segunda-feira, 7 de julho de 2014
TEMPOS DE CRISE
O general Loureiro dos Santos publicou recentemente um importante livro sobre a actual situação política e económica nacional e internacional. Intitulado Reflexões Sobre Estratégia VII - Tempos de Crise, nele o antigo Vice-CEMGFA e ministro da Defesa Nacional traça o quadro geopolítico europeu, elabora sobre cenários futuros e aborda a crise no Mundo, na Europa e em Portugal.
A obra é constituída por textos originais e por outros já publicados (artigos na imprensa e comunicações efectuadas em diversas instituições) entre 2010 e 2013.
Considera o autor que na Europa existem apenas dois actores políticos significativos em termos de poder: a Rússia, cuja massa crítica permite dizer que se encontra no primeiro nível mundial, e a Alemanha, localizada num segundo nível mas que aparentemente deseja transitar para o primeiro, dadas certas circunstâncias objectivas susceptíveis de a catapultarem. Os Estados Unidos, se bem que sejam uma potência extraeuropeia do ponto de vista geográfico, podem considerar-se como europeia em termos geopolíticos. Sendo claramente uma ilha de poder global, aquela que muitos designam como a "potência indispensável", e agindo no domínio das relações internacionais como "potência directora", está em condições de interferir significativamente no desenho geopolítico europeu, aliás como tem feito desde a Primeira Guerra Mundial.
É possível que surja um eixo Russo-Germânico, se ambas as potências entenderem que não têm quaisquer vantagens em agir isoladamente e, pelo contrário, concluírem que os seus interesses mútuos aconselham em aliar-se, constituindo assim um eixo de natureza continental suficientemente robusto para desafiar a potência marítima dominante ou uma aliança entre potências marítimas. Tal aliança já se verificou duas vezes: o Tratado de Rapallo, em 1922, entre a Alemanha (República de Weimar) e a Rússia Soviética, que terminou em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder; e o Pacto Molotov/Ribbentrop, em 1939, entre a União Soviética e a Alemanha Nazi, que duraria até 1941, altura em que Hitler invadiu o território soviético.
Continuando a citar o general: «A Alemanha tal como a conhecemos actualmente, embora com as fronteiras modificadas como resultado da Segunda Guerra Mundial com maior expressão na fronteira Leste com a Polónia, ainda se aproxima do Império Alemão (Segundo Reich) fundado em 1871. Portanto é o resultado da unificação dos principados alemães reunidos, em 1867, na Confederação da Alemanha do Norte sob a liderança da Prússia, que lhe deu origem. Bismarck, chanceler da Prússia, desempenhou um papel essencial neste importante acontecimento para a Europa, pois foi o seu grande impulsionador a partir da criação do Zollverein - espaço económico alemão -, cuja evolução abriu caminho à "Grande Alemanha".
A sua afirmação como grande potência faz-se com a Guerra Franco-Prussiana, durante a qual a Alemanha invade a França com um exército comandado por Moltke, obrigando os franceses à rendição em menos de um ano. O que demonstrou que havia nascido o principal problema estratégico com que a Europa se tem debatido desde então, resultante da dificuldade da Alemanha acomodar o seu poder aos interesses nacionais dos restantes países do continente. A Alemanha considera-se herdeira do Sacro Império Romano-Germânico (Século X-1806, o Primeiro Reich), que tem origem na "união de territórios da Europa Central durante a Idade Média" do qual Carlos Magno é considerado ser o primeiro imperador; contudo a sua continuidade só se verificou a partir do ano 962, chegando a abranger a Áustria, Eslovénia, República Checa, oeste da Polónia, Países Baixos, leste da França, Suíça e partes da Itália.
A dificuldade da Alemanha se acomodar aos restantes países europeus iria originar, além da Guerra Franco-Prussiana, a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, depois da qual foi dividida entre os aliados vencedores (EUA, Inglaterra, França e União Soviética) em quatro partes que vieram a constituir a República Federal Alemã (RFA - conjunto das parcelas dos países ocidentais) e a República Democrática Alemã (RDA - parcela soviética).
Com o fim da Guerra Fria (derrota da URSS), as duas "Alemanhas" reunificam-se, contra a vontade dos líderes francês e britânico, mas com a bênção dos EUA, assim regressando a "Grande Alemanha", que ingressa na Comunidade Económica Europeia a que a RFA já pertencia.
Com a reunificação alemã, tornar-se-ia novamente provável que a Europa voltasse a ser colocada perante aquele que já tinha sido o seu grande problema estratégico, cuja solução se pensou estar encontrada com a União Europeia. Veremos se será assim.
Os procedimentos políticos e estratégicos alemães, desde o Segundo Reich, revelam uma vulnerabilidade idêntica à principal vulnerabilidade russa - não possuir fronteiras cuja defesa possa ser apoiada em acidentes de terreno que a potenciem significativamente. Esta vulnerabilidade pode ser uma explicação de natureza geopolítica (geoestratégica) para as duas Guerras (Primeira e Segunda) Mundiais que muitos designam guerras civis europeias, Uma vitória alemã teria como resultado o controlo das costas marítimas do velho continente. Esta vulnerabilidade de grande monta traduz-se, a Leste e Sudeste, no interesse geopolítico (geoestratégico) de controlar os principais países situados nos corredores de aproximação da e para a Rússia, tanto no que se situa a Norte dos pântanos de Pripet, onde precisa de dominar os territórios planos da Polónia e da Bielorússia, como os que se localizam a Sul, particularmente a linha de defesa dos Cárpatos que os percorrem, na República Checa, Eslováquia, Hungria e Roménia, assim como o território plano da Ucrânia.
A Sul e a Ocidente, o interesse geopolítico (geoestratégico) alemão exige que tenha o controlo das costas marítimas europeias, barrando eventuais desembarques de potenciais inimigos.
Outra vulnerabilidade da Alemanha é o facto de ter acesso ao Oceano Atlântico facilmente controlado por potências marítimas adversas, pois que terá de passar pela "área marítima confinada" pela Noruega a Leste e o Reino Unido a Oeste que liga o Mar do Norte ao Atlântico, o que tem como consequência o interesse alemão de controlar principalmente a Noruega, que se mostrou como preocupação estratégica durante a Segunda Guerra Mundial, mas também a Dinamarca,
É claro que a lógica destes interesses geopolíticos prolonga-se na necessidade de controlar todo o Rimland europeu, o que inclui os territórios arquipelágicos que dele fazem parte, como Reino Unido, Açores, Madeira, Chipre e Malta, além da região dos Balcãs e dos estreitos turcos.»
Citando ainda o autor: «Os Estados Unidos têm como objectivo nacional permanente criar condições para que não se venha a desenvolver em qualquer parte do mundo um actor (Estado ou coligação de Estados) suficientemente poderoso para colocar em causa a sua posição dominante na ordem internacional. ... Tanto durante a Primeira como a Segunda Guerra Mundial como durante a Guerra Fria, criaram-se situações que poderiam conduzir ao desenvolvimento no espaço europeu de um poderoso actor capaz de desafiar a posição dominante dos EUA e, como consequência, de criar condições que afectassem significativamente os (ou alguns) dos objectivos centrais da política (e estratégia) norte-americana. ... Os Estados Unidos não tiveram, nem poderiam ter outra opção senão a de se envolver em cada um dos três conflitos. Costuma afirmar-se que os EUA passaram a ser uma potência europeia desde a Primeira Guerra Mundial, atingindo mesmo a posição de potência europeia dominante...»
Prosseguindo a sua pertinente análise, Loureiro dos Santos analisa os efeitos na Europa da crise financeira global que afectou o Ocidente. E enuncia os eventuais realinhamentos geopolíticos no caso da implosão da União Europeia e/ou da NATO.
Num Primeiro Cenário (o mais desejável), manter-se-ia a NATO, complementada pela implementação do tratado de comércio entre os EUA e a UE, a UE, criando prosperidade particularmente na Zona Euro (ZE) e a CPLP, capaz de aprofundar os objectivos que a justificam.
Num Segundo Cenário (o menos desejável), assistir-se-ia à desintegração da actual ZE, seguida do desmantelamento da UE, a que, muito provavelmente, a actual NATO não conseguiria resistir. Nessa situação, e com a separação da França em relação à Alemanha, poderia regressar o Eixo Germano-Russo, e o arco marítimo europeu, desde o Báltico ao Mar Negro, poderia configurar uma Nova NATO.
Num Terceiro Cenário (cenário intermédio), manter-se-ia a NATO e a UE, com três sub-cenários:
Sub-cenário 1: A ZE desapareceria;
Sub-cenário 2: A ZE dividir-se-ia entre uma Zona Norte (Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Áustria) e uma Zona Sul (a área sobrante, liderada pela França), cada uma com a sua moeda comum;
Sub-cenário 3: A ZE ficaria reduzida à Alemanha, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Áustria.
Na impossibilidade de mencionarmos todos os temas contidos no livro, referiremos apenas alguns tópicos.
- Na era da informação estamos perante um diferente tipo de guerras: as guerras do caos.
- Nos dias de hoje, existem seis espaços operacionais: os tradicionais teatros de operações terrestre, marítimo e aéreo e ainda o espaço exterior, o ciberepaço e o espaço mediático.
- «A guerra, entendida como recurso á agressão armada para impor os seus termos, foi definida por Clausewitz como a continuação por outros meios das relações políticas (subentenda-se entre estados). E na sua excelente definição trinitária, a guerra é uma surpreendente trindade: por um lado, o raciocínio puro da liderança política que a decidiu e a continua a dirigir; por outro lado, a incerteza e o acaso do fragor das batalhas e das contingências de cujos contornos causais não nos conseguimos aperceber; e, finalmente, também é a paixão e ódio do povo em fúria ou em pânico, sujeito aos acontecimentos que não controla e se transformam no seu armagedão.»
- «Das suas [de Gene Sharp] numerosas obras, convém ainda salientar o livro From Dictatorship to Democracy, um verdadeiro manual prático para efectuar acções não violentas com a finalidade de promover a alteração de um regime, trabalho que foi escrito para o Movimento Democrático da Birmânia em 1993, depois de Aung San Suu Kyi ter sido presa pelos ditadores da Birmânia. Encontra-se disponível na internet em mais de vinte línguas e já foi traduzido para mais de trinta. ... As teorias de Sharp teriam começado a ser aplicadas contra Milosevic na Sérvia e Viktor Yanukovych na Ucrânia, na revolução de veludo na Checoslováquia, nas várias revoluções coloridas que provocaram a democratização dos satélites da URSS e de algumas repúblicas soviéticas, o que lhe valeu a acusação de pertencer à CIA. Note-se que Hugo Chavez utilizou um dos seus programas na televisão para avisar o país que Sharp era uma ameaça à segurança nacional a Venezuela, tal como os líderes iranianos transmitiram um filme pela televisão estatal que mostrava uma conspiração promovida por Sharp, contra o Irão, a mando de Washington. ... Com base nos seus livros e teorias, foi fundado na Sérvia um Centro para a Aplicação da Não-Violência (CANV). A este propósito, o director de um filme a exibir na próxima Primavera, com o título Gene Sharp: Como iniciar uma Revolução, afirma em artigo escrito para a BBC, em 21 de Fevereiro de 2011, que o Director do CANV em Belgrado (Srdja Popovic) lhe teria dito nessa cidade, em Novembro passado, que "o CANV tinha estado a trabalhar com os egípcios" os métodos de Gene Sharp e que "não imposta quem seja - pretos, brancos, muçulmanos, cristãos, gays, normais ou minorias oprimidas - eles funcionam. Se forem estudados, qualquer um o pode fazer".» (p. 123/124)
- «Na Era Electrónico-Nuclear, depois da Segunda Guerra Mundial, até aos anos noventa do século XX, vivia-se uma situação caracterizada por "paz impossível - guerra improvável", nas palavras de Raymond Aron - dois colossos militares, os EUA e a União Soviética, impondo ao planeta uma ordem internacional bipolar, mantinham-se preparados para combater, mas não o faziam, dada a certeza que tinham de que ela significaria a sua destruição mútua. ... Na Era da Informação, uma ordem internacional multipolar torna-se impotente para evitar uma guerra cujos efeitos são sempre potencialmente globais e cujos autores dispensam poderosos exércitos, tornando-se na verdadeira pandemia que a todos pode afectar. Não sendo possível estabelecer uma situação de ausência do uso da violência física organizada, no nosso mundo vive-se sem paz, numa nova situação que poderá ser caracterizada também de "paz impossível", como Raymond Aron observara durante a era electrónico-nuclear, mas agora, em vez da "guerra improvável" em que se vivia no mundo bipolar, vive-se uma situação de "guerra permanente", nos vários níveis da violência.» (p. 132)
- «... Independentemente da existência das infraestruturas necessárias à globalização económica e das tecnologias que a impulsionaram, ela pode ceder perante interesses políticos, económicos ou de segurança dos estados que temem perder posições ou querem atingir objectivos próprios, É que os estados não são organizações de solidariedade ou de caridade, mas sim entidades politicas cuja obrigação é manter o contrato (explicito ou implícito) com os seus cidadãos, isto é, garantir-lhes segurança e bem-estar, os objectivos essenciais de qualquer unidade política.» (p. 160)
- «Se for do interesse dos estados mais poderosos do mundo limitar a globalização, ela retrocederá, em todas as suas vertentes. Como parece estar a acontecer na sequência das crises económica e financeira, exactamente porque alguns estados - casos dos EUA e dos países europeus - argumentam que a globalização económica não está suficientemente regulada para que sejam assegurados câmbios ajustados à existência de trocas comerciais equilibradas. Esta argumentação não se ouvia, quando os mesmos estados colocaram as suas empresas na China, beneficiando dos baixos custos da mão-de-obra, e, a partir daí, batiam toda a concorrência e empresas menos fortes; pelo contrário, apenas se ouviam elogios aos prodígios da globalização económica, durante muito tempo considerada, particularmente pela doutrina norte-americana, um dogma indiscutível.» (p. 161)
- «Registe-se que o Serviço Militar Obrigatório, contrariando a ideia de que só se aplica aos países subdesenvolvidos, existe na Noruega, Dinamarca, Finlândia, Áustria, entre outros, e tem havido debates sobre o seu regresso em vários Estados, nomeadamente nos EUA.» (p. 203)
- «Mas o papel das Forças Armadas não se limita à defesa militar do Estado face a ameaças que se perfilem contra si, normalmente no quadro de alianças militares de que participam. Constituem também a garantia última da autoridade do Estado, assegurando o funcionamento das instituições democráticas e colaborando na manutenção da lei e da ordem quando for declarado o Estado de Emergência, ou assegurando-a quando for estabelecido o Estado de Sítio.» (p. 208)
- «A realidade dos factos, confirmada pela História, mostra que um Estado sem Forças Armadas não dispõe de soberania, soberania caracterizada em função dos termos que modelam as relações de força regionais e mundiais num determinado contexto temporal.» (p. 214)
Não é possível neste post, aliás já bastante extenso, referir todas as questões tratadas pelo general Loureiro dos Santos no seu livro de incontestável oportunidade e valor, pelas reflexões que consagra sobre problemas económicos, financeiros, políticos, sociais, militares.
Assinalámos tão só alguns aspectos que nos mereceram particular interesse, remetendo o leitor para a consulta da obra.
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