quarta-feira, 20 de abril de 2016

LIMONOV




 Celui qui veut restaurer le communisme n'a pas de tête. Celui qui ne le regrette pas n'a pas de coeur.

 Vladimir Poutine
  (Epígrafe do livro)


Eduard Veniaminovitch Savenko, conhecido como Eduard Limonov, nasceu em Dzerjinsk (Rastiapino antes da Revolução), localidade próxima de Nijni-Novgorod, em 22 de Fevereiro de 1943, filho de um oficial subalterno do NKVD (Narodniy Komissariat Vnutrennikh Diel - Comissariado do Povo para Assuntos Internos), criado em 1934 e que foi o Ministério do Interior da URSS. As funções de polícia política do regime passaram a ser exercidas, a partir de 1954 e até 1991, pelo KGB (Comitiêt Gasudárstviennoi Biesapásnasti - Comité de Segurança do Estado) e depois e até hoje pelo FSB (Federal'naya Sluzhba Bezopasnosti Rossiyskoi Federatsii - Serviço Federal de Segurança da Federação Russa).

O antepassado do NKVD foi o grupo paramilitar Tcheka (Chrezvychaynaya Komissiya - Comissão Extraordinária, de nome completo Всероссийская чрезвычайная комиссия по борьбе с контрреволюцией и саботажем - Commissão Extraordinária Panrussa para a Repressão da Contra-Revolução e da Sabotagem), criada em 1917 por Lenin e dirigida por Felix Dzerjinski, cujo nome haveria de ser dado à cidade natal de Limonov. A Tcheka soviética é de alguma forma a sucessora da Okhrana tsarista, dotada de plenos poderes e sem qualquer limite legal.

Esta divagação pela evolução da polícia política russa torna-se necessária para a compreensão do livro que Emmanuel Carrère publicou em 2011, Limonov, que seria galardoado com o Prémio Renaudot. Esta obra do escritor francês, que obteve assinalado êxito, não tem um género definido, pois não é propriamente um romance mas também não se pode classificar de biografia, tão pouco de ensaio político, ainda que o autor não se coíba de emitir as suas opiniões pessoais sobre diversos assuntos conexos com a vida de Limonov, nomeadamente sobre a guerra e subsequente desintegração da Jugoslávia e o desmoronamento da União Soviética.

Eduard Limonov

Eduard Limonov é uma personagem controversa, misto de escritor, político, aventureiro, vadio, sedutor e soldado, que viria a criar em 1992 o Partido Nacional-Bolchevique (NBP - Национал-большевистская партия, НБП) na Rússia, agregando gente da extrema-direita e da extrema-esquerda (o que não admira e que actualmente se vai verificando um pouco por todo mundo). Entre os fundadores conta-se o cientista político Aleksandr Dugin, autor de mais de 30 livros, entre os quais Fundamentos da Geopolítica e A Quarta Teoria Política.  Inicialmente aliado de Vladimir Jirinovsky (afastou-se rapidamente deste considerando-o demasiado moderado), Limonov criaria em 2010 uma nova formação política, A Outra Rússia (Другая РоссияDrugaya Rossiya).

Tendo passado a juventude em Kharkov, na Ucrânia, então uma república soviética, instalou-se, já casado, em Moscovo em 1967. Em 1974, casado pela segunda vez, emigrou para os Estados Unidos, onde levou uma vida aventurosa entre clochard e criado de quarto de um milionário em Manhatan, continuando sempre a escrever. São desta época as suas relações homossexuais com negros, que descreve em Le poète russe prefère les grands nègres, sendo aqui a palavra "grandes" não apenas alusiva à altura dos mesmos.

Desiludido com os Estados Unidos, vai para Paris em 1980, aonde se mantém até 1989, e casa pela terceira vez. Entretanto, verifica-se o desmoronamento da União Soviética devido a uma inexplicável ingenuidade e pusilaminidade de Mikhail Gorbatchov e a trágica ascensão à cabeça da Rússia do ébrio Boris Yeltsin, dos quais Limonov será, obviamente, um feroz adversário. Posteriormente, viajará pela Jugoslávia, criticando ferozmente os croatas pelo papel desempenhado na desintegração da Federação. Como denunciará o golpe que na Roménia levou à deposição e fuzilamento de Nicolae Ceasescu.  Estará também preso na Sibéria por posse ilegal de armas, mas nunca deixou de escrever, com maior ou menor êxito, tendo publicado cerca de 20 livros. E casou pela quarta vez.

Estes apenas alguns tópicos do livro de Emmanuel Carrère, para quem a personagem Limonov é naturalmente fascinante. Os interessados terão necessariamente de ler o livro. Não só por causa de Limonov mas também pelos juízos emitidos por Carrère, que não são meigos para o "mundo ocidental".

Apesar de adversário de Vladimir Putin, contra quem tentou concorrer (mas foi impedido) nas presidenciais de 2012, não deixa de ser ao mesmo tempo um admirador do líder russo, especialmente depois da intervenção militar da Rússia na Ucrânia. Digamos que existe uma relação de amor/ódio entre Limonov e Putin, não deixando aquele de elogiar ou criticar este muitas vezes. Desiludido das democracias ditas "populares", não o é menos das chamadas democracias "representativas", que têm muito pouco de democracias, como aliás já era o tão propalado caso da Grécia Antiga, que nos é sistematicamente servido como exemplo.

Acrescente-se a título de curiosidade que Emmanuel Carrère é filho da historiadora e especialista em sovietologia Hélène Carrère d'Encausse, secretário (e não secretária, a seu pedido expresso) perpétuo da Academia Francesa.

Nota: Eduard Limonov tem sido referido recentemente nas publicações internacionais, nomeadamente através de entrevistas.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

A SALVAÇÃO DA EUROPA




Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia, publica esta semana um livro sobre as medidas que entende imprescindíveis para a salvação da Europa. O título do livro foi buscá-lo a uma frase de Tucídides, n'A Guerra do Peloponeso: « Os fortes fazem o que podem e os fracos sofrem o que devem».

O número 2684 (desta semana) da revista "L'OBS", entrevista o político e economista, cujas declarações, pela sua lucidez e frontalidade, importa registar.

Entre as afirmações polémicas, destaca-se aquela em que refere que a União Europeia foi desejada pelos Estados Unidos, para servir de rectaguarda económica ao marco, quando os americanos decidiram erguer a Alemanha das cinzas para sobre ela apoiar a sua política de poder sobre o nosso continente. E não se coíbe de criticar a utopia de Jean Monnet ao imaginar que poderia criar a Europa sobre a base de uma integração exclusivamente económica.

Para o leitor interessado, apresentamos as quatro páginas da entrevista:

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 Para memória futura.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

AS IGREJAS DE VIENA (IV)



Continuando a visita às igrejas de Viena, encontramos dois templos muito próximos do Hofburg: um, integrando o próprio palácio imperial, a Augustinerkirche (Igreja de Santo Agostinho); o outro, na praça (Michaelerplatz) em frente a uma das entradas do palácio, a Michaelerkirche (Igreja de São Miguel).








A Igreja de São Miguel, dedicada a São Miguel Arcanjo, foi outrora a igreja paroquial da Corte. É uma das mais antigas igrejas de Viena, sendo do século XIII as partes mais antigas, que revelam um românico tardio e o alvorecer do gótico. O templo sofreu numerosas modificações ao longo dos séculos. A fachada neoclássica é de 1792 e o pórtico é encimado pela estátua de São Miguel vencendo o demónio.



Os frescos renascentistas do interior são apreciáveis e o órgão de 1714 deve-se a Johann David Sieber. É o maior órgão barroco de Viena e nele tocou, apenas com 17 anos, Joseph Haydn. Foi também nesta igreja que foi executado pela primeira vez o Requiem, de Mozart, no serviço religioso em memória do compositor, em 10 de Dezembro de 1791, sendo tocadas apenas as partes concluídas uma vez que Mozart ainda não havia terminado a obra quando morreu. Um dos assistentes a esta cerimónia fúnebre foi Emanuel Schikaneder, autor do libretto de A Flauta Mágica.




O altar-mor (1782) exibe um notável estuque de alabastro representando a "Queda dos Anjos", da autoria de Karl Georg Melville. A peça central do altar é um ícone bizantino da Virgem Maria, Maria Candida, pertencendo à escola cretense de hagiografia. A capela norte, cujo altar representa "A Adoração do Menino", é de Anton Maulbertsch (1755) e do lado de fora desta encontra-se a entrada para a cripta. Nos séculos XVII e XVIII os paroquianos eram geralmente ali sepultados mas o imperador José II proibiu esse costume em 1783. Dadas as condições climáticas da cripta, ainda hoje se podem observar cadáveres bem conservados com o vestuário com que foram sepultados. A capela sul, Nikolauskapelle, permaneceu sem alterações e mantém o seu aspecto medieval, mostrando esculturas góticas de pedra sob um baldaquino (Santa Catarina e São Nicolau) e um crucifixo de madeira de Hans Schlais.



Entre os mortos ilustres sepultados na igreja conta-se Pietro Metastasio, o mais notável libretista do período barroco.







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A entrada para a Augustinerkirche faz-se por uma porta discreta na Josefsplatz, encontrando-se a igreja ligada ao Hofburg, do lado direito e sobre a Augustinerstrasse, do lado esquerdo. Construída no século XIV (foi consagrada em 1349), serviu como igreja paroquial da Corte Imperial dos Habsburg a partir de 1634.




Nela foram celebrados importantes eventos religiosos da Corte como o casamento da arquiduquesa Maria Teresa (futura imperatriz) com o duque Francisco de Lorena (1736), o casamento da arquiduquesa Maria Luísa com Napoleão Bonaparte (1810) e o do imperador Francisco José com a duquesa Elisabeth da Baviera (1854).



A igreja sofreu várias transformações com o correr dos séculos, especialmente o interior gótico no século XVIII, altura em que por decisão do imperador José II foram removidos 18 altares laterais (1784). Em 2004, foi acrescentado um altar dedicado ao último imperador da Áustria, Carlos I, altura da sua beatificação pelo papa João Paulo II.


À direita do altar-mor encontra.se a Capela do Loreto (infelizmente fechada no dia da minha visita), onde se encontram depositados, em urnas de prata, os corações dos imperadores Habsburg. 




Entre os monumentos do templo distingue-se o cenotáfio da arquiduquesa Maria Cristina, da autoria do escultor Antonio Canova.


A igreja possui dois órgãos: o órgão de Rieger e o órgão de Bach.

Órgão de Rieger

Órgão de Bach


Na parede exterior sobre a Augustinerstrasse existe uma placa evocativa do rei Jan III Sobieski da Polónia, que combateu os turcos na batalha de Viena de 1683.


Na igreja realizam-se regularmente concertos de música religiosa, especialmente dedicados a Mozart, Haydn, Schubert e Beethoven. 


terça-feira, 12 de abril de 2016

OS "PANAMA PAPERS"

Transcrevo, pelo seu interesse, o texto, traduzido para português, que me foi enviado por um amigo, do artigo publicado no Réseau Voltaire pelo escritor, jornalista e investigador francês Thierry Meissan. O leitor avaliará da fidedignidade das informações divulgadas por este especialista em assuntos controversos:


Outros olhares sobre os "Panama Papers"
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A doutrina Romer : forçar os paraísos fiscais não Anglo -saxónicos a desistir, e desestabilizar a União Europeia até que os capitais refluam de volta para os paraísos fiscais do Reino Unido, da Holanda, dos EUA e de Israel.

A estratégia económica dos Estados Unidos

No início de seu mandato, o Presidente Obama designou a historiadora Christina Romer para presidir ao seu Comité de Conselheiros económicos. Esta professora, na Universidade de Berkeley, é uma especialista na crise de 1929 (conhecida como «A Grande Depressão»- ndT). Segundo ela, nem o New Deal de Roosevelt, nem a Segunda Guerra Mundial permitiram sair dessa recessão, mas, sim o afluxo de capitais europeus a partir de 1936, fugindo da «subida dos riscos».
Foi em cima desta base que Barack Obama conduziu a sua política económica. Em primeiro lugar, agiu para fechar todos os paraísos fiscais que Washington e Londres não controlam. Depois, ele organizou a desestabilização da Grécia e de Chipre, de maneira a que os capitais europeus se refugiem nos paraísos fiscais anglo-saxões.
Tudo começou na Grécia, em Dezembro de 2008, com manifestações após o assassinato de um adolescente por um policia. A CIA transportou, por autocarro, gorilas do Kosovo para desfazer uma manifestação e montar um princípio de caos [1]. O Departamento do Tesouro pode, então, verificar que os capitais gregos fugiam do país. A experiência era conclusiva, a Casa Branca decidiu mergulhar este frágil Estado numa crise financeira e económica, que pôs em causa a própria existência da zona Euro. Como previsto, cada vez que alguém se interroga sobre uma eventual expulsão da Grécia do euro. ou sobre uma dissolução da zona do euro, os capitais europeus precipitam-se para os paraísos fiscais disponíveis, principalmente britânicos, norte-americanos e holandeses. Em 2012, uma outra operação foi concretizada contra o paraíso fiscal de Chipre. Todas as contas bancárias para além dos 100. 000 Euros foram confiscadas. Foi a primeira, e única vez, numa economia capitalista que observamos esse tipo de nacionalização [2].
No decurso dos últimos oito anos, assistimos a numerosas reuniões do G8 e do G20 que estabeleceram todo o tipo de regras internacionais, supostamente para prevenir a evasão fiscal [3]. No entanto, uma vez estas regras adoptadas por todos, os Estados Unidos –-e, em menor escala Israel, a Holanda e o Reino Unido--- isentaram-se delas, a si próprios.

Os paraísos fiscais

Cada paraíso fiscal tem um estatuto jurídico especial, geralmente absurdo.
Actualmente, os principais paraísos fiscais são o Estado independente da City de Londres (membro do Reino Unido, da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte), o Estado de Delaware (membro do Estados Unidos) e Israel, mas existem muitos outros paraísos fiscais, especialmente britânicos, a começar pelas ilhas de Jersey e de Guernsey (membros do Ducado da Normandia e, como tal, colocados sob a autoridade da Rainha da Inglaterra, mas, nem membros do Reino Unido nem da União Europeia), Gibraltar (um território espanhol, cuja contrôlo do terreno é inglês e que o Reino Unido ocupa ilegalmente) até Anguila, Bermudas, Ilhas Caimão, ilhas Turcas, Ilhas Virgens ou Montserrat. Há também alguns ligados à Holanda: Aruba, Curaçao e Saint Maarten.
Um paraíso fiscal é uma «zona franca» alargada a todo um país. No entanto, no imaginário colectivo, uma zona franca é indispensável para a economia, enquanto um «paraíso fiscal» é uma calamidade, ora trata-se exactamente da mesma coisa. Claro, certas empresas abusam de zonas francas para não pagar impostos, e outras tiram proveito abusivo de paraísos fiscais, mas isso não é razão para pôr em questão a existência destes dispositivos indispensáveis ao comércio internacional.
Na sua guerra contra os paraísos fiscais não Anglo-saxões, os EUA tem-se centrado em desferir golpes contra a Suíça [4]. Este país tinha desenvolvido um estrito sigilo bancário, permitindo a pequenos empreendedores realizar transações ao abrigo dos graúdos. Ao forçar a Suíça a abandonar o seu sigilo bancário, os EUA estenderam a sua vigilância em massa às transacções económicas. Desta forma, eles podem facilmente aldrabar a concorrência e sabotar a acção dos pequenos empreendedores.
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Durante uma dezena de anos, a Forbes classificou Fidel Castro como o chefe de Estado mais rico do mundo. Embora seja actualmente aceite que era pura propaganda, a Forbes nunca se desculpou.

Os «Papéis do Panamá»

É neste contexto que Washington forneceu ao Süddeutsche Zeitung 11.500. 000 de ficheiros informáticos, pirateados no quarto escritório de advocacia no mundo encarregue de criar empresas off-shore. Sendo esta espionagem um crime, os pretensos «atiradores de lamirés» que o realizaram permaneceram anónimos. É claro que Washington primeiro triou cuidadosamente os dossiês e excluiu, antes de tudo, todos os relativos a cidadãos ou empresas norte-americanas, depois, provavelmente, os que dizem respeito aos seus bons aliados. O facto de alguns pretensos aliados, às boas com a administração Obama, —como o Presidente Petro Porochenko— figurarem nesses documentos, confirma-nos que eles acabam de ser revelados pelo seu poderoso protector.
Muito embora o Panamá seja um país de língua espanhola (Castelhano- ndT) e o Süddeutsche Zeitung seja publicado na Alemanha, os arquivos roubados foram nomeados pelos espiões em Inglês : «Panamá Papers».
De passagem, os autores desta fantochada tentam persuadir-nos que todos os que se levantam contra Washington seriam ladrões. Lembremos, por exemplo, das campanhas que foram lançadas contra Fidel Castro, acusado de ser um traficante de drogas e colocado pela Forbes entre as maiores fortunas do mundo [5]. Por ter visto as difíceis condições de vida da família Castro, em Cuba, eu pergunto-me como foi possível montar uma tal atoarda. Os novos secretos magnatas seriam, pois, Vladimir Putin Bashar, Bachar el-Assad e Mahmoud Ahmadinejad —cujo frugalidade é aliás legendária—.
Esta propaganda contra os adversários políticos, não é senão a ponta visível do icebergue, sendo que o mais importante é o futuro do sistema financeiro internacional.
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Violação da ética pelos jornalistas

Süddeutsche Zeitung faz parte do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), uma associação especializada não em jornalismo de investigação, como o título pode sugerir, mas na denúncia de crimes financeiros.
Nas sociedades republicanas, a Justiça deve ser igual para todos. Mas o ICIJ, que já tornou públicos mais de 15 milhões de ficheiros informáticos desde a sua criação, jamais atacou os interesses dos Estados Unidos. Ela não pode, portanto, de certeza pretender agir por preocupação de justiça.
Por outro lado, os princípios republicanos da nossa sociedade determinam obrigações para os jornalistas. Estas foram formalizados na Carta de Munique, adoptada em 1971 por todos os sindicatos profissionais do Mercado Comum, depois estendidas ao resto do mundo pela Federação Internacional dos Jornalistas.
Eu compreendo, perfeitamente, que este texto impõe limitações, por vezes difíceis de suportar. E eu, há alguns anos, fiz parte daqueles que acreditavam ser útil violá-la de vez em quando. Mas, a experiência prova que ao violá-la se abre a via para outras violações, que se voltam contra os cidadãos.
Os jornalistas do International Consortium of Investigative Journalists não se colocaram nenhuma interrogação ética. Eles aceitaram trabalhar com documentos roubados, e escolhidos de avanço, sem ter a menor possibilidade de conferir a sua autenticidade.
A Carta de Munique estipula que os jornalistas só publicarão informações cuja origem é conhecida, que eles não suprimirão informações essenciais e não alterarão os textos e os documentos; finalmente, que eles não usarão métodos desleais para obter informações, fotografias e documentos. Três requisitos que eles violaram, com perfeito conhecimento de causa, o que deveria excluí-los de organismos profissionais e provocar a saída dos directores da BBC, da France-Télévisions, da NRK, e por que não da Radio Free Europe / Radio Liberty (a rádio da CIA, a qual é também membro do Consórcio de Jornalistas).
Este não é o primeiro caso do International Consortium of Investigative Journalists. Foi ele que tornou públicos, em 2013, 2,5 milhões de ficheiros informáticos roubados em 120.000 empresas off-shore. Depois, ainda foi ele quem revelou, em 2014, os contratos assinados entre multinacionais e o Luxemburgo, para beneficiar de uma fiscalidade privilegiada. E, foi sempre ele que revelou, em 2015, as contas do banco britânico HSBC na Suíça.
O International Consortium of Investigative Journalists, suspeita-se, é financiado por diversas organizações ligadas à CIA, como a Fundação Ford, e as fundações de George Soros. Este último exemplo é o mais interessante : para os membros do ICIJ o dinheiro do Sr. Soros não vem da CIA mas das suas especulações financeiras, em desfavor dos povos, o que tornaria a coisa mais aceitável.
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Princípio fundamental das sociedades republicanas: para ser legítima, a Justiça deve aplicar-se por igual a todos (artigo 6 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789). Ora, desde a sua criação, o ICIJ abstêm-se de revelar os crimes dos EUA. Ao fazê-lo, ele acrescenta à injustiça.

Sem paraísos-fiscais não Anglo-saxões, mais Resistência

Que o Hezbolla detêm empresas e contas secretas no Panamá, e por outros lados, nada têm de surpreendente. Eu referia num artigo recente os esforços da Resistência libanesa para se auto-financiar, sem ter que depender de subvenções iranianas. A complexa montagem financeira à qual se dedicou deverá ter de ser inteiramente reconstruida, à mingua do qual o Líbano se tornará a presa dos seus vizinhos israelitas.
Que o Presidente Ahmadinejad tenha criado sociedades off-shore, para contornar o embargo do qual o seu país era vítima e vender petróleo, não só não é um crime, mas, sim todo um elogio.
Que a família Makhlouf, os primos do Presidente el-Assad, tenha utilizado uma montagem financeira para contornar o embargo ilegal das potências ocidentais, e permitir aos Sírios alimentar-se durante cinco anos da guerra de agressão, é também totalmente legítima.
Que vai restar desta vasta revelação ? Primeiro, a reputação do Panamá fica destruída e levará muitos anos a reparar. Em seguida, os pequenos malfeitores que se aproveitaram do sistema serão processados na Justiça, enquanto uma enorme quantidade de comerciantes honestos terão de se justificar perante os tribunais. Mas, ao contrário das aparências, os que animam esta campanha velarão para que nada mude. O sistema irá permanecer, portanto, em acção, mas, sempre, cada vez mais em exclusivo benefício do Reino Unido, da Holanda, dos Estados Unidos e de Israel. Acreditando defender as suas liberdades, aqueles que participarem nesta campanha irão tê-las, na realidade, mais diminuídas.   Thierry Meyssan
Tradução
Alva
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[1] O meus agradecimentos para os leitores que encontrarão a entrevista que dei a um média grego sobre este assunto, em 2009. Eu não escrevi nenhum artigo, apenas um parágrafo, a propósito, em « La "révolution colorée" échoue en Iran » («A “revolução colorida” falha no Irão»- ndT), por Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 24 juin 2009.
[2] “O pião cipriota”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria) ,Rede Voltaire, 25 de Março de 2013.
[3] « Le G 20 : une hiérarchisation des marchés financiers » («O G-20 : uma hierarquização de mercados financeiros»- ndT), par Jean-Claude Paye, Réseau Voltaire, 9 avril 2009.
[4] « Lutte contre la fraude fiscale ou main mise sur le système financier international ? », « UBS et l’hégémonie du dollar », par Jean-Claude Paye,Réseau Voltaire, 3 mars et 21 octobre 2009.
[5] « Forbes invente la fortune de Fidel Castro », par Salim Lamrani,Réseau Voltaire, 24 mai 2006.





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sábado, 9 de abril de 2016

SHAKESPEARE, SER OU NÃO SER





É antiga a polémica sobre a autoria das peças de Shakespeare. Teria sido seu autor o homem de Stratford-upon-Avon, director de um grupo de teatro mas manifestamente pessoa de pouca cultura, ou, pelo contrário, alguém manifestamente erudito, capaz de conhecer o humanismo renascentista, a Bíblia, e de dispor de uma ampla informação a que o empresário teatral e actor medíocre não teria acesso? Alguns têm mesmo aventado a hipótese de tratar-se de obra colectiva.

Acontece que foi agora traduzido para francês o livro do escritor e editor italiano Lamberto Tassinari John Florio, The Man Who Was Shakespeare, originalmente publicado em italiano em 2008, posteriormente vertido para inglês (2009, 2013) e publicado agora, na edição francesa, com o título John Florio alias Shakespeare.

Sustenta Tassinari que o verdadeiro autor da obra de Shakespeare foi John Florio (1553-1625), nascido em Londres, filho de Michelangelo Florio (Crollalanza pelo lado da mãe, apelido que em inglês se poderá traduzir por Shake spear), pregador calvinista italiano de origem judaica, homem de grande cultura e influência política, possuidor de considerável biblioteca, que terá transmitido ao filho uma sabedoria invulgar para a época, além do interesse pelas línguas estrangeiras.

As primeiras dúvidas de grandes nomes da literatura sobre a autenticidade das obras atribuídas a Shakespeare vêm de Charles Dickens (1847), Henry James (1903) e Jorge Luis Borges (1979).

Mais recentemente, foram publicadas algumas obras fundamentais sobre o "autor" das peças isabelinas:

- Will in the World: How Shakespeare Became Shakespeare - Stephen Greenblatt (New York, 2004)
- Shakespeare: The Biography - Peter Ackroyd (Londres, 2005)
- 1599: A Year in the Life of William Shakespeare - James S. Shapiro (New York, 2005)

O livro, que convoca a análise linguística, o estilo, a vida de John Florio e o seu percurso em Itália e na Inglaterra, é por vezes cansativo pela abundância de pormenores e pela repetição dos argumentos, mas não deixa de acentuar as dúvidas, que progressivamente se avolumam, sobre a verdadeira autoria da obra-prima literária da Inglaterra isabelina.

A tese sustentada por Lamberto Tassinari é, em resumo, a seguinte: William Shakespeare, comerciante e empresário teatral começaria a apresentar as peças de John Florio (com a aquiescência deste), o que supõe um mínimo conhecimento recíproco, uma vez que Florio, que assinaria Shake-speare, permitiu tal identificação, preferindo manter-se num certo anonimato por razões aduzidas pelo autor. Com o passar do tempo, a grafia do nome uniformizou-se, e Shakespeare (o homem de Stratford) passou à história como autor das obras de Florio, tendo o lobby "stratfordiano" tentado justificar ao longo dos séculos, pelos mais inverosímeis meios, a pertinência da "doutrina oficial", quando não existem sequer escritos de William, salvo o medíocre Testamento, enquanto se conhecem bem os escritos de Florio, entre os quais a tradução dos Essais , de Montaigne.

Em vésperas de se comemorarem 400 anos sobre a morte de Shakespeare (o de Stratford), ocorrida a 23 de Abril de 1616, este livro contribui para manter acesa a chama da polémica sobre a autoria do opus "shakespeariano".