Na capa do livro, "O Bebedor de Absinto"
O Café Slavia é um dos emblemas de Praga. Constitui, há mais de um século, o ponto de reunião por excelência de artistas, intelectuais, políticos e outras gentes que ali vão não só para degustar o que a ementa propõe mas especialmente para conversar ou para ler os jornais e revistas que a casa fornece ou, outrora, para jogar o bilhar ou as cartas. É hoje também passagem obrigatória dos turistas mais esclarecidos que visitam a capital checa e que não se deslocam incluídos nos rebanhos apascentados pelas agências de viagens.
Verdade se diga que mesmo em Praga, onde existem ainda - e são frequentados - muitos cafés, tal como nas outras capitais do antigo Império Austro-Húngaro, Viena e Budapeste, o convívio em tais estabelecimentos começa pouco a pouco a perder-se. Muitas pessoas tinham mesa certa no seu café, aonde se deslocavam diariamente e onde encontravam os amigos, muitos estudantes tiravam os cursos estudando nos cafés, muitos cidadãos anónimos, ou não tanto, faziam nos cafés (lugares semi-públicos) as suas conquistas amorosas entre os clientes, do mesmo sexo, primeiro, do sexo oposto, depois, quando os cafés passaram a ser frequentados por mulheres.
Foram os cafés, para os burgueses, os substitutos dos salões da aristocracia, a partir do século XVIII. Paris deu-nos o exemplo, embora também aí, apesar de subsistirem cafés históricos como De la Paix, Flore, Deux Magots, Coupole, etc., muitos outros já fecharam devido aos ares do tempo. Londres, que realmente não faz parte da Europa, nunca cultivou o “género” café.
Este desaparecimento dos cafés, consequência da instauração de um tipo de vida individualista e inseguro, reflecte uma sociedade consumista e globalizada, dominada pelas novas tecnologias, onde as televisões, os computadores, os telemóveis e quejandos substituíram as relações pessoais, o intercâmbio cultural e a tradicional discussão política.
Lisboa, que foi uma cidade onde os cafés floresceram, onde, em tertúlias, neles se reuniram poetas e escritores, actores e artistas plásticos, políticos e jornalistas, está hoje reduzida a uma apagada e vil tristeza, em que sobram, na Baixa, mas diferentes do passado, o Martinho da Arcada, o Nicola e a Brasileira do Chiado.
O Café Slavia foi instalado no Palácio Lazansky, construído pelo Conde Leopold Lazansky em 1861/3, na esquina da Národní (Avenida Nacional) com a Smetanovo nábrezí (a Marginal de Smetana, ao longo do Moldava). O palácio, uma combinação dos estilos do Renascimento francês e holandês, é representativo das residências em Praga das velhas famílias da aristocracia da Boémia e foi projectado pelo arquitecto Ignác Ullmann e edificado pelo construtor Frantisek Havel. Não tendo sido inteiramente ocupado pela família Lazansky, o edifício, de três andares, foi parcialmente arrendado e nele viveu, entre 1863 e 1869, o célebre compositor checo Bedrich Smetana. No rés-do-chão onde o Café viria a ficar situado existiu a Escola de Dança Gorsky, tendo o local começado a notabilizar-se com o lançamento, no lado oposto, da primeira pedra do Teatro Nacional Checo, em 16 de Maio de 1868. A esta cerimónia assistiu, das janelas do palácio, o último rei coroado da Boémia, Fernando V (Fernando I como imperador da Áustria), que nessa altura já tinha abdicado da dignidade imperial e real no seu sobrinho Francisco José e vivia em Praga como simples cidadão.
O Teatro Nacional foi concluído em 1881, tendo sido inaugurado em 11 de Junho, com a presença do herdeiro do trono, o Arquiduque Rodolfo de Habsburg, mas durante as obras finais de acabamento o edifício foi devorado pelas chamas, em 12 de Agosto, julga-se que por descuido de alguns operários que trabalhavam no telhado. A comoção que se apoderou da população foi imensa e seis semanas mais tarde já havia sido colectado o dinheiro suficiente para reconstruir o teatro, que seria finalmente re-inaugurado em 18 de Novembro de 1883, com a ópera Libuse, de Smetana.
Após a inauguração do Teatro em 1881, um conhecido comerciante de Praga, Václav Zoufalý, solicitou autorização para montar um café no rés-do-chão do palácio, tendo em vista não só a previsível frequência dos espectadores como dos próprios actores e de outras gentes que passaram a deslocar-se àquela zona da cidade, então em franco desenvolvimento. Tendo o incêndio do Teatro tido lugar dois dias depois da entrada do requerimento para a criação do café, as obras para instalação deste tiveram lugar em simultâneo com a reconstrução do Teatro. Assim, o Café Slavia abriu ao público em 30 de Agosto de 1884, primeiro apenas com dois salões, sobre a Smetanovo, virados para o Castelo, depois ocupando também as salas em frente ao Teatro.
É longa a história do Café Slavia. Com o decorrer dos anos transformou-se num lugar privilegiado de reunião de uma classe média em ascensão e também num fórum patriótico, que sobreviveu às vicissitudes políticas de Praga, do Império à Primeira Guerra Mundial, da República à Ocupação Alemã, do Regime Comunista à Segunda República. Durante muitos anos, o Café Slavia, como a maioria dos cafés clássicos, não servia refeições mas tinha à disposição dos clientes jornais e revistas, bilhares, jogos de cartas, xadrez, dominó e outros, permitidos por lei.
No fim do século XIX, Praga era habitada por três grupos étnicos principais: checos, alemães e judeus. O crescimento da população checa e o seu sucesso económico criaram paixões nacionalistas por parte de checos e alemães. Os checos pediam igualdade de direitos enquanto os alemães receavam perder os privilégios de que gozavam. Também os cafés, de acordo com as clientelas, tomaram partido e o Slavia rapidamente se converteu num centro do patriotismo checo. A Avenida Ferdinand (hoje Národní), entre o Café e o Teatro, tornou-se o lugar de passeio dos checos enquanto os alemães elegiam para os seus ócios a Na Prikopê (ao fundo da Praça Venceslau).
Na literatura revivalista, Slavia é o nome da mãe mítica de todos os eslavos, um símbolo dos movimentos pan-eslavos. O interior original do Café era dominado por um tríptico pintado por Viktor Oliva, representando a figura alegórica da mãe dos eslavos rodeada pelos súbditos das várias nações eslavas que lhe prestavam homenagem. A pintura, que foi enegrecendo pela atmosfera de fumo do Café, deixou de ter qualquer significado para os clientes depois da Primeira Guerra Mundial e quando os novos locatários a enviaram para a Galeria da Cidade de Praga, em 1932, ninguém lhe sentiu a falta.
No começo dos anos 1930, o Café foi arrendado por Jaroslav Stêrba e Václav Fiser, tendo sofrido grandes modificações. As paredes que dividiam as salas individuais foram removidas, novas janelas foram rasgadas, permitindo uma melhor visibilidade sobre a margem oposta, e foi criada uma nova entrada com um lobby e um bengaleiro. O tríptico da “Mãe Slavia” foi substituído por outra pintura, também de Viktor Oliva, “O Bebedor de Absinto”. Os novos arrendatários encarregaram o arquitecto alemão Pavel Jindrich Koester da remodelação do interior. Especialista em projectos de restaurante, Koester adoptou uma concepção funcional baseada na experiência alemã. Instalou longas filas de bancos estofados sob as janelas e colocou mesas clássicas quadradas e redondas no espaço interior. As paredes foram apaineladas com madeira, mármore e vidro negro. O facto de ser um profundo conhecedor da Art Deco levou-o a utilizar adereços de metal claro, madrepérola e marfim nas paredes, como ainda hoje se pode observar no Restaurante Parnas, um prolongamento do Café do lado do rio.
Durante a Ocupação Alemã, a Marginal Smetanovo passou a designar-se Marginal Heydrich e a Avenida Nacional, a Národní Trída, foi rebaptizada Viktoriastrasse. O próprio Slavia tornou-se Kaffee Viktoria und Konditorei e o Palácio Lazanský, pela sua situação e condições, foi usado como quartel-general das forças ocupantes. Quando o Teatro Nacional foi encerrado em 1944 e a maior parte dos actores foi enviada para fábricas e brigadas de trabalho, a vida social do Café perdeu o seu brilho, que não foi readquirido mesmo depois da Guerra, devido ao racionamento e às sequelas do conflito.
Com o estabelecimento do Regime Comunista em Fevereiro de 1948, o Café Slavia foi nacionalizado ficando a pertencer à companhia estatal Raj Praha 1. A aparência do Café manteve-se mas desapareceram os jornais, as revistas e as mesas de bilhar, bem como os antigos empregados. Muitos clientes de outrora afastaram-se. Por razões óbvias, os regimes totalitários opõem-se à vida de café, à sua efervescência espiritual e à livre expressão das opiniões. As actividades das associações de artistas também acabaram e no seu lugar surgiram associações profissionais que garantiam cuidadosamente a aceitação ideológica da arte. Durante o regime socialista, os artistas encontravam-se principalmente em clubes criados pelo Estado. Por fim, mesmo a mesa do escritor e pintor Jirí Kólar ficou vazia – este exilou-se em Paris, vindo a falecer mais tarde em Praga.
Em 1983, o Café Slavia sofreu nova remodelação que acabou com o que restava da atmosfera original. Mas o pior aconteceu, contudo, em 1991, quando, durante o processo de reprivatização, o Café foi abandonado pelo seu operador, a companhia municipal Raj Praha 1. Na sequência de um concurso para decidir qual o melhor operador privado, a empresa americana HN Gorin, de Boston, obteve a concessão, oferecendo quatro milhões de dólares para a reconstrução. Assinado o contrato com o proprietário do edifício, a Academia das Artes do Espectáculo, a HN Gorin encerrou o Café na primavera de 1992, sem ter iniciado quaisquer obras. Esta atitude provocou uma série de protestos envolvendo estudantes e o próprio presidente da República Václav Havel. A morosidade do processo levou a que no Outono de 1993 o muito danificado Café fosse ocupado por um numeroso grupo de intelectuais com um grito de protesto: “Não abandonaremos o Slavia”. Dois anos mais tarde, em 17 de Novembro de 1995, o Tribunal da Cidade de Praga declarou finalmente o contrato inválido. O Café foi então adquirido pela companhia checa Parnas, que com o apoio financeiro da firma Centrotex, começou os trabalhos de reconstrução em Janeiro de 1997. Procurou-se devolver ao Café o estilo Art Deco concebido por Koester nos anos 1930, eliminando desnecessárias alterações subsequentes. Em 17 de Novembro de 1997 o Slavia reabriu ao público com o seu aspecto actual.
Pelo Café Slavia passaram gerações de intelectuais e artistas. Entre os nomes mais sonantes incluem-se o poeta Vladimír Holan, o escritor Jaroslav Seifert, que recebeu o Prémio Nobel da Literatura (e escreveu um poema dedicado ao Slavia), os escritores irmãos Josef Capek e Karel Capek (que escreveu O Caso Makropulos), o professor Václav Cerný que com o poeta Jirí Kolár reuniu no Café, nos anos 1970, a oposição ao Regime, o pintor Jan Zrzazvý, o filósofo Jan Patocka, o dramaturgo Václav Havel (que veio a ser o primeiro presidente da Segunda República), os actores Jakub Vojta Slukov, Frantisek Ferdinand Samberk, Eduard Vojan e Jakub Seifert, o compositor Bedrich Smetana, que habitou no imóvel, etc. Por lá terão passado ainda Franz Kafka, Max Brod, Dvorak, Rilke, Apollinaire, Milan Kundera, Milos Forman, etc. Foi no Café Slavia que foi concebida a célebre Carta 77 e que se começou a organizar a Revolução de Veludo que poria fim ao Regime Comunista na Checoslováquia.
Por tudo o que se escreveu, merece o Café Slavia uma visita e uma meditação sobre o papel dos cafés na vida das sociedades. E merecem os praguenses um aplauso por terem impedido a mais do que certa destruição de um património inestimável que os americanos certamente preparavam.
4 comentários:
1)Como habitualmente (embora "no sempre",como diz o Filipe II) muita,bem fundamentada, e interessante informação sobre a vida de um Café que retrata a evolução de uma sociedade. Verifica-se mais uma vez a hostilidade do autor às evoluções,às mudanças de hábitos. A ideia de que "o mundo é composto de mudança" òbviamente não lhe agrada. Por acaso neste caso até concordo que o fim da era dos Cafés e das tertúlias é uma perda,pois era sem dúvida uma forma muito rica de convívio,de troca de ideias,de debate,etc. Mas entretanto já tinham acabado os "Salons" em Paris e noutras cidades,e apesar dessa excelente forma de convívio que o Proust inesquecivelmente retratou e de que se serviu na sua "Recherche",a Humanidade civilizada sobreviveu relativamente bem,como sobreviverá ao fim da "cultura dos Cafés". Outras formas de convívio aparecerão,e até podem voltar os Cafés sob outra qualquer encarnação. Mas quem viveu esses tempos intensamente,como provavelmente o Autor,lamentará justificadamente o seu desaparecimento.
2) Também é pena que entre tanta investigação e informação enriquecedora, tenha que vir o inevitável toque anti-americano,que contrasta com o equilíbrio da maioria dos textos. Porque é que a empresa americana havia necessàriamente de destruir o Slavia? O autor já deambulou pelo Soho,pela Village,por S.Francisco? Já lhe ocorreu que a cultura de Café pode até sobreviver melhor nos U.S.A. que na maioria da Europa? Sabe que pelo menos até há pouco tempo a livraria mais acolhedora e "convivial" de Paris era a americana "Shakespeare & Co"? Pois é,com os olhos vendados não se vai longe,e se voluntàriamente ainda menos... Mas passemos por esta idiossincrasia(digamos) do Autor,e felicitemo-lo pelos seus posts que nos trazem algo da atmosfera praguense que no meu caso lamento não conhecer.
Belo post...
Que saudades dos cafés de Lisboa. A cidade está uma bandalheira e vai continuar... Era nos cafés que se faziam amizades, se estudava e se passava o tempo livre,
agora vai tudo para a merda das discotecas. Nem sei onde arranjam dinheiro para isso, devem andar a prostituir-se ou então os pais são ricos e não há crise.
Que merda de país ede sociedade
Aqui fica uma sugestão: porque não fala dos outros cafés de Praga?
Para o Anónimo das 0:31:
Quando tiver tempo falarei de mais alguns cafés de Praga.
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