domingo, 12 de julho de 2020

GUILHERME II




Comprei há muito anos (talvez trinta), num alfarrabista, Guilherme II, de Emil Ludwig, conhecido autor de biografias de figuras célebres. Este livro (Wilhelm der Zweite, 1925, no original), traduzido num português estranho, não por ter sido editado em Porto Alegre (não está escrito em brasileiro) mas pelo vocabulário utilizado e pela retorcida sintaxe, foi publicado em 1934, numa edição especial para Portugal. Por motivo meramente acidental, restaurar-lhe a capa aquando da limpeza periódica de uma das estantes, li-o agora.

Começa o autor por dizer que não se trata «nem da exposição do período guilherminesco nem tão pouco da história integral do seu patrono: apenas um retrato de Guilherme II.» De facto, não estamos sequer em presença de uma biografia clássica mas de instantâneos da vida de Guilherme e da relação com as criaturas que lhe foram mais próximas. Não obstante, a descrição de Emil Ludwig ocupa 400 páginas num formato que se mais reduzido atingiria à vontade 700 ou 800 páginas, tal a preocupação de penetrar nos estados de alma das personagens, muitas vezes com pormenores supérfluos ou repetições desnecessárias.

Como não conheço qualquer outra biografia de Guilherme II, não posso avaliar da objectividade com que Ludwig aborda a figura do kaiser, mas é evidente uma especial antipatia por aquele que foi o último imperador da Alemanha. Sem pretender fazer uma crítica do livro, confino aqui alguns apontamentos.

Em primeiro lugar importa situar o imperador no tempo e no espaço familiar. Guilherme II (1859-1941), que foi imperador da Alemanha e rei da Prússia (1888-1918), era filho de Frederico Guilherme (efémero imperador-rei sob o nome de Frederico III) e de Vitória, princesa real do Reino Unido, filha da rainha Vitória. Seu avô fora o imperador Guilherme I, no reinado do qual se constituiu o Império Alemão (o Segundo Reich, sucessor do Santo Império Romano-Germânico) sob a égide do rei da Prússia (1871).

O nascimento de Guilherme foi complicado, devido a um parto difícil, de que resultou uma lesão no braço esquerdo, que ficou mais curto e semi-paralisado, defeito que procurava ocultar mas que marcou indelevelmente o seu comportamento para toda a vida. A mãe tinha-lhe pouca estima, que lhe era retribuída pelo filho, que nutria por ela especial aversão, extensiva à rainha Vitória, sua avó, aos futuros Eduardo VII e Jorge V, seu tio e seu primo, e à Inglaterra em geral. Talvez culpasse a mãe pelo seu problema congénito, mas esta considerava-o pouco capaz para reinar, inferior aos outros filhos havidos posteriormente. Todavia, Guilherme era inteligente e culto, de rápido raciocínio, mas com uma profunda instabilidade emocional, que lhe foi altamente prejudicial ao longo do seu reinado e lhe acabou por ser fatal.

A mãe achava-o dotado de uma natureza feminil, mais preocupado com decorações e condecorações, fardas e ornamentos do que com a política e é conhecido que preferia o convívio dos seus companheiros militares ou amigos pessoais à frequência das mulheres, que, no quotidiano, não partilhavam a sua vida. Não consta, porém, que tenha mantido qualquer relação homossexual, apesar do seu mais íntimo amigo e conselheiro, o príncipe Philipp zu Eulenburg, ter sido acusado (e julgado) de manter um círculo homossexual no seu palácio, como se verá mais adiante. De resto, Guilherme II era casado com Augusta Vitória de Schleswig-Hosltein e teve sete filhos.

Um dos defeitos deste livro de Emil Ludwig (existem muitas outras biografias do imperador) é, apesar da sua extensão, a de se preocupar excessivamente com fait-divers, descurando aspectos mais relevantes para a compreensão do desenrolar dos acontecimentos. Ludwig é parco na indicação de datas, a ordem cronológica é muitas vezes confusa e a indicação das personagens intervenientes, indicadas normalmente só pelos apelidos (quando muitos actores eram da mesma família), torna por vezes difícil a sua identificação, especialmente quando também se omitem os cargos, ou estes não são claramente explicitados.

A volubilidade de Guilherme II levou-o a cometer demasiados erros políticos, desde logo a demissão do chanceler  Otto von Bismarck, o artífice da criação do Império Alemão, logo após a sua subida ao trono. E quis rodear-se sempre de pessoas que o adulavam, afastando as que o aconselhavam prudentemente. Uma das vozes que refreava a sua pulsão militarista, incentivada por muitos outros, era exactamente o príncipe Eulenburg, o mais íntimo dos seus amigos, dos quais existe uma correspondência quase apaixonada, e que despediu sem uma palavra, quando estalou o escândalo em 1907. Com a saída do príncipe, ficou Guilherme mais sujeito aos conselhos da ala do regime defensora da guerra.

Durante o seu reinado, o imperador saltitou de alianças e projectos de alianças entre os vários países europeus, do Reino Unido à Rússia, da França à Áustria, à Itália, ao Império Otomano. Foram atribuladas as suas relações com Eduardo VII e Jorge V e também com o czar Nicolau II. A sua aversão à Inglaterra enquadrava-se num misto de amor/ódio de que nunca se libertou. Andou 30 anos a desdizer-se e a proclamar-se pacifista e acabou por se deixar envolver estupidamente na Primeira Guerra Mundial, por causa do atentado de Sarajevo. Principalmente por uma questão de fidelidade ao velho imperador Francisco José, da Áustria-Hungria, e também porque considerava sagradas as pessoas reais, achando inconcebível o seu assassinato.

O despedimento, em 1890, pouco depois da sua ascensão ao trono, do príncipe Bismarck do lugar de chanceler, figura que Guilherme considerava incómoda, foi um erro, até porque o Chanceler de Ferro, embora demasiado militarista, era um hábil negociador de alianças e tinha uma ampla visão política. Caprivi, que lhe sucedeu, e Hohenlohe estiveram cerca de cinco anos no lugar, o príncipe Bernhard von Bülow, oito anos, Hollweg, sete anos, Michaelis e von Hertling, menos de um ano cada, e o princípe Max von Baden, o último dos chanceleres, pouco mais de um mês (1918), para lhe conseguir arrancar a abdicação, não devidamente formulada, já que o imperador pretendia manter-se como rei da Prússia, só oficializada já na Holanda, para onde precipitadamente fugiu. Entretanto, a República (de Weimar) havia sido proclamada. Estas mudanças de chanceleres e o seu tempo de permanência no cargo não as obtive no livro, em que é matéria tratada muito confusamente, mas colhi-a noutras fontes.

O escândalo Eulenburg, imprecisamente descrito no livro, consistiu na persistente difusão na imprensa (1906/1907), primeiro veladamente, depois com acusações concretas, de uma ligação homossexual entre o príncipe Philipp zu Eulenburg, embaixador e íntimo do imperador como se disse acima, e o general conde Kuno von Moltke, comandante militar de Berlim. Segundo o jornalista Maximilian Harden, haveria mesmo um círculo homossexual que se reuniria no Palácio de Liebenberg, residência do príncipe, de que fariam parte altas personalidades da aristocracia alemã, e que envolveria também a presença de jovens soldados e de rapazes dos meios operários. Nessa época, a conduta homossexual era proibida na Alemanha (§ 175º do Código Penal, disposição revogada, espantosamente, só em 1994) e considerada infamante [É estranha a introdução deste § 175º em 1871, já que o rei Frederico II da Prússia, o Grande (1712/1740-1786), personalidade de referência em toda a Alemanha (e idolatrado por Hitler), era um homossexual célebre, praticando assiduamente com os seus soldados]. Durante o processo que se seguiu vários oficiais, cujos nomes a polícia conhecia, suicidaram-se. O processo contra Eulenburg nunca foi concluído por entretanto ter sido proclamada a república. A intenção de Harden era mais precisamente atingir a reputação do kaiser, e afastar Eulenburg, cujas opiniões pacifistas e anti-imperialistas o imperador acatava, substituindo-o por figuras ligadas à ala dura e militarista do Império. Harden escrevia a soldo dessas forças e foi-lhe muito útil o conhecimento de informações que lhe foram fornecidas pelo diplomata barão Friedrich von Holstein, uma personagem sinistra que durante trinta anos manobrou na sombra a política externa da Alemanha, após a saída de Bismarck. Aliás, por causa da homossexualidade, já Friedrich Alfred Krupp, o famoso industrial dono das fábricas de aço Krupp, que passava uma parte do ano em Capri, onde convivia intimamente com os acessíveis rapazes da ilha, se suicidara em 1902, depois de ter sido denunciado pela imprensa. Krupp fazia também parte do círculo de amigos do imperador, que acusou o jornal do partido social-democrata de ter mentido sobre as inclinações do industrial.

Os anos que precederam a eclosão da Primeira Guerra Mundial são largamente descritos por Emil Ludwig, embora a prosa seja um tanto confusa. Ressalta a constante mudança de espírito do imperador e as peripécias que haviam de conduzir ao fim da dinastia Hohenzollern. O livro termina, um pouco abruptamente, com a chegada de Guilherme à fronteira da Holanda. Nem uma palavra sobre o tempo de exílio; é verdade, que quando foi escrito, Guilherme II ainda estava vivo.


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