, começaram também a circular em França rumores e fotos
que envolviam Markovic em orgias, designadamente com Claude Pompidou, mulher do
ex-primeiro-ministro e candidato à presidência da República Georges Pompidou.
Parece que Markovic, além das suas funções junto de Delon e do tráfico de droga,
tinha por hábito fotografar cenas íntimas das festas sexuais em que participava
com mulheres e homens. Foi um escândalo nacional, que o casal Pompidou foi o
último a conhecer, e que ficou conhecido como o Caso Markovic. A figura
apresentada nas fotos como sendo Claude Pompidou seria afinal a de uma sósia.
Supõe-se que os meios policiais franceses tenham estado envolvidos nesta
mistificação, já que os gaullistas, apesar de De Gaulle, não gostavam de
Georges Pompidou, que achavam demasiado mundano, muito dado a frequentar
espectáculos, exposições, jantares e a conviver com artistas, literatos e, pelo
meio, gente menos conveniente. E é um facto que o casal Pompidou conheceu
pessoalmente Markovic e Delon, tendo mesmo sido convidado para casa deste
último.
Marcantoni foi preso e Delon
longamente interrogado, chegando a estar detido. Marcantoni foi libertado
posteriormente e em 1976 obteve um “non-lieu”
da Justiça. Chegou a aventar-se que a morte de Markovic fora ordenada por
Pompidou para se vingar do ultraje. Mas poderia ter sido um ajuste de contas
por negócios de droga ou de qualquer outro género, nomeadamente chantagem.
A morte de Stefan Markovic
nunca foi esclarecida.
Em 1970, Alain Delon
interpretou The Assassination of Trotsky,
dirigido por Joseph Losey e contracenando com Richard Burton. Desempenhava o
papel do assassino, Ramon Mercader, no filme Jackson, pois Mercader ainda
estava vivo. Escreve Parisis (p. 170) com ironia: «En Mercader qui vivait
encore, Delon voyait plutôt un “exécutant” qu’un “assassin” – il n’aimait pas
ce mot de sinistre et récente mémoire. Assassin ou “héros”, au plan de
l’Histoire les limites étaient floues selon lui, c’était une “question de
timing”, tout dépendait des circonstances, du côté où l’on se plaçait.»
Em 1984, Delon interpretaria
a figura do Barão de Charlus (a célebre personagem homossexual de Marcel
Proust) no filme Un amour de Swann,
realizado por Volker Schlöndorff. Um filme sobre uma adaptação de À la recherche du temps perdu, de
Proust, fora um desejo nunca concretizado de Visconti. Também René Clément e
Joseph Losey sonharam com a obra, cuja imensidão e complexidade tornavam muito
difícil a passagem ao cinema. Coube a Schlöndorff a graça de a fazer, mas o
filme não deu do livro senão uma pálida imagem.
Informa-nos Parisis que
Delon utilizava a terceira pessoa para se referir a si mesmo. E adianta as
justificações do próprio. Lembrei-me, de repente, de um jogador brasileiro que
se tornou famoso em Portugal, Jardel, que também usava a mesma fórmula.
Além de Violet, também Henri
Rode e Stéphane Guibourgé escreveram biografias sobre Delon, que não li e por
isso não comento. Um capítulo da biografia de Rode intitula-se “Le danger
d’être beau”.
Ao longo das 270 páginas deste
livro, Jean-Marc Parisis faz desfilar perante os nossos olhos uma quantidade
não negligenciável de pessoas, situações, comentários e acontecimentos
relativos a Alain Delon, assinalando os aspectos positivos e negativos da sua
carreira, mais os primeiros do que os segundos, não omitindo, obviamente, as
pouco recomendáveis frequentações do actor, mas insinuando que elas constituíram
o contraponto do seu enorme talento, e que os sarilhos em que esteve envolvido
foram o preço que teve de pagar à sociedade pela sua indiscutível beleza. Não
conheço as outras biografias de Delon, mas não encontro no livro qualquer
revelação sensacional sobre o percurso pouco ortodoxo do actor, salvo talvez
alguns pormenores semeados aleatoriamente. Neste apontamento, limitei-me a
referir apenas certos aspectos que se me afiguraram mais relevantes, acrescentando
algumas informações que não constam do texto: não constitui propriamente uma
crítica da obra.
Alain Delon nasceu em Sceaux
(Seine) em 8 de Novembro de 1935, e tem hoje 83 anos. Entre 1959 e 1963 manteve
uma relação com a actriz Romy Schneider. Em 1964 casou com Nathalie Barthélemy
(Francise Canovas, de nascimento), de quem teve um filho, Anthony Delon.
Divorciaram-se em 1969. De 1968 a 1982 manteve uma relação com a actriz
Mireille Darc. De 1987 a 2002 manteve uma relação com o modelo Rosalie van
Breeman, de quem teve dois filhos, Anouchka e Alain-Fabien. Durante a sua vida
interpretou 87 filmes. Vive em Génève (Suiça), país de que possui a
nacionalidade.
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