terça-feira, 15 de setembro de 2020

EDMUND WHITE. O SEXO E A VIDA



O escritor Edmund White (n. 1940), generosamente galardoado ao longo da sua carreira, é talvez, dos escritores norte-americanos, o que mais vasta, intensa e minuciosamente discorreu sobre o sexo, no caso concreto sobre o mesmo sexo, já que uma parte dos seus livros é de carácter autobiográfico e recolhe todo um saber de experiência feito.



A sua obra estende-se por quase meio século, e inclui ficção, teatro, ensaio e até as biografias de Proust, de Rimbaud e de Jean Genet, esta última considerada ainda hoje a grande obra de referência sobre a vida do autor de Notre-Dame-des-Fleurs.



Na sua bibliografia, destaca-se a trilogia dos romances propriamente autobiográficos, a saber: A Boy's Own Story (1982) [A Vida Privada de um Rapaz (1996)] , The Beautiful Room is Empty (1988) [Um Belo Quarto Vazio (1992)] e The Farewell Symphony (1997) [Sinfonia A Despedida (1999)]. Neles, White descreve a sua vida desde a infância até à idade adulta, incluindo os anos que passou em Paris (1983-1990). Sendo um homem ilustrado, os seus livros estão recheados de referências culturais, nomeadamente musicais, mas é a vida sexual que constitui o leitmotiv da narrativa. Edmund White descreve com pormenor os seus "engates" desde os doze anos, em família, nos colégios, na universidade, na vida profissional, não nos poupando aos mínimos detalhes. Importa salientar que o tradutor português (li a versão portuguesa) reproduz com precisão as expressões usadas no milieu gay nacional, o que é uma mais valia para a inteligibilidade do texto. O autor revela sem falsos pudores a "promiscuidade" das suas relações (ter-se-á deitado com muitos milhares de homens diferentes) e mesmo o seu contágio com o HIV, que determinou um especial envolvimento na criação de AIDES, a organização francesa de apoio aos doentes de SIDA, fundada por Daniel Defert, o último companheiro de Michel Foucault.



Edmund White, que é (ou foi) professor de escrita criativa na Universidade de Princeton, publicou em 2005 uma autobiografia propriamente dita, My Lives, de que adquiri na altura, em Paris, a tradução francesa mas que ainda não li. Os seus livros revelam uma imensa sinceridade na exposição dos seus gostos, das suas angústias, das suas alegrias, das suas opiniões sobre a arte e a vida. Nada é gratuito na prosa e mesmo a descrição de situações que  nos podem parecer repetitivas inclui sempre uma partícula de originalidade. Importa, todavia, acrescentar que a "crueza" com que são narradas algumas "aventuras" se afigura quiçá exagerada para ser real, mas estamos perante livros de ficção, apesar de inegavelmente autobiográficos. O seu interesse pelas relações sexuais em família é patente e a sua atracção pelo próprio pai é referida em alguns volumes. «Lastimo um homem que nunca quis ir para a cama com o pai», pode ler-se na página 33 de A Vida Privada de um Rapaz. E também a sua atracção pelos adultos, quando era criança: «Toda a gente faz um grande alarido por causa do sexo com crianças. No fim de contas as crianças também têm as suas necessidades sexuais. Desde que não haja violência...» (Sinfonia A Despedida, p. 314), afirmação que seria hoje certamente condenada pela moral vigente. E é igualmente patente ao longo do texto uma certa "paixão" pelo incesto, para retomar o título de um livro de Yvan Simonis, sobre Claude Lévi-Strauss.

Os três volumes somam cerca de 1.000 páginas, que encerram, para além da vivência sexual, uma acerada crítica social e uma crítica aos Estados Unidos e ao american way of life, embora não tão violenta como a do eminente escritor e seu compatriota Gore Vidal. Penso que o terceiro volume é o mais interessante (e o mais extenso): contém a última parte da sua vida (até à data da publicação), revelando as relações com outros escritores famosos (curiosa a sua apreciação de Michel Foucault), a devastação causada pela SIDA, as descrições de Veneza, a dicotomia americanos/franceses, as excentricidades sexuais. Dotado de um inegável espírito de observação, Edmund White consegue, pela excelência da escrita, convocar permanentemente o interesse do leitor, mesmo quando a sucessão de algumas "cenas" poderia considerar-se monótona.



Apesar de não ter tido ainda oportunidade de ler Mes Vies (os livros acumulam-se e há que fazer opções), ao contrário da trilogia autobiográfica que é objecto deste post, e que segue uma ordem cronológica, esta obra está organizada por temas.

Constatei, por acaso, que o tradutor dos três livros, José Vieira de Lima, faleceu no ano passado. Como escrevi acima, cometeu a proeza de nos dar, no jargão português, o equivalente ao calão anglo/americano para as mais diversas e improváveis actividades sexuais. Merece, por isso, uma explícita referência.



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