sábado, 1 de março de 2014

AS GUERRAS DA CRIMEIA




Os acontecimentos das últimas semanas, e especialmente dos últimos dias, na Ucrânia, que levaram ao derrube do presidente Viktor Yanukovitch e à contestação do novo poder emergente da "Revolução de Maidan" por parte das áreas russófilas do país, nomeadamente da Crimeia, demonstram que o processo de dissolução da União Soviética, realmente iniciado com a queda do Muro de Berlim, não está concluído.

Depois de um largo período de "guerra fria", em especial a partir do último quartel do século XX, o chamado Mundo Ocidental empenhou-se num combate não directamente militar contra Moscovo, que teve como principais protagonistas o presidente Ronald Reagan e o papa João Paulo II. Utilizaram-se todos os meios disponíveis, inclusive a religião, através da agitação desencadeada na Polónia e encabeçada pelo sindicalista Lech Walesa. As pressões exercidas sobre a União Soviética e a pusilanimidade de Gorbatchov, conduziram ao colapso do regime e ao triunfo do capitalismo na pátria do comunismo. O interregno ébrio de Yeltsin facilitou o desmembramento do Império Soviético, com a independência das antigas repúblicas da União, algumas das quais passaram a integrar a União Europeia e a NATO (os países bálticos). Com a ascensão de Putin ao poder começou a desenhar-se um projecto de recuperação pela Rússia de algum do seu prestígio perdido, o que levou a uma campanha apoiada do exterior e a favor de um candidato pró-ocidental (Viktor Yushchenko) nas eleições de 2004, que viria a ganhar num período de grandes manifestações populares, a chamada Revolução Laranja. A vitória de Yanukovitch em 2010 contribuiu para uma reaproximação da Ucrânia à Rússia, e para afastar as tentações de adesão à UE, mas nem Washington nem Bruxelas viram com bons olhos o "desvio para Leste" do regime de Kiev. A prová-lo os insistentes convites de aproximação formulados por Barroso e Ashton e cuja não aceitação por Yanukovitch desencadearia, em finais do ano passado, as manifestações que determinaram o derrube do regime.

Deve salientar-se que a deposição de Yanukovich e a demissão do governo pelo parlamento ucraniano (Rada), com uma quase unânime votação explica-se pelo facto de o Ocidente ter intimado os deputados a tal atitude, sob pena de congelamento dos seus activos no estrangeiro, a exemplo do que havia anunciado relativamente ao presidente e ao governo. Seria surpreendente, no mínimo, que pessoas que abertamente apoiavam ou toleravam Yanukovitch resolvessem de um dia para o outro alterar radicalmente a sua posição. Esta brusca mudança não se deveu, portanto, a uma rejeição liminar da repressão policial ou a uma desafeição inesperada por Moscovo.

Jogadas as primeiras cartas, temos que a Crimeia, predominantemente russófila, onde se encontra a base naval da esquadra russa no Mar Negro (Sebastopol) e região vital para os interesses estratégicos da Rússia, recusa continuar a fazer parte da Ucrânia. A actual república autónoma tem sido cenário de várias guerras, nomeadamente a guerra que envolveu de um lado o Império Russo e de outro o Reino Unido, a França, a Sardenha e o Império Otomano (1853-1856), onde se distinguiu a enfermeira Florence Nithingale e que foi a primeira guerra a receber uma verdadeira cobertura jornalística. A segunda guerra da Crimeia foi o combate dos ucranianos e dos russos contra a invasão nazi (1941-1944), que incluiu o mortífero e longo cerco de Sebastopol pelos alemães que acabaram por tomar a cidade (1942), sendo finalmente derrotados em 1944.

Não há dúvida de que as presentes manifestações na Ucrânia tiveram uma forte componente popular, dada a insatisfação da população contra a corrupção do regime de Yanukovitch, aliás continuada dos seus antecessores Leonid Kuchma e Viktor Yushchenko e da ex-primeira-ministra Iulia Tymochenko, entre muitos outros. Mas também é verdade que houve uma forte instigação e apoio do exterior, nomeadamente dos Estados Unidos, da Alemanha, da França, do Reino Unido e da Polónia. Para não falar da União Europeia, sempre a mandar recados para trazer a Ucrânia para a sua órbita. Ainda hoje, e perante o agravar da situação, com a ocupação de pontos vitais na Crimeia por parte das forças armadas russas, Durão Barroso ("a bosta nojenta de Bruxelas", na expressão feliz de um comentador deste blogue), veio dizer que é preciso garantir a integridade territorial da Ucrânia.

Parece-me que os "ocidentais" se enganaram no timing. A secessão da Crimeia será irreversível, e é bem provável que a parte leste do país (Kharkiv, Dnipropetrovsk, etc.) se emancipe também de Kiev, criando um novo estado.

Não é  crível que a "comunidade internacional" se aventure numa intervenção militar contra a Rússia. Não que isso não seja desejado pelos negociantes de armas, mas porque os riscos seriam incalculáveis. Por isso espera-se que não aconteça a terceira guerra da Crimeia, nem sequer uma guerra civil, que teria um custo humano indesejável.

Aguardemos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Évidentemente que a Russia permanecerá na Crimeia também é muito possível que a Ucrânia se parta ao meio a menos que seja encontrada uma solução razoável de governo. Os ucranianos de leste são mais velhos, rurais, pró-russos, os de oeste mais jovens, urbanos, pró-ocidente. Os de oeste falam ucranano, os de leste normalmente russo. De facto, culturalmente diferentes.

Anónimo disse...

Nem se pode esperar outra coisa! Aliás, o relacionamento do Leste e Oeste daquele país, nunca foram muito de se esperar outra coisa.
De facto, a podridão dos dirigentes também nunca ajudou a que a coisa tivesse levado a outras soluções que não fosse o desembocar naquilo a que estamos a assistir. O Mundo Ocidental, vulgo UE, bem pode tirar o cavalinho da chuva se pensa que o o "Irmão Urso" vai deixar acontecerem mais aventuras num local onde se encontra a sua base naval do sul da Europa. Bem podem as sereias de Bruxelas vir com as suas melodias encantatórias, que dali não levam nada.