segunda-feira, 1 de novembro de 2021

SOBRE "LE CAMP DES SAINTS", DE JEAN RASPAIL

Publicado em 1973, o livro Le Camp des Saints, de Jean Raspail (1925-2020), passou sem especial controvérsia, ou realce, pelo meio editorial e com o particular silêncio da crítica de esquerda. Foi a partir da sua edição americana em 1975, com o título The Camp of the Saints, que a obra adquiriu particular notoriedade, vindo a ser reeditada em França em 1978 e obtendo então um sucesso de vendas, o que levou à realização de nova edição em 1985. A amplitude real dos eventos ficcionados atingiu tal dimensão que conduziu à presente edição de 2011, que agora comento, à qual o autor acrescentou um prefácio, "Big Other", título parafraseando a obra de George Orwell, e onde explica a carreira acidentada do livro, obra verdadeiramente premonitória, cujo argumento é amplamente confirmado pelos factos que se verificaram posteriormente, em especial desde o início da passada década. 

Como refere o autor nesse prefácio, este livro seria hoje impublicável, ou objecto de uma censura que o amputaria e desfiguraria completamente. Aliás, Jean Raspail inclui em apêndice todas as passagens do livro que cairiam eventualmente sob a alçada das celeradas leis Pleven (1972), Gayssot (1990), Lellouche (2001) e Perben (2003) que introduziram em França severas penalidades e interdições relativamente a afirmações consideradas (ou supostamente consideradas) racistas e anti-semitas. Não tendo, porém, efeitos retroactivos, Le Camp des Saints, publicado em 1973, escapou, e continua a escapar, à censura francesa, sendo publicado no respeito integral do texto original.

A propósito do título do livro, o autor cita o Apocalipse:  «À la fin des mille ans, Satan sera delivré de sa prison. Il en sortira pour séduire les nations qui sont aux quatre coins de la terre, Gog et Magog, et les rassembler pour le combat, elles qui égalent en nombre le sable de la mer. Elles partirent en expédition sur la surface de la mer, elles investirent le camp des saints et la ville bien-aimée. Mais Dieu fit tomber un feu du ciel qui les dévora. Et le diable qui les séduisait fut jeté dans l'étang de feu et de soufre, où étaient déjà la bête et le faux prophète, et où leur tourment, de jour et de nuit, durera aux siècles des siècles.»

Dada a sua extensão, qualquer comentário pormenorizado sobre o assunto do livro seria sempre demasiado longo e imperfeito. Para um adequado conhecimento do enredo deve ler-se a obra ou, pelo menos, a sinopse que consta da Wikipédia. 

Eis um resumo de um possível resumo do texto. Cem barcos, alguns deles quase podres, partem de Calcutá, do delta do Ganges, com um milhão de bengalis, na maioria famélicos e doentes, e dirigem-se à Côte d'Azur, o paraíso idealizado dos "damnés de la terre", após infrutíferas tentativas de vários países em desviar a rota da "armada" ou até em aniquilá-la. A hesitação, primeiro na Europa (ignorando-se o destino final) e depois em França é de pânico absoluto. Os defensores dos direitos do homem, os anti-racistas, as organizações não governamentais, as Nações Unidas e apêndices, os espíritos bem-pensantes, a esquerda chique, proclamam a imperiosidade do acolhimento mas perante a iminência de um desembarque geral a população do sul de França abandona casas e haveres e dirige-se para o norte do país. O presidente da República apela à tranquilidade e garante que a fronteira será defendida manu militari, sem convicção, já que não ignora que as tropas se recusarão a disparar contra uma multidão faminta, composta especialmente por velhos, mulheres e crianças, embora não só. Simultaneamente, ocorrem em toda a França greves e tumultos dos imigrantes já instalados, árabes ou negros, que se solidarizam com os recém-chegados, ao contrário de outros imigrantes, igualmente árabes e negros mas pertencendo já às elites franceses e que pretendem conservar os privilégios adquiridos. Tirando um punhado de bravos, as tropas cederão à invasão migrante e os novos habitantes ficarão instalados nas casas e cidades abandonadas pelos seus proprietários. Uma nova era começa.

Trata-se, evidentemente, e com uma larga antevisão (1973), do problema das migrações maciças para a Europa ocorridas nos últimos anos, sobretudo a partir da invasão anglo-americana do Iraque e da guerra na Síria. E do receio dos franceses, já com um número considerável de migrantes árabes e africanos no seu território (vindos de Marrocos, da Tunísia, da Argélia, especialmente depois da descolonização, e de algumas antigas colónias africanas que entretanto alcançaram a independência) se verem substituídos na sua terra natal por cidadãos oriundos de excêntricas paragens. O mérito de Jean Raspail é o de ter previsto a amplitude do fenómeno com cinquenta anos de avanço. O problema não se colocava ainda com especial acuidade na altura em Raspail escreveu o seu livro, já que os migrantes então existentes foram essenciais para fazer funcionar a economia francesa carecida de mão-de-obra mais barata e disponível para a execução de tarefas que os nativos se recusavam a desempenhar.

Esta obra é o que se costuma designar em França por "roman à clef": as personagens fundamentais, os jornais, as instituições, são designadas por nomes supostos, alguns tão diferentes do original que só um especialista conseguirá determinar a verdadeira identidade. Exercício difícil não só para um estrangeiro, ainda que bem informado sobre a pretérita vida política e cultural francesa do último meio século, mas igualmente para o francês de hoje, mesmo que possua uma cultura média. 

Trata-se de um romance inegavelmente bem escrito, e muito claro, até pelo menos três quartos do seu texto. A partir daí, e quando o autor começa a debruçar-se sobre as perturbações registadas na própria França, nos seus meios operários, estudantis, militares, políticos, etc., Jean Raspail deixa-se envolver na teia dos acontecimentos que ele mesmo convoca e o livro torna-se algo ininteligível e até, digamos, um tanto maçador. O pormenor das possíveis repercussões no tecido social do país, decorridas da pretensa invasão bengali, é mais do domínio de uma análise sociológica do que de um romance de antecipação histórica. Expostas as linhas gerais, o detalhe ficcional é supérfluo.

Pode, contudo, considerar-se Le Camp des Saints o primeiro grito de alarme literário sobre o problema das imigrações em território francês, que Renaud Camus explicitaria mais recentemente no seu livro Le Grand Remplacement (2011 e edições seguintes).

A tese fundamental de Raspail é a de que o mundo ocidental, através de todos os seus movimentos e organizações internacionais criou um clima propício à deslocação maciça de populações do terceiro mundo, só entrando em pânico quando essas populações lhe batem à porta. É também uma violenta denúncia da hipocrisia da sociedade contemporânea e dos seus principais representastes (no livro nem o Papa, um papa fictício,  e a Igreja Católica escapam) e da tibieza daqueles cuja missão é precisamente a preservação dos valores e do modo de vida da civilização ocidental.

A argumentação de Jean Raspail é pertinente (obviamente do seu ponto de vista) mas ignora alguns dados históricos de irrefutável veracidade. Sempre, ao longo dos tempos, se verificaram volumosas transferências de populações, motivadas pelas mais variadas causas: fome, guerra, anseio de melhor nível de vida, curiosidade de outras paragens, ou até forçadas pelos governos dos seus próprios países. A História está cheia de exemplos e contra essas movimentações a pena de Raspail é inútil. Arnold Toynbee, em A Study of History, explica isso.

Além do mais, e apesar dos acontecimentos a que vimos assistindo nos últimos anos (muitos dos quais, i. e., o terrorismo, são exógenos a essas movimentações e decorrem da instrumentalização política de terceiros), é possível uma assimilação razoável dos recém-chegados no seio dos indígenas de tradições milenares, desde que criadas as condições indispensáveis para uma integração progressiva e humana. Uma coisa que a França (nem a maioria dos países) não soube fazer desde há mais de um século. Nem é preciso pertencer às inúmeras associações anti-racistas, anti-xenófobas, anti-qualquer coisa, que vivem (elas e os seus membros) à custa dos subsídios dos governos, para compreender que nada impede a sã convivência de brancos, negros, árabes, ou quaisquer outras raças (ou etnias) ou mesmo de credos diferentes ou sem credo algum, desde que seja possível estabelecer um "pacto" tácito de relacionamento, "pormenor" até hoje sistematicamente ignorado.

A análise do livro de Raspail levar-nos-ia muito longe, não cabendo naturalmente no espaço de um post. Mas não posso deixar de referir uma passagem de uma conferência do célebre Umberto Eco em Valência, no Convénio organizado sobre as Perspectivas do Terceiro Milénio, em 23 de Janeiro de 1997, e incluída no seu livro Cinque scritti morali (1997), de que existe uma tradução portuguesa, da qual reproduzo: «Os fenómenos que a Europa tenta ainda enfrentar como casos de emigração são pelo contrário casos de migração. O Terceiro Mundo está a bater às portas da Europa, e entra mesmo quando a Europa não está de acordo. O problema já não é decidir (como os políticos fingem acreditar) se se admitem em Paris raparigas estudantes com chador ou quantas mesquitas devem erigir-se em Roma. O problema é que no próximo milénio (e como não sou profeta não posso especificar a data) a Europa será um continente multirracial, ou se preferirem, "colorado". Se lhes agradar, será assim; e se não lhes agradar, será assim na mesma. Este confronto (ou choque) de culturas poderá ter saídas sangrentas, e estou convencido de que em certa medida as terá, que serão inevitáveis e durarão muito tempo. Porém, os racistas deveriam ser (na teoria) uma raça em vias de extinção. Não existiu um patrício romano que não suportava que se tornassem também cives romani os gauleses, ou os sarmatas, ou os judeus como São Paulo, e que pudesse subir ao trono imperial um africano, como veio por fim a acontecer? Este patrício esquecemo-lo, foi derrotado pela história. A civilização romana foi uma civilização de mestiços. Os racistas dirão que é por isso que se dissolveu, mas foram precisos quinhentos anos - e acho que é um espaço de tempo que nos permite também a nós fazer projectos para o futuro.»

Voltaremos ao tema, quando comentarmos Le Grand Remplacement, de Renaud Camus. 


 

Sem comentários: