quinta-feira, 29 de julho de 2021

O SOLDADO PERDIDO

 


Revi, em VHS, Pelo Soldado Perdido, mas deveria ser Para um soldado perdido (For a Lost Soldier), em holandês Voor een verloren soldaat,  que gravara há largos anos, quando foi transmitido pela SIC.

Trata-se de um filme realizado em 1992, pelo cineasta holandês Roeland Kerbosch (n. 1940), a partir do romance homónimo do escritor e coreógrafo também holandês Rudi van Dantzig (1933-2012), onde este relata uma marcante experiência da sua vida.

Resumindo a ficção autobiográfica: em 1944, com os Países Baixos ocupados pelo exército alemão, o jovem Jeroen Krabbé, de onze anos, residente em Amesterdão, é enviado pela mãe para casa de uma família de acolhimento, na Frísia, lugar mais seguro do que seria permanecer na capital do país. Aconteceu então o mesmo a muitos rapazes e raparigas muito novos que os pais entendiam colocar a salvo.

O jovem aborrece-se com a convivência dessa família de pescadores de enguias e cristãos (protestantes) obssessivamente praticantes, mas a situação modifica-se com a chegada dos primeiros militares aliados que atingem o território em 1945, na sequência do desembarque na Normandia. Jeroen trava conhecimento com um jovem soldado canadiano, Walter Cook (Walt), de vinte e poucos anos, que logo o lobriga à chegada, dizendo-lhe serem ambos criaturas especiais. O soldado apaixona-se pelo rapaz, no que é plenamente correspondido, e durante os dias que o destacamento permanece na aldeia estabelece-se entre ambos uma relação amorosa que se consuma sem ambiguidades, segundo o romance descreve e a película claramente mostra, com os dois despidos e abraçados em cima da cama.

Pouco tempo depois, o destacamento é enviado subitamente para outra localidade e o rapaz não mais verá o soldado, que parte sem se despedir, por óbvias razões. Mas ficará, para o resto da vida, com a indelével recordação daqueles dias, conservando apenas os óculos de sol, uma fotografia e a chapa de identificação que o militar trazia ao pescoço. Passada a guerra, Jeroen regressará a casa de seus pais. Mais tarde, coreógrafo, evocará num bailado aquela que foi a grande, se bem que efémera, paixão da sua vida: o soldado que perdera para sempre. O assunto é tratado com infinita delicadeza na escassa hora e meia que a película dura.

A cópia exibida pela Sic, e que gravei, não era de boa qualidade e, com o passar do tempo, encontra-se já razoavelmente deteriorada. Pesquisei pelo filme nas diversas Amazon, encontrando apenas uma gravação holandesa, com legendas em alemão e uma outra, com legendas em inglês mas apenas legível em leitores de DVD multi-regiões. Tentarei pesquisar mais diligentemente, mas suponho que o filme deva estar como que sequestrado, e isto enquanto a sua venda não for proibida.

No clima moralmente totalitário que se vive no Ocidente este filme (que não é de alguma forma pornográfico) não poderia ser hoje produzido, e estou certo de que a SIC, que o apresentou em horário normal, jamais se arriscaria a repetir a exibição nos tempos que correm. Vivemos uma época de pretensa liberdade sexual, incluindo a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas que exige, como moeda de troca,  o estabelecimento de uma ditadura dos costumes empenhada em encontrar todos os dias abusos, violações, assédios ou relações consideradas impróprias apenas porque não respeitam (independentemente do pleno conhecimento e consentimento) a data mencionada no cartão de identidade.


quarta-feira, 7 de julho de 2021

RODOLFO II, SACRO IMPERADOR

Leio L'Empereur des Alchimistes - Rodolphe II de Habsbourg (1996), de Jacqueline Dauxois, que encomendara em 1998, depois da minha primeira visita a Praga em 1997 (ano da grande exposição obre o imperador), onde comprei vários livros sobre Rodolfo II. Permanecera este na minha biblioteca à espera de oportunidade, mas o facto de proceder agora a uma limpeza geral, que vai estender-se por meses, suscitou-me o desejo de lê-lo. Trata-se de um livro de muito agradável leitura, dividido em três partes: Le petit-fils de Charles Quint; Le Magicien de Prague; Le Lion de Bohème.

Curiosa figura a deste soberano do Santo Império Romano-Germânico, arquiduque de Áustria, rei da Boémia e da Hungria. Neto materno do imperador Carlos Quinto, neto paterno do imperador Fernando I, filho do imperador Maximiliano II, sobrinho de Filipe II de Espanha, segundo primo de Dom Sebastião de Portugal, Rodolfo II (1552-1612) ficará para sempre ligado a Praga, que elegeu para sede do Império, depois de deixar Viena, cidade que detestava.

A biografia de Jacqueline Dauxois tem características muito especiais. Não segue o padrão das biografias tradicionais, antes enfatizando a permanência de Rodolfo II em Praga e os seus contactos com o mundo "mágico" da época.

A autora reserva numerosas páginas ao sacro imperador Carlos Quinto e a seu filho Filipe II, para descrever a atmosfera católica das Espanhas, onde Rodolfo seria "educado" por seu primo Filipe II, que era também seu tio, por ser irmão de sua mãe, a infanta Maria, que casara com Maximiliano II. Rodolfo é entregue aos cuidados do tio Filipe e da tia Joana (a mãe de D. Sebastião, viúva do infante D. João Manuel, de Portugal) com 12 anos (1564) e permanecerá em Espanha até aos 19 anos. Custou-lhe deixar Viena, mas sobretudo o seu pai. A corte de Madrid, muito (falsamente) puritana desagradar-lhe-á, tal como os sinistros autos-da-fé, de que guardará as piores recordação. 

A educação de Rodolfo em Espanha seguiu o mais estrito catolicismo, de acordo  com as convicções de Filipe II. Lá longe, em Viena, o imperador Maximiliano II, seu pai, oscilava entre uma aparência católica e um  discreto apoio aos luteranos, o que suscitava as maiores inquietações do Papa e da Corte de Madrid. Mas Maximiliano entendia preservar o difícil equilíbrio conseguido por Carlos Quinto (Paz de Augsburg, 1555), estabelecendo que os súbditos do Santo Império podiam praticar a religião dos seus soberanos (que na Alemanha eram ou católicos ou protestantes), segundo o princípio cujus regio, ejus religio, o que permitia, durante um tempo de transição, que os habitantes se mudassem para uma região governada por um príncipe da sua religião. Mas a Áustria era católica e não se concebia que o Sacro Imperador não fosse um católico convicto. A imperatriz Maria, irmã de Filipe II, horrorizava-se com o comportamento do marido, e após a morte deste regressou a Espanha, onde ingressou num convento. Mas as simpatias de Maximiliano II tendiam mais para o protestantismo, de tal forma que à hora da morte recusou confessar-se e receber os sacramentos, o que constituiu um escândalo que a Corte tentou dissimular, até para lhe poder ser feito um funeral católico.

Proclamado imperador após a morte de seu pai (1576), Rodolfo, que fora já coroado rei da Hungria (1572) e rei da Boémia (1575) começou a odiar Viena, e transferiu a sua residência para Praga (1583), conferindo à cidade uma importância de que ainda hoje desfruta. 

Em Praga, no ambiente de Hradčany, Rodolfo pôde desenvolver o seu gosto pela arte e pelo ocultismo. Adquiriu obras valiosíssimas, hoje dispersas pelos museus da Europa. Na sua colecção figuravam três mil quadros de pintores célebres e extraordinárias peças de ourivesaria. Encomendou a Jan Vermeyen a famosa coroa imperial que ficou conhecida como coroa de Rodolfo, e que foi usada pelos seus sucessores em alternativa à coroa do Santo Império, mandada confeccionar por Otão I. Acolheu em Praga notáveis artistas, como Giuseppe Arcimboldo, Bartholomeus Spranger ou Adrian de Vries. As ciências ocultas foram também uma das suas predilecções. Reuniu na capital alquimistas, astrólogos, mágicos, feiticeiros, necromantes, como John Dee ou Edward Kelley, e empenhou-se na realização da "obra ao negro". Também se interessou pela física e pela matemática, tendo atraído à Boémia Tycho Brahe e Johannes Kepler. O interesse de Rodolfo pelas ciências herméticas levou a que o chamassem Hermes Trismegisto.

Coroa imperial de Rodolfo II

Rodolfo II nunca contraiu matrimónio, embora chegasse a estar noivo de algumas princesas. Sabe-se que, quer em Viena quer em Praga, manteve relações com as chamadas "bonnes femmes" do Império, senhoras sujeitas aos caprichos do soberano. Houve, todavia uma relação prolongada com Katharina Strada (1567-1629), filha de Jacopo Strada, antiquário-chefe do Palácio. A rapariga foi apresentada a Rodolfo juntamente com seu irmão Octavio (1550-1607), quando eram jovens e o imperador terá ficado deslumbrado com a beleza de ambos. Mais tarde iniciou uma relação com Katharina, de que houve descendência ilegítima, onde se inclui Don Giulio Caesar d'Austria (1584-1609), que morreria cedo e louco. Não é mencionado nas biografias consultadas mas é referido em outras fontes que Rodolfo II manteve diversas ligações homossexuais, entre as quais com o seu camareiro Wolfgang von Rumpf, e também com vários criados, o mais conhecido Philip Lang, que durante muitos anos foi uma personagem chave para o acesso ao imperador. E também, possivelmente com Octavio, o irmão de Katharina, que o imperador muito apreciava.

(Na capa, o busto de Rodolfo por Adrian de Vries)

Outra biografia também sui generis é a de R. J. W. Evans, Rudolf II and his World (1973 e 1997). O autor informa que o seu estudo é uma tentativa de interpretação e não uma narrativa. «It is neither a poliical history of Central Europe and the Empire under Rudolf - though one is richly needed - nor yet an exhaustive analysis of the larger intellectual problems. I have offered some general exposition of the political issues in the first chapter, and return to the broad cultural questions in the two concluding ones; but between them I have divided the material by topics, moing out from the debate over Rudolf himself to a closer account of his entourage and its relation to the Bohemian background from which it is inseparable. The history of Rudolfine Prague is much more than merely an episode in the evolution of the lands of St. Wenceslas; it is a period when Bohemia, in common with Central Europe as a whole, stood on an international crossroads and took decisions of a lasting momentousness.» (p. 4) São dedicados capítulos específicos à política de Rodolfo, à sua religião, às suas relações com as belas artes e as artes ocultas, ao Maneirismo de Praga e, claro está, à situação dos Habsburg na Boémia e no Império.

Outra biografia, hoje esgotada na edição original, é a de Philippe Erlanger, que possuo na tradução espanhola: Rodolfo II de Habsburgo, El Emperador Insolito. Foi este livro que inspirou o acima citado de Jacqueline Dauxois.

Um volume notável, e precioso, é o catálogo (com o célebre retrato de Rodolfo pintado por Hans von Aachen na capa) da grande exposição realizada em Praga em 1997 e dedicada a Rodolfo II. Composto por duas partes, "Imperial Court" e "Residential City", e com cerca de 400 páginas, é prefaciado pelo então presidente da República Checa, Václav Havel, e inclui largas dezenas de ilustrações, a preto e branco e a cores.

Um outro livro magnífico sobre Rodolfo II e Praga é Urbs Aurea - Prague of Emperor Rudolf II, de Jaroslava Hausenblasová e Michal Sroněk. Profusamente ilustrado, exibindo as principais obras de arte do imperador, foi publicado, também em 1997, sob os auspícios da Câmara Municipal de Praga. Traça uma panorâmica da vida de Rodolfo e da cidade nos seus e nos nossos dias.

Neste breve apontamento em que evoco Rodolfo II, não posso deixar de recomendar a todos os meus leitores que visitem pormenorizadamente Praga, sempre que puderem,  e que leiam todos os notáveis livros sobre a cidade, cuja justa celebridade se inicia exactamente a partir do reinado deste imperador excêntrico, que acabaria mentalmente debilitado e contestado pelos seus súbditos, tendo sido mesmo desapossado do trono da Boémia por seu irmão Matias, que viria a suceder-lhe no Santo Império Romano-Germânico.

 

domingo, 4 de julho de 2021

LUCIA DI LAMMERMOOR

Vi e ouvi hoje Lucia di Lammermoor, de Donizetti, gravação do espectáculo do Met de 13 de Novembro de 1982. Conhecia já esta produção, creio até que foi transmitida há semanas pela televisão, mas não constava da minha videoteca, razão por que a encomendei no fim do mês passado. Chegou agora.

Trata-se de uma das grandes gravações desta ópera, com um elenco excepcional: Joan Sutherland (Lucia), Alfredo Kraus (Edgardo), Pablo Elvira (Enrico) e Paul Plishka (Raimondo). Dirige a orquestra do Met o maestro Richard Bonynge e a encenação (felizmente convencional) é de Bruce Donnell.

O público não regateou aplausos e Sutherland (cuja carreira começava então a declinar, embora tivesse ainda um extraordinário desempenho) é considerada uma das maiores intérpretes do papel no último meio século e uma das cantoras com maior longevidade no activo operático.

Assisti, em São Carlos, à interpretação de Sutherland, em La Traviata, em Abril de 1974. Haveria depois uma récita "popular", no Coliseu dos Recreios, no dia 24 de Abril, véspera da revolução. Quando o público saiu à noite daquela sala de espectáculos, já os tanques marchavam sobre Lisboa. A diva ficou retida no seu hotel até à reabertura das fronteiras, creio que dois dias mais tarde, mas já não me recordo.

A ópera Lucia di Lammermoor estreou-se no Teatro di San Carlo, de Nápoles, em 26 de Setembro de 1835. O libretto é de Salvadore Cammarano, a partir do romance The Bride of Lammermoor (1819), de Walter Scott. É presença frequente nos repertórios operáticos dos principais teatros e teve como grandes intérpretes, na segunda metade do século XX, Maria Callas e a referida Joan Sutherland. Não existe qualquer gravação vídeo com Maria Callas.

 

quinta-feira, 1 de julho de 2021

"JE VEUX LA JEUNESSE"

A busca da "juventude", tema da história do Doutor Fausto e mito fundador da civilização ocidental, tem obcecado milhões de homens (e certamente também de mulheres) ao longo dos séculos. É uma das preocupações mais notórias do ser humano.

Isto a propósito de ter recebido hoje a última gravação em DVD da ópera Faust, de Gounod, que encomendara há mais de dois meses e que só agora chegou.

Explico: efectuara a compra no site da Amazon.fr, a uma loja virtual - Rarewaves.fr - onde costumo adquirir vídeos desde há muito tempo. Chegaram entretanto outras encomendas da Amazon mas este DVD não aparecia. Eis senão quando recebo um aviso dos CTT informando-me que tinha um objecto na Alfândega, sem qualquer indicação sobre o mesmo. Fiquei admirado porque nada tinha comprado nos últimos tempos à Amazon.uk (não há direitos para os países da União Europeia). Porque em certo momento não tinha qualquer obra em falta, resolvi criar (isto é indispensável) uma conta específica nos CTT, para se proceder ao desalfandegamento. Recebi depois a nota dos encargos: € 12.00 (verba fixa) para os CTT para apresentação à Alfândega e € 11.00 de direitos, importâncias que liquidei. O valor da minha aquisição (com portes) foi de € 33.18. Acabei por pagar € 56.18. Verifiquei, ao receber o pacote, que a expedição tinha sido realmente feita do Reino Unido, da Rarewaves.com. Estarei atento em encomendas futuras.

Voltando ao disco. Trata-se da gravação efectuada em 2019 na Royal Opera House Covent Garden, com uma interpretação vocalmente correcta de Michael Fabiano (Fausto), Erwin Schrott (Mefistófeles) e Irina Lungu (Margarida). O desempenho instrumental esteve a cargo da orquestra da Casa, dirigida (com um ritmo demasiado lento) por Dan Ettinger.

A encenação de David McVicar (comprei o DVD por causa dele), esquisita e de mau gosto, desiludiu-me, ao contrário de outros trabalhos seus que apreciei devidamente. Situações como um Cristo gigante a jorrar vinho das chagas (no Acto II) ou Fausto a injectar-se na veia (no Acto IV) são inovações que pretendem fazer "moderno" e diferente, mas que só comprometem os espectáculos.