O escritor egípcio Ahmed Youssef (n. 1955), quando estudante em Alexandria descobriu por acaso a figura de Jean Cocteau (1889-1963) e o seu interesse pelo Egipto, que o levou a visitar duas vezes este país. Debruçando-se mais tarde sobre o mestre francês, Ahmed Youssef escreveu Cocteau, l'Égyptien (2001), onde relata curiosos aspectos das deslocações de Cocteau ao Egipto, em 1936 e em 1949, viagens antecedidas de uma visita à Argélia (então francesa) em 1912.
O Egipto tornara-se uma paixão francesa desde a expedição de Bonaparte, em 1798, e nomeadamente, depois da inauguração do Canal de Suez em 1869, que contou com a presença da imperatriz Eugénia. E foi o sonho romântico de muitos escritores, como Gérard de Nerval, Gustave Flaubert ou Théophile Gautier, a partir do século XIX, prolongando-se até aos nossos dias. Tornado um dos principais destinos do turismo de massas durante o século XX, o fluxo imparável de visitantes apenas foi travado com a irrupção do novo coronavírus, que agora ergue fronteiras e impede contactos físicos.
As primeiras obras de Jean Cocteau são inspiradas por As Mil e Uma Noites, na tradução de Joseph-Charles Mardrus (1880-1949), que eclipsara a tradução até então utilizada de Antoine Galland (1646-1715). E a personagem de Shéhérazade ocupa um lugar central no seu imaginário.
Em Argel, que visitou na companhia do romancista Lucien Daudet (filho de Alphonse Daudet), Cocteau trava conhecimento com o tenor, compositor e actor Mahieddine Bachetarzi (1897-1986), que, servindo de guia, introduz ambos nos lugares recônditos da cidade. Mais tarde, Bachetarzi (que viria a ser director do Teatro Nacional Argelino) negará nas suas Mémoires (1968) qualquer contacto com Cocteau em Argel.
A primeira viagem de Cocteau ao Egipto terá lugar em 1936, na companhia de Marcel Khil (Mustapha Khélilou Belkacem Ben Abdelkader) (1912-1940), que o poeta conhecera em Toulon em 1932. Cocteau passara um período difícil, com a morte de Raymond Radiguet, a experiência do ópio, e um relacionamento tornado complicado com Jean Desbordes (1906-1944) , seu secretário desde 1926, com o qual viria a romper em 1933. A visita inicia-se em Alexandria, mas antes Cocteau e Marcel passam por Roma, Atenas e Rhodes. Como havia feito em Argel, também em Alexandria Cocteau se interessa em visitar os locais de prostituição feminina, ainda que, agora, já tenha bem claras as suas opções sexuais. Mesmo assim, deslocam-se ao bairro de Kombakir, guiados por um judeu alexandrino e francófono, Assoun Salomon, mas fogem apressadamente de tal sítio, que consideram particularmente sórdido e sinistro e hoje desaparecido [Numa das minhas estadas em Alexandria fui propositadamente a uma rua estreita, cujo nome de momento não me ocorre, perto da Praça Mohammed Ali, considerada como um dos locais onde existiram bordéis em tempos mais recentes, mas em que presentemente só havia lojas de roupas]. No Cairo, Cocteau visita a Esfinge da qual diz: "Le Sphinx n'est pas une énigme, c'est une réponse." No Egipto, fascina-o sobretudo o culto da Morte e é por isso que se interessa muito mais pelo passado faraónico do que pelo passado e presente islâmico, de que francamente não gosta. Aliás, a Morte será uma obsessão de Cocteau ao longo de toda a sua vida e constante também da sua obra. Certas mortes tê-lo-ão atingido particularmente: Jean Giraudoux, Raymond Radiguet, Marcel Khil, Max Jacob, Jean Desbordes...
Da sua primeira viagem ao Egipto, Cocteau evoca dois fenómenos tipicamente orientais: o bakchich e o haschich. O segundo, todos conhecemos, o primeiro significa hoje simplesmente gorjeta, mas etimologicamente era a "dádiva" que os senhores orientais concediam piedosamente aos místicos que consagravam exclusivamente a sua existência à causa de Deus. «Le haschich est tiré du chanvre indien. Oriental d'origine et de culture, il fut l'expédient de toute une littérature articulée autour du jeu de l'amour et de la mort. Par haschichomanie littéraire, on entend bien évidemment celle qui connurent les romantiques, comme Théophile Gautier et Gérard de Nerval. Mais cette notion peut être étendue à d'autres substances hallucinogènes. La drogue appelle la drogue, laquelle est toujours la soeur d'une autre encore, elles se répondent toutes, surtout si on lui fait face comme Cocteau.» (p. 87)
O livro evoca depois a experiência do ópio em Cocteau (que deu origem ao seu livro, Opium) e ao fascínio que a substância exerceu nos românticos franceses e no inglês Thomas de Quincey. Nerval, Flaubert, Gautier, Rimbaud eram frequentadores do famoso "Club des Haschachins" (título de uma obra de Gautier), situado no Hôtel Pimodan (hoje Hôtel de Lauzun), na ilha Saint-Louis, onde nasceu a tendência de associar o haschisch e o ópio à criação artística. Já Baudelaire o evocara nos Paradis artificiels. Gérard de Nerval, que visitou o Egipto, o Líbano, a Turquia e a Grécia em 1843, publicou em 1851 a sua obra célebre Voyage en Orient, de que a parte intitulada "L'Histoire du Calife Hakem" começa por um capítulo intitulado "Le haschich". E Thomas de Quincey publicou, em 1822, Confessions of an English Opium Eater.
A principal obra de Jean Cocteau sobre o Oriente é Maalesh (1949), sub-intitulada "Journal d'une tournée de théâtre", talvez o último grande livro da literatura francesa de viagens, na sequência de Théophile Gautier, Gustave Flaubert, Maxime DuCamp, Gérard de Nerval, e também, Maurice Barrès, André Gide e Maurice Maeterlinck. Maalesh (que, em árabe, significa "não tem problema", "tudo bem", palavra habitualmente usada) é um livro de crónicas de viagem, reflexões filosóficas, descrição de cenas populares, comparações entre os povos das antigas civilizações e, antes de do mais, a obsessão da morte. Relata a viagem de três meses (Março a Maio de 1949) de Cocteau ao Cairo, Alexandria, Beirute, Constantinopla e Ankara. Foi a segunda e última viagem do poeta ao Egipto, numa altura em que a língua francesa era bem conhecida das pessoas cultivadas e o inglês não se tornara ainda no intruso que tenta converter-se em língua de uso universal. Refira-se que Maalesh era o título de uma revista egípcia francófona, que Cocteau conhecera aquando da sua primeira viagem ao Egipto.
O livro foi mal acolhido pelos egípcios, uma vez que Cocteau, fascinado pelo Egipto Antigo e deslumbrado com a riqueza da Corte e afins, pinta com cores sombrias o Egipto contemporâneo, que ele vê, ou seja, a miséria do povo egípcio, não se coibindo das considerações menos convenientes sobre uma população que mal sobrevive. Não seria intenção de Cocteau destratar os egípcios, mas o que parece é, e o livro chegou mesmo a ser proibido no país e suscitou também a cólera dos turcos e mesmo de vários escritores franceses, nomeadamente de Étiemble.
Um dos grandes momentos de Jean Cocteau no Egipto é o seu encontro, em 15 de Março, no Cairo, na Villa Ramattan (hoje Casa-Museu), perto das Pirâmides, com o célebre escritor cego egípcio Taha Hussein, autor de vasta obra, onde se destaca a sua autobiografia Le Livre des Jours (Al-Ayyam), cuja tradução francesa André Gide prefaciou. De origem muito humilde, Taha Hussein estudou primeiro no Cairo e depois em Paris, onde fez o seu doutoramento. De regresso ao Egipto, será professor, ministro, intelectual venerado mas também combatido pelas elites mais conservadoras, que o acuam de recusar a tradição religiosa, logo as próprias bases da sociedade árabe. Estudioso, e tradutor, do grego e do latim, permanecerá empenhado em casar as duas margens do Mediterrâneo, de preferência a voltar-se para o passado islâmico. Em França, Hussein evitará Cocteau, não querendo melindrar Gide, cujas relações com aquele tinham então esfriado, mas virá a ser o próprio Gide o traço de união entre os dois homens. Cocteau escreve em Maalesh: «J'admirais cet homme. Après ma visite je le respecte.» Casado com uma francesa, Taha Hussein recebia na sua residência muitos amigos franceses, como Gaston Wiet, Georges Duhamel, o abade Drioton, André Gide, e agora Cocteau, que regista: «Il est d'origine paysanne. C'est un véritable aristocrate. Cet index et la langue arabe écrite qu'il emploie et que si peu de personnes entendent le maudissent superbement. En face de ses lunettes noires qui vous regardent, il semble que les vestiges de l'ancienne Égypte retrouvent un sens et cessent d'être des buts de promenade. Taha Hussein est l'ex-doyen de la Faculté des Lettres. Politiciens, docteurs, égyptologues viennent se rassurer dans sa maison charmante où rien ne flotte, où cesse le vague, l'absence de contour. Il est oracle et simple.» Uns dias depois do seu encontro com Cocteau, Hussein escreveria um artigo que iria escandalizar a classe política e intelectual egípcia, o qual Cocteau cita em Maalesh: «Il est permis de sortir de son silence quand Jean Cocteau visite l'Égypte. Il se peut que les champs politiques et sociaux nous soient fermés, mais Dieu merci, nous pouvons trouver, dans la littérature pure, quelque soulagement et consolation... Quand donc l'Égypte se réveillera-t-elle de son trop profond sommeil?»
Uma outra personalidade egípcia com quem Cocteau contactou, e a quem dedicou Maalesh, foi o príncipe Mohamed Wahid Eddine, figura de costumes muito particulares. O príncipe, que morreu em 1995, era filho da princesa Chivékiar (mulher cultíssima), que fora casada com o príncipe Ahmed Fuad (futuro rei Fuad I) de quem se divorciara, casando-se depois mais quatro vezes, uma das quais com Selim Khalil, ligação da qual nasceu, em 1919, Mohamed Wahid Eddine.
Transcrevo do livro: «Une preuve pourrait étayer cette hypothèse [a princesa e o filho frequentavam os salões parisienses]: à son arrivée au Caire, la voiture du fils de Chivékiar attendait le poète à l'aéroport. Et c'est Carullo, le secrétaire particulier du prince, qui emmènera Cocteau à son hôtel. L'ambassade de France aurait voulu envoyer une voiture chercher le plus célèbre des Français d'alors. Le ministre égyptien de l'Instruction publique aurait également proposé la même chose. Mais c'est Cocteau qui trancha en préferant la voiture de Wahid Eddine. Ce qui donne à penser que les deux hommes se connaissaient.» (p. 130)
O príncipe Wahid Eddine ofereceu uma sumptuosa recepção a Cocteau nos jardins do palácio de sua mãe (em reconstrução), mas o poeta retirou-se logo após a chegada tardia da princesa Mohamed Ali Ibrahim, filha do último sultão, alegando um encontro com Taha Hussein. Quem foi a pessoa que usou retirá-lo prematuramente daquele cenário feérico? Pois foi Adbel Rahman Sidky, tradutor árabe de Fleurs du Mal, também ele poeta e autor de uma notável biografia do grande poeta árabe da Idade Média, Abu Nawas. Por razões óbvias, as afinidades intelectuais, e não só, entre Cocteau e Sidky eram de natureza a provocar os ciúmes do príncipe, chegando a fazer acompanhar o poeta de Carullo, o seu secretário particular italiano. Mas surgiu um outro rival de peso, desta vez uma mulher, a grande figura da literatura egípcia Out el-Kouloub El Demardachiah, cujo romance Le Coffret hindou Cocteau haveria de prefaciar [ainda há um exemplar à venda na Amazon por € 100.00]. Esta grande senhora da literatura egípcia (n. 1892) pertencia a uma antiga e rica família muçulmana, desempenhou um papel importante no movimento feminista egípcio e manteve um salão literário onde se encontravam as celebridades egípcias e francesas.
Transcrevo do livro: «Quoi qu'il en soit, entre Cocteau et le prince egyptien, il semble qu'il y ait eu "une certaine tendresse", d'ailleurs remarquée par leurs contemporains égyptiens, mais suggérée aussi par la place qu'occupe Wahid Eddine dans Maalesh, par le ton de Cocteau à son égard et surtout parce que laisse supposer la dernière phrase de la dédicace de Maalesh: "Blâmez-moi en publique et aimez-moi en secret."» (p. 133)
No seu périplo egípcio, após o Cairo voltou Cocteau a visitar Alexandria e, nos passos de André Gide, descobriu o Vale dos Reis, Luxor e Assuão. Regressado ao Cairo, seguiu depois para a Turquia, onde as recordações de Nerval e Loti disputaram os seus sentimentos, e para a Grécia, uma das suas paixões.
O livro de Ahmed Youssef termina com a inclusão, em anexo, de um conjunto de passagens extraídas de Maalesh e com uma crónica do escritor francês Étiemble, publicada na revista "Les Temps Modernes", em 1950, sobre Maalesh, em que critica Jean Cocteau pela superficialidade com que se refere ao Egipto, ignorando toda a sua componente árabo-muçulmana, preocupado que esteve com os aspectos mundanos da sua viagem.
Enfim, uma visão interessante de um escritor egípcio francófono sobre a "tentação árabe" do multifacetado, genial mas às vezes superficial, Jean Cocteau.
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