quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A BÍBLIA TINHA OU NÃO RAZÃO?

Devo ao Miguel Castelo Branco a notícia da recente publicação do livro A Bíblia tinha mesmo razão?, do padre Francisco Martins, S.J., professor da Pontificia Università Gregoriana, de Roma. Sobre este tema, Werner Keller publicara em 1955 Und die Bibel hat doch recht, que foi editado em português com o título A Bíblia tinha razão, sem menção de data, mas possivelmente nos anos sessenta, e que comprei e li na ocasião.

A obra de Werner Keller procura conciliar a narrativa bíblica com as fontes históricas, numa altura em que começara uma investigação arqueológica sistematizada nas regiões abrangidas pelo relato do Livro. Mas, decorrido mais de meio século, a perspectiva é hoje bem diferente. As descobertas ocorridas neste período são de molde a suscitar mais dúvidas do que certezas. Por isso, a recém-publicada obra de Francisco Martins apresenta no título um ponto de interrogação.

Procede o autor a uma detalhada indicação das últimas descobertas arqueológicas e também de manuscritos, intercalada com várias citações e observações pessoais quanto ao valor a atribuir aos textos bíblicos. A abundância de pormenores e a forma como as matérias se encontram arrumadas dificultam por vezes a inteligibilidade da narrativa que ganharia em permitir uma leitura mais linear. O livro segue, lamentavelmente, o sinistro Acordo Ortográfico 90 mas, ainda pior, é o aportuguesamento de muitos nomes já consagrados em português e noutras línguas europeias. Não havia necessidade de grafar Ramessés em lugar de Ramsés, mas escrever Cadés para designar o local da célebre batalha de Kadesh começa a ser apenas acessível a quem já possua conhecimentos na matéria. E podia citar muitos outros exemplos. Também é obviamente notória a falta de um índice onomástico. 

Não é possível proceder neste espaço a um comentário circunstanciado das observações do autor, pelo que ficaremos por umas simples notas. A obra começa por analisar as figuras de Abraão, Isaac, Jacob e José, cuja existência histórica considera duvidosa, e mesmo a de Moisés «sobre o qual não nos chegou qualquer testemunho extra-bíblico» (p. 101), embora o nome seja de origem egípcia.

A mais antiga referência ao nome de Israel encontra-se na estela do faraó Merneptá, datada de cerca de 1207 AC.  Segundo o autor o deus El era venerado no Próximo Oriente e a transformação em Israel poderá significar a sua individualização para os hebreus. Ao princípio, terá coexistido com outros deuses até à consagração do monoteísmo. Também não é verdade que os israelitas sejam os hicsos, como por vezes se propõe. E o livro Êxodo é uma invenção literária. Terá havido durante muitos anos um vai-vem de israelitas de e para o Egipto e não há provas de uma imensa migração daquele país para Canaan. As hipotéticas datas "históricas" da Bíblia são inconciliáveis com os documentos históricos, papiros ou pedras. «Por volta de 1150 AC. ou, o mais tardar, 1130 AC. , o Egipto foi forçado a abdicar definitivamente do que foram mais de quatro séculos de domínio absoluto ou quase absoluto sobre a região do Levante e os reinos, cidades e povos que ali habitavam. (...) Ora, para o "Israel" da estela de Merneptá, como para os outros grupos étnicos e não só que ocupavam o sul do Levante, este acontecimento maior da História das relações entre o Levante e o Egipto no segundo milénio AC. deve ter sido vivido como uma "libertação", isto é, como o extrair-se de uma situação de sujeição político-económica ("escravatura"), que havia durado vários séculos.» (pp. 108-9)

Há depois a revelação do nome bíblico de Deus, Yahvé (ou Yhwh, Yhw, Yh, Yahu, Yah), segundo o Êxodo. A palavra hebraica é conhecida como tetragrama (Yhwh) e é substituída em algumas edições da Bíblia por "Senhor", norma que remonta à Antiguidade e que reflecte uma espécie de tabu religioso, uma regra de respeito pela sua sacralidade (p. 115). O facto do hebraico não possuir vogais deu origem a várias incorrecções na vocalização, como Yehowah (Jeová), que é historicamente uma grafia incorrecta (p. 116).

«(...) a divindade chamada "Yahvé" começou por se apresentar com um outro nome: "El Chadai". Foi como tal que se apresentou aos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob e ainda aos seus muitos descendentes. Moisés é o primeiro a conhecer o seu "verdadeiro nome", que deve agora anunciar aos restantes Israelitas, que este mesmo deus o encarregou de resgatar da opressão no Egipto. Em suma, El Chadai e Yahvé ou Yahu são uma e a mesma divindade, tratou-se apenas de uma aparente e, em larga medida, inexplicada "mudança de nome". Mas terá sido mesmo assim? Sem entrar em considerações de cariz teológico, os investigadores desconfiam há muito que por detrás desta "mudança de nome" está, na verdade, uma "mudança de divindade". Muito provavelmente, Yahvé não foi a primeira divindade tutelar dos Israelitas. Há vários indícios que apontam nesse sentido. Em primeiro lugar, de forma decisiva, o próprio nome do povo: "Israel". A palavra "Israel" contém o elemento teofórico "el". "El" tornou-se, em hebraico, um nome genérico para "deus" mas, na origem, El era uma divindade específica considerada pelos povos do Levante o chefe do panteão e o criador do universo. No fundo, El era o equivalente, no Levante, de Zeus, na Grécia, e Júpiter, em Roma. Ora, é altamente significativo que o povo se chame "Isra-el" e não, por exemplo, "Isra-yahu" ou "Isra-yahweh". Ainda que seja difícil reconstruir etimologicamente o significado da palavra "Israel" ("El luta?" "El reina?" "El é justo?"), não há dúvida de que o nome do povo, atestado já na famosa estela de Merneptá (c. 1207 AC), a que nos referimos no capítulo anterior, reflete a proeminência de El enquanto divindade tutelar original.» (pp. 118-9)

«(...) o deus Yahvé, que aparece a Moisés e depois se transforma na divindade tutelar do povo de Israel, não é um deus autóctone da terra de Canaã.» (p. 121) 

«Que Yahvé não foi a divindade tutelar original de um povo cujo nome próprio aponta para El ("Isra-el") parece ser um dado sólido. Também há razões suficientes para assumir que Yahvé não é um deus autóctone de Canaã (um deus cananeu como Baal) e que é ao sul/sudeste deste território que a memória bíblica localiza as suas origens.» (p. 133)

«Para nós, leitores contemporâneos, a Bíblia é um livro fundamentalmente monoteísta. Mesmo quando se fala de outros deuses (como, por exemplo, o "cananeu" Baal ou o filisteu "Dagon"), o tom geral tende a desmentir a qualidade divina destas "falsas alternativas": pressente-se que estes "ídolos" nunca deveriam ter sido levados a sério, oxalá o povo de Israel e os demais povos se tivessem revelado um pouco mais sensatos. Uma tal impressão, inteiramente justa, mostra o quão bem-sucedida foi a revisão e edição da Bíblia, neste caso, o Antigo Testamento, na época exílica e, sobretudo, pós-exílica (a partir do século V AC), quando o monoteísmo bíblico atingiu plena expressão. Ora, para penetrar além deste "verniz final" e reconstruir a História da religião do Israel Antigo, impõe-se não só uma análise mais apurada dos textos bíblicos, mas também a consideração do que a arqueologia e a epigrafia nos desvelam acerca dessas práticas cultuais e das conceções religiosas então predominantes.» (p. 136)

«Esta conceção tradicional do papel de Moisés na História da religião não só do povo de Israel, mas até da humanidade em geral, resistiu durante muito tempo aos avanços da crítica histórica. Mesmo quando já se tinha percebido que a noção de que Moisés era o autor do Pentateuco não tinha fundamento histórico, continuava-se a supor que esta figura maior da tradição bíblica era o responsável ou, pelo menos, o líder indiscutível da mais decisiva das "revoluções religiosas", a "revolução monoteísta". Freud, por exemplo, dá plena expressão a esta convicção na sua obra Moisés e o Monoteísmo, publicada em 1939. Inspirado pelas então ainda recentes escavações arqueológicas no sítio de Amarna, no Egito, e a descoberta do "extravagante" monoteísmo (ou "quase-monoteísmo") do faraó Aquenáton (c. 1353-1336 AC), Freud desenvolve a sua própria teoria a respeito do surgimento e da sobrevivência do monoteísmo. Dá a Aquenáton a "glória" de ter sido o verdadeiro "visionário" da unicidade de Deus, mas atribui a Moisés a "perpetuação" deste escandaloso conceito. Moisés, sugere Freud, era egípcio e um dos sacerdotes do faraó do monoteísmo. Obrigado a fugir do Egito à morte do faraó Aquenáton, Moisés transmitiu àqueles que o seguiram a "ideia monoteísta" que fora entretanto reprimida e depois esquecida no Egito. Num autêntico "volte-face edipiano", Moisés acaba por ser morto pelos seus seguidores, mas, tal não só não impede como até estimula, por via da culpa e do remorso, o desenvolvimento do monoteísmo de perfil judaico.» (pp. 136-7)

Segundo o autor, Yahvé era um "deus-masculino", que tinha uma "esposa-divina". «Entre as possíveis "candidatas", a deusa Achera parece ter conquistado a "almejada posição". Esta divindade feminina é originária da zona do Levante, sendo mencionada pela primeira vez no século XVIII AC. A nossa fonte principal de informação sobre Achera são, no entanto, os textos inscritos em tabuletas de argila encontrados na cidade-estado de Ugarite, na costa mediterrânica, datados dos séculos XIII-XII AC.» (p. 140)

[Quando eu estive em Ugarite pude verificar a a importância do deus El, como principal divindade da época no Levante.]

A obra passa a analisar depois o período pré-monárquico (Livro de Os Juizes) e a designação de Saul para rei de Israel pelo último juiz, o profeta Samuel. David começa por ser rei de Judá e posteriormente também de Israel. Conquista Jerusalém aos Jebuseus e transforma-a em capital do reino. Por morte de Salomão o reino é dividido em dois: Israel ao norte, com a capital em Samaria, e Judá ao sul, com a capital em Jerusalém. 

Acontece que vários investigadores põem em causa a existência dos reis. Neste como em outros casos há sempre interpretações maximalistas, dos que tendem a aceitar como históricas quase todas as passagens da Bíblia, e minimalistas, dos que negam a historicidade da maior parte das narrativas bíblicas, considerando o Livro como exclusivamente religioso.

A dimensão e importância dos reinos de Judá e de Israel e a de algumas cidades, como Jerusalém, é igualmente contestada por alguns especialistas, que entendem tratar-se de sítios muito mais modestos do que deixam entender os textos bíblicos. 

O primeiro Templo de Jerusalém foi edificado no tempo de Salomão. O ataque de Nabucodonosor II ao reino de Judá teve lugar em 597 AC. O rei de Babilónia deportou Joaquim (Jeconias), o rei de Judá, e colocou no trono o tio deste, Matanias, que adoptou o nome de Sedecias. Uma nova revolta (houve várias) levou os babilónios a tomar medidas extremas. Nabucodonosor arrasou a cidade, destruiu o Templo e deportou a maior parte dos judeus para Babilónia (586 AC). Quando esta cidade foi tomada pelo rei persa Ciro II os judeus no Cativeiro puderam regressar à sua terra (537 AC).

«(...) a queda de Jerusalém e a perda da independência territorial parecem ter contribuído decisivamente para a emergência da Bíblia como uma espécie de nova pátria de um povo agora sem terra e sem rei. Este fenómeno acabaria por se revelar o princípio do processo pelo qual o povo de Israel se transformaria em povo judeu e o Yahvismo em Judaísmo, numa "reviravolta" histórica que fez (e continua a fazer) da memória do trauma uma fonte de renovação da identidade política e religiosa.»  (p. 288)

A reconstrução do Templo de Yahvé foi iniciada por Zorobabel e, segundo o Livro de Esdras, terá sido concluída em 515 AC, ao fim de muitas interrupções. Estas foram ditadas por aqueles que então habitavam Canaan, segundo o relato bíblico. «Evocar a oposição dos "habitantes da terra" e de Samaria é, por isso, muito provavelmente, tanto uma forma de desculpar os repatriados pelo atraso como uma estratégia para afirmar a sua identidade colectiva como único e "verdadeiro" Israel em face de um "outro" percebido como hostil.» (p. 311)

O segundo Templo foi aumentado com a passagem do tempo e especialmente enriquecido pelo rei Herodes, o Grande (37-4 AC). Devido às sucessivas revoltas dos judeus contra a tutela de Roma, este segundo Templo foi destruído em 70 DC por Tito, durante o reinado de seu pai Vespasiano. A cidade de Jerusalém foi quase arrasada e deportada a maior parte da população. Depois do cativeiro de Babilónia e da extinção do reino de Judá (século VI AC) e da anterior expulsão do reino de Israel (Samaria), por Teglate-Falasar III, rei da Assíria (século VIII AC), esta deportação constituiu verdadeiramente a primeira Diáspora judaica.

A continuação das revoltas contra os romanos levou estes à adopção de medidas progressivamente mais duras. Finalmente, em 135 DC, Bar Kochba, chefe da grande rebelião judaica foi preso e executado e a sua cabeça envida ao imperador Adriano. A cidade de Jerusalém foi completamente arrasada  e deportados quase todos os seus habitantes. O imperador ordenou a construção de uma nova cidade, que se chamou Aelia Capitolina; a Judeia passou a designar-se Palestina.

«Os nomes "judeu" ou "judio" têm, como se percebe pelos dicionários, dois significados fundamentais. Podem designar tanto um indivíduo natural ou com uma ligação histórica ao reino de Judá ou à província correspondente em períodos posteriores (Yehud, Judeia), como uma pessoa que professa a religião judaica. A dupla valência destes dois nomes e dos adjectivos homónimos tem, contudo, uma História e resulta da transformação da identidade do grupo designado.» (p. 321)

«A transição para uma significação mais nitidamente religiosa (ou "étnico-religiosa") parece ter ocorrido num segundo momento, no chamado "período helenístico" (c. 330-63 AC); altura em que aparece igualmente o nome abstrato "Ioudaismos" (na origem do vocábulo "Judaísmo" em português), concretamente no 2º Livro dos Macabeus (2 Mac 2,21).» (p. 322)

«Sobre os primeiros cem anos de domínio macedónio sobre Jerusalém e Judá dispomos de pouca informação. O historiador (judeu) Flávio Josefo, que viveu no século I DC, relata a tomada de Jerusalém por Ptolemeu I no seu livro Antiguidades Judaicas, mas a maioria dos investigadores não dá demasiado crédito àquela breve narrativa sobre a forma traiçoeira como o rei ptolemaico teria conquistado a cidade. Além deste episódio, Josefo conta-nos apenas a saga de uma família de judeus da Transjordânia - os Tobíadas - cujos membros ascenderam aos mais altos escalões da administração ptolemaica, e a história da tradução do Pentateuco (Torá) em grego. Este último acontecimento é, sem dúvida, o que de mais significativo ocorreu neste período. O relato de Josefo é baseado num outro documento, a chamada "carta de Aristeias", que terá sido composto no século II AC. Atribuída a Aristeias de Marmona, um oficial do rei Ptolemeu II (c. 284-246 AC), e dirigida a um certo Filócrates, irmão do primeiro, esta "missiva" é, na verdade, um pseudepígrafo no qual se relata a suposta inclusão da Torá na famosa biblioteca de Alexandria, uma das sete maravilhas do mundo antigo. De acordo com este texto, Demétrio de Faleros, o bibliotecário, teria alertado o rei Ptolemeu II para a existência de um "código de leis" judeu que haveria todo o interesse em incluir no acervo da biblioteca, mas que, "estando escrito na língua e caracteres dos judeus, iria reclamar um exigente trabalho de tradução em grego". O rei não se deixou desanimar e deu ordens para que se avançasse com o projecto. O interlocutor privilegiado dos Ptolemeus em Judá foi, nesta ocasião, o sumo sacerdote do templo de Jerusalém, que selecionou setenta e dois judeus, fluentes tanto em hebraico como em grego, para viajar para Alexandria. Ao cabo de setenta e dois dias (!), os tradutores apresentaram o fruto do seu trabalho e o texto final acabou por ser aceite tanto pelo povo e pelas autoridades judaicas como por quem havia comissionado a tradução. Nascia assim a chamada "Septuaginta" ou "Bíblia dos Setenta", em honra do número de tradutores (e de dias!) que o trabalho exigiu. Como se percebe pelo resumo apresentado, a narrativa tem uma tonalidade claramente lendária e serve, antes de mais, para exaltar a Torá, isto é, o Pentateuco, como um texto capaz de suscitar o interesse e a admiração do mais "bibliófilo" de todos os monarcas da Antiguidade, o fundador da biblioteca de Alexandria, Ptolemeu II Filadelfo.» (pp. 323-4)

«Como sugerido anos atrás pelo investigador americano Shaye Cohen, talvez nenhum momento se preste melhor à noção de um "nascimento" do Judaísmo (ou da "Judaicidade", como prefere designar este fenómeno que extravasa o âmbito meramente religioso) que o século II AC. Para Cohen e para muitos outros estudiosos na esteira dos seus influentes trabalhos de investigação, é no contacto com a cultura grega e, em larga medida graças a um processo de sinergia cultural que a ideia de pertença ao povo de Israel, isto é, de ser "judeu" vai superar o horizonte meramente geográfico ou genealógico. À imagem do que sucedera no seio da cultura grega, na qual "tornar-se grego" passou a ser uma possibilidade oferecida a estrangeiros por meio de um processo de educação (paideia), também ser "judeu" ("Ioudaios") deixou de ser apenas uma prerrogativa hereditária para passar a ser, até certo ponto, uma escolha ou "traço adquirido".» (p. 333)

«Em todo o caso, parece-nos que a hipótese formulada por Shaye Cohen capta o essencial do processo que deu novo "rosto" ao povo cuja História constituiu o objeto em estudo neste livro. Com a transformação da pertença étnico-religiosa, o "Israel bíblico" enquanto família de tribos e o Yahvismo enquanto culto herdado dão lugar a uma nova entidade - o Judaísmo - que combina aspetos de estirpe e de nação com características de estilo e de religião. Criou-se então uma tensão que ainda hoje subsiste e que, de certa forma, naquela altura, gerou as condições que permitiram a emergência do Cristianismo enquanto "religião da conversão" pela qual se formou um Israel não já (ou exclusivamente) da "carne", mas (também) do espírito (Gl 3,1-4,7). Estas, porém, são histórias... de outra História.» (pp. 334-5)

«"Afinal a Bíblia tinha mesmo razão?". No final deste percurso pela História do Israel Antigo, é justo concluir que a resposta a esta pergunta é tudo menos evidente. Tanto quanto se interroga a Bíblia sobre os acontecimentos ou circunstâncias históricas concretas como quando se coloca a questão mais genérica da relação entre Bíblia e História é inevitável reconhecer-se que responder simplesmente "sim" ou "não" empobrece a nossa compreensão não só do perfil e do horizonte da literatura bíblica, mas também da tarefa da reconstrução histórica. Nesta brevíssima conclusão, gostaria de explorar este tema, oferecendo uma síntese dos resultados obtidos e propondo uma reflexão sobre o valor da Bíblia como fonte sobre e do passado remoto.» (p. 337)

«A questão das origens de Yahvé, o Deus bíblico (capítulo IV), e de Israel (capítulo V) colocou-nos um outro desafio, a saber, como utilizar fontes bíblicas que desenham um "ideal teológico" sem, contudo, apagar completamente a memória das indeclináveis "sinuosidades" da História. No caso de Yahvé e do monoteísmo bíblico, são indícios em textos como Juízes 5, Deuterenómio  32 ou o Salmo 82 que nos permitem reconhecer, com a ajuda dos achados arqueológicos, que mais que um contestado "legado mosaico", o culto exclusivo de Yahvé e a proclamação da unicidade divina resultaram de um longo processo histórico que não culminou senão depois do exílio. No caso do surgimento de Israel na terra de Canaã, é o contraste entre os livros de Josué e dos Juízes que levou exegetas e historiadores a imaginar uma "chegada" menos violenta e, posteriormente, auxiliados pelos resultados da investigação arqueológica, reconceber a identidade do Israel primitivo em termos que compaginam exogeneidade e endogeneidade.» (p. 338)

«Neste sentido, e regressando ao que se sugeriu na Introdução, a Bíblia nunca poderia ter a "razão" que Werner Keller e outros autores na sua esteira queriam que ela tivesse. Se nos aproximamos do texto bíblico com "lentes positivistas" e movidos pela vontade de transformar a História no personagem principal do relato, o inevitável resultado é ou uma reconstrução pseudo-científica que ignora a natureza literária e o contexto concreto no qual a Bíblia foi escrita, ou um ceticismo desesperado que faz dos autores sagrados "inimigos" da (pretensa) objetividade histórica).» (p. 339)

Não sendo razoável alongar este texto com mais pormenores, as considerações que tecemos e as passagens do livro que transcrevemos parecem suficientes para despertar, nos mais interessados, a leitura da obra.


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